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terça-feira, 16 de setembro de 2025

A polinheira e a trepa

Um par de estalos
Os estalos são como os óculos, as luvas, as calças, as meias, as botas, os patins, as jarras, as alianças e até os cornos. Usam-se aos pares.

Uma polinheira era uma tareia, uma sova, uma surra, uma tunda, uma coça, um enxerto, um enxerto de porrada perpetrado amiúde com uma vara ou fustiga, às vezes com um cinto e habitualmente de mãos estremes, ou até com o pé que estivesse mais à mão. Quer-se dizer, uma polinheira era uma trepa, que deve ler-se e dizer-se "trépa" e, neste caso, também podia significar folho de vestido. Polinheira e trepa, palavras nossas, antigas, questão cultural, do tempo em que o povo era muito honrado, um povo que dava, dava muito, dava tudo, era gente pobre mas de mãos largas, até dava polinheiras e trepas, dava porrada de criar bicho, era uma fartura, graças a Deus. E quem recebia, levava. Levava polinheiras, levava trepas, sempre pela medida grande, levava até para tabaco, mesmo que não fumasse, era o pão nosso de cada dia. Polinheira e trepa eram palavras com muito uso e imensa prática, no nosso Minho, em Fafe, metidas a cotio por uma questão de princípio, porque "quem dá o pão, dá a educação". E educar era bater. E aprender era levar, consoante o ponto de vista. Em casa, na escola e até na catequese, porque a pancada, naquela época, era como Deus nosso Senhor - estava em toda a parte.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

O capacete antes de deitar

Isto das idades realmente
O quarentão é a média de todos nós. O cinquentão começa a desconfiar da vida. O sexagenário passa a constar das notícias. O septuagenário anda em contramão na auto-estrada. O octogenário é porque se safou no acidente. O nonagenário quer que os quarentões, os cinquentões os sexagenários, os septuagenários e os octogenários se fodam e refodam. O centenário só se realiza de cem em cem anos, e está certo.

Sempre gostei de me deitar no chão. Desde pequenino. O Verão em Fafe é um forno, e a nossa mãe punha-nos a dormir a sesta no chão da casa, não no chão estreme, mas por cima de um cobertor fininho e fofo, e dormíamos como anjos de barriguinha ao léu. Porque o ar rasteiro é mais fresquinho, está provado cientificamente, e a nossa mãe sabia também disso, embora nunca tivesse ouvido falar de correntes de convecções, fluidos, átomos ou moléculas.
Habituei-me. Sempre que pude na vida, dormi a minha soneca no chão do campo, do monte e até da praia, se pela fresca da manhã e com a praia só para mim. Casei e fui morar para a Foz, no Porto: a casa dos meus sogros tinha um quintal-jardim que era um mimo, e era ali que eu me estendia, no cimento do caminho ou na relva do coradoiro, em tardes e noites de suar em bica. Depois bebia uma ou duas garrafas de espadal bem fresquinho, e já estava em condições de ir para a cama...
Agora, moro há mais de trinta anos em Matosinhos, com o mar a passar-me à porta e a enrolar na areia, mas custa-me muito a deitar, ainda por cima no chão, que me fica cada vez mais longe, e preciso de um guindaste aqui do Porto de Leixões para me levantar. Mas não resisto: de quando em quando, dá-me para a toléria - é a idade -, ponho o capacete e, em quatro ou cinco movimentos muito complicados e perigosos, às vezes doze, consigo deitar-me no chão da sala, com muitos ais! e muitos uis! pelo meio, os ossos rangendo, a cabeça a ourar e a televisão ligada só para que o som me faça companhia e me disfarce os queixumes. Às tantas a Mi entra, assusta-se comigo ali esparramado no lamparquet com vinte anos de garantia e grita: - Ai, valha-me Deus, que ele morreu, coitadinho! Que é da motorizada, homem?...
E eu, de olhos fechados e mãos cruzadas sobre o peito, só me falta o terço: - Chama mas é a polícia, mulher, que a culpa foi do outro...

Moral da história: este frio, será do tempo?

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

A côdea e o côdeas

O bem-mandado
Mandaram-no ir chamar nomes a outro. E ele foi.

Côdea é a parte exterior endurecida de algo, do pão, do queijo, das árvores. É a casca, a crosta, a tona. Côdea pode ser pequena refeição ou merenda de ovos fritos com farinha, molhados em mel, entre o almoço e o jantar. Côdea é pão, pão duro, porção pequena e insignificante de comida, ou por outra, comida reles e em diminuta quantidade, um nico, um cibo. Côdea é nódoa, camada exterior de sujidade ou coisa de nada. É pedaço, bocado - "uma côdea de sabão para lavar as mãos". É pagamento miserável - "trabalho 12 horas por dia e o patrão dá-me uma côdea". O plural de côdea é côdeas, e muda do feminino para o masculino. Côdeas é uma pessoa muito pobre, pobretão, um homem sujo, um indivíduo grosseiro, um labrosta, um carroceiro. Em Fafe, antigamente, chamar côdeas a alguém era insulto do piorio, ia fundo no carácter. Ser côdeas não era só aspecto, tinha mais a ver com o asseio moral. O côdeas, o verdadeiro côdeas, até podia andar sempre muito limpinho, mas, por dentro, não deixava de ser um indivíduo asqueroso, desprezível, desprezável, baixo, sórdido, vil, mesquinho. O côdeas era um bandalho, um pulha, um bardamerda, um filhodaputa. No insultómetro da nossa terra, um côdeas, um verdadeiro côdeas, estava ao nível do moncoso e do ranhoso, mesmo até do piolhoso. Portanto, estais a ver...

