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quarta-feira, 14 de maio de 2025

O broche

A orgia e o seu princípio
No meio da confusão, alguém disse: temos de ser uns para os outros. Ou talvez: faz ao teu próximo o que gostarias que te fizessem a ti. E assim começou a orgia.

Há quem diga que não há diferença nenhuma entre um broche e um colchete, que são uma e a mesma coisa. Dicionários razoavelmente informados, como, por exemplo, o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, sétima edição, que é a que tenho aqui sempre à mão, consideram-nos, ao broche e ao colchete, sinónimos. Eu, com o devido respeito, discordo. Vejamos bem a coisa. Para mim, tirando o "che" que ambos ostentam, não há comparação possível entre um broche e um colchete. Um broche é um broche e um colchete até pode ser um parêntese recto. Um é uma coisa e o outro é, às vezes, um empecilho. Só quem não passou por eles é que se confundirá. Sei do que falo. Também sei de salas de costura, não cuidem, mas, vamos lá, admitindo a paridade, se vosselências forem gramáticos como eu e quiserem tirar a questão a limpo, se tiver de ser um ou outro, se pretenderem escrutinar a minha preferência, perguntem-me então sem tibiezas: broche ou colchete? E eu digo logo e sempre: broche. Broche, evidentemente. Nem imagino que se possa dizer: olha, faz-me um colchete!...

Gramático era o que me chamava o Empregado do Arquivo quando, por azar, calhávamos os dois no mesmo autocarro às voltas pelo Porto, cada qual na sua vida. O Empregado do Arquivo, assim autodenominado, meu camarada em O Primeiro de Janeiro, morava, se não me engano, no Hospital Conde Ferreira, dava três voltas sobre si próprio antes de cruzar a porta do jornal, em Santa Catarina, e era filho do poeta Alberto de Serpa, que lhe batia em público. Isso, Alberto de Serpa, ilustre membro da geração de Orpheu, modernista, presencista, o poeta da poesia livre, do lirismo do quotidiano, enfiava uns generosos sopapos ao filho, sem medo de testemunhas e de acusações de violência por assim dizer doméstica. O rapaz conseguia ser realmente muito chato, irritante até ao quinto caralho, dava cabo da cabeça ao velho, que tentava acompanhar sem sobressaltos o fecho do suplemento literário "Das Artes Das Letras", que eu penosamente revia, mas, quer-se dizer, o rapaz, assim o tratava o pai, era tolinho encartado, estava internado e tudo, e, que diabo, já tinha para aí quarenta anos ou mais...

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Nas mãos de Agustina

O jornalista cultural
Homem de cultura, presença assídua em verbenas poéticas e chás-dançantes, organizador de bienais e reuniões mensais, colaborador em jornais e televisões digitais, presidente de cineclubes diversos, nome com assinatura reconhecida nos melhores suplementos de artes e letras, inclusive blogues, Bonifácio de Montalvar foi ao cinema de ciclo. Viu "Guerra e Paz", de King Vidor, com Audrey Hepburn, Henry Fonda, Mel Ferrer e o italiano Vittorio Gassman. Gostou do enredo, ou da estória, como prefere escrever. E declarou à saída, alto e bom som, para que ficasse lavrado em acta: - Isto, sim, dava um bom livro.

