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domingo, 7 de setembro de 2025

Cubillas e, talvez, cação de cebolada

Mas onde é que eu o deixei?...
Era um avançado muito distraído. No momento supremo do remate - dizem os especialistas -, andava sempre à procura do pé esquerdo.

Eu vi Cubillas. Teófilo Juan Cubillas Arizaga, o prodígio peruano, vi-o com os meus próprios olhos, vi-o da minha cor, uma só, azul e branco, vi-o pequeno, delicado, elegante, inesperado, repentista, amiúde sublime, fulminante, Lionel Messi antes de ser inventado, uma brisa ligeira e redolente deslizando quase invisível sobre o relvado. Cubillas era um sorriso em andamento. Sim, um sorriso - genuíno, dir-se-ia que infantil, maroto. Cubillas e a bola estavam-se prometidos desde o princípio dos tempos, sabiam-se de cor e salteado, eram um em dois perfeito, acto de amor consumado, puro gozo, prova viva da bondade dos deuses.
Eu vi Cubillas. Uma vez, porque os fenómenos são assim, não dão para mais. Vi-o aqui à porta de casa, em Guimarães, fomos de Fafe o tio Américo, o tio Zé e eu, de propósito para ver Cubillas, com merenda aprazada talvez no Batista da Cruz d'Argola, ou não sei se noutro estaminé qualquer ali da zona que tinha um cação de cebolada que era realmente uma especialidade, e fiquei com essa memória. Íamos com fé. Podia ser que também víssemos o "nosso" Quim na baliza do FC Porto, mas foi Tibi quem tomou conta, se bem me lembro desse mês de Março de 1974, ainda o cravo estava por estrear. O estádio rebentava pelas costuras, deu empate zero-zero e Cubillas falhou um penálti, mas isso o que é que importa?
Tem piada, foi com o Vitória que, entre 1975 e 1976, eu aprendi o futebol de primeira divisão. Os quase dois anos no Liceu de Guimarães deram-me para isso: a meio da semana, ia comprar o bilhete numa loja ali perto do Toural, creio que na Rua de Santo António, e no domingo, logo a seguir ao almoço, punha-me à boleia, em Fafe, encostado à Farmácia Sousa Alves, como nos dias em que ia vadiar para as aulas. O regresso a casa, depois do jogo, novamente de dedo polegar esticado, era quando Deus quisesse. Mas naquele dia estava muito bem acompanhado, com transporte garantido e horas tomadas.
É. Eu vi jogar Teófilo "Nene" Cubillas! Assim, com ponto de admiração e tudo. E explico a excitação. Sou esquisito. Em toda a minha vida, fui, por vontade própria e em meu perfeito juízo, a somente quatro concertos: Andràs Schiff (com as Variações Goldberg de Johann Sebastian Bach), Paco de Lucía, Rolling Stones e Bob Dylan. Já tenho idade para fazer balanços, e faço-os, antes que tenha idade para não os fazer. Schiff, Lucía, Stones e Dylan foram-me acontecimentos únicos, marcantes, epifanias, catarses, itens que eu coloco na coluna mal preenchida dos meus "momentos verdadeiramente extraordinários". Schiff, Lucía, Stones, Dylan. E Cubillas. Para mim, Cubillas está-lhes ao nível. Cubillas e, sou franco, talvez também o cação de cebolada...

sábado, 6 de setembro de 2025

O meu primeiro casamento

Ele era um tipo com princípios e valores, sabia das suas obrigações. Casou. Casou pelo civil e casou pela Igreja. Por amor é que não!