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Às carreiras

O dorsal
O dorsal chama-se dorsal porque é para usar ao peito - ou, vá lá, na barriga do atleta. Se fosse para usar nas costas, isto é, no dorso do atleta, chamar-se-ia peitoral.

A carreira era a camioneta, o autocarro, o transporte colectivo, público, prestado por empresas privadas. Para Guimarães, para Felgueiras, para a Póvoa de Lanhoso, para Várzea Cova, para a Gandarela. Eram a Mondinense, a João Carlos Soares, a Landim e a Ferreira das Neves, que me lembre. E tínhamos a "Empresa". Carreira podia também ser fila, fileira, linha, alinhamento. Mas era sobretudo corrida. Isso, em Fafe e pelo menos nas zonas de Basto aqui à beira, carreira queria dizer corrida. Dar uma carreira, ir às carreiras, era correr, era ir a correr. Até rebentar! Até cair de cangalhas...

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Uma passagem de nível

Como quem entra no céu
Transpôs a porta sagrada, procurou instintivamente à direita a piazinha de água benta que não 
encontrou, genuflectiu e benzeu-se num silêncio e num respeito que só vistos, caminhou lentamente até à estante, no mais profundo recolhimento, pegou no livro como quem pega em asa de borboleta ferida, afagou-o, ao livro, abriu-o como que a medo, em ângulo recto não mais, folheou-o sem destino mas com mil cuidados, contemplativo, num deleite adivinhatório de santidade gozosa. Tinha acabado de entrar numa livraria.

Fafe já teve passagem de nível. Em Santo Ovídio, mesmo no meio da estrada, era a nossa única passagem de nível, magnífica, sem rival, e por isso chamava-se "a" Passagem de Nível, porque Fafe naquele tempo era sobremaneira isso, uma extraordinária terra de antonomásias. No nosso imenso pequeno mundo, tínhamos o Largo, a Avenida, o Monumento, a Recta, o Campo, o Depósito, o Banco, os Serviços, a Bomba, o Jardim, o Bairro, a Quelha, o Santo, o Colégio, o Rio, a Poça, a Rampa, o Posto, a Empresa, o Hotel, o Bar, o Snack-Bar, a Pastelaria, o Palacete, o Cinema, o Grupo, a Fábrica, a Cantina e, cá está, a Passagem de Nível.
A singularidade, de resto, nunca me incomodou, antes pelo contrário, simplificava-me a vida, mas esta coisa de Fafe ter só uma passagem de nível na sua história, uminha, e não haver notícia de mais, antes e agora, numa cidade tão dada à cultura, às letras e à publicação literária, é que me surpreende. Em Fafe, os livros saem ao ritmo das cerejas, e dos tremoços, uns atrás dos outros, o que é de elogiar, e no entanto não se sabe, nunca mais se soube que por aqui tivesse aparecido o tal parágrafo perfeito, o trecho extraordinário, a tirada sublime, o fragmento de classe, a amostra de gabarito, quatro linhas de excepção, duas ou três frases lapidares e eternas, dúzia e meia de palavras genialmente concatenadas e dignas de registo, enfim, outra passagem de nível. Não. Nada. Nadinha. E eu, sinceramente, dá-me um certo desgosto...

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Bagatela...

Allegro ma non troppo
Deu-lhe um bach, assim de repente. Ele a princípio até ficou satisfeito, mas na verdade preferia um rimsky-korsakov.

Bagatela. Coisa sem valor, ninharia, insignificância, frivolidade ou, por outra, tabuleiro do chamado "bilhar chinês". Na música, bagatela é uma peça curta, ligeira e despretensiosa, típica do Romantismo, normalmente para ser tocada ao piano. Beethoven, por exemplo, muito dado a repentinas modificações de humor, compôs algumas dezenas dessas colossais miniaturas, a mais famosa das quais será certamente "Für Elise", que toda a gente conhece. Em Fafe, bagatela era também resposta na ponta da língua como opinião acerca disto ou daquilo, exprimindo um certo desconsolo ou desconforto, é certo, mas dentro dos limites da educação e da caridade cristã. - E este vinhinho, hã?, que tal? - perguntava-se. E se o vinho não era realmente grande espingarda e não se queria passar por parvo nem por falso ou mal-agradecido, então respondia-se diplomaticamente: - Bagatela... 
Bagatela, assim com reticências e um sorrisinho assaz encaralhado de faz-favor-de-desculpar, queria dizer sofrível, mais ou menos, menos mal, podia ser pior, não há-de ser nada. Isto é: bagatela, aqui, queria dizer exactamente o mesmo que... calar. Mas um bocadinho para pior.

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Eles chamam-lhe cumbre

Guerra da Restauração
Quando a Guerra da Restauração entre Portugal e Espanha terminou e pediu a continha, em 1668, foi deveras porreiro. Os espanhóis começaram a vir comer bacalhau a Valença e os portugueses passaram a ir às bandejas de marisco a Vigo. Foi bom para o negócio e, entre mortos e feridos, salvaram-se consideráveis estabelecimentos.

