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sexta-feira, 25 de julho de 2025

Ah, fanecas!

O sedutor
Ele era um sedutor de mão cheia. Adorava apalpar rabos.

Bem boas que elas andam, as fanecas. Gosto delas fritas. Temperadas só com sal e passadas por farinha milha, à tasco, isto é, à Fafe, ou então mais à minha moda, tratadas também com um pouco de pimenta e bastante limão e depois envolvidas com farinha triga e ovo. Sem outros truques ou invenções. Há derivas que aceito e consumo, mas estão longe de me satisfazer. Insisto: a faneca só me enche as medidas quando na sua pureza original. Frita.
Peixe, em Fafe, era uma trilogia, uma santíssima trindade: sardinha, faneca e chicharro, que se dizia chucharro, carregando generosamente nos "ches" como se fossem tempero, azeite do bom. Era o peixe que se podia, peixinho de pobres. Às vezes lá apareciam também uns verdinhos, umas marmotinhas para enfiar o rabo na boca, e claro que ouvíamos falar de pescada, sabíamos que a pescada existia, que antes de ser já o era, mas que era só para os ricos, ou para os pobres oferecerem aos ricos, como peita, os tolos. O peixinho andadeiro, o nosso, comprava-se à Mocha e à D. Filomena, marralhando com todo o afinco, à face da estrada, no Santo Velho, sítio estratégico por onde passava o povo das fábricas. A pescada, quem lhe pudesse chegar, amiúde para acudir à aflição de uma doença e satisfazer a recomendação médica, só vinha por encomenda, de um dia para o outro. E era como se fosse à farmácia.
Uma vez há muitos anos, pela madrugada, eu já no Porto, deixei que me metessem num barco nevoento e fui à pesca da faneca com o bando do saudoso Adélio Santos, velho repórter-fotográfico com quem acamaradei no Janeiro e noutras lides mais ou menos profissionais. Quer-se dizer: eles foram à pesca, à linha, e eu fui lançar ao mar os restos de uma noitada sem passagem pela cama. Não sei se servi de engodo, mas o certo é que apanhámos peixe até dar com um pau. Seríamos uns seis ou sete naquela companha de ocasião, e toda a gente teve direito a um ou dois baldes cheios de fanecas e cavalas, até eu, que, pelos vistos, também tinha feito a minha parte e não sabia. Estava na idade da toléria e tão tolo era que desprezei então as cavalas, hoje em dia com lugar cativo, ainda que bissexto, na minha exigente lista de pitéus.
Mas voltemos às fanecas. O meu amigo Lopes, que é tão fanequeiro como eu, afirma, no seu mar de sabedoria, que "a faneca é um peixe muito honesto". E é. Em diversos sentidos e apesar de já ter andado por aí na boca da malandragem armada em carapau de corrida. A este respeito (ou a respeito da falta dele), torno a Fafe, à década de setenta do século vinte: quem é desse tempo e não se lembra dos rapazolas ou velhos tarados que, aproveitando a barafunda das quartas-feiras, passavam por elas, pelas moças, em Cima da Arcada, roçando-lhes o cotovelo pelas mamas, como quem não quer a coisa, atirando-lhes, entredentes, "Ah, faneca, comia-te toda!", broeiros, e levando de resposta um lampeiro estalo na cara, que acabava logo ali com todos os tesões? Realmente, quem não se lembra?...
Entretanto o piropo foi criminalizado em Portugal, e até poder dar cadeia. E os apalpões, já se sabe, dão artigos de jornal, o que ainda é pior. A mim, por acaso, não me faz diferença. Gosto muito de fanecas e de mamas, confesso, mas seduzo apenas por telepatia.
O Lopes tem razão: a faneca é um peixe honesto. Depois, evidentemente, como em tudo na vida, há fanecas mais honestas do que outras. Na minha cozinha, por exemplo, só entram fanecas do alvor, pescadas já dentro da manhãzinha, como daquela vez extraordinária com o Adélio, mas agora sacadas do mar por mãos que sabem. Um luxo. Mordomia matosinhense, reservada a quem mora ao pé da doca e conhece um bocadinho. São fanecas do mar que eu vejo da minha varanda, "do nosso mar". Madrugo também, compro-as vivinhas da silva, ainda sem terem passado pelo castigo do gelo e isentas de outras burocracias normalizadoras e estragativas, trago-as íntegras para casa, amanho-as eu, eu é que sei como é que as quero. Não menos importante: comemo-las no próprio dia. Exactamente. Elas andam bem boas, isso nem se discute, mas é preciso saber dar-lhes as voltas...

sábado, 28 de junho de 2025

Raios e Corisco

"Raisparta isto!", disse Zeus, arreliado e meio distraído. E foi o fim do mundo.

