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segunda-feira, 1 de setembro de 2025

No Minho, mais perto do céu

Livro das lamentações
O dinheiro não cai do céu. E é pena.

O Minho cheira a Natal, sabeis? O Alentejo e Trás-os-Montes decerto também cheiram, as Beiras e o Ribatejo lá terão os seus aromas, mas a mim o que me interessa aqui é o Minho, e quanto mais alto melhor. Mais dois ou três meses, e o Minho começa a cheirar a Natal. Ao Natal antigo, já posso dizê-lo. Os últimos lavradores do Minho fazem fogueiras nos campos como fizeram os seus pais e os pais dos seus pais, queimando folhas secas e gravetos velhos, emprestando ao ar um perfume doce de lareira. De lar. Dá uma vontade tola de abrir a janela do carro, largar a cabeça ao frio e fechar os olhos. E eu abro e eu largo e eu fecho. A janela, a cabeça e os olhos, respectivamente. Sou pendura, graças a Deus, não sei conduzir, vamos em segurança.
Ando sempre de nariz no ar, tenho talvez um lado canino que desconhecia e já começo a admitir. Farejo. Os cheiros interessam-me particularmente, orientam-me, transportam-me aos sítios. O cheiro a especiarias leva-me a Angra do Heroísmo, Óbidos cheira a chocolate, Fundão à flor da cerejeira e Vila Nova de Foz Côa às amendoeiras em flor. Fafe cheirava a sabão amarelo e Matosinhos cheira mal.
Que depressa vão os dias! Tinha razão o nosso bom padre Fraga: ainda há pouco foi Janeiro, passámos agora Agosto e já estamos no fim do ano, meus meninos. Estamos no Natal. Estamos sempre no Natal.
É. A memória também vai ao cheiro: a querida Bó de Basto, pequerricha, resmungona e bondosa, aquecendo o vinho na infusa esbotenada que tem dentro uma maçã acabadinha de assar no borralho. O fumo das giestas molhadas e que, ainda assim, ajudam a espertar o braseiro. Os malabarismos a toque de caixa do testo da velha chocolateira desbordante de café que não passava de cevada. A garrafa da aguardente do avô que bastava aliviar-lhe a rolha para logo sarar constipações e até unhas encravadas. A luz bailarina da candeia fazendo filmes mudos e de terror nas paredes da cozinha, negras de fumo e do luto da vida. E a canela. Sim, as queimadas agrícolas de Novembro e Dezembro, no Minho, são temperadas com canela. Quem disser o contrário, anda muito mal informado ou está a pensar nos  fogos de Verão. 
Então. Vamos lá, que são que horas! De novo na estrada de um carro só, o fumo, os fumos, aqui, ali, mais adiante, novelos que sobem da terra suada, letra a letra inventando palavras de faz de conta. São os índios a mandar recados uns aos outros, gosto de pensar, e rio-me outra vez moço. Fafe, Medelo, Marinhão, Moreira de Rei, Várzea Cova, Passos logo ali em baixo, tecnicamente já em Cabeceiras de Basto, devagar se vai ao longe. Assim vamos, a Mi e eu, para não perdermos pitada. Tive tanta sorte: a minha mulher converteu-se ao minhotismo, já há muito, andamos sempre os dois ao mesmo. O fumo acinzenta o verde que cresce ao abandono e as leiras lavradas e cada vez mais raras. Acinzenta a paisagem mas limpa a alma. Este fumo aconchega-nos, abraça-nos, obriga-nos a abraçarmo-nos. Por causa do fumo, o céu é mais baixo, estamos mais perto do Céu, estamos mais perto uns dos outros, e apetece-me inspirar a plenos pulmões a ver se consigo guardar este fumo e este cheiro, esta paz, para o resto do ano, para o resto da vida. Quem me dera aqui à noite, toda as noites, com este cheiro, com este céu. Este céu cheio de estrelas, que eu bem as sei. Devia ser proibido alguém morrer sem ter uma mão dada e um céu assim para olhar. Olhar... e só então partir. 