Em 1986, a Pousada de Santa Marinha, na Costa, em Guimarães, recebeu a terceira edição de uma coisa chamada Cimeira Luso-Espanhola. Aníbal Cavaco Silva era o primeiro-ministro de Portugal, Felipe González era o presidente do Governo espanhol e eu era jornalista de O Primeiro de Janeiro. Estivemos lá os três, evidentemente.
Tarde e a más horas, o meu jornal lembrou-se de me mandar para o local do crime. Tarde e a más horas, quero dizer, no caso em apreço, já depois de a coisa ter começado. E eu fui todo contente, de braço de fora na Catrel com letras, pendurado no Adélio Santos, que era o homem do volante, das fotografias e de outras habilidades e excessos. Eu tinha muita vaidade na minha profissão.
Com alguns empenhos e uma sorte do caraças, consegui credenciar-me numa esquina do Toural, que, tenho ideia, era posto de turismo mas tinha sido superiormente requisitado para todos os efeitos. Cheguei lá acima engatilhadíssimo para colocar certas e determinadas questões tanto ao Silva como ao González, que os havia de entalar, porém, sem me deixarem sequer abrir a boca, mandaram-me para uma sacristia que era a "sala de imprensa" ibérica. Ficámos lá todos de quarentena a contar larachas uns aos outros, chistes de espanhóis e portugueses, "Valevale...", diziam eles, "Já me tinhas dito...", dizíamos nós. Os jornalistas somos uns gajos com piada. Somos piadéticos sem fronteiras, Aljubarrota, na nossa irmandade, é como se fosse uma anécdota.
A cimeira eram dois dias. Escrevi um primeiro texto, de lançamento da coisa, na véspera da coisa, ainda na redacção, e assinei, com grande lata e imensa ignorância, "Hernâni Von Doellinger - enviado-especial a Guimarães". Creio que na altura era "enviado-especial" que se usava, com hífen, o que dada uma certa solenidade à função. Não fui corrigido por quem devia ter tarimba e mais juízo do que eu - portanto estava certo. É preciso que se note: estava a começar no ofício e era a minha primeira saída para o "estrangeiro". Para além disso, como decerto estais recordados, eu tinha muita vaidade na profissão. Vai daí, fiz as malas e parti da portuense Rua de Santa Catarina rumo ao fim do mundo, onde cheguei passado um bocado.
Naqueles bons velhos tempos, os jornais pagavam generosamente as pernoitas aos seus jornalistas, e eu resolvi dormir em Fafe. Jantei, fora de horas, no restaurante do Café Académico e dormi em casa da minha mãe. No segundo dia, almocei no Fernando da Sede. O Pimenta foi buscar-me e levar-me a Guimarães. O importante era que eu estava para fora, eu era enviado-especial, estais a perceber? O Adélio infelizmente não concordava comigo, e foi dormir a casa, ao Porto, que lhe dava muito mais jeito e era a coisa mais natural do mundo.
Da cimeira, enquanto lá estive, só soube os recados que os chegamissos do Cavaco nos traziam de vez em quando, que a coisa estava atrasada e que "Eles" estavam a discutir isto e aquilo, tudo a correr muito bem para o nosso lado, Portugal 5-Espanha 3. Não me custa admitir que os llegamessos do González contavam aos jornalistas espanhóis o mesmo resultado mas ao contrário, e acho justo. A "Eles" só os vi na conferência de imprensa final. E na verdade nem os vi, estava muita gente à minha frente, câmaras, holofotes e microfones tapando-me a visão, mesmo sendo "Eles" maiúsculos. E também não os ouvi, mas isso a camaradagem resolveu, dando-me as notas detalhadas do que fora dito. Que era nada ou quase nada. E eu voltei a assinar, com grande gabarito e por mais três ou quatro vezes, "Hernâni Von Doellinger - enviado-especial a Guimarães". E voltou a sair assim no jornal.
Resumindo e concluindo: como combinado, a Cimeira Luso-Espanhola de Guimarães de 1986 foi um sucesso e a cobertura do enviado-especial de O Primeiro de Janeiro ainda mais. O Adélio Santos morreu há uma dúzia de anos e o jornalismo consta que também.

Enfim. A 35.ª cimeira ibérica foi no ano passado, em Faro, e a próxima, se Deus quiser, há-se realizar-se em Espanha, não sei quando. E isto passa por ser uma história interminável. Ao fim de tantos anos e encontros, cá e lá, alternadamente, portugueses e espanhóis não há maneira de chegarem a acordo sobre o essencial da coisa: nós continuamos a chamar-lhe cimeira, como é evidente, e eles insistem em chamar-lhe cumbre, vá-se lá saber porquê...

sábado, 6 de setembro de 2025

O meu primeiro casamento

Ele era um tipo com princípios e valores, sabia das suas obrigações. Casou. Casou pelo civil e casou pela Igreja. Por amor é que não!