Como se sabe, Zeus é o pai dos deuses, o deus dos céus, dos raios e dos relâmpagos, o fiscal que mantém em sentido toda a mitologia grega, e em Roma chama-se Júpiter. Os raios eram lanças muito grandes produzidas em série pelos gigantes ciclopes, criaturas de um olho só, como o Luís de Camões ou a gaita do Bitó. Estas lanças, suponho que de fogo, depois de prontas eram entregues ainda quentinhas a Zeus, que as atirava com toda a força sobre os homens pecadores e arrogantes, quanto mais longe melhor, e assim começaram os Jogos Olímpicos.
Foi aí que apareceu o Franklin. Benjamin Franklin, polímata americano que, entre outras habilidades, inventou o pára-raios, segundo aprendi na Escola da Feira Velha. E foi a nossa sorte. Assim se livrou a humanidade da fúria de Zeus, regra geral, e dos seus raios e coriscos. O Corisco, faço notar no entanto, era um cãozinho de banda desenhada no antigo jornal O Primeiro de Janeiro, que morreu sem que ninguém em Portugal se importasse. O jornal. O jornal é que morreu, como outros jornais que também morreram sem notícia na necrologia. Se fosse um cão, seria uma tragédia...

quarta-feira, 14 de maio de 2025

O broche

A orgia e o seu princípio
No meio da confusão, alguém disse: temos de ser uns para os outros. Ou talvez: faz ao teu próximo o que gostarias que te fizessem a ti. E assim começou a orgia.

Há quem diga que não há diferença nenhuma entre um broche e um colchete, que são uma e a mesma coisa. Dicionários razoavelmente informados, como, por exemplo, o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, sétima edição, que é a que tenho aqui sempre à mão, consideram-nos, ao broche e ao colchete, sinónimos. Eu, com o devido respeito, discordo. Vejamos bem a coisa. Para mim, tirando o "che" que ambos ostentam, não há comparação possível entre um broche e um colchete. Um broche é um broche e um colchete até pode ser um parêntese recto. Um é uma coisa e o outro é, às vezes, um empecilho. Só quem não passou por eles é que se confundirá. Sei do que falo. Também sei de salas de costura, não cuidem, mas, vamos lá, admitindo a paridade, se vosselências forem gramáticos como eu e quiserem tirar a questão a limpo, se tiver de ser um ou outro, se pretenderem escrutinar a minha preferência, perguntem-me então sem tibiezas: broche ou colchete? E eu digo logo e sempre: broche. Broche, evidentemente. Nem imagino que se possa dizer: olha, faz-me um colchete!...

Gramático era o que me chamava o Empregado do Arquivo quando, por azar, calhávamos os dois no mesmo autocarro às voltas pelo Porto, cada qual na sua vida. O Empregado do Arquivo, assim autodenominado, meu camarada em O Primeiro de Janeiro, morava, se não me engano, no Hospital Conde Ferreira, dava três voltas sobre si próprio antes de cruzar a porta do jornal, em Santa Catarina, e era filho do poeta Alberto de Serpa, que lhe batia em público. Isso, Alberto de Serpa, ilustre membro da geração de Orpheu, modernista, presencista, o poeta da poesia livre, do lirismo do quotidiano, enfiava uns generosos sopapos ao filho, sem medo de testemunhas e de acusações de violência por assim dizer doméstica. O rapaz conseguia ser realmente muito chato, irritante até ao quinto caralho, dava cabo da cabeça ao velho, que tentava acompanhar sem sobressaltos o fecho do suplemento literário "Das Artes Das Letras", que eu penosamente revia, mas, quer-se dizer, o rapaz, assim o tratava o pai, era tolinho encartado, estava internado e tudo, e, que diabo, já tinha para aí quarenta anos ou mais...

sábado, 10 de maio de 2025

Aí para as curvas

Foto Tarrenego!

