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quarta-feira, 27 de agosto de 2025

A arte de cuspir no prato

Foto Hernâni Von Doellinger

Saudações inimigas?
Escrevi aí a uma ungida criatura, assunto sério, melindroso, e, no final, mandei-lhe um "grande abraço". A criatura despachou-me às três pancadas e, no final, mandou-me, para a troca, "saudações amigas". Saudações amigas? Mas, Senhor Bispo, o que raio são saudações amigas? Evidentemente serão o contrário de saudações inimigas, mas o que são saudações inimigas? Abraço, eu sei: o abraço é sólido, palpável, vê-se, sente-se, dá-se, recebe-se, aperta-nos, aproxima-nos, humaniza-nos, igualiza-nos. Agora, saudações amigas? Isso traz água no bico...

Trabalhar no meu jornal era obra desenganada. As pessoas que contactávamos para fazermos as "notícias" sabiam que, se falassem, fosse do que fosse, tudo o que nos dissessem podia ser usado contra elas. E geralmente era. Nem que lhes telefonássemos apenas para perguntar as horas, havia de sair dali cagada da grossa. Nós depois ligávamos a ventoinha. Estupidamente, cuspíamos no prato em que comíamos. O 24horas era assim, fugia-lhe o pé para a escandaleira. Se não houvesse sangue, os meus chefes tratavam disso. Para os mais distraídos perceberem: estais a ver como são agora todos os jornais e quase todas as televisões? Pronto, o meu jornal é que começou. O 24horas é a bíblia do "jornalismo" que hoje se faz em Portugal. O 24horas chama-se actualmente Correio da Manhã, Jornal de Notícias, Sábado, Observador, Diário de Notícias, Sol, Record, A Bola, O Jogo, às vezes até Público e assim sucessivamente.
Portanto tínhamos muito poucas "fontes". As pessoas minimamente informadas fugiam de conversar connosco como o diabo foge da cruz. Umas tinham vergonha na cara ou medo e outras desprezavam-nos simplesmente. Umas e outras sabiam que as nossas perguntas tinham quase sempre volta de foda. Se desse jeito, pedíamos a A para falar de B, para a seguir metermos A e B no mesmo saco e malharmos nos dois como se fossem um só. O jornal escolhia os seus alvos e gastava a pólvora toda (seca, por norma) enquanto a coisa vendesse. Mas é preciso que se diga: isto de eleger "inimigos" e disparar até cair para o lado foi uma herança recebida de Paulo Portas, do tempo em que o ex-vice-primeiro-ministro era director do semanário Independente e fazia a vida negra ao Cavaco primeiro-ministro e respectivos ajudantes no Governo. Portas é que inventou esta receita de sucesso e gabava-se disso. O seu a seu dono.
No meu jornal, Lisboa encarregava-se de fechar as portas às quais nos mandava depois bater, aqui do Porto. Levávamos quase sempre com a porta no nariz. As pessoas respondiam-nos torto, muito torto, era o pão-nosso de cada dia. Uma vez calhou-me o Sócrates, nas vésperas de ganhar as primeiras eleições, e foi do bom e do bonito. Lembrais-vos do génio do gajo? Tendes presente o feitio da criatura? O seu amor aos jornalistas? Pois é. Foi uma discussão das antigas, uma bonita história que já contei aqui. Evidentemente levei com muitos outros malcriados, mas é gente que nem merece que lhes diga os nomes.
Claro que a grosseria não era geral. Havia também pessoas que muito simplesmente se recusavam a falar-nos mas sem baixarem o nível. O bom do Raul Solnado (1929-2009), Luís Represas, o actor José Pedro Gomes, são dos que me lembro agora que escrevo. Nenhum dos três me conhecia, mas, depois de me ouvirem educadamente, foram igualmente atenciosos na nega. Disseram-me: "Desculpe, Hernâni, não é nada de pessoal consigo, portanto ligue-me quando estiver noutro jornal. Então conversaremos do que quiser". Agradeci sinceramente a franqueza e a urbanidade. E pedi desculpa eu. Eu sabia que eles tinham razões.
Era vida difícil. Num jornal que precisava da "opinião" dos "famosos" sobre tudo e sobre nada. A propósito da nudez de Marisa Cruz num filme ou por causa do Fidel Castro que passou a pasta ao irmão. A minha sorte é que acabava sempre por encontrar uma alma caridosa que me ajudava a ganhar o dia. Gente que sabia o que era o 24horas mas que, fosse por que razão fosse, nunca me deixou ficar pendurado: gente como Marcelo Rebelo de Sousa, o comentador, e o bom Júlio Magalhães, jornalista e cara da TV, sempre disponível, sempre decente e generoso, os empresários e portistas Pôncio Monteiro (1940-2010), Manuel Serrão e Rui Moreira, os estilistas Miguel Vieira, Katty Xiomara, Luísa Pinto e Gio Rodrigues, os juízes Rui Rangel e Eurico Reis, o fiscalista Saldanha Sanches (1944-2010), Valentim Loureiro (o meu cromo da sorte), Júlio Isidro e Joaquim Letria, que também eram da casa, Tozé Brito, Luís Filipe Barros, José Cid, o humorista Nilton, Octávio Machado, Francisco José Viegas, Manuel Luís Goucha, José Carlos Malato, Jorge Gabriel, Hélio Loureiro, Paulo Teixeira Pinto e mais uns poucos de que injustamente me estou a esquecer. Dou-lhes, a todos, um grande abraço. Eram sempre os mesmos e a minha tábua de salvação. O meu piquete de emergência.
Cada qual lá teria os seus motivos. Alguns, tenho a certeza, era mesmo uma questão de bondade. Fiquei agradecido a todos. De vez em quando pago-lhes aqui nos meus blogues com umas ripeiradas. É este maldito 24horismo que não há maneira de me passar...