O meu primeiro casamento foi o casamento do meu padrinho e tio Américo com a minha querida tia Laura. Vieram convidados do Porto e eu andei de "pão de forma" em forma de Volkswagen, numa épica viagem entre a Igreja Nova e os Bombeiros antigos, logo ali no meio dos palacetes, talvez nem 100 metros sempre em linha recta, e ainda assim enjoei. A fotografia "de conjunto" foi tirada a preto e branco nas escadas do Hospital, talvez esteja a inventar, e o banquete teve lugar no velho salão da Bomba, eu metido numa mesinha à parte para as crianças, logo depois da grande porta dupla de entrada, e portanto não gostei. O meu segundo casamento, eu já rapaz, foi o casamento do meu tio Zé da Bomba com a minha querida tia Lena. Vieram convidados do Porto, evidentemente, comeu-se no famoso Restaurante Jordão, em Guimarães, fui apresentado aos agriões em salada, houve discursos e não me lembro de como é que fomos para lá, se calhar a minha mãe teve de alugar um carro, serviço que decerto ainda hoje, mais de 50 anos depois, andará a pagar a prestações. O meu terceiro casamento foi o casamento da minha irmã Nanda com o meu cunhado Álvaro. Não tenho ideia se veio alguém do Porto, mas provavelmente veio, porque fazia parte ou então era mania, tara de família, isso de vir alguém do Porto, e aquilo fazia-me espécie. "Os do Porto" não era por acaso que eram "os do Porto". Ser-se "do Porto" era um merecimento, uma espécie de doutoramento ou condecoração, estatuto, posição, em todo o caso. Eu ia para o Porto de comboio, automotora, vá lá, de cu tremido e geralmente a dormir, só para namorar, essa é que é a verdade, nunca fiz nada na vida, mas eles não, tinham ido para o Porto a pulso, mais difícil ainda do que ir para a França a salto, "estavam muito bem", regressavam para as festividades da terra, de fato e prendas, magnatas e um bagaço, ninguém sabia o que é que eles realmente faziam no Porto, se é que faziam alguma coisa, e se eventualmente não seria em São Mamede de Infesta ou em Rito Tinto, para não ir mais longe, mas, para todos os efeitos, eram "os do Porto", parentes desconhecidos e habitualmente desnecessários, porém com direito a vénias e mordomias sempre que se apresentassem, e eu, quer-se dizer, afinava com tanto fingimento. Tornando à Nanda e ao Álvaro, que é o que mais importa, a cerimónia religiosa creio que se passou na Capela de Santo Ovídio, que era moda naquele tempo, e o almoço lembro-me que foi muito bem servido no restaurante do Café Académico, tudo em Fafe. Depois dos meus três primeiros casamentos, tive evidentemente outros casamentos, inclusive o meu, que ainda hoje vigora, não é para me gabar. O meu casamento realizou-se por acaso no Porto e vieram convidados de Fafe. Muitos. A maioria qualificada. Não foi vingança, mas soube bem.

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

O casal Carter e o Casal Garcia

Homem de famílias
O casamento, para ele, era tudo. Aliás, tinha dois. Ao mesmo tempo.

Os americanos têm muito orgulho no casal Carter, Jimmy e Rosalynn, que estiveram casados durante 77 anos. Jimmy Carter e Rosalynn Smith Carter protagonizaram o matrimónio mais duradouro de toda a história presidencial dos Estados Unidos. E os americanos estão todos contentes, porque acham sempre que são os maiores. Os americanos nunca vieram a Fafe, ao Peludo, no tempo do Sr. Avelino, o nosso "Hoss". Eles não sabem que, em Portugal, temos o Casal Garcia, since 1939, é só fazer as contas, já lá vão 86 anos...

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

A moda ou a modinha

A moda pode ser fatal
Os andarilhos estão na moda. E as bicicletas, para outro tipo de clientela. Os andarilhos, as bicicletas e as trotinetas. As cenas de pancadaria, facadas, tiros e mortes entre jovens bandidos, por nada ou por quase nada, também. Sobretudo facadas. A malta nova anda agora toda por aí com naifas, como quem usa boné ou sapatilhas de marca. É. As televisões de faca e alguidar tratam da propaganda, montam o espectáculo, ensinam como se faz. A moda tem muito que se lhe diga. E pode ser fatal.

Aquele restinho de caldo que se deixava no fundo da malga, a que se juntava broa migada e, amiúde, uma pinga de vinho tinto, e que sabia tão bem no fim da refeição, como se fosse um acrescento de fartura no tempo da fome, era a "moda" ou a "modinha". E se o caldo fosse de nabos, então é que era em cheio. Dicionários e enciclopédias chamam-lhe "moado", substantivo masculino apresentado como regionalismo de origem incerta. Acredito que sim, mas em Fafe não. Em Fafe, era a "moda". Ou "modinha", como melhor se dizia no nosso carinhoso falar antigo.

sábado, 30 de agosto de 2025

Os rabilhos, sem menosprezo pelos outros

Quem é que ainda se lembra de ver a funcionar o velho Mercado de Peixe de Fafe, na Feira Velha, o nosso pequeno "Ferreira Borges"? A funcionar e a cheirar, isto é, a feder e a exabundar de moscas, que aquilo era um pivete que não se podia. Talvez por isso o povo o tenha adoptado como latrina pública, mesmo ali nas barbas da Câmara, durante a sua longa temporada de abandono.

