quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Fafenses excelentíssimos

Foto Hernâni Von Doellinger

O Canivete que vendia jornais, o Palhaço que fazia autópsias, o Cesteiro que esteve nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, o Paredes que também era Neiva de mãos enormes e falso susto para crianças, o Landinho eterno Menino, o Landinho do Club que tinha uns testículos muito compridos e era primo de quem fosse importante mesmo que fosse estrangeiro, o Piu, o Chico Cereja, o Sandim que levava os filmes de carrinho, o Tónio da Legião, o Dr. Antunes, o Antunes Chapeleiro, o Felinhos, o Zé Carlos Estantio.
A Rosa do Piroco (Senhora Rosa do Mato!, corrigia-me a minha mãe), o Zé de Castro poeta e cauteleiro, o Chupiu, o Manel do Campo, o Luisinho com o "criado" atrás, o Zé Cão, o Roda Forte cauteleiro, o Pai Zé cauteleiro e gasolineiro, o Meireles de Antime, o Malhado decilitrador premiado e competente arranjador de guarda-chuvas, o Clemente que construía pipas e escadas e era tão pequenino que eu nunca percebi onde cabia tanto tabaco e aguardente, o gigante Barnabé e o mano, o Rates artista da bola, o poeta Augusto Fera, o Álvaro da Dinâmica, o carteiro Aristides, o Zé Sacristão, o Sr. Ferreira do Hospital, o 17 da Bomba, meu avô.
O Sr. Arcipreste, o Maló que era de Fafe em dias certos e cantava fanhosa e desalmadamente o "despedi-me e fui para longe" na esquina da minha rua, o Quinzinho da Farmácia que era o melhor médico do mundo, o Rui que era irmão do Renato e ardinava o Comércio do Porto, o Pedro e o Norte Desportivo, o Guia e a língua portuguesa, o Zegolina e a má-língua, o Batata, o Miguel Chichilim, o Fiu, o Chichirini, o Neca do Hotel, o Zé Manco, o Zé Manquinho, o Sibino, o Sr. Augusto Paredes, o Jerónimo Barbeiro, o Zé Bastos, o Tronchuda, o Fala-Barato, o Vida-Alegre, o Chester faz-tudo, o Nélson Fafe e a alma do teatro, o Sr. Saldanha e a Bandeira Nacional.

(Isso. António Saldanha, que dá nome à rua por Cima da Arcada. Foi dono do Café Avenida, um homem decente, democrata e habilidoso protector dos antifascistas fafenses durante o anterior regime. Após o 25 de Abril, o Sr. Saldanha era disputado por todos os partidos para marcar presença, em lugar de convidado de honra, nos respectivos comícios. Já cego, em datas certas ou avulsas, o Sr. Saldanha fazia içar a Bandeira Nacional na mansarda da casa onde morava, ao lado da Igreja Nova, quase em frente à actual entrada para a Urgência do Hospital de Fafe. Era a sua celebração da liberdade.)

Na música: os Bacalhaus, os Custódio, os Gandarelas, os Betas, os Silvas, os Maciéis. Nos bombeiros: o comandante Luís Mário, os Costas do Assento, os Feira Velha, os Quintos, os Ferreiras e os Nogueiras, os Moleiros e os dos Santo, mestres também de filosofias de carne e osso e do jogo do pau.
O Joãozinho da Loja Nova que era um partidão e nem assim, o Joãozinho Summavielle e o meio fininho ao balcão do Peludo de costas voltadas para a televisão, o engenheiro Mário Valente doente da bola e fazedor do que Fafe é, o Albano das Águas esperto que eu sei lá, o Armindo Alves que era a Banda de Revelhe, o Mário Chanato, o Zé do Registo, o Fernando da Sede, o Sr. Avelino do Café, o Flórido engraxador, o Belinho, o Baptista do Asilo, o Nelinho da SIF, o Guarda-Fios, o Miguel do Zé da Menina, o Miguel Cantoneiro, o Chaparrinho, o Nelo Chapeleiro, o Manel da Pinta, o Nelinho Barros, o Hugo Alfaiate, o Chico da Libânia, o Toninho Nacor e a Dona Isabel, o padre Barros, o padre Zé, o Bilinho e o Bergiga meus companheiros de infância, o inesquecível Berto Dantas.
E, ainda por cima, o grande Zé Manel Carriço, provavelmente o homem mais extraordinário que conheci em toda a minha vida.
A todos e outros que tais, os meus respeitos. Muito agradecido por serem a minha memória.