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Ah, fanecas!

O sedutor
Ele era um sedutor de mão cheia. Adorava apalpar rabos.

Bem boas que elas andam, as fanecas. Gosto delas fritas. Temperadas só com sal e passadas por farinha milha, à tasco, isto é, à Fafe, ou então mais à minha moda, tratadas também com um pouco de pimenta e bastante limão e depois envolvidas com farinha triga e ovo. Sem outros truques ou invenções. Há derivas que aceito e consumo, mas estão longe de me satisfazer. Insisto: a faneca só me enche as medidas quando na sua pureza original. Frita.
Peixe, em Fafe, era uma trilogia, uma santíssima trindade: sardinha, faneca e chicharro, que se dizia chucharro, carregando generosamente nos "ches" como se fossem tempero, azeite do bom. Era o peixe que se podia, peixinho de pobres. Às vezes lá apareciam também uns verdinhos, umas marmotinhas para enfiar o rabo na boca, e claro que ouvíamos falar de pescada, sabíamos que a pescada existia, que antes de ser já o era, mas que era só para os ricos, ou para os pobres oferecerem aos ricos, como peita, os tolos. O peixinho andadeiro, o nosso, comprava-se à Mocha e à D. Filomena, marralhando com todo o afinco, à face da estrada, no Santo Velho, sítio estratégico por onde passava o povo das fábricas. A pescada, quem lhe pudesse chegar, amiúde para acudir à aflição de uma doença e satisfazer a recomendação médica, só vinha por encomenda, de um dia para o outro. E era como se fosse à farmácia.
Uma vez há muitos anos, pela madrugada, eu já no Porto, deixei que me metessem num barco nevoento e fui à pesca da faneca com o bando do saudoso Adélio Santos, velho repórter-fotográfico com quem acamaradei no Janeiro e noutras lides mais ou menos profissionais. Quer-se dizer: eles foram à pesca, à linha, e eu fui lançar ao mar os restos de uma noitada sem passagem pela cama. Não sei se servi de engodo, mas o certo é que apanhámos peixe até dar com um pau. Seríamos uns seis ou sete naquela companha de ocasião, e toda a gente teve direito a um ou dois baldes cheios de fanecas e cavalas, até eu, que, pelos vistos, também tinha feito a minha parte e não sabia. Estava na idade da toléria e tão tolo era que desprezei então as cavalas, hoje em dia com lugar cativo, ainda que bissexto, na minha exigente lista de pitéus.
Mas voltemos às fanecas. O meu amigo Lopes, que é tão fanequeiro como eu, afirma, no seu mar de sabedoria, que "a faneca é um peixe muito honesto". E é. Em diversos sentidos e apesar de já ter andado por aí na boca da malandragem armada em carapau de corrida. A este respeito (ou a respeito da falta dele), torno a Fafe, à década de setenta do século vinte: quem é desse tempo e não se lembra dos rapazolas ou velhos tarados que, aproveitando a barafunda das quartas-feiras, passavam por elas, pelas moças, em Cima da Arcada, roçando-lhes o cotovelo pelas mamas, como quem não quer a coisa, atirando-lhes, entredentes, "Ah, faneca, comia-te toda!", broeiros, e levando de resposta um lampeiro estalo na cara, que acabava logo ali com todos os tesões? Realmente, quem não se lembra?...