Agustina Bessa-Luís ocupou o cargo de directora de O Primeiro de Janeiro entre 1986 e 1987. Digo bem: ocupou o cargo. Fazendo o favor ao CDS e a Diogo Freitas do Amaral, a quem o jornal da portuense Rua de Santa Catarina tinha sido dado pela família Pinto de Azevedo. Agustina entrou e mandou logo mudar de sítio a secretária do sombrio gabinete da direcção, a sua secretária de trabalho, para melhor aproveitar a posição da janela e poder apanhar solzinho nas perninhas. É a grande marca do seu consulado. De resto, era bonito de se ver aquela mulherzinha de carrapito e xaile ou lenço pelas costas, sentada quase invisível, debruçada sobre o mesão, com os pés balançando a meio caminho do soalho, manuscrevendo laboriosamente numa letrinha mínima, encarreirada e esdrúxula que era preciso desvendar.
Ora bem. Durante muitos anos eu confundi Agatha Christie com Miss Marple. Quero dizer, a cara de Agatha Christie era, para mim, a cara da veterana actriz inglesa Margaret Rutherford, e só já bastante adulto e atirado à vida é que desfiz o equívoco, perante o verdadeiro retrato da famosa autora de romances policiais, porventura descoberto na badana de um livro. Mais curioso ainda é que, em Fafe, eu mantinha sob apertada vigilância meia dúzia de velhas senhoras que eram Miss Marple de certeza absoluta, por mais que tentassem disfarçar. Senhoras antigas, amiúde intrometidas, vestindo com quase cinquenta anos de atraso, senhoras assim como a nossa Milinha Vaqueiro ou como as manas Grilas em dias de maior asseio. E que quereis que vos diga? A Senhora Dona Agustina, assim que lhe pus a vista em cima, entrou logo também para a minha lista.
Alheia à agenda e à actualidade, Agustina escrevia para o jornal uns "editoriais" extraordinários, que eram tudo menos editoriais. Eram pérolas literárias, histórias, contos, ensaios, que viam a luz do dia no cantinho superior esquerdo, ou talvez direito, da primeira página.
A directora não sabia nada do jornal e o jornal também não queria saber dela. Um dia o chefe de redacção entrou-lhe no gabinete perguntando-lhe o que fazer com uma notícia eventualmente mais melindrosa e que agitava na mão. É, antigamente as notícias viajavam em folhas de papel. "Eu não sei nada disso", enxotou a directora, "vá falar com o chefe de redacção". E o chefe de redacção disse "Com certeza, senhora directora", e foi falar consigo mesmo, modalidade, aliás, em que ele era e ainda é campeão intercontinental.
A directora Agustina Bessa-Luís deixou O Primeiro de Janeiro depois dos pascácios da administração lhe terem feito a sacanagem de publicar, sem lhe dar cavaco, uma edição apócrifa do jornal, a pedido das bolachas Triunfo, acrescentando-lhe à sorrelfa a convocatória de uma assembleia, o relatório e contas ou algo do género, enfim, uma diligência qualquer que legalmente carecia de um certo prazo que já tinha sido ultrapassado, se bem me lembro. A escritora exigiu a demissão dos administradores, que se mantiveram nos seus lugares, agarrados ao tacho como lapas. Saiu ela.
Sei disto tudo e outro tanto porque conheço muito bem o tipo que revia os "editoriais" de Agustina no velho Janeiro e que, vítima do efeito dominó provocado pela honrada renúncia da directora, acabaria por ter de tomar conta da redacção. Conheço-o tão bem que é como se me visse ao espelho.

No Janeiro, onde entrei como revisor, após concurso, lidei também com os extraordinários gatafunhos do filósofo Sant'Anna Dionísio (1902-1991), um velhinho minúsculo, já algo distraído e inesperadamente simpático que nos visitava amiúde, com os bolsos do casaco quase pelos pés, atafulhado de folhas de papel manuscritas, riscadas, emendadas e acrescentadas numa letra desengonçada e a bem dizer indecifrável que me calhava sempre a mim, por ordens expressas do chefe da revisão, o sábio Professor Horácio. Sant'Anna Dionísio escrevia uma infindável série de artigos sobre o também filósofo Leonardo Coimbra (1883-1936), que tinha sido seu mestre e era o seu ídolo, por assim dizer. Por lá andavam também, cronicando, o cineasta António Lopes Ribeiro (1908-1995), Cruz Malpique (1902-1992) ou Daniel Constant (1907-1984), entre outros, mas José Augusto Santana Dionísio seria talvez o mais notável colaborador do prestigiado suplemente literário do PJ, "Das Artes Das Letras", no meu tempo coordenado pelo poeta presencista Alberto de Serpa (1906-1992), outro incorrigível praticante da escrita manual e razoável filho da mãe.