Aqui há uns anos soube que foi feito um "Dicionário dos Fafenses" ilustres. A lista oficial, estou quase certo, não será exactamente esta, a minha, posto que incompletíssima. Mas lá está. A ilustreza é um conceito deveras relativo. Como certos e determinados pronomes.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Era uma bola a pinchar


Ainda que não se pense muito nisso, há uma certa diferença entre a defesa mista e a sandes mista. A primeira, como toda a gente sabe, não leva queijo nem fiambre. Mas, ainda assim, pode ser comida. Basta às vezes uma pequena distracção, um lateral que ficou em casa, um central de perna cruzada, um fora-de-jogo mal alinhavado, um avançado matreiro e rápido como um raio que o parta.
O futebol moderno é feito de palavrões. Já não é futebol nem desporto, é indústria, chama-se jogo mas com conotação cibernético-filosófica, e é uma ciência praticamente. Tem unidades de treino, periodizações tácticas, trabalho específico, fundamentos. No meu tempo ia-se à bola, e os palavrões eram outros, palavrões a sério (ou à séria, se lido em Lisboa), palavrões do piorio mas sem ofensa. O futebol era paixão, entretimento. Sim, entretimento, que assim se diz.

Era uma bola a pinchar e onze contra onze numa luta brava em campo pelado, campo de batalha. Naquela altura eu acreditava no futebol. Era o jogo da bola, só isso, mais uma que outra coça aos desgraçados dos árbitros, para desopilar. Lembro-me dos jogadores com camisas de botões e das chuteiras remendadas e de travessas. Os pitões ainda não tinham sido inventados e as travessas eram de sola, pregadas com tachas, e as tachas entravam não raras vezes pelos pés dentro dos jogadores. O meu coração era amarelo e preto, Faaaaaafeee!..., todo branco em alternativa, com o azul e branco ainda guardado para segundas núpcias. Lembro-me dos jogadores que nasciam e morriam no clube da terra onde nasceram. Lembro-me de jogadores que verdadeiramente morreriam em campo pelo seu clube, sem eufemismos, era só dizerem-lhes que era preciso. Lembro-me de jogadores que corriam como se treinassem todos os dias e só treinavam durante o jogo. Lembro-me de jogadores que fugiam da tropa para jogar e depois iam presos. Lembro-me de jogadores que chegavam da guerra carregados de paludismo e queriam lá saber. Lembro-me de jogadores que choravam nas derrotas e embebedavam-se nas vitórias, porque era assim. O Fafe era a Associação. A Associação era Fafe. Lembro-me e gosto. Sou um bocado velho, o que se há-de fazer?
Os palavrões futebolísticos com nada dentro não nasceram agora, neste tempo insosso cheio de conferências de imprensa pré-maquetadas, reclames a champôs e espaços entre linhas. Os comentadores são palavradores, decerto ganham à sílaba, falam muito e não dizem nada, inventam vacuidades, falam também pelos cotovelos mas já ninguém distingue. O parlapiê vem de longe. Há mestres antes dos mestres e eu prefiro os de antigamente. E nem vou falar dos estimáveis Gabriel Alves e Rui Tovar. Mas do consagrado Alves dos Santos, que nos deu a "pertinácia" e o "arreganho", e viu um golo "exactamente igual ao golo anterior", quando a Eurovisão estreou as repetições (que era só uma, com um inesperado e mal amanhado R no canto superior direito do ecrã da televisão do Peludo) e ele não sabia. Ou do bom do Mário Wilson, então treinador do Boavista, quando perdeu nas Antas e queixou-se dos golos de "bola parada". José Maria Pedroto, então treinador do FC Porto, disse que não podia ser: bola parada não anda, logo não entra, explicou.

