quarta-feira, 18 de junho de 2025

O grande Fortunato

O melhor amigo
Os Sousas do sexto-direito têm um cão. O cão é o melhor amigo do homem, quero dizer, do Sousa. O melhor amigo da mulher, quero dizer, da mulher do Sousa, é o Gustavo da Tabacaria.

Encontrei ontem por acaso o Fortunato, o meu amigo Fortunato - aos séculos que não nos víamos um ao outro, eu e o velho Fortunato. Fiquei tão contente! E foi tão bom! Recordámos os tempos antigos, aqueles anos loucos na universidade, falámos das nossas vidas, da família, dos filhos, dos netos, dos amigos que já morreram, daquela inesquecível viagem à Áustria para apoiar o Benfica, grandes malucos, falámos deste mundo sem conserto, deste país que só neste país, do nosso tempo, que é que era, do tempo para o próximo fim-de-semana e de projectos para o futuro. Enfim, pusemos a conversa em dia, avivámos uma amizade que vem desde os bancos da escola, por assim dizer. Despedimo-nos calorosamente, trocámos abraços da boca para fora e números de telemóvel, apalavrando a marcação de um almoço para um dia que não chova. Cada qual seguiu para o seu lado, e só então é que eu reparei que aquele não é o Fortunato, nem sequer é parecido com o Fortunato. De resto, pensando bem, ele também não me disse que era o Fortunato e eu nunca conheci nenhum Fortunato, nunca tive um colega ou amigo chamado Fortunato, não andei na universidade, nunca fui à Áustria e, ainda por cima, quero que o Benfica se foda. Na verdade, depois de muito puxar pela cabeça, cheguei à irrefutável conclusão de que não conheço este indivíduo de lado nenhum. Em todo o caso, gostei muito de falar com o Fortunato, e é sempre bom ter amigos assim.

terça-feira, 17 de junho de 2025

Diálogos fafenses 18

Contos americanos
- Era um exímio executante...
- Tocava o quê?
- Cadeira eléctrica.

Os Sãos Joões

(Como toda a gente sabe - como ficou muito bem aprendido no filme "O Pai Tirano", o antigo, o verdadeiro, o de António Lopes Ribeiro que eu ainda conheci pessoalmente, o a preto e branco, o de 1941, o que tem mesmo piada -, como toda a gente sabe, dizia, há duas qualidades de botas de caça: as botas de caça pum e as botas de caça pim, Vasco Santana dixit. Pois, por estranho que possa parecer, com os Sãos Joões sucede exactamente o mesmo. Quer-se dizer.)

O azar do nosso São João, o Baptista, é não ter sido o outro, o Evangelista. O nosso São João era um bocado esquisito mas muito homem: profeta ambulante, vestia-se de peles de camelo, usava um cinto de couro, comia gafanhotos e mel e convivia muito bem com cabritinhos e cabritinhas. Clamava no deserto. Um deserto que inopinadamente tinha um rio chamado Jordão como o cinema de Guimarães, e foi ali mesmo, no rio que não no cinema, que João, o nosso, inventou o baptismo e baptizou o primo Jesus. O nosso São João era a Ana Gomes daquele tempo. Punha a boca no trombone sem pauta nem contenção e isso haveria de custar-lhe a cabeça, ainda nem chegara aos trinta anos. Os amigos do Baptista tinham uma certa vergonha dele e muito gosto na própria cabeça, e por isso deram-lhe o nome de código de O Precursor, para que não se soubesse de quem falavam quando falavam. Hoje em dia, o analfabetismo instalado chama-lhe "O Percursor".
O São João que não é nosso, o Evangelista, era mais manso e teve uma vida flauteada. Morreu velho e de morte natural. Filho de Zebedeu, irmão de Tiago Maior e eventualmente sócio de André e Pedro no negócio das pescas, seria o mais novo dos doze apóstolos do Nazareno, segundo consta. De pescador quiçá analfabeto, fez-se teólogo e escritor. De evangelho e epístolas, apocalíptico até mais não. Discípulo dilecto, João, o que não é nosso, era aquele a quem Jesus amava, o que se lhe aninhou no peito durante a Última Ceia, está nos retratos. E o assunto continua a prestar-se, ainda hoje, às mais diversas e variadas.