O meu primeiro casamento foi o casamento do meu padrinho e tio Américo com a minha querida tia Laura. Vieram convidados do Porto e eu andei de "pão de forma" em forma de Volkswagen, numa épica viagem entre a Igreja Nova e os Bombeiros antigos, logo ali no meio dos palacetes, talvez nem 100 metros sempre em linha recta, e ainda assim enjoei. A fotografia "de conjunto" foi tirada a preto e branco nas escadas do Hospital, talvez esteja a inventar, e o banquete teve lugar no velho salão da Bomba, eu metido numa mesinha à parte para as crianças, logo depois da grande porta dupla de entrada, e portanto não gostei. O meu segundo casamento, eu já rapaz, foi o casamento do meu tio Zé da Bomba com a minha querida tia Lena. Vieram convidados do Porto, evidentemente, comeu-se no famoso Restaurante Jordão, em Guimarães, fui apresentado aos agriões em salada, houve discursos e não me lembro de como é que fomos para lá, se calhar a minha mãe teve de alugar um carro, serviço que decerto ainda hoje, mais de 50 anos depois, andará a pagar a prestações. O meu terceiro casamento foi o casamento da minha irmã Nanda com o meu cunhado Álvaro. Não tenho ideia se veio alguém do Porto, mas provavelmente veio, porque fazia parte ou então era mania, tara de família, isso de vir alguém do Porto, e aquilo fazia-me espécie. "Os do Porto" não era por acaso que eram "os do Porto". Ser-se "do Porto" era um merecimento, uma espécie de doutoramento ou condecoração, estatuto, posição, em todo o caso. Eu ia para o Porto de comboio, automotora, vá lá, de cu tremido e geralmente a dormir, só para namorar, essa é que é a verdade, nunca fiz nada na vida, mas eles não, tinham ido para o Porto a pulso, mais difícil ainda do que ir para a França a salto, "estavam muito bem", regressavam para as festividades da terra, de fato e prendas, magnatas e um bagaço, ninguém sabia o que é que eles realmente faziam no Porto, se é que faziam alguma coisa, e se eventualmente não seria em São Mamede de Infesta ou em Rito Tinto, para não ir mais longe, mas, para todos os efeitos, eram "os do Porto", parentes desconhecidos e habitualmente desnecessários, porém com direito a vénias e mordomias sempre que se apresentassem, e eu, quer-se dizer, afinava com tanto fingimento. Tornando à Nanda e ao Álvaro, que é o que mais importa, a cerimónia religiosa creio que se passou na Capela de Santo Ovídio, que era moda naquele tempo, e o almoço lembro-me que foi muito bem servido no restaurante do Café Académico, tudo em Fafe. Depois dos meus três primeiros casamentos, tive evidentemente outros casamentos, inclusive o meu, que ainda hoje vigora, não é para me gabar. O meu casamento realizou-se por acaso no Porto e vieram convidados de Fafe. Muitos. A maioria qualificada. Não foi vingança, mas soube bem.

quinta-feira, 24 de julho de 2025

O sorriso do Zé Carlos Estantio

Com o riso não se brinca
Tomem-se todas as precauções. O riso é altamente contagioso. Recomenda-se o uso de máscara.

