segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Em nome do Pai, do Filho e de Mim

Foto Tarrenego!

O auto-suficiente
Beijo-me e desejo-me - dizia.
 
Entram em campo. Jogadores, treinadores, árbitros, dirigentes, apanha-bolas, tratadores da relva, stewards, polícias fardados e à paisana, navalhistas, maqueiros, carregadores de bandeiras, repórteres de pista, vendedores de pirolitos, e até o presidente da Câmara, com uma grandessíssima lata, para dar o pontapé de saída. Todos se benzem como se entrassem em sítio santo