No meu tempo de Fafe, quanto a santos populares, o São João era um hospital muito grande no Porto, felizmente com a camioneta da João Carlos Soares a passar-lhe à porta. Tínhamos, isso sim, o Santo António da minha rua, o São Pedro da Recta, creio que ainda frequentei o São Pedro da Granja e, já de saída, talvez tenha presenciado os primeiros passos do que é hoje o famoso São João da Fábrica do Ferro. Quanto ao resto, deixai estar que está bem.
O mais que se sabia do São João eram uns versinhos muito antigos que certamente pertencem ao cancioneiro fafense e era de norma cantar à mesa na noite de passagem de ano, quando já estavam todos mais para lá do que para cá. Assim fazíamos na nossa família. Insisto, para quem não é de Fafe: fafense deve ler-se e dizer-se fafénsse. E os versinhos contavam mais ou menos assim:

O São João, ó dlindlindlim,
tem um carneiro, ó dlandlandlam,
com dois guizos no pescoço.
E quando toca, ó dlindlindlim,
o guizo fino, ó dlandlandlam,
também toca o guizo grosso.


Agora, quereis saber uma coisa sem pés nem cabeça, literalmente sem cabeça? É o seguinte: a 24 de Junho, com uma festa popular que começa logo a 23, o povo assinala em grande alegria o nascimento do santo, mas a Igreja Católica e outras tendências cristãs celebram a 29 de Agosto o Dia do Martírio de São João Baptista, ou a Decapitação de João Baptista, ou a Decapitação de São João Baptista, ou a Decapitação do Anunciador, ou a Decapitação do Precursor. Quer-se dizer: festeja-se a também chamada degolação do nosso São João. Valha-nos Deus! A Igreja faz da barbaridade uma festa, e não há maneira de ganhar juízo.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Crónica Feminina

A actriz
Ficou famosa por ser a primeira mulher a fazer de Super-Homem.

Vieram as calças, e ela nada. Os movimentos libertários, o divórcio, o voto, a canasta, os empregos, os carros, os cigarros, as gravatas, os cafés, os sapatos de salto baixo e os sapatões também vieram, e ela nada. Em casa, sempre em casa, de uma virgindade absoluta em relação ao amantíssimo esposo e demais, bordava, falava francês e tocava piano. Ouvia os discos pedidos e lia Corín Tellado. E dava alpista ao canário. E regava os vasinhos, ela própria uma flor de estufa, no larguinho da vila antiga. E compunha almofadinhas e peluches e corações por sobre o delicado leito conjugal. Muito cor-de-rosa, muita renda na roupa interior que só ela sabia, muito tafetá, muitos lacinhos e sabonetinhos. Tanto pó de talco e perfume! Tão mulherzinha! Queimou uma vez um sutiã, é verdade, mas foi sem querer, passando a ferro, quando a serviçal lhe faltou. Tirando isso, nada. Parecia doença. Crónica. As vizinhas, que nem lhe conheciam o nome, chamavam-lhe, por graça, Crónica Feminina.

O avô da Bomba fazia fisgas

O amigo dos animais
É veterinário porque gosta muito de animais. Coelhos, lebres, perdizes, rolas, tordos, javalis e sobretudo toiros. E só lamenta que em Portugal não sejam de morte.