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Os bês pelos bês

Aos de cá de riba, os que aqui bibemos resbés com o pai Minho e com a parentela galega, acusam-nos regularmente de trocarmos os bês pelos bês. Que, por exemplo, dizemos bergonha em bez de bergonha, biolência em bez de biolência, baca em bez de baca, pobo em bez de pobo, bírgula em bez de bírgula, bizinho em bez de bizinho, berde em bez de berde, ou binho em bez de binho. E que, pelo contrário, dizemos boi em bez de boi, beringela em bez de beringela e bicha em bez de bicha. Eu nunca dei fé de semelhante, a berdade é só uma! Acho que quando é bê dizemos bê e quando é bê dizemos bê, ebidentemente - de resto como toda a gente, que não somos menos do que os outros no que diz respeito ao falar e à gramática. Quanto à crítica propriamente dita, das duas, uma: má bontade ou mau oubir. Debe-se aberiguar!

(Publicado originalmente no dia 16 de Fevereiro de 2015)

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Do normal ou do bô?

Tínhamos a bó e tínhamos o bô. Eu e os meus irmãos tivemos bó e bô vezes dois, pela mãe e pelo pai, sorte a nossa! Bozinha era a bisavó, e tínhamos, em Basto, uma, muito velhinha, muito vestidinha de preto, que certa vez deu-me uma batata assada no borralho que era muito saborosa, e é essa a extraordinária memória que guardo dela. Bô, na nossa terra, queria também dizer bom: binho bô; bô moço; estás bô? Depois, se calhar por soar a parolo não sei a que finaços de carregar pela boca, o bô de avô mudou para bu. Bu também mete medo, é susto. Buuu! Mas quem caralho teve a ideia?...

Para mim, e defendo-o de graça há muitos anos, o Minho começa em Fafe e acaba em Santiago de Compostela. E a Galiza também. Isto é: Galiza e Minho são-me o mesmo, chamem-lhe o que quiserem, mas Minho decerto fica-lhe melhor derivado ao rio que nos une. Somos a cara chapada uns dos outros, os minhotos e os galegos destes limites, labregos envernizados, crescemos das mesmas raízes, aprendemos da mesma língua, padecemos ainda hoje do mesmo ancestral atraso de vida, desfrutamos do mesmo amor à comida e à bebida, à água benta e à festa, partilhamos a maneira de falar, cheia de "ches", de "inhas" e de "inhos", de "xes" em vez de "ses", de "bes" em vez de "ves", não raro falamos até o mesmo idioma, consoante os sítios e a idade, repetimos nomes, palavras pândegas, debitamos caralhos atrás de caralhos como não há memória de tanto caralhar noutras latitudes deste mundo e de outros. Nós, os galegos do lado de cá, e eles, os minhotos do lado de lá, assim somos.
Em Fafe e nas terras de Basto chegadas a Fafe falava-se esse conversar comum quando eu era pequeno, aprendi-o naturalmente com os meus avós maternos, em Passos, Cabeceiras, com a minha mãe e com os meus tios. A querida tia Margarida ainda agora o usa a cotio, com uma graça que me encanta e comove, e eu dou-lhe serventia da língua para fora sempre que posso, e hoje em dia, sem obrigações profissionais, posso quase sempre. Este modo de falar faz parte do nosso fafês.
E o fafês é a minha língua. Nasci no fafês, sou do fafês desde pequeninho, agora tanto ou mais do que naquele tempo.

Imaginai então a minha alegria com o que se passou aqui atrasado, numa das nossas habituais saltadas ao lado do Minho a que outros chamam Galiza. Foi assim. Como de costume, aproveitámos para atestar o depósito do carro, ali à entrada de Tui, logo depois da velha ponte de Valença, a chamada ponte rodoferroviária com desenho Eiffel. "Ga-só-le-o!", digo eu ao senhor gasolineiro. E o senhor gasolineiro, nunca tal nos tinha acontecido, pergunta-me sem mais nem menos, como se anunciasse pipa nova: - Normal ou do bô?...
Caralho! "Do bô", o senhor gasolineiro perguntou-me se o gasóleo era "do bô", palavra de honra, "do bô", perguntou, como fosse a minha avó, o meu avô, a minha mãe ou a tia Margarida a perguntar-me. E eu fiquei tão contente, tão criança, de repente tão outra vez abraçado ao avental da minha mãe a cheirar tão bem a sabão e felicidade, a casa, a nós, a Fafe antigo, fiquei tão comovido que quase me descompus. Apetecia-me abraçar o homem...
Por outro lado, o gasóleo era do normal e fedia indecentemente. Mas o senhor gasolineiro perguntou se era "do bô", foi o que ele disse, e disse tão bem, e eu gostei tanto. "Do bô", caralho!...