Uma vez, em 1991, Basílio Horta foi candidato à Presidência da República e fazia frio em Portugal, porque era Janeiro e o tempo naquela altura não era ainda tão tolo e incerto como é agora. O tempo. O Doutor Horta, que já vai nos oitenta e, entre outros afazeres, é um filósofo, quero dizer, um filósofo praticamente como eu, explicou em entrevista ao Expresso que realmente "há quem olhe para a vida como uma linha reta", mas ele não. "Eu não abdiquei das curvas", enfatizou o ex-União Nacional do tempo do fascismo, fundador do CDS e actual militante do PS, ministro em quatro governos, pela direita, conselheiro de Estado, deputado, embaixador na OCDE, presidente da AICEP, pela esquerda, e hoje em dia presidente da Câmara de Sintra em final do terceiro e último mandato, dizia eu, enfatizou, como quem não quer a coisa, como quem oferece ao jornalista o título para a prosa e não se fala mais nisso.
Quanto à fotografia, bem, Basílio Horta, ao centro, avança determinado para o comício nocturno na cidade de Braga, por entre meia dúzia de bandeiras da AD, da AD verdadeira, mas que naquela altura já não havia nem o apoiava, e o jornalista a vê-los passar, a tomar conta, bem à direita, o que não deixa de ser paradoxal e embaraçoso, mãos nos bolsos, estantio, olhar enfastiado e bem agasalhado, porque, é o que eu digo, o tempo naquele tempo ainda era de confiança, e fazia frio em Portugal. Frio à moda de Fafe.
A seguir, se bem me lembro, abandonei discretamente a "caravana" basilista e fui ao velho Restaurante Maia, no Sameiro, comer por minha conta e consolar-me com o inevitável bacalhau com natas, que era então uma verdadeira especialidade.

Para que conste. A comida oficial da política portuguesa é o lombo de porco assado, que por acaso é quase sempre apenas estufado, e uma desgraça. Canja, lombo e musse de chocolate. Assim. Se calhar até em Fafe, terra da melhor vitela assada do mundo. Quem já passou por campanhas eleitorais e comeu lombo todos os dias, ao almoço e ao jantar, sabe muito bem do que é que eu estou a falar. Lombo assado, e é um pau. Depois, quando alcançam o poleiro ansiado e o povo é que paga, os políticos esquecem-se do porco, tão em conta, tão prato do dia, e servem-se entre eles peixinho da alta à lá qualquer coisa, nanja sardinha, faneca ou carapau de pé-descalço.
Olhai, por exemplo, o Professor Marcelo. Também já comi lombo de porco com ele, diga-se em abono da verdade, mas logo que pulou para Presidente a coisa passou a fiar mais fino. No almoço cerimonial da tomada de posse, a primeira, foi creme de espargos, robalo a vapor e gelado. E no almoço comemorativo dos 40 anos da Constituição, em 2016, a ementa versava creme de couve-flor, tranches de garoupa e pudim de Estremoz. Também um desconsolo, realmente, mas ao menos não é lombo de porco.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Cheirava-lhes a cadáver...