O Bô da Bomba era muito amigo dos animais. Gostava deles por perto, se fosse no prato, melhor. Tinha andorinhas. Sim, o meu avô da Bomba tinha as paredes exteriores da casa de quarteleiro enfeitadas com andorinhas de porcelana e um crocodilo também de louça que tomava conta da entrada pelas escadas interiores. O crocodilo apresentava a mandíbula inferior presa por arames, deve ter sido luta valente, se calhar com mortes, história antiga feita segredo de família, porque eu nunca conheci o bicho doutra maneira e até hoje ninguém me contou o sucedido.
O meu avô tinha uma tremenda paixão por pintassilgos e canários. Apanhava-os à falsa fé num alçapões que ele próprio fazia e depois alimentava-os e educava-os com paciência de chinês e desvelo de pai babado, espiando-lhes diariamente a definição da plumagem e ensinando-os, ti-trrriii, a dobrar o canto. Quando os considerava prontos, de solfejo na ponta da língua, o Bô apresentava-os então à sociedade local, chamava os especialistas para uma primeira audição pública. A ocasião era solene. Era o momento da verdade. "Este não o vendo nem por dois contos", costumava dizer a mangar, se a exibição corria bem, mortinho que lhe aparecesse logo ali um comprador por muito menos. O meu avô era assim, enganadorzinho...
Na Bomba havia cão, que se chamava sempre Roni, havia coelhos e galinhas. As galinhas eram fundamentais naquele lar de entusiásticos consumidores de medicamentos e canjas. Havia cabrito na engorda pela Senhora de Antime, como manda a tradição fafense, e houve porco, pelo menos uma vez. O avô mandou capar o porco, lembro-me muito bem do serviço encomendado ao Senhor Beta, capador encartado e satisfatório saxofonista na Banda de Revelhe. Mas lembro-me sobretudo dos guinchos do pobre animal, ferido à traição na sua virilidade, e aquilo afligiu-se-me até aos ossos. Eu estava de partida para o seminário, diziam-me que também ia ser capado, estais a ver, portanto, a impressão que de repente se me fez entre pernas.

O meu avô da Bomba, que construía armadilhas para caçar canários e pintassilgos, mantinha em funções uma banca do seu tempo de moço sapateiro, velho e honrado ofício de que nunca se apartou. Enquanto pôde, num cantinho por baixo das escadas que subiam para "o salão" do quartel da Rua José Cardoso Vieira de Castro, onde os finalistas da Escola Industrial levavam à cena a sua récita anual e a AD Fafe realizava as suas assembleias gerais, ele fez, com desenho próprio, as sandálias e sapatos que calçavam a família de entre portas. Sapatos e sandálias que duravam duas ou três vidas. Até fez os sapatos que o meu padrinho e tio Américo levou no dia do seu casamento com a querida tia Laura, e que catitas que eles eram: os sapatos e os noivos. O Avô da Bomba era uma artesão habilidoso e perfeito. Mãos de ouro. Um artista, uma figura. Fazia também fisgas, que dava de prenda aos netos. Depois mandava-nos matar pardais.

domingo, 15 de junho de 2025

As bages

Passou-se assim. Empratei o jantar da minha sogra: uma posta de bacalhau cozido com três dedos de altura por um palmo de comprimento, um ovo aberto ao meio, cinco batatas médias partidas em quartos, um dilúvio de azeite e duas pingas de vinagre branco, como ela gosta. A minha mulher colocou-lhe à frente aquela reprodução dos Himalaias em tamanho natural, e a minha sogra, naquela altura ainda nos seus resplandecentes 88 anos, mas mal-humorada por princípio e por inegável prazer, como sempre, resmungou: - Hoje não há umas vagenzitas?...
Não havia. Era segunda-feira e à segunda-feira cá em casa é assim, bacalhau, batata e ovo, sem outros matadores, uma tradição que eu quero crer que trouxe de Fafe, da casa da minha mãe. A minha sogra limpou o prato em menos de cinco minutos, mas sob protesto, que ficou devidamente registado.

Vagem, neste caso, é feijão-verde. Ou, melhor dito, vage, palavra reconhecida. Ou, melhor dito ainda, bage, à nossa moda. As bages, posso esclarecer, eram ao almoço de quarta-feira para uma pessoa, isto é, para a minha sogra, com pescada regularmente fresca, que eu ia buscar à saída do mar, quase de madrugada. E outra coisa: com bacalhau, a minha sogra, que vai agora nos 93 e continua em forma, bebia um fundinho de vinho. Diz que é dado: bacalhau, portanto vinho. Mas dessa tradição eu não sabia. Para mim, vinho ia com tudo.