Consultei o catálogo. Há dezanove tipos de sorriso, dizem os entendidos, mas apenas seis são considerados sinal de felicidade ou alegria e somente um é avaliado como genuíno ou verdadeiro - o famoso sorriso de Duchenne, conhecido como "sorriso com os olhos", embora também envolva a boca. Vêm depois, por exemplo, o sorriso social, o sorriso de satisfação, o sorriso sorrateiro ou talvez malicioso, o sorriso de desprezo, o sorriso falso, o sorriso forçado, o sorriso sedutor, o sorriso triste, o sorriso de medo, o sorriso de resignação, o sorriso coquete e o sorriso amarelo. Dois sorrisos amarelos correspondem, evidentemente, a um sorriso vermelho. Junto-lhes eu, de borla, e não tendes nada que agradecer, o sorriso Pepsodent, o sorriso da Mona Lisa e, dentro do género, o sorriso do Zé Carlos Estantio. 
O nosso Zé Carlos Estantio. Em Fafe, perguntai por ele aos mais velhos, que vos contem, e descobrireis, prometo-vos, uma figura estimável e singular. Um cromo da vila antiga, um mouro de trabalho, sempre a alombar de um lado para o outro, envolto numa nuvem de farinha, uma jóia de moço, desde que não se metessem com ele, uma cara personalizada, inesquecível. Não era por acaso que o Estantio se chamava Estantio.
O adjectivo estantio é um regionalismo baixo-minhoto, portanto nosso, que quer dizer estacado, pasmado, assarapantado. E o Zé Carlos era isso permanentemente, ao natural, a cara chapada do sorriso Duchenne, o tal que envolve os olhos e a boca, quer dizer, o músculo zigomático maior e o músculo orbicular do olho, para que melhor nos entendamos.
Os especialistas assinalam que um sorriso genuíno, a sério, ou à séria, se o sorriso for em Lisboa, pode implicar a contracção de dezassete músculos faciais. Postulado não aplicável, evidentemente, ao Zé Carlos Estantio, que exibia o sorriso Duchenne em todo o seu esplendor, de manhã à noite, e suponho que também durante o sono, sem esforço nenhum, isto é, sem mexer uma palha, quanto mais um músculo. A cara do Estantio estava formatada de nascença, predeterminada num sorriso quiçá difícil de entender, mas honesto e eterno. Livre. Hoje em dia, aliás, o sorriso de Duchenne poderia chamar-se, mais propriamente, sorriso do Zé Carlos Estantio, o que seria uma honra para Fafe e para todos os fafenses, termos o nosso sorriso na cara das outras pessoas, inclusivamente estrangeiras e até americanas, para não irmos mais longe.
Para todos os efeitos, a cara do Estantio, com o seu sorriso estampado, indelével, irrevogável, podia, por outro lado, ser considerada uma cara de gozo, de desafio. Podia e era perigoso. Lembrais-vos, aqui atrasado, quando o Sr. Sérgio Conceição estava de treinador do FC Porto e foi castigado com 30 dias de suspensão e mais de dez mil euros de multa por causa do seu "sorriso jocoso". E da outra vez em que foi expulso de um jogo derivado ao seu "olhar fulminante"? Um sorriso deslocado ou mal interpretado, em quantas tragédias já descambou? Pois é: a sorte do Zé Carlos é que nunca foi treinador do FC Porto e era de Fafe, uma terra de mansos costumes e bastante respeito, pelo menos às vezes.
O Estantio partiu e foi um sorriso que se perdeu, uma estrela que se apagou no firmamento local. Fafe ficou mais pobre. E nem vou falar do Chico Cereja, porque isso já é outro assunto, mais profundo, fica para outra maré. Isto, às tantas, cheirará a conversa de velho, e será, mas eu digo que Fafe tinha mais piada antigamente, no tempo dos fafenses excelentíssimos, e o Zé Carlos, parecendo que não, fazia parte dessa extraordinária elite. Havia sorrisos.
Agora há risos, a verdade também tem de ser dita. Chovem comediantes no Teatro-Cinema, à ordem dos dois ou três por mês, e são sempre um sucesso. Porreiro, porque rir faz bem à saúde, faz bem ao fígado, faz bem à pele, faz bem ao coração, faz bem à pituitária, faz bem à próstata, faz bem à alma, faz bem na gravidez, enfim, rir é o melhor remédio. Ainda bem que Fafe ri.
No fafês de antanho havia, se não estou em erro, expressões idiomáticas, ou idiotismos, como também se diz, que pressagiavam os tempos artificialmente alegres que hoje vivemos. Usavam-se nos cumprimentos à distância, nas saudações para o outro lado da rua, ou passando de carro, ditas entredentes a acompanhar o sorriso hipócrita e o aceno de mão automático, como se fosse "bom dia!" ou "boa tarde!", "olá, viva, como é que está!?", algo do género. Lembro-me daquela, muito batida - E se te fosses rir prò caralho? Ou da outra, utilizada regularmente pelo meu tio Américo e igualmente assertiva - Vai-te rir pra quem te monta!
Era. Os antigos sabiam muito! E havia educação.