"António von Doellinger, sargento reformado do Exército Colonial, foi levado a enterrar.
Na câmara ardente, ao redor dum caixão de quatro tábuas singelas, os seus filhos, crianças tamaninas, choram.
A mais inocente e novinha de todas desvia um lenço sedalino que cobre o rosto esverdeado do defunto. O cadáver está ainda morno, exalando um cheiro canfórico a denunciar a decomposição deletéria que embriaga os abutres e as corujas. O olhar, derramado, vítreo, tem os estigmas reveladores dum horrível sofrimento moral, adivinhando-se que, daquele corpo macerado, foi o coração, alanceado pela dor cruciante da despedida à orfandade, o derradeiro órgão a morrer.
E o lenço de prateada seda cobre de novo os lábios descarnados do pobre Doellinger.
Tuberculizara. Passara privações. Desde que a doença entrara naquele tugúrio, a Conferência de São Vicente de Paulo, de sinistra nomeada, ofertou socorro ao Doellinger. Impunha, porém, uma condição: o doente devia confessar-se, devia confortar-se com os sacramentos da Igreja Católica. Não era penosa a exigência... Um tuberculoso nada adianta nem atrasa, em tal estado, engolindo a hóstia consagrada - um pedaço de obreia amassada com saliva de sacristão.
António von Doellinger, contudo, tem escrúpulos, só porque era anticlerical.
Mas um padre insistia - e, aguardando o momento desejado, quando o doente entrava no estertor da agonia dolorosa, abeirou-se-lhe do leito frio, vestindo de saia negra, na noite negra, como a morte negra que rondava à cabeceira do tuberculoso.
Doellinger recusou ainda nobremente.
Mas era necessário dizer à estupidez do indígena crédulo, fanático e supersticioso, que o ateu implorou, na hora derradeira, na hora do delírio, da alucinação, da inconsciência, o perdão de Deus e a piedade da Santa Madre Igreja. Ainda o sargento Doellinger, estóico ante a morte que tantas vezes lhe fora companheira na inóspita África, quando lutava nas fileiras, teve um gesto grandioso, heróico e teatral, bradando:
- "Não preciso da Igreja, não preciso do perdão de Deus... Não sou um criminoso..."
O padre teria sentido um arrepio de medo, um estremecimento de consciência - e largou a vítima inofensiva.
E, ao nascer da aurora, um sino dobrou, plangente, a finados!
A consciência alheia, as ideias dos nossos semelhantes são, para a Igreja Católica, coisas sem sentido.
O que é preciso, para maior glória de Deus, é que os adversários do catolicismo se arrependam, na hora derradeira, na hora suprema, quando o espírito vacila, quando o corpo arrefece ao contacto do gelo da morte, quando o indivíduo está já em estado de inconsciência, de irresponsabilidade, quando entra no delírio, na demência! Então a vítima pode ceder, porque costuma fraquejar ante o fantasma sinistro que gargalha na ronda nocturna.
O cheiro a cadáver embriaga e consola os abutres que começam a grasnar, sedentos de sangue, ávidos de carnagem dos corpos pútridos!"


Fafe, 1938 talvez. Este belo naco de prosa, pesado, com o título "Cheirava-lhes a cadáver...", foi escrito, muito provavelmente, pelo jornalista e resistente antifascista fafense Manuel Teixeira, então proprietário e director do semanário republicano O Combate. José Manuel Teixeira da Silva e Castro (1906-1980) era irmão do também jornalista (António) Teixeira e Castro (1928-2004), com quem acamaradei no Primeiro de Janeiro. O Combate, fundado em 1930, teve vida atribulada e efémera. Foi fechado definitivamente pela Censura em 1941. Há anos que guardo religiosamente a reprodução fotográfica da primeira página deste número, que me foi revelado pelo Sr. Vale do Arquivo do Janeiro. Copiei o texto com recurso a lupa e não garanto isenção de pequenos erros na transcrição. Até da data não tenho a certeza: mas se não é de 1938, anda por lá perto.
Visito-o frequentemente. Leio e releio, e cada vez fico mais desconfiado de mim. Com um antepassado da marca deste sargento von Doellinger, donde raio é que me vem a costela sacrista?

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Nas mãos de Agustina

O jornalista cultural
Homem de cultura, presença assídua em verbenas poéticas e chás-dançantes, organizador de bienais e reuniões mensais, colaborador em jornais e televisões digitais, presidente de cineclubes diversos, nome com assinatura reconhecida nos melhores suplementos de artes e letras, inclusive blogues, Bonifácio de Montalvar foi ao cinema de ciclo. Viu "Guerra e Paz", de King Vidor, com Audrey Hepburn, Henry Fonda, Mel Ferrer e o italiano Vittorio Gassman. Gostou do enredo, ou da estória, como prefere escrever. E declarou à saída, alto e bom som, para que ficasse lavrado em acta: - Isto, sim, dava um bom livro.