Doentinhos, graças a Deus!

O Homem-Prazol
Os super-heróis. Fui apreciador, confesso. Em miúdo, à pala da televisão do Peludo, das borlas no Cinema ou dos livrinhos de cobóis levados à troca no quiosque do postigo por Baixo da Arcada. O homem-aranha, o homem-formiga, o homem elefante, o homem que é homem, o homem-rã, o homem de gelo, o homem de ferro, o homem de lata, o homem-bala, o homem-estátua, o homem invisível, o homem que veio de longe, o homem-sanduíche, o homem-crocodilo, o homem-tocha, o homem-máquina, o homem dos sete instrumentos e até o homem-bata, que quase existia. Apreciava, é verdade. Mas. Derivado a pecados velhos e por indicação médica, hoje em dia sou mais dado ao homem-prazol.

Há uma longa e honrosa tradição familiar no nosso lado Von Doellinger: somos umas pessoas muito doentes, que foi a única herança que o meu avô da Bomba nos deixou, aos de nossa casa. De resto, nem um tostão, nem um penico partido e colado com adesivo, tampouco uma corrente de ar. A minha mãe costuma dizer que, em questão de doenças, nós, os Bombas, "não damos vez uns aos outros". A minha mãe, é preciso que se note, é do lado Pereira, que lamentavelmente não me chegou ao nome, Pereira do meu avô de Basto, decilitrador pertinaz que, porém, nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria. Este meu querido avô, antigo mineiro e mestre pedreiro de primeira água, era, pelo contrário, um mãos-largas. Tudo o que tinha, dava. E se o que tinha à mão era o varapau de lódão, então era de esgaça-pessegueiro, sem olhar a quem. A mim, deu-me o meu primeiro relógio de pulso e, numa noite de Natal, ofereceu-me inesperadamente o seu próprio relógio de bolso, um magnífico e infalível Omega talvez centenário que me escangalhou em lágrimas e que há coisa de vinte anos passei ao meu filho, que bem o merece e não lhe liga nenhuma nem sequer lhe dá corda. Eu? Fiquei-me com as memórias. Do choro também.
Já agora. O meu rijo avô de Basto esteve doente uma única vez, se não me engano. E morreu. Com os pulmões vagarosamente estraçalhados pelos anos longínquos do trabalho nas minas e uma vida no aparelho da pedra.

Mas o lado Bomba. As doenças. Neste campo, como em mais um ou dois, ou três, sou a ovelha negra da família. Doentemente falando, sou uma treta, uma nódoa, um ignorante, uma vergonha para a classe dos doentes em geral e da minha família em particular. Não dou uma para a caixa. Às vezes até penso que devia ser expulso. Da classe e da família.
Os Bombas, por definição, são entusiásticos consumidores de medicamentos e canjas de galinha. Só estão bem quando estão doentes. Conhecem todas as doenças e os dois volumosos tomos da Farmacopeia Portuguesa por ordem alfabética, de cor e salteado, da frente para trás e de trás para a frente, índices e apêndices incluídos, automedicam-se e só precisavam da consulta e da assinatura do médico - "especialista!", sempre "especialista!", e "do Porto!" - para autenticar o internamento a troco de um bom quilinho da melhor vitela de Fafe, traço seleccionado e cortada pelas sábias mãos do Senhor Abreu do Talho Novo, embrulhado em imaculado papel costaneira e impecavelmente atado e laçada com fio norte de qualidade superior. Justificava-se a despesa dos unhas-de-fome: o internamento em hospital era a sorte grande, a realização de um sonho. Recorrente. Para que o povo soubesse que!
Os meus queridos avós da Bomba, ninguém me tira da ideia, não morreram da doença. Faleceram da mania. Deus os tenha.