Rabilhos. Os japoneses são malucos por rabilhos. E as notícias dão conta disso, de vez em quando. É um assunto que me interessa sobremaneira, isto dos rabilhos japoneses. Aqui atrasado, um atum com 278 quilos foi comprado por dois vírgula sete milhões de euros, em Tóquio evidentemente, no mercado de Toyosu, que substitui o famoso mercado de Tsukiji, que era o maior mercado de peixe do mundo e uma das principais atracções turísticas da capital japonesa. O atum em questão foi a grande estrela do sempre muito aguardado primeiro leilão de Ano Novo, e bateu, sem culpa nenhuma, todos os recordes. Sei disto tudo porque o jornal Público mo contou na altura. E o Público, por favor não confundir com o Correio da Manhã, conta muito bem estas e outras extraordinarices. Para além disso, o Correio da Manhã é em vermelho.
Meses antes, um atum com 162 quilos tinha sido vendido por 4,3 milhões de ienes (quase 33 mil euros), ainda no velho Tsukiji, no seu último leilão, a uma escassa semana de fechar portas. Um atum praticamente dado, em boa verdade. Com efeito, em Janeiro de 2013, sempre contado pelo jornal Público, atentíssimo a estas coisas até mais não, um atum gigante fora comprado, no mesmo mercado, pelo então preço recorde de 1,38 milhões de euros. O peixão pesava 222 quilos, ficando por isso a cerca de quatro mil e setecentos euros cada quilo, é só fazer as contas. O outro, o tal do Ano Novo, custou mais de dez mil euros o quilo. Ora passa-se o seguinte: aqui atrasado comprei um atum anão, cá em Matosinhos, na peixaria da Dona Augusta, por pouco mais de euro e meio, eu seja ceguinho, e mais fresco era impossível. Pesava quase três quilos, saiu-me a rondar os 50 cêntimos o quilo.
As notícias afirmam que o atum gigante japonês era "rabilho". O meu atum anão, sinceramente não sei. Mas também foi comido. Em bifinhos. De cebolada. E que bem que nos soube.

Não percebo se é a fartura que os desorienta, mas a verdade é que os japoneses são mesmo um bocado tolos nisto de compras. Em Julho de 2014 soube-se que um cacho com 34 uvas, cada bago a pesar cerca de 30 gramas, foi vendido pelo simbólico preço de quatro mil euros. As uvas eram da raríssima casta ruby roman. E eu? Ainda ontem comprei na frutaria aqui da rua um bom gaipelo com 15 bagos e dois pequeninos, e não paguei mais do que cinquenta e três cêntimos. Evidentemente não eram ruby roman, muitíssimo longíssimo disso. As minhas uvas eram colhão-de-galo e, se quereis que vos diga, fiquei muito bem servido...

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Para a Lagoa, rapidamente e em força

Esconjuro
Disseram-lhe - Vá de metro, Satanás! E o Diabo, que até tinha passe, foi.

Fanico. Isto é, migalha, pedaço muito pequeno, lucros insignificantes, ganhos mínimos e obtidos a custo. Ou por outra, chilique, desmaio, perda momentânea dos sentidos, ataque nervoso. E ainda, prostituição.
Fanicar: andar ao fanico, andar em busca de pequenos lucros, andar na má vida, fazer da prostituição modo de vida, biscatar, perder os sentidos, desmaiar, entrar em crise, por assim dizer, histérica.
Fanicar ou fazer em fanicos era também lascar, esbotenar, partir em bocados, pôr em fanicos, cá está. No jogo do pião, havia o pião das nicas, sem real utilidade desportiva, diga-se, porque já velho e eventualmente mutilado, mas era o que servia para apanhar as penalizações da ordem, dadas geralmente com uns piões gigantes, gorilas, com bico grosso ou bico de lança. Eram fanicos aquelas pancadas, porque o pião sofredor ficava nicado, ferido, picado, quer dizer, fanicado. Era o desgraçado de serviço. Em sentido figurado, humanizado, o pião das nicas é o indivíduo em quem todos mandam e a quem todos responsabilizam, o chamado bode expiatório - e assim explicado é fácil perceber porquê.

Ora bem. Por alturas da Lagoa, quero dizer, da romaria da Senhora das Neves, na última sexta-feira antes do último sábado de Agosto, o povo de Fafe subia à serra para pôr a santa na cabeça e tirar o diabo, está lá um funcionário com essa incumbência. Do centro de Fafe ao santuário da Lagoa são pouco mais de 12 quilómetros, pelo Passadouro. O povo é tolo, mas não ia a pé. Os automóveis ainda eram um luxo em Fafe e portanto ia-se na carreira da "Empresa", que saía de uma grande garagem à beira da Igreja Matriz, mesmo em frente à Rua do Assento, do outro lado do então posto da GNR e de umas bombas de gasolina, que também lhe pertenciam, à garagem. Nessa enorme garagem, lá para os seus fundos e talvez anexos, construíram-se gloriosos carros para a Marcha Luminosa das Festas da Vila, "um espectáculo de luz, cor e som", mas isso é assunto que não vem ao caso. Era desengonçada e cinzenta a carreira, camionetas velhas e malcheirosas que, no dia da festa, faziam fanico para a Lagoa e vice-versa.
Isso, andavam ao fanico, faziam fanico, era assim que se dizia, e estamos de volta ao nosso tema, à nossa palavra antiga. Fazer fanico, para os autocarros, significava trabalhar sem horário avisado ou pré-estabelecido. As camionetas arrancavam, numa ou na outra direcção, quando estivessem cheias, a esbordar sempre que possível. Saíam da "Empresa" carregadas de gente mais ou menos sóbria, largavam a carga na Lagoa, esperavam pelo enchimento seguinte num terreiro aparelhado à pressão no meio do monte, à torreira impiedosa do sol, e regressavam a Fafe quando calhasse e a rebentar de gente regularmente bêbada da cabeça aos pés.
Era um ramerrame combinado. Iam e vinham, iam e vinham, os autocarros. Iam e vinho, iam e vinho, os passageiros.
Ao fim do dia, no desmanchar da feira, com o sol a pôr-se lá para os lados de Guimarães, o descampado enchia-se de pancadaria da grossa, famílias inteiras umas contra as outras, na batalha sanguinolenta pela entrada na camioneta prestes a sair para Fafe, às vezes a última, a derradeira sem apelo nem agravo, e depois era mesmo só a pé.
Atacava-se com tudo o que se tivesse à mão. Navalhas, pedras, chibatas, bengalas, muletas, colheres de pau, joelhos, tachos e panelas, socos e galochas, melões e melancias, garrafões vazios, açafates, quadros do anjo da guarda comprados apenas há minutos, concertinas, reco-recos, bombos e ferrinhos, num desconcerto sem dó nem piedade, e lá no meio, aproveitando a abençoada confusão, feliz da vida, o meu avô de Basto, que por acaso até ia a pé para Passos, via Várzea Cova, com a minha avó atrás, e não precisava da camioneta para nada, o meu querido Bô de Basto, estava a dizer, varria o ambiente com o varapau de lódão girando por cima da cabeça como ventoinha de helicóptero, partindo queixos em catadupa, tenteando o vinho para não cair de cangalhas e lançando aos céus o seu famoso grito de guerra - Olraitecamoniésse!