Entretanto o piropo foi criminalizado em Portugal, e até poder dar cadeia. E os apalpões, já se sabe, dão artigos de jornal, o que ainda é pior. A mim, por acaso, não me faz diferença. Gosto muito de fanecas e de mamas, confesso, mas seduzo apenas por telepatia.
O Lopes tem razão: a faneca é um peixe honesto. Depois, evidentemente, como em tudo na vida, há fanecas mais honestas do que outras. Na minha cozinha, por exemplo, só entram fanecas do alvor, pescadas já dentro da manhãzinha, como daquela vez extraordinária com o Adélio, mas agora sacadas do mar por mãos que sabem. Um luxo. Mordomia matosinhense, reservada a quem mora ao pé da doca e conhece um bocadinho. São fanecas do mar que eu vejo da minha varanda, "do nosso mar". Madrugo também, compro-as vivinhas da silva, ainda sem terem passado pelo castigo do gelo e isentas de outras burocracias normalizadoras e estragativas, trago-as íntegras para casa, amanho-as eu, eu é que sei como é que as quero. Não menos importante: comemo-las no próprio dia. Exactamente. Elas andam bem boas, isso nem se discute, mas é preciso saber dar-lhes as voltas...

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Diálogos fafenses 19

Prova de vida
- Está?
- Estou.
- Está?!...
- Estou!
- Ah!
- E aí, está?
- Estou.
- Está?!...
- Estou!
- Pronto, amanhã ligo eu.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

O grande Fortunato

O melhor amigo
Os Sousas do sexto-direito têm um cão. O cão é o melhor amigo do homem, quero dizer, do Sousa. O melhor amigo da mulher, quero dizer, da mulher do Sousa, é o Gustavo da Tabacaria.

Encontrei ontem por acaso o Fortunato, o meu amigo Fortunato - aos séculos que não nos víamos um ao outro, eu e o velho Fortunato. Fiquei tão contente! E foi tão bom! Recordámos os tempos antigos, aqueles anos loucos na universidade, falámos das nossas vidas, da família, dos filhos, dos netos, dos amigos que já morreram, daquela inesquecível viagem à Áustria para apoiar o Benfica, grandes malucos, falámos deste mundo sem conserto, deste país que só neste país, do nosso tempo, que é que era, do tempo para o próximo fim-de-semana e de projectos para o futuro. Enfim, pusemos a conversa em dia, avivámos uma amizade que vem desde os bancos da escola, por assim dizer. Despedimo-nos calorosamente, trocámos abraços da boca para fora e números de telemóvel, apalavrando a marcação de um almoço para um dia que não chova. Cada qual seguiu para o seu lado, e só então é que eu reparei que aquele não é o Fortunato, nem sequer é parecido com o Fortunato. De resto, pensando bem, ele também não me disse que era o Fortunato e eu nunca conheci nenhum Fortunato, nunca tive um colega ou amigo chamado Fortunato, não andei na universidade, nunca fui à Áustria e, ainda por cima, quero que o Benfica se foda. Na verdade, depois de muito puxar pela cabeça, cheguei à irrefutável conclusão de que não conheço este indivíduo de lado nenhum. Em todo o caso, gostei muito de falar com o Fortunato, e é sempre bom ter amigos assim.

