Num beijo
- Num beijo! Num beijo! - gritava o homem, aflito. E realmente num bia.
Bela palavra, esbraguilhado. Nunca lhe tinha posto a vista em cima até há coisa de uma década e por acaso, apesar de a língua portuguesa ser uma paixão e o meu ofício. Envergonhei-me, pela rematada ignorância. O amor e o respeito pela nossa língua foram-me ensinados primeiro pela minha mãe - analfabeta por culpa da vida, e sábia graças a Deus. A minha mãe corrigia-me a leitura, emendava-me as palavras, eu de cabeça enfiada nos livrinhos fascistas da primária, na mesa da nossa sala que era também o quarto dos meus pais logo à entrada da casinha do Santo Velho, e a minha mãe a ensinar-me Português. Ela não sabia ler nem escrever, e eu achava aquilo extraordinário. Ainda hoje acho aquilo extraordinário. Um milagre.
Depois tive a sorte de me calhar o professor Correia (Toninho da Cafelândia, se não me engano), que me levou da segunda à quarta classe na Escola Conde Ferreira, tive os extraordinários mestres do seminário, o professor Alberto Alves, que me ensinava livros na Biblioteca Gulbenkian de Fafe, o velho professor Horácio, meu chefe e amigo na revisão do Janeiro. Todos me ensinaram. A tabuada dos nove, a Linha da Beira Alta, os reis da 1.ª Dinastia, semânticas e hermenêuticas, mas sobretudo ensinaram-me a pedir licença e a tratar com carinho a língua portuguesa. Puxaram pelo melhor de mim, sem estragarem o que a minha mãe tinha feito. Aprendi.
Aprendi, por exemplo, a ter dúvidas quando escrevo. Quem não tem dúvidas, tende a escrever asneiras. Hoje em dia escreve-se muito de ouvido. E escrever de ouvido não tem nada a ver com literatura oral, é mas é sinónimo de preguiça, ignorância. As palavras nem sempre se escrevem como soam, e muitas vezes são mal ditas. Mal ditas, mal escritas, mal interpretadas, e assim normalizadas. O erro passa a ser a norma, a patacoada alcança dignidade gramatical. Pela parte que me toca, eu, confesso, não sei escrever sem o dicionário, o livro, ao lado; não sei escrever sem a enciclopédia, os livros, ao lado. Molho o dedo na língua, gesto antigo, vou lá ver se é com ésse ou com zê, se a palavra que escolhi quer dizer exactamente aquilo que eu quero dizer - e ainda assim asneio.
Foi num destes exercícios que descobri a palavra esbraguilhado e gostei dela. Assumi-a. E, à falta de melhor assunto, veio-me a memória. Ou então sou só eu a dar uso às palavras. Estimo-as, protejo-as, mas, sei muito bem, elas precisam de arejar, de vida. E cá estão!
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