Ó meus amigos! Aquilo era um alcácer-quibir em cuecas, uma poça de sangue digna de ser vista e constada, que pena mas ainda não havia CMTV. A nossa Lagoa, juro-vos, era uma festa muito bonita! E, ainda por cima, ia-se ao fanico.

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

A revolução tem dias

Os indignados
A indignação é a mãe de todas as revoluções! Era. Até aparecer a pílula do dia seguinte.

Conspiravam. Viviam numa satisfatória clandestinidade, numerados de Um a Doze. Mas tinham as suas fontes. Geralmente bem informadas. Eram os meados da década de setenta do século passado. Na reunião de Março, pela noute, em absoluto respeito pelas cautelas catacumbais religiosamente estabelecidas, desligaram o aparelho de televisão por alturas do TV 7, ligaram a telefonia no relato de um Espanha-Portugal em hóquei em patins para disfarçar, colocaram os óculos e apagaram a luz, esbarraram-se uns nos outros, partiram meia dúzia de chávenas e três copos, e os óculos, juntaram as múltiplas informações recolhidas à socapa no mundo exterior, assopraram-lhes cerimoniosamente o pó, decantaram-nas, apreenderam as entrelinhas, montaram o Puzzle, que era um cavalo malhado que dava para todos, mas à vez, pediram mais uma rodada de finos e quatro pires de tremoços, e concluíram que estavam prontos e imperiosos. "É preciso fazer o 25 de Abril!", anunciou o Número Um. "E para quando é que marcamos isso?", perguntou o Número Dois.

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Há mulheres assim, insatisfeitas

Apaixonados pelo telemóvel
Eu não percebo porque é que ele leva a namorada a almoçar. Ele também leva o telemóvel. Eu não percebo porque é que ela leva o namorado a almoçar. Ela também leva o telemóvel. Ele e ela, à mesa, ignorantes um do outro, calados um contra o outro, passam o almoço de mãos dadas. Mãos dadas ao telemóvel, ele ao dele, ela ao dela. E nem sequer ligam um ao outro.

O Dias fazia anos. E foi celebrar ao famoso restaurante. O Dias mais a namorada, e digo que era namorada porque a senhora fartava-se de chamar "ó mor" ao Dias e se lhe fosse nomeadamente esposa chamar-lhe-ia outra coisa, isso tirava-se pela pinta. O Dias mais a namorada, portanto, apadrinhados por outros dois casais amigos e cúmplices, percebia-se, de velhas aventuras pelo menos gastronómicas. Um belo grupo: seis convivas praticamente vetustos mas, é preciso que se note, em razoável estado de conservação. O Dias fazia certamente 75 anos porque não se cansava de repetir que fazia 57 e bastava olhar para ele para se catrapiscar logo a pilhéria. Imagino o forrobodó que não terá sido quando ele fez 69! O Dias vestia um impecável casaco vermelho amaranto sobremaneira alusivo à efeméride e absolutamente adequado, caso, nunca se sabe, fosse necessário, por exemplo, dar uma mãozinha ao serviço.
O Dias é que mandava, e mandava muito alto, porque ele, avisou, é que ia pagar. Mandou vir Alvarinho, "para começar", e encomendou três doses de bacalhau assado. Fez muito bem. Aquele restaurante prepara, de facto, o melhor bacalhau assado do mundo. Vieram duas travessas, esplendidamente servidas: uma, enorme, com duas doses, e outra, normal, com a outra dose, tudo ao mesmo tempo. Informa-se, a propósito, que uma dose de bacalhau dá para duas pessoas que comam muito e ainda cresce. Que se segue? Comeu-se e bebeu-se ali com considerável galhardia, que apetite não faltava àqueles seis, Deus os abençoe. A travessa grande ficou vazia, na travessa normal sobrou uma lasca mínima de bacalhau, da parte mais fina.
Passou o proprietário do estabelecimento, o Sr. A., na sua sacramental ronda por todas as mesas, e, à vista de tamanha limpeza, perguntou, como sempre faz questão de perguntar, satisfeito e simpático: - O bacalhauzinho estava bom?...
Que sim. "Excelente!", "Uma maravilha!", "Não podia estar melhor!", "Fantástico!", "Divinal!" - disseram todos à uma mas cada um à sua. Todos, menos a namorada do Dias, que se batera ferozmente com a dose singela e pediu licença para falar à parte, perante o evidente embaraço e os maldisfarçados safanões dos outros cinco, inclusive o Dias, que a mandava calar, mas sem efeito.
- Sou muito franca! - começou ela. - Eu não digo o que não é, só para agradar, e o meu bacalhau estava deslavado, desenxabido... - sentenciou.
O Sr. A. encaixou, pediu desculpa, explicou, que isto, com as toneladas de bacalhau que ali se demolham semanalmente, às vezes pode acontecer, porque o bacalhau é um material muito ingrato de trabalhar, só na mesa é que se lhe pode tirar a prova dos noves, mas tudo se resolve e ia mandar servir uma nova posta, oferta da casa, e não se fala mais nisso.
Que não. Que não era preciso, que estava tudo muito bem, ela é que tem a mania, atiraram os outros, manifestamente envergonhados. Mas o Sr. A. insistia. E eles, que não. E o Sr. A., que sim. E eles, que não. Que sim. Que não. Que sim. Até que o Dias, reassumindo corajosamente o controlo da mesa e da situação, sugeriu, como quem faz um favor à casa, que só se fosse uma dose de costelinha, em vez da posta de bacalhau...
E sugeriu muito bem. Porque aquele restaurante também prepara, de facto, as melhores costelas assadas do mundo. E de borla, então nem se fala. Pois vieram as costelinhas, desapareceram num lampo, as batatas fritas também, e toda a gente acabou lambendo os beiços. Toda a gente menos a namorada do Dias, que continuava inconsolada, lamentosa, protestando agora derivado aos ossos. Isso, as costelas tinham osso, eram ossos praticamente, ossos rodeados por um pouco de carne, como, por definição, devem ser as costelas, gastronomicamente falando, mas a senhora decerto confundiu costelas com costeletas, sei lá eu, e ainda bem que Deus não se enganou no tempo de Adão e Eva. Em todo o caso: as coisas são como são, e a verdade acima de tudo, as costelas tinham osso, doa a quem doer. E sendo a namorada do Dias a pessoa franca que é, não podia realmente deixar passar em claro um escândalo de semelhante dimensão.

