sexta-feira, 9 de maio de 2025

O dia em que envelheci

Já não vamos para velhos
A verdade é esta: biblicamente falando, Moisés viveu até aos 120 anos, Jacob até aos 147, Abraão até aos 175, Adão até aos 930, Noé até aos 950, e Matusalém, filho de Enoque, pai de Lameque e avô de Noé, faleceu de repente aos 969 anos. Antigamente era assim. E agora? Agora andamos à rasca para chegarmos aos 60 e damos graças a Deus se alcançarmos os 72, embora a esperança média de vida na Europa ronde os 82. Regra geral, metemos os papéis para a reforma e morremos logo a seguir. O que estará por trás desta alteração tão radical? Glaciares, asteróides, falta de médicos de família ou tão-só falta de fé, não tenho a certeza, mas creio que a segurança social também já não aguentava tanto profeta...

Sei muito bem o dia em que envelheci. Foi de repente. Sei o ano, sei o mês, sei o dia e até sei a hora, mas tanta exactidão não vem aqui ao caso. Sei o local e sei as circunstâncias. Foi de manhã. Foi no Hospital de Gaia, numa consulta de medicina do sono, creio que a coisa se chamava ou chama assim. A dado passo da bateria de exames e do minucioso inquérito, a médica perguntou-me, surpreendentemente: - Quando era novo, o Sr. Américo já sentia este cansaço?..
Eu ia caindo de cu. Primeiro. Esta mania de me tratarem pelo meu primeiro nome, Américo, nas consultas e, em geral, em todos os serviços públicos ou privados que exigem a competente apresentação de credenciais. Não sei, chamam-me Américo e eu, que estou tão habituado a chamar-me Hernâni, procuro sempre outro indivíduo ao meu lado, no meu próprio lugar. Sinto-me outra pessoa, um estranho de mim mesmo. Tratar-me por Américo é um privilégio que está reservado ao meus companheiros da escola primária, em Fafe, e, mesmo com esses poucos que ainda se lembram de mim, nunca sei se é comigo que estão a falar quando falam comigo. O Bergiguinha chama-me Américo com todo o direito, mas diz que chama Américo a todos os homens da minha família. Segundo. "Quando era novo", disse ela. Quando era novo?! Porra, eu ainda sou novo, tentei corrigir gentilmente a senhora doutora, atirando ao ar duas ou três larachas e apanhando-as, a todas, sem deixar cair, disparando-me da marquesa, acto contínuo, num acrobático salto encarpado, com duas piruetas à retaguarda.
Mas não adiantou. Pelo contrário. A doutora insistia, parecia-me agora que com algum prazer, com uma certa maldade, "quando era novo" para aqui, "quando era novo" para ali, "quando era novo" acima, "quando era novo" abaixo, e quem sou eu para contrariar o veredicto da medicina, a sábia decisão da ciência?
E foi assim. Nesse dia, naquele preciso momento, fiquei velho para toda a vida, por indicação médica e sem remédio. Eu acabara de fazer 41 anos.

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