terça-feira, 10 de junho de 2025

In vino veritas, in aqua planing

Compareceram todos. Ab Initio, Modus Operandi, Lapsus Linguae, Curriculum Vitae, Honoris Causa, In Dubio Pro Reo, E Pluribus Unum, Habeas Corpus, Ex Aequo, Ipso Facto, Mea Culpa, Per Capita, o casal Dura Lex, Sed Lex, Post Scriptum, Sine Die e Sine Qua Non, Ad Hoc, Statu Quo e Procol Harum, Sui Generis, Vade Retro, Totus Tuus e Deo Gracias, Data Venia, Ipsis Verbis e Ipsis Litteris, A Priori e A Posteriori, Apud, Carpe Diem, Grosso Modo, In Loco, In Memoriam e In Vitro, RIP, Dux Veteranorum, Alter Ego, Fac Simile, Verbi Gratia, Ibidem e os irmãos A Contrario Sensu, Lato Sensu e Stricto Sensu.
Honoris Causa abriu os trabalhos e foi directo ao assunto. Disse: - E se nos deixássemos de merdas e começássemos a falar como as pessoas?...

sexta-feira, 9 de maio de 2025

O dia em que envelheci

Já não vamos para velhos
A verdade é esta: biblicamente falando, Moisés viveu até aos 120 anos, Jacob até aos 147, Abraão até aos 175, Adão até aos 930, Noé até aos 950, e Matusalém, filho de Enoque, pai de Lameque e avô de Noé, faleceu de repente aos 969 anos. Antigamente era assim. E agora? Agora andamos à rasca para chegarmos aos 60 e damos graças a Deus se alcançarmos os 70, embora a esperança média de vida na Europa ronde os 82. Regra geral, metemos os papéis para a reforma e morremos logo a seguir. O que estará por trás desta alteração tão radical? Glaciares, asteróides, falta de médicos de família ou tão-só falta de fé, não tenho a certeza, mas creio que a segurança social também já não aguentava tanto profeta...

Sei muito bem o dia em que envelheci. Foi de repente. Sei o ano, sei o mês, sei o dia e até sei a hora, mas tanta exactidão não vem aqui ao caso. Sei o local e sei as circunstâncias. Foi de manhã. Foi no Hospital de Gaia, numa consulta de medicina do sono, creio que a coisa se chamava ou chama assim. A dado passo da bateria de exames e do minucioso inquérito, a médica perguntou-me, surpreendentemente: - Quando era novo, o Sr. Américo já sentia este cansaço?..
Eu ia caindo de cu. Primeiro. Esta mania de me tratarem pelo meu primeiro nome, Américo, nas consultas e, em geral, em todos os serviços públicos ou privados que exigem a competente apresentação de credenciais. Não sei, chamam-me Américo e eu, que estou tão habituado a chamar-me Hernâni, procuro sempre outro indivíduo ao meu lado, no meu próprio lugar. Sinto-me outra pessoa, um estranho de mim mesmo. Tratar-me por Américo é um privilégio que está reservado ao meus companheiros da escola primária, em Fafe, e, mesmo com esses poucos que ainda se lembram de mim, nunca sei se é comigo que estão a falar quando falam comigo. O Bergiguinha chama-me Américo com todo o direito, mas diz que chama Américo a todos os homens da minha família. Segundo. "Quando era novo", disse ela. Quando era novo?! Porra, eu ainda sou novo, tentei corrigir gentilmente a senhora doutora, atirando ao ar duas ou três larachas e apanhando-as, a todas, sem deixar cair, disparando-me da marquesa, acto contínuo, num acrobático salto encarpado, com duas piruetas à retaguarda.
Mas não adiantou. Pelo contrário. A doutora insistia, parecia-me agora que com algum prazer, com uma certa maldade, "quando era novo" para aqui, "quando era novo" para ali, "quando era novo" acima, "quando era novo" abaixo, e quem sou eu para contrariar o veredicto da medicina, a sábia decisão da ciência?
E foi assim. Nesse dia, naquele preciso momento, fiquei velho para toda a vida, por indicação médica e sem remédio. Eu acabara de fazer 41 anos.