(Publicado originalmente no dia 14 de Janeiro de 2025)

sábado, 21 de junho de 2025

Fui para padre e não me quiseram

Quanto mais alto, melhor
Ouço a poderosa Abertura 1812, de Tchaikovsky, e é como se fosse o Minho, o meu Minho. Isto é: quanto mais alto, melhor.

Rui Valério entrou para o seminário aos 11 anos, destacava a CNN Portugal, e o Papa, então Francisco, escolheu-o para ser o novo patriarca de Lisboa. Eu também entrei para o seminário aos 11 anos, mas, lá está, mais uma vez não fui escolhido. Em todo o caso, não me dava jeito. Aquilo foi em Novembro de 2024 e eu tinha e tenho a produção toda tomada até ao final de 2026. Viessem mais cedo. Ou, então, que não me tivessem deitado fora. Para além disso, devo confessar, convinha-se um lugar cá mais para cima, para o Minho, se possível, no Alto Minho então é que era, uma casinha mesmo sem sacristia mas com terreno, pequeno que fosse, o rio e o mar à beira...

segunda-feira, 17 de março de 2025

Aldrabons e aldramaus

Por que razão medram tanto os aldrabões em Portugal? Por que razão vamos a votos e mandamos para o poleiro os aldrabões, de variada cor, como se por acaso acreditássemos neles, regra geral? Os aldrabões que antes e/ou depois estão nos bancos, nas edepês, nas caixas, nas renes, nas cepês, nas referes, nas misericórdias, nos metros, nos centímetros, nas construtoras, nas destrutoras, nos superescritórios de advogados, nos supermercados de escravos, nas fundações, nas afundações, nas jotas, nas motas, nas assessorias, nas tias, nas televisões e nos jornais, no parlamento, no barlavento e no sotavento, e têm do povo uma vaga ideia. Por que razão, se nos queixamos tanto deles?
Andava com esta dúvida fisgada nem sei há que tempos, mas no outro dia tive a inesperada revelação, quase sem querer, ao ouvir um minhoto retinto a falar. Um minhoto de Fafe, evidentemente, dos nossos. O homem antigo falava de não sei quem e chamava-lhe aldrabom. Isso, aldrabom. Os minhotos de cá de baixo agarramo-nos ao pouco que já nos resta do galego purinho e falamos assim, trocamos o excêntrico ão pelo ancestral om, daí a confusom, e se calhar acreditamo-nos: ora aí está um aldra que é bom, pensamos na melhor das nossas intenções e caímos na esparrela. Porque "eles" não são aldrabons. São aldramaus.

sábado, 22 de fevereiro de 2025

Carapaus, só de corrida

Era um anúncio radiofónico a não sei quê. Mais ou menos isto: o filho com jeito para a piada chega a casa e diz ao pai que tem uma má e uma boa notícia para lhe dar - bateu com o carro do velhote e, como foi contra a porta do mercado, aproveitou para trazer os carapaus para o jantar. "Carapaus, não", corrige o sapiente progenitor, "chicharros, como se diz nos Açores". Exactamente. Como se diz nos Açores. Sobretudo naquele belíssimo naco açoriano a norte do rio Douro e Minho acima, Galiza adentro...

Em Fafe, carapaus, só de corrida. Ou por outra: em Fafe diz-se chicharros, evidentemente, e chicharros dizia-se chucharros, e até havia uma família, gente boa, com esse nome posto. Os Chucharros, do Lombo, vizinhos do eterno Armando Zegolina. Em fafense correcto, quer-se dizer, em fafês, como eu lhe chamo, os "ches" de chucharro devem ser lidos como os "ches" de cachicha. E evidentemente deve ler-se e dizer-se evidénteménte.