Agustina Bessa-Luís ocupou o cargo de directora de O Primeiro de Janeiro entre 1986 e 1987. Digo bem: ocupou o cargo. Fazendo o favor ao CDS e a Diogo Freitas do Amaral, a quem o jornal da portuense Rua de Santa Catarina tinha sido dado pela família Pinto de Azevedo. Agustina entrou e mandou logo mudar de sítio a secretária do sombrio gabinete da direcção, a sua secretária de trabalho, para melhor aproveitar a posição da janela e poder apanhar solzinho nas perninhas. É a grande marca do seu consulado. De resto, era bonito de se ver aquela mulherzinha de carrapito e xaile ou lenço pelas costas, sentada quase invisível, debruçada sobre o mesão, com os pés balançando a meio caminho do soalho, manuscrevendo laboriosamente numa letrinha mínima, encarreirada e esdrúxula que era preciso desvendar.
Ora bem. Durante muitos anos eu confundi Agatha Christie com Miss Marple. Quero dizer, a cara de Agatha Christie era, para mim, a cara da veterana actriz inglesa Margaret Rutherford, e só já bastante adulto e atirado à vida é que desfiz o equívoco, perante o verdadeiro retrato da famosa autora de romances policiais, porventura descoberto na badana de um livro. Mais curioso ainda é que, em Fafe, eu mantinha sob apertada vigilância meia dúzia de velhas senhoras que eram Miss Marple de certeza absoluta, por mais que tentassem disfarçar. Senhoras antigas, amiúde intrometidas, vestindo com quase cinquenta anos de atraso, senhoras assim como a nossa Milinha Vaqueiro ou como as manas Grilas em dias de maior asseio. E que quereis que vos diga? A Senhora Dona Agustina, assim que lhe pus a vista em cima, entrou logo também para a minha lista.
Alheia à agenda e à actualidade, Agustina escrevia para o jornal uns "editoriais" extraordinários, que eram tudo menos editoriais. Eram pérolas literárias, histórias, contos, ensaios, que viam a luz do dia no cantinho superior esquerdo, ou talvez direito, da primeira página.
A directora não sabia nada do jornal e o jornal também não queria saber dela. Um dia o chefe de redacção entrou-lhe no gabinete perguntando-lhe o que fazer com uma notícia eventualmente mais melindrosa e que agitava na mão. É, antigamente as notícias viajavam em folhas de papel. "Eu não sei nada disso", enxotou a directora, "vá falar com o chefe de redacção". E o chefe de redacção disse "Com certeza, senhora directora", e foi falar consigo mesmo, modalidade, aliás, em que ele era e ainda é campeão intercontinental.
A directora Agustina Bessa-Luís deixou O Primeiro de Janeiro depois dos pascácios da administração lhe terem feito a sacanagem de publicar, sem lhe dar cavaco, uma edição apócrifa do jornal, a pedido das bolachas Triunfo, acrescentando-lhe à sorrelfa a convocatória de uma assembleia, o relatório e contas ou algo do género, enfim, uma diligência qualquer que legalmente carecia de um certo prazo que já tinha sido ultrapassado, se bem me lembro. A escritora exigiu a demissão dos administradores, que se mantiveram nos seus lugares, agarrados ao tacho como lapas. Saiu ela.
Sei disto tudo e outro tanto porque conheço muito bem o tipo que revia os "editoriais" de Agustina no velho Janeiro e que, vítima do efeito dominó provocado pela honrada renúncia da directora, acabaria por ter de tomar conta da redacção. Conheço-o tão bem que é como se me visse ao espelho.

No Janeiro, onde entrei como revisor, após concurso, lidei também com os extraordinários gatafunhos do filósofo Sant'Anna Dionísio (1902-1991), um velhinho minúsculo, já algo distraído e inesperadamente simpático que nos visitava amiúde, com os bolsos do casaco quase pelos pés, atafulhado de folhas de papel manuscritas, riscadas, emendadas e acrescentadas numa letra desengonçada e a bem dizer indecifrável que me calhava sempre a mim, por ordens expressas do chefe da revisão, o sábio Professor Horácio. Sant'Anna Dionísio escrevia uma infindável série de artigos sobre o também filósofo Leonardo Coimbra (1883-1936), que tinha sido seu mestre e era o seu ídolo, por assim dizer. Por lá andavam também, cronicando, o cineasta António Lopes Ribeiro (1908-1995), Cruz Malpique (1902-1992) ou Daniel Constant (1907-1984), entre outros, mas José Augusto Santana Dionísio seria talvez o mais notável colaborador do prestigiado suplemente literário do PJ, "Das Artes Das Letras", no meu tempo coordenado pelo poeta presencista Alberto de Serpa (1906-1992), outro incorrigível praticante da escrita manual e razoável filho da mãe.