quarta-feira, 26 de março de 2025

Diálogos fafenses 2

Não quer dizer nada
- Este ano o Silva não vem...
- Vem, vem! Vem todos os anos!
- Mas o Silva morreu em Outubro.
- E o que é que isso tem a ver?

domingo, 2 de março de 2025

O Jorge e o senhor de gravata

Foto Ivo Borges / O Minho

Imperdoável. Atrasei-me mais de dois anos para dar com esta sensacional fotografia, e foi por acaso, quando andava à procura de memórias do Café Chinês, de Fafe. E não penseis que o extraordinário do retrato tirado com toda a oportunidade pelo Ivo Borges é o Presidente da República bebendo um fininho, não, o importante mesmo é o Jorge, em primeiro plano, o grande Bergiga ou Bergiguinha, meu inseparável companheiro de infância, ele e o Abílio, o Bilinho, esse Bilinho exactamente, éramos três como os mosqueteiros, um por todos e noves fora nada, unha com carne, inocentes e terríveis, fazedores não premiados de trinta por uma linha. Marcelo Rebelo de Sousa, aqui, é apenas o senhor de fato e gravata azul que está à beira do nosso Jorge, nada mais do que um simples adereço, posto que de gabarito, talvez uma espécie de emplastro de luxo.
Isto reporta a Julho de 2022, numa ocasião em que Marcelo foi falar a Fafe, a convite da Câmara. Do encontro que aqui verdadeiramente interessa, o jornal O Minho deu então notícia, assim:

"Jorge, um conhecido fafense, contou: "O Senhor Presidente parou aqui no Café Chinês, onde eu estou várias vezes, e eu disse-lhe que um dos melhores finos de Fafe é no Café Chinês. E o Presidente disse que alinhava no fininho, mas que não podia beber muito, porque ia fazer um discurso. É uma pessoa muito comunicativa e simpática, até fiquei impressionado."

Estiveste bem, Jorge! Marcelo não podia ter encontrado melhor companhia para molhar a palavra. Ele nem sabe a sorte que teve por estar-te ao lado. Nunca te viu jogar à bola, desconhece que tu é que inventaste as fintas do Messi, do Neymar ou do Cristiano Ronaldo, e rias-te. Para mim, tu é que devias ser presidente da república, porque mereces, mereces tudo, mas é o país que temos. Para além do mais, és "um conhecido fafense", mais conhecido que os tremoços, que também teriam dado jeito com a cervejinha.
Da última vez que nos encontrámos e nos rimos, caro amigo, já há uns anos e ainda no Peixoto, ao balcão, pagaste tu, sem me dar hipótese, lembro-me bem, e não te saiu barata a brincadeira. Estou, portanto, a dever-te uns fininhos. Mas devo-te muito mais do que isso...