Sou, portanto, antigo. Gosto de futebol, da bola. Dos noventa e tal minutos que se jogam em campo, porque para mim um jogo não dura uma semana. Gosto de futebol, mas não o frequento. Gosto de futebol, mas não do falatório. Quero lá saber de opiniões alheias. Eu tenho a minha e chega-me. E tenho memória, memórias, que é o que me remedeia hoje em dia.

Por obséquio: ponham os olhos na extraordinária fotografia que abre este apontamento. Retirei-a, à foto, do livro "Associação Desportiva de Fafe - 50 Anos de História", de Artur Ferreira Coimbra. É a nossa equipa da época 1965/66. Da esquerda para a direita, de pé: Toneca, Germano, Apolinário, Ricoca, Costa, Adelino, Manel Zebras e o massagista João Americano; de joelhos: Júlio Alves, Fernando Alves, Berto Dantas, Mário Machica, Adriano e Avelino Lopes. Só craques, quem mos dera outra vez. Conheci-os a todos e alguns deles fizeram-me até o impagável favor de serem meus amigos, apesar da evidente diferença de idades. E os nomes? Que categoria!
Fafe, diga-se em abono da verdade, deu ao mundo do futebol, para além dos exemplaríssimos supracitados, nomes tão formidáveis como Riga, Piré, Rates, Estafete, Mulato, Caganito, Trolas, Feira Velha, Esparrinhento, Pescoça, Ferradeira ou Mofo. Nomes que são uma primeirinha, do tempo em que o futebol era desporto e jogado por gente como nós e de nós. Uns antes, outros depois, estes e mais, foram e ainda são os meus ídolos. Os meus cromos. Os meus heróis.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Mistérios de Fafe

Arranco o ano de 2025 com um novo blogue - Mistérios de Fafe, título que pedi emprestado à obra de Camilo Castelo Branco. Anunciam o abandono e morte dos blogues, e eu, como de costume em contramão, regenero-os e multiplico-os. Não prometo grandes novidades, é certo, mas ofereço mais do que baralhar e dar de novo. Mistérios de Fafe conterá, para começar, todos os meus textos já publicados sobre vidas, pessoas e acontecimentos do meu tempo de Fafe, isto é, sobre o modo como o recordo ou quero recordar. Todos os textos serão revistos e geralmente aumentados, passados a limpo, por assim dizer, à espera talvez de uso futuro, mas, de momento, sem um objectivo concreto no horizonte. Por outro lado, e sempre que possível, os textos serão expurgados das notas de actualidade a que amiúde estão conectados nos meus outros dois blogues - Tarrenego! e Fafismos (De Fafe, com muito gosto). Nenhum texto será igual à sua versão anterior, isso é garantido.
Mistérios de Fafe será o meu arquivo privilegiado, o meu caderno de apontamentos favoritos,  provavelmente para nada. Memórias pessoais, juvenis e profissionais, velhas amizades, cromos e admirações, cenas gagas ou desgraçadas, "adultérios, homicídios, missionários e outros cirros sociais", como dira Camilo, tudo será aqui contado, portanto cuidado, muito cuidado! O ritmo de publicação em Mistérios de Fafe será vagarento, a seu-meu bel-prazer, sem agenda nem calendário, porque esta vida são dois dias e estamos praticamente no Carnaval, que são três.
É esta a ideia. Pelo menos, em princípio...