sábado, 16 de agosto de 2025

Um cibo de pão, uma pinga de vinho

Cibo é comida, alimento, especialmente das aves, aqueles bocadinhos que os pássaros dão às suas crias de biquinhos famintos e abertos. Isso. Cibo é pequena porção. Pequena porção de comida ou de qualquer outra coisa, mas sobretudo de comida, como era uso dizer no falar antigo de Fafe e Basto e certamente de todo o Norte ao redor, de uma maneira geral. Mas atenção: cibo não era um vocábulo arrevesado e anacrónico, jurássico, pelo contrário, era palavra corriqueira do dia-a-dia, metida a cotio por necessidade. Era a medida da vida. Cibo é menos que pedaço, é menos que naco, é, dito de outra forma, um nico. Cibo era pobreza.
Pedia-se, oferecia-se, dava-se, partilhava-se, comia-se um cibo de pão, um cibo de carne, bebia-se uma pinga de vinho. Galegos do sul que somos, adoçávamos a penúria, enchíamo-la de mimos, dizíamos cibito, cibinho, cibico, com mil carinhos, como quem faz festas aos seus e diz pequenito, pequenino, pequeninho, pequerricho, de coração cheio e mãos abertas, talvez enganando mansamente a fome, como se afinal lhe quiséssemos bem.

(Publicado originalmente no dia 12 de Fevereiro de 2015)

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Os bês pelos bês

Aos de cá de riba, os que aqui bibemos resbés com o pai Minho e com a parentela galega, acusam-nos regularmente de trocarmos os bês pelos bês. Que, por exemplo, dizemos bergonha em bez de bergonha, biolência em bez de biolência, baca em bez de baca, pobo em bez de pobo, bírgula em bez de bírgula, bizinho em bez de bizinho, berde em bez de berde, ou binho em bez de binho. E que, pelo contrário, dizemos boi em bez de boi, beringela em bez de beringela e bicha em bez de bicha. Eu nunca dei fé de semelhante, a berdade é só uma! Acho que quando é bê dizemos bê e quando é bê dizemos bê, ebidentemente - de resto como toda a gente, que não somos menos do que os outros no que diz respeito ao falar e à gramática. Quanto à crítica propriamente dita, das duas, uma: má bontade ou mau oubir. Debe-se aberiguar!

(Publicado originalmente no dia 16 de Fevereiro de 2015)

Diz que binho, mas num biero

Que bonito que era o falar em Fafe! A criança, sentadinha à mesa, ou à roda da merenda, já julgava que era home e pedia: - Binho! O adulto, responsável, geralmente a mãe, respondia-lhe por desfastio, sem fazer caso: - Diz que binho, mas num biero. Isto é, "constou/disseram/dizem/diz-se que vinham, mas não vieram", e assunto resolvido. Mas dito assim, gramatical, higiénico, a seco, tão aos dias de hoje, lá se foi a graça toda. É preciso molhar a palavra...

(Publicado originalmente no dia 14 de Janeiro de 2025)

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Do normal ou do bô?