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Meu rico menino

Foto Facebook Joe Biafra

Uma noite, altas horas, saíamos da casa de má fama ali para os lados da Estação e resolvemos passear descalços pelas ruas desertas e geladas da cidade. Não sei de quem foi a peregrina ideia, mas, de tão tola, decerto foi minha. Confesso que não me lembro do que pretendíamos exactamente provar, se é que queríamos provar alguma coisa, mas gosto de pensar naquele momento insólito como um ritual de fraternidade, a celebração de uma amizade antiga e inoxidável que nos ligava desde miúdos, apesar da evidente diferença de "estatuto social" entre as nossas duas famílias. Frequentara-lhe a casa - de rico, por assim dizer, e dizia-se assim naquele tempo. Eu levava-lhe de avanço um par de anos. Dava-me o lanche, apresentou-me ao pão com manteiga e ao café com leite. Guiou-me pelos caminhos do rock. Ensinou-me Queen, com as devidas reservas. Emprestou-me "A Night at the Opera". Eu e a minha mãe deliciávamo-nos a ouvir "Bohemian Rhapsody" uma e outra vez, mais de vinte ou trinta vezes ao dia, no pequeno gira-discos francês que nos sobrara do meu pai. E ficou Queen até hoje, posto que non troppo.
Ali íamos, portanto. O Bertinho e eu. E, sim, era realmente liturgia, era festa. Glorificávamos a camaradagem desinteresseira e fiel. Éramos irmãos. Irmãos para toda a vida e depois. Ali íamos afinal iguais, ambos de pés descalços, com as botas e as meias pela mão, trocando memórias e partilhando o riso. Ríamos muito! Passávamos em frente à Câmara e parámos - éramos, penso-o agora, uma procissão, os dois. Se naquele precioso instante soltassem revoadas de pombas brancas por sobre as nossas cabeças e lançassem estrondosas girândolas de foguetes, creio que não nos espantaríamos. Nós éramos a Senhora de Antime, a festa inteira, em pessoa.
Escandalosamente generoso e bom, leal e presente, o Bertinho chamava-me "meu rico menino", e eu gostava. Eu gostava, meu rico menino!

(Já agora: Bob Dylan, aprendi-o com o Best, madrugada dentro, em casa dos pais, no Lombo. Iniciei-me com "Hurricane" e sandes de fiambre, e talvez também cerveja.)

Esta maneira fafense de sermos

A vespa asiática
A diferença entre as abelhas e as vespas. As abelhas são insectos himenópteros, da família dos Apídeos, que vivem em enxames e produzem mel e cera. As vespas são lambretas ou, vá lá, motorizadas para senhoras, desculpem-me a expressão...
E depois há as vespas asiáticas. As vespas asiáticas, diga-se em abono da verdade, são principalmente Honda, Yamaha e Suzuki. Mas também Zongshen, Lml, Lifan, Generic, Kinroad, Jincheng, Znen, Masaï, Keeway, Baotian, Sym, Pgo, Kymco e TNT. Isto apenas por exemplo. E são realmente uma praga.

Vou a Oliveira de Azeméis, por exemplo, e levo uma data de "Ó jovem!", geralmente debitada por pessoas de bandeja na mão e com idade para serem, vá lá, meus netos. Afino! Ai, se soubessem como eu afino! Vou ao Porto ou a Lisboa, por exemplo, e atiram-me "Ó chefe!" acima e "Ó chefe!" abaixo, pessoas que não me conhecem de lado nenhum e com idade, vá lá, para terem juízo. Fico escamado! Ai, se soubessem como eu fico escamado! Por outro lado: vou a Fafe, por exemplo, e as pessoas, algumas com idade para serem, vá lá, meus filhos, chamam-me "Meu rico menino!", e eu aprecio, gosto. Fico feliz da vida! O carinho interessa-me, faz-me jeito. Quer-se dizer: todas as terras são por exemplo, mas algumas são mais por exemplo do que outras. E neste particular, deixai-me que vos diga, Fafe é, modéstia à parte, uma terra por exemplíssimo.

