Foto Tarrenego! |
Um querido amigo pediu-me ajuda para um trabalho que estava a fazer: se eu lhe conseguia "resumir em duas linhas o porquê" da expressão "Com Fafe ninguém fanfe". Ele merecia resposta, porque acamaradou comigo em tantos e tantos dos meus fugitivos regressos à terra, tornando-se, por via disse, um extraordinário fafense amador. E eu resumi assim: "Com Fafe ninguém fanfe" quer dizer, tão-só, com Fafe ninguém se meta. Porque, quem se meter, leva! E tem a sua origem nas lendas da Justiça de Fafe, que muito boa gente confunde, hoje em dia, com fazer justiça pelas próprias mãos. Não é nada disso. A Justiça de Fafe deve ligar-se, antes, à defesa da honra.
Ou por outra. A Justiça de Fafe é a metáfora folclórica de uma gente de paz que não gosta de levar desaforo para casa, ou que costumava não gostar. Nós, os fafenses. Quem se meter com os de Fafe, quem nos ofender de graça, recebe o troco, e que mal tem isso? O resto é treta, mais ou menos erudita. Geralmente menos. Muito boa gente confunde, hoje em dia, este velho sentido de verticalidade com fazer justiça pelas próprias mãos, mas é um engano redondo. A Justiça de Fafe deve ligar-se, antes, à defesa da honra. A coça é semântica.
Isto e mais nada. Nem luta de classes, nem bullying, como se diz agora, nem administração de justiça privada, nem apologia da justiça popular, nem jogo do pau, nem fanfarronice, nem sacholadas, nem pistolas e navalhadas, nem bordoada por dá cá aquele copo, nem ciganos, nem Felizardos, nem Ardegões, nem outros Ardos ou Ões. Tudo equívocos. As lendas têm costas largas, de toda a conveniência para o caso em apreço, mas saber ler antes de escrever e pensar antes de falar também nunca fez mal a ninguém.
E não. O jogo do pau não é "uma das maiores tradições do concelho" de Fafe, como equivocamente se escreve na propaganda autárquica, a mesma que, talvez por anedota, considera "controverso" o nosso verdadeiro ex-líbris, a Justiça de Fafe. O jogo do pau é tão tradição em Fafe como em Lisboa, na Terceira, em Trás-os-Montes, no Ribatejo, na Estremadura, no Algarve ou na Galiza. Sabiam que o "Jogo do Pau de Cabeceiras de Basto" é património cultural imaterial desde 2023? Isso, o jogo do pau de Cabeceiras de Basto. O jogo do pau é tão tradição em Fafe como a sueca, o futebol ou a malha, o esconde-esconde, o dominó ou a petanca, que se jogam em todo o lado. E que não se pense o contrário: eu gosto do nosso jogo do pau, e conheci e aprendi, sobretudo vida, com grandes "puxadores", veneráveis mestres como o Sr. José do Santo ou o Moleiro do Lombo, mas a verdade é para ser dita.
Não. O jogo do pau não foi inventado em Fafe, não deriva da Justiça de Fafe. Nem a Justiça de Fafe deriva do jogo do pau. A Justiça de Fafe é outra coisa, é lenda, lenda nossa, exclusiva, de honra, insisto, e, bem vistas as coisas, uma das poucas tradições genuínas do concelho de Fafe, que as há, como o nosso falar antigo, inimitável e pitoresco.
Os reis de Espanha vieram de visita a Portugal e o nosso presidente Marcelo levou-os a Guimarães e à estátua do tratante, do Afonsinho: a Letizia e o Felipe puseram-lhe flores. E eu gostava de ver o mesmo com a nossa Justiça de Fafe. O mesmo, quero dizer, flores, que de reis e presidentes-reis, embora façam um figuraço nas montras da especialidade, passamos muito bem sem eles.
Mas não. Durante anos o monumento à Justiça de Fafe, pelo contrário, foi mantido longe dos olhares forasteiros, escondido, como se tivesse sido feito por engano, como se tivesse nascido com defeito, como se fosse um erro, como se nos envergonhasse. A injustiça foi finalmente remediada, com a nova praça, a aproximação do monumento às pessoas e o sucesso que se sabe. Esbarram-se umas nas outras as iniciativas, apresentações e romarias que ali têm lugar, é ali a nova sala de visitas da cidade, não há viageiro que por lá não passe. De mota, bicicleta, trotinete, patins, carro, camião ou carrinho de rolamentos. Toda a gente tira fotografias com a "estátua" e mete nos facebooks, espero que a autarquia não se lembre de cobrar bilhete. E flores, há-as?
E há mais. As Caldas da Rainha orgulham-se dos seus fradinhos arrebitados, erguem bem alto os seus avantajados membros cerâmicos, e disso fazem negócio, turismo, riqueza. Não estará na altura de Fafe fazer o mesmo com a sua Justiça?
A Justiça de Fafe foi sempre importante para mim. Tenho muito orgulho nela. Desde a época dos postais, das quadras do Zé da Castro, dos calendários, das t-shirts estampadas, do cartaz das Festas da Vila, da idade da razão. Gosto da lenda, percebo-a, conto-a, explico-a, contextualizo-a, acompanha-me desde que eu nasci, passou comigo pelo seminário, pelos Comandos, pelo jornalismo, identifica-me pelo mundo fora, e até aprecio o monumento, embora sempre o tivesse desejado mais central.
E, por minha culpa, a Justiça de Fafe também é importante para a minha família. Nunca a abandonámos. Ali em cima está o Kiko, meu filho, fotografado pela mãe, minha mulher, ainda o mundo acabara de ser inventado. Olhem para ele. O Kiko, que é fafense nascido no Porto, fará 41 anos em Abril, coitadinho, vejam ao tempo que aquilo vai, e leva-me à "estátua" de vez em quando para matarmos saudades e comermos uma vitelinha como só na nossa terra. Eu e a patroa também lá costumamos ir de visita ao monumento como quem vai a Fátima ou a São Bentinho, três ou quatro vezes por ano, não sei se da próxima será preciso fazer marcação...
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