segunda-feira, 21 de abril de 2025

No tempo em que os animais falavam

Foto Gaspar de Jesus

Houve um tempo em que os presidentes dos maiores clubes de futebol falavam com os jornalistas e até convidavam os directores dos jornais para jantar. Os jornalistas, todos eram tratados por igual e quem tivesse unhas que tocasse viola. Mas isso foi muito, muito antigamente, no tempo em que os animais falavam e não havia telemóveis. Depois, conta-se que os presidentes dos maiores clubes resolveram dividir os jornalistas em dois grandes grupos: os que levavam recados e os que levavam no focinho - e deixaram de falar aos restantes. Mais tarde, os presidentes dos maiores clubes criaram as suas próprias televisões e passaram a ser "entrevistados" pelos seus próprios assalariados. E agora, quando se dignam descer até ao ecrã das televisões ditas generalistas, falam directamente de casa e exigem tratamento de primeiro-ministro, pelo menos. São outros tempos!
E, entretanto, já não sobramos todos daquela mesa...

terça-feira, 1 de abril de 2025

Zé do Boné morava em Fafe


O Zé do Boné andou mais de meio século pelas páginas de O Primeiro de Janeiro e hoje seria um herói impossível, cancelado. Porque politicamente incorrecto. Porque as caricaturas, as representações, parece que agora incomodam mais do que a própria realidade. Criado pelo cartunista britânico Reg Smithe, o malandro Andy Capp, assim se chamava de origem, foi visto pela primeira vez no dia 5 de Agosto de 1957 no jornal Daily Mirror. Internacionalizou-se em 1963, quando passou a ser editado também nos Estados Unidos, e chegou a ser publicado em mais de mil jornais, cinquenta países e treze línguas.
Por cá, O Primeiro de Janeiro tomou conta de Andy Capp, pô-lo à beira das palavras cruzadas e rebaptizou-o, numa adaptação feliz, como Zé do Boné. E é com esse nome que o conhecemos até hoje. Zé, para ser "português" e porque sim. Do boné, como a própria imagem indica. Zé do Boné. Conheci-o em Fafe, na barbearia do Sr. António Grande, à beira da loja da Rosindinha Catequista e da Cafelândia, o Janeiro era o jornal da casa, e mais tarde, já no Porto, viria a conviver com ele todos os dias, digamos, profissionalmente, nas vetustas instalações de Santa Catarina.
O Zé era o típico elemento da classe trabalhadora que na verdade nunca trabalhou. Cidadão imprestável, machista, engatatão sem sucesso, copofónico de gabarito, mentiroso, preguiçoso, implicativo, conflituoso e, numa só palavra, arruaceiro, passava a vida entre o sofá de casa e o balcão do café da esquina, reservando algumas horas para andar à pancada nos jogos de futebol. Apostador inveterado, as suas modalidades desportivas favoritas eram, para além do pontapé na bola, a columbofilia, o bilhar e as corridas de cavalos. Para além disso, batia na mulher, Flo, trabalhadora esforçada que também gostava do seu copinho e que, quando não, lhe devolvia alguns sopapos.
Enfim, todo um compêndio de malandrice, indecência e má figura. Ou por outra - e isto incomodava-me sobremaneira -, podia ser em Fafe, naquele tempo. E não eram poucos.

E que mais? Zé do Boné foi também o nome por que ficou conhecido mestre José Maria Pedroto (1928-1985), filósofo e treinador de futebol, co-autor, com Pinto da Costa, do FC Porto moderno. Zé do Boné, por ser Zé e por usar boné em serviço. E eventualmente também por causa do Zé do Boné dos desenhos propriamente dito.