É. Basta reparar no modo carinhoso como tratamos a comida, isto é, a comidinha. Esta maneira tão fafense e antiga, de indesmentíveis conexões galegas, que nos põe a falar mansamente da vitelinha, do pãozinho, das tripinhas, do cozidinho, do arrozinho, da massinha, do bacalhauzinho, das batatinhas, do azeitinho, da saladinha, do cabritinho. E como nós gostamos de falar de comida! E falamos de comida enquanto comemos, sem nos enganarmos, o que é extraordinário, e até nos criticam por isso. E no entanto, nós, os fafenses, pelos menos os já usados, somos tão capazes de manter conversas interessantes e profundas sobre gajas e carros como o resto dos portugueses, sejam de que terra forem. Creio até que ainda hoje ninguém nos bateria num debate sobre motorizadas, essa é que é essa. Zundapp vs. Sachs, o eterno dilema, o suprassumo dos assuntos, tendes dúvidas, quereis saber a verdade? Perguntai a um fafense de algibeira e moderadamente antigo, nem precisa de ser doutor, ele explica-vos tudo, ele, em três penadas, resolve de vez a questão.
É. A felicidade é coisa pouca e tudo. Digo melhor: a felicidade é questão de um gajo se habituar. E para os fafenses, nisto da felicidade e de bons hábitos, a mesa é sagrada. É o altar da família, da amizade, do carinho partilhado. Dos carinhos. Dos miminhos. Da liturgia de todos os inhos. Também do bifinho para o menino, que anda com fastio e faz 32 aninhos, coitadinho. Sim, bifinho, um bifinho em prato-travessa, palmo e meio de comprimento e dois dedos de altura, bifinho, porque se coubesse num prato normal seria apenas bife, mas isso toda a gente sabe. E vinhinho? Está bem, mas só uma pinguinha...

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Está tudo nos livros

Foto Hernâni Von Doellinger

O Lopes ofereceu-me pelo aniversário os "Mistérios de Fafe", de Camilo Castelo Branco. Uma "edição popular" de 1969 da Parceria A. M. Pereira Ld.ª, "8.ª edição, conforme a 2.ª, última revista pelo autor", Camilo, que avisa desde logo: "Esta novela contém adultérios, homicídios, missionários e outros cirros sociais", portanto Fafe no seu melhor. Prendinha bem catita, que nisto de livros o Lopes nunca dá ponto sem nó, e foi apenas a cereja em cima do bolo, um mimo, porque a prenda principal foi outra - outro livro, evidentemente. Os meus melhores livros, aliás, são-me regularmente dados pelo Lopes e pelo meu irmão Orlando, honra lhes seja.
Mas o Lopes. O Lopes é um bom caralho! Aqui atrasado ofereceu-me "O Seminarista", de Rubem Fonseca. "O Seminarista", para mim, estais a ver a malandrice? Porque o Lopes parece que está sempre no gozo. O Lopes chama-se Luís Lopes, é jornalista, escritor, argumentista e fafense amador, tantas as vezes que me acompanhou nos meus periódicos e mais ou menos nocturnos regressos à terra. O seu primeiro livro, publicado pela Vega em 1997, tem por título "Que Puta de Vida!", e quem ainda não leu, não sabe o que anda a perder. É coisa que se lê num lampo ou, melhor dizendo, no tempo de uma gargalhada. Ou de um espirro. Alguns raros exemplares poderão ainda ser encontrados, creio, nas melhores casas da especialidade.

Já agora, o seguinte. À medida que nos formos conhecendo melhor, ides perceber que eu levo os telemóveis muito a sério (à séria, se lido em Lisboa). Se o meu telemóvel toca, e é raro, eu atendo. Sempre. Ainda ontem: eu estava aqui nas traseiras, a escrevinhar qualquer coisa, por acaso sem o telemóvel à mão, e ouvi-o tocar na cozinha, virada para a rua. Fui lá a correr: não era o telemóvel, era a máquina de lavar roupa, que as máquinas de lavar roupa agora também tocam. O que é que eu fiz? Atendi a máquina de lavar roupa, evidentemente. E era o Lopes...