quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Uma passagem de nível

Como quem entra no céu
Transpôs a porta sagrada, procurou instintivamente à direita a piazinha de água benta que não 
encontrou, genuflectiu e benzeu-se num silêncio e num respeito que só vistos, caminhou lentamente até à estante, no mais profundo recolhimento, pegou no livro como quem pega em asa de borboleta ferida, afagou-o, ao livro, abriu-o como que a medo, em ângulo recto não mais, folheou-o sem destino mas com mil cuidados, contemplativo, num deleite adivinhatório de santidade gozosa. Tinha acabado de entrar numa livraria.

Fafe já teve passagem de nível. Em Santo Ovídio, mesmo no meio da estrada, era a nossa única passagem de nível, magnífica, sem rival, e por isso chamava-se "a" Passagem de Nível, porque Fafe naquele tempo era sobremaneira isso, uma extraordinária terra de antonomásias. No nosso imenso pequeno mundo, tínhamos o Largo, a Avenida, o Monumento, a Recta, o Campo, o Depósito, o Banco, os Serviços, a Bomba, o Jardim, o Bairro, a Quelha, o Santo, o Colégio, o Rio, a Poça, a Rampa, o Posto, a Empresa, o Hotel, o Bar, o Snack-Bar, a Pastelaria, o Palacete, o Cinema, o Grupo, a Fábrica, a Cantina e, cá está, a Passagem de Nível.
A singularidade, de resto, nunca me incomodou, antes pelo contrário, simplificava-me a vida, mas esta coisa de Fafe ter só uma passagem de nível na sua história, uminha, e não haver notícia de mais, antes e agora, numa cidade tão dada à cultura, às letras e à publicação literária, é que me surpreende. Em Fafe, os livros saem ao ritmo das cerejas, e dos tremoços, uns atrás dos outros, o que é de elogiar, e no entanto não se sabe, nunca mais se soube que por aqui tivesse aparecido o tal parágrafo perfeito, o trecho extraordinário, a tirada sublime, o fragmento de classe, a amostra de gabarito, quatro linhas de excepção, duas ou três frases lapidares e eternas, dúzia e meia de palavras genialmente concatenadas e dignas de registo, enfim, outra passagem de nível. Não. Nada. Nadinha. E eu, sinceramente, dá-me um certo desgosto...

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