terça-feira, 2 de setembro de 2025

Que perfeita ela era, a ignorância

Pro Bono
Acabou o curso, disseram-lhe que, para começar, ia trabalhar pro bono e ele rebentou de alegria. "Sou fã n.º 1 dos U2", exultou, excitadíssimo.

Eu trabalhava num jornal que tinha uma revista de fim-de-semana muito dada àqueles rankings da treta que só servem para meter as fotografias dos "famosos" no júri de faz de conta. Eu batalhava no Porto e o jornal era mandado a partir de Lisboa. Uma vez, o assunto devia ser música e pedi a ajuda, a opinião, do Luís Filipe Barros. "Luís Filipe quê?..." - disse o meu chefe lisboeta, especialista em Big Brother. "Luís quê? Quem é esse gajo? Não arranjas ninguém conhecido?..."

Desencantei o Tozé Brito, noutra ocasião, para outro trabalho de Hércules, mas o meu chefe, outro, jornalista alegadamente encartado, também não fazia a mínima ideia de quem eles fossem, Hércules, antes dos desenhos animados e do cinema, e o Tozé Brito propriamente dito: "Esse tipo jogou onde? E o que é que ele percebe de música?...", atirou-me, com aquele risinho telefónico e condescendente tão próprio dos sábios da capital. Pouco tempo depois (e nem digo que tenha sido por causa de eu lhe ter sacudido o pó), Tozé Brito foi para jurado num programa de televisão e o jornal onde eu trabalhava nunca mais lhe largou a braguilha. Até fechar. O jornal.

Outra vez, havia cá em cima uma iniciativa qualquer relacionada com cartunes e política, algo do género. Eu tentava convencer Lisboa para o interesse da coisa e agarrei-me a este argumento que eu pensava de peso: a obra do grande Sam era o destaque do evento. "Qual Sam?", inquiriu o chefe de serviço, com o fastio de quem tem mais que fazer do que estar outra vez a ensinar-me o que é notícia e o que não é notícia. "Então, pá, o Sam, o famoso cartunista, o Sam do Guarda Ricardo, pá, estás farto de saber, não estás?, o Sam...", respondi-lhe eu, já mais perto do que longe de o mandar à merda.
A palavra "famoso" fazia milagres naquele jornal. "Ok. Vai lá então e aproveita para entrevistar o gajo, o Sam", decidiu finalmente o chefe. E eu não fui.
O Sam, Samuel Azavey Torres de Carvalho (1924-1993), figura pública, nacional e internacional, nome imenso, mais do jornalismo sozinho e a dormir do que nós todos juntos e eventualmente acordados, tinha morrido já lá ia para aí uma década, mas eu preferi guardar segredo para os meus chefes, para não lhes dar desgosto, coitados. Belos tempos, aqueles. Que perfeita ela era, a ignorância!

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