quarta-feira, 12 de março de 2025

Roma em trajes menores

Imagem Arquivos RTP

Uma vez eu fui a Roma comprar um Pinóquio para o meu filho, que era pequenino, coitadinho. E aproveitei para acompanhar a visita de Cavaco Silva ao Vaticano e a Itália, creio que assim nos entendemos. Isto foi em Outubro de 1987, Cavaco era primeiro-ministro de Portugal, mas eu não. Eu trabalhava no Primeiro de Janeiro e o jornal é que me mandou atrás do outro. Lembro-me muito bem do mês e até de um dia em especial, porque eu fazia anos, certos e determinados, e o padre António Rego, que ia pela Rádio Renascença, se não me engano, pôs a comitiva de jornalistas portugueses a cantar-me os "Parabéns!" ao jantar, numa osteria à moda antiga lá para o meio daquelas ruinhas de filme, cheias de buzinas, lambretas, gestos exagerados, gritos de figlio di puttana e roupa a secar.
A imagem ali de cima é exactamente desse dia de festa, cantam as nossas almas, numa conferência de imprensa dada por Cavaco Silva nos jardins da Embaixada de Portugal junto da Santa Sé. No retrato só couberam pessoas importantes. O João Pacheco de Miranda, da RTP, televisão única, a fazer perguntas sem se rir, o nosso "primeiro" e o embaixador respectivo muito atentos, ou a fazerem de conta, e eu, não sei como é que fui ali parar, altaneiro e barbado, dominando a cena e fiscalizando as obras, até parece que faço parte da súcia. Reparem-me na airosidade, na categoria da minha pessoa, não é para me gabar, na classe da meiinha branca, no requinte do sapatinho dirópito. O casaco a estrear tinha cotoveleiras de camurça. E a gravata? A gravata evidentemente era azul e branca, como a cor única do meu coração, em delicado degradê. Gostava muito daquela gravata, acho que ainda a tenho, mas não faço ideia para quê. Eu não uso gravata, eu nem sequer uso colarinho ou casaco, eu há anos que não uso sapatos, valha-me Deus!...
Cavaco Silva foi a Roma e viu o Papa. Era João Paulo II, que agora dizem que é santo. O primeiro-ministro português levava-lhe o delicado e doloroso dossiê Timor-Leste. E eu levava umas palas de sol polaroid em cima dos óculos de ver. Umas palas de levantar ou baixar, consoante a sombra ou a luz, It is I, Leclerc, o que de repente descompôs um par de guardas suíços, que se partiram a rir com o meu desempenho em plena Escadaria de Bramante, eu seja ceguinho.

Era uma das minhas primeiras saídas em serviço ao estrangeiro. E eu levava muito a sério a encomenda de enviado-especial. O meu chefe - mestre Costa Carvalho - exigia-me pelo menos uma página por dia, e uma página por dia, naquele tempo, se quereis saber, com o tamanho que as páginas dos jornais tinham, tipo lençol, era obra desenganada. Instalaram-me no Collonna Palace Hotel, na Piazza di Monte Citorio, e era do quarto com vista para a praça e pornografia na televisão que eu, ao fim do dia, antes do jantar, preparava e enviava o serviço. Por telefone - que era a tecnologia mais avançada que havia, logo a seguir ao pombo-correio. E O Primeiro de Janeiro não tinha dinheiro para pombos-correio.
Eram duas ou três horas de alta tensão. Conferir apontamentos, seleccionar e hierarquizar assuntos, escrever tema principal e caixas, escolher títulos e destaques, pedir a ligação para o Porto, esperar, esperar, esperar, ditar para o gravador o material todo de uma ponta à outra. No Porto, o camarada da secretaria de redacção ouvia a cassete com travão, marcha-atrás e acelerador, como os pilotos de rali ou os pivôs de telejornal, batia os textos a todo o vapor e no final ligava-me de volta, a meu pedido especial, para uma releitura que pudesse servir de emenda a eventuais lapsos de transmissão, que eram praticamente palavra sim, palavra não. E esperar, esperar, esperar. Eram muitos nervos, muita ansiedade, muito ruído e interferências na linha, muita chamada a ir abaixo, muita pomba assassinada, muito aperto na garganta, muito coração nas mãos.
Eu suava em bica, quero dizer, em espresso. Portanto trabalhava em cuecas. Isso mesmo, em cuecas. Um pobre jornalista em cuecas, era o que eu era, com uma toalha a cobrir e proteger a cadeira, outra enrolada no pescoço e um lenço tabaqueiro atado à volta da cabeça tipo Willie Nelson. Um homem de família, pai de filho, respeitado em dois ou três sítios de Fafe e pelos menos numa freguesia de Cabeceiras de Basto, um ex-seminarista de créditos firmados, um intrépido frequentador dos Comandos da Amadora, e ali naqueles preparos, a trabalhar em cuecas e com água por todos os lados. Que triste figura! Que ridículo! Que vergonha!
Para disfarçar, eu imaginava que era nadador-salvador.

Entretanto o Kiko cresceu e uma vez foi a Itália e trouxe-me dois Pinóquios. Eu nunca mais fui a Roma e, é claro, estou a perder dois-um.