Tínhamos a bó e tínhamos o bô. Eu e os meus irmãos tivemos bó e bô vezes dois, pela mãe e pelo pai, sorte a nossa! Bozinha era a bisavó, e tínhamos, em Basto, uma, muito velhinha, muito vestidinha de preto, que certa vez deu-me uma batata assada no borralho que era muito saborosa, e é essa a extraordinária memória que guardo dela. Bô, na nossa terra, queria também dizer bom: binho bô; bô moço; estás bô? Depois, se calhar por soar a parolo não sei a que finaços de carregar pela boca, o bô de avô mudou para bu. Bu também mete medo, é susto. Buuu! Mas quem caralho teve a ideia?...

Para mim, e defendo-o de graça há muitos anos, o Minho começa em Fafe e acaba em Santiago de Compostela. E a Galiza também. Isto é: Galiza e Minho são-me o mesmo, chamem-lhe o que quiserem, mas Minho decerto fica-lhe melhor derivado ao rio que nos une. Somos a cara chapada uns dos outros, os minhotos e os galegos destes limites, labregos envernizados, crescemos das mesmas raízes, aprendemos da mesma língua, padecemos ainda hoje do mesmo ancestral atraso de vida, desfrutamos do mesmo amor à comida e à bebida, à água benta e à festa, partilhamos a maneira de falar, cheia de "ches", de "inhas" e de "inhos", de "xes" em vez de "ses", de "bes" em vez de "ves", não raro falamos até o mesmo idioma, consoante os sítios e a idade, repetimos nomes, palavras pândegas, debitamos caralhos atrás de caralhos como não há memória de tanto caralhar noutras latitudes deste mundo e de outros. Nós, os galegos do lado de cá, e eles, os minhotos do lado de lá, assim somos.
Em Fafe e nas terras de Basto chegadas a Fafe falava-se esse conversar comum quando eu era pequeno, aprendi-o naturalmente com os meus avós maternos, em Passos, Cabeceiras, com a minha mãe e com os meus tios. A querida tia Margarida ainda agora o usa a cotio, com uma graça que me encanta e comove, e eu dou-lhe serventia da língua para fora sempre que posso, e hoje em dia, sem obrigações profissionais, posso quase sempre. Este modo de falar faz parte do nosso fafês.
E o fafês é a minha língua. Nasci no fafês, sou do fafês desde pequeninho, agora tanto ou mais do que naquele tempo.

Imaginai então a minha alegria com o que se passou aqui atrasado, numa das nossas habituais saltadas ao lado do Minho a que outros chamam Galiza. Foi assim. Como de costume, aproveitámos para atestar o depósito do carro, ali à entrada de Tui, logo depois da velha ponte de Valença, a chamada ponte rodoferroviária com desenho Eiffel. "Ga-só-le-o!", digo eu ao senhor gasolineiro. E o senhor gasolineiro, nunca tal nos tinha acontecido, pergunta-me sem mais nem menos, como se anunciasse pipa nova: - Normal ou do bô?...
Caralho! "Do bô", o senhor gasolineiro perguntou-me se o gasóleo era "do bô", palavra de honra, "do bô", perguntou, como fosse a minha avó, o meu avô, a minha mãe ou a tia Margarida a perguntar-me. E eu fiquei tão contente, tão criança, de repente tão outra vez abraçado ao avental da minha mãe a cheirar tão bem a sabão e felicidade, a casa, a nós, a Fafe antigo, fiquei tão comovido que quase me descompus. Apetecia-me abraçar o homem...
Por outro lado, o gasóleo era do normal e fedia indecentemente. Mas o senhor gasolineiro perguntou se era "do bô", foi o que ele disse, e disse tão bem, e eu gostei tanto. "Do bô", caralho!...

(Publicado originalmente no dia 14 de Janeiro de 2025)

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

O que eu sei de Alberto Feijóo

Sobre o líder do PP espanhol, o galego Alberto Núñez Feijóo, eu sei o seguinte: ele gosta muito da costelinha assada e do bacalhau na brasa da Casa Álvaro, em Valença, e come os dois pratos à mesma refeição. Bebe verde tinto, que traça eventualmente com uma seven up, e creio que assim fica tudo explicado. Não são de confiança os indivíduos que misturam vinho bom, ou bô, com seven up...

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

A madama e os saralhotos

Dizia o povo, e com razão: cagarim, cagarou-se, há dois modos de cagar, se o cagalhoto for grosso, fica o cu o fumegar.

Matosinhos à tarde. Sol que é um consolo. Puxado pela trela do pequeno cocker, o casal desce a rua, a minha, em direcção ao mar ali à beira. Eis senão quando, porventura desarranjado pelo strogonoff de vitela ou pelo leite-creme que lhe serviram ao almoço, o aflito canídeo arreia as calças e caga ali mesmo em pleno passeio, com evidente alívio pessoal e grande satisfação dos babados papás. Acabada a obra, a madama, higiene e civismo acima de tudo, vai à carteira de marca e retira um lenço de papel de um branco imaculado, abre-o, ao lenço casto, provavelmente perfumado, e volta a dobrá-lo, liturgicamente, agora apenas em dois, baixa-se, quase que me parece que se benze, e limpa o cu ao cão. Isso, limpa o cu do cão. Depois amarrota o papel e lança-o para junto do saralhoto. E ali fica o serviço. No meio do passeio. Do meu. E lá seguem os três para o mar e para o sol, dois deles puxados pela trela.
A autarquia agradece. Faz colecção. No brasão de Lisboa desenharam corvos, no de Matosinhos deveriam figurar saralhotos. A cidade de Matosinhos, para além de muitas coisas boas que tem, é isto: não há passeios que cheguem para tanta merda de cão. E a culpa não é do cão.