domingo, 5 de janeiro de 2025

Fafe cheirava a sabão amarelo

Do que eu gostava mais em Fafe, do que eu realmente sinto falta? Do cheiro. Fafe tinha o seu próprio cheiro, distintivo, memorial. Fafe cheirava a esmero, cheirava a limpo, a lavado. Fafe cheirava a sabão amarelo. E era isto o ano inteiro, mais ainda na semana da Páscoa, quando as nossas mães asseavam a casa especialmente para receber o Senhor. Fafe, em boa verdade, era uma acolhedora mistura de cheiros bons, um bouquet requintado, mas o honesto odor do sabão amarelo pairava sobre tudo e sobre todos. Sobretudo.
Parecia penitência, castigo. As nossas mães, dobradas horas a fio com os desgraçados joelhos enfiados naquele caixote de madeira a que uns chamam tacoila e outros chamam cunco ou outro nome qualquer, conforme a região, em todo o caso instrumento de suplício, ou então com um simples farrapo servindo de rodilha ou joelheira, as nossas mães, dizia, lavando, lavando, esfregando, esfregando, água, sabão amarelo e palha de aço, e depois chupar e secar, e depois, e só depois, talvez no dia seguinte, outra vez o castigo, outra vez a penitência, a cera regrada, o lustro puxado e repuxado, até que o soalho brilhasse como um espelho, como o sol. E ficava o cheiro. Aleluia!
E pelos 16 de Maio também. E igualmente pela Senhora de Antime, pelo Corpo de Deus. De resto, os domingos em Fafe cheiravam que era uma categoria. Os domingos em geral. Cheiravam a desodorizante, a perfume, a brilhantina, a laca, a graxa, a sebo e a naftalina - tudo misturado, na missa das onze, com a Igreja Nova à pinha, dava uma certa vontade de gomitar, não vou mentir -, mas o melhor era o que se passava entretanto nas ruas da vila antiga, logo desde as primeiras horas da manhã, aquele extraordinário aviso dos velhos fogões de lenha, tão de confiança, tão competentes, tão autónomos, assando vitela tenra e dourada com todos os vagares, com todos os matadores, o cheiro e o fumo magníficos escapulindo-se pela chaminé carbonizada ou pelo telhado mal aparelhado e alastrando de porta em porta, como maldição de filme de mortos-vivos de hoje em dia, mas em bendição, que outros eram os tempos, graças a Deus.
Fafe cheirava. Embora hoje possa não parecer, Fafe era uma povoação rural, íntima, pacata, território de lavradores teimosos e polivalentes - tirante o Largo, isto é, o por Cima e o por Baixo da Arcada, e para além da Fábrica do Ferro e do Bugio, que eram outras vidas. Só por exemplo, toda aquela zona envolvente da Torralta, onde agora estão o bairro tão bem tratado, as várias escolas, o Pavilhão Municipal, as vivendas, as estradas e avenidas, os semáforos, as rotundas, a Biblioteca, os Bombeiros, a Feira, a Central de Camionagem e por aí fora, aquilo era tudo campos, terrenos agrícolas particularmente fecundos, os campos do Santo, Granja e São Gemil, campos, caminhos, quelhas, noras e minas, levadas e poças, com muito milho, fruta e umas quantas pipas de vinho. Era zona de carros de bois, aquela, e actualmente abunda de automóveis e tem o chão pintado a furta-cores. Fafe realmente cheirava. E à semana metia a cotio o cheiro a eido, a estrume, a lavadura, a gado, a galinheiro, a couves cegadas, a erva acabada de cortar, a terra seca acabada de regar, a medas húmidas, a chuva era farta e cheirava muito bem em Fafe.
Fafe tinha o cheiro doce das glicínias, cheirava a alfádega, a cidreira, a amoras, a tílias, a uvas americanas, aos pinheiros de São Jorge e Castelhão, a castanhas assadas pela Maria Barraca à beira do tasco do Zé Manco, ao azeite do Moniz e ao bacalhau frito da Dolorzinhas no tasco do Paredes. Cheirava a maçãs guardadas nos barrotes secretos dos tectos, cheirava a geleia e a marmelada, a vinho novo, a aletria quente, a canela. Fafe cheirava todo o ano a Natal. Cheirava ao incenso da procissão do Corpo de Deus. E cheirava a piche derretido ao sol das tardadas de Verão, e cheirava a cano de escape de motorizadas sem cano de escape na noite atolambada da passagem de ano. Fafe cheirava à aguardente e ao engaço do fantástico alambique do Cinema, copiosamente manobrado pelo Sr. Zé dos Alhos, parece que ainda o estou a ver e ouvir. A cheirar.
Fafe cheirava a roupa a corar. Cheirava ao avental sempre lavado da minha mãe, que cheirava tão bem a sabão, a segurança e a felicidade, e eu, criança, pequenito, abraçava-me a ele, a ela, com quanta força tinha, e fechava os olhos à espera que o tempo à minha volta não passasse. É. Fafe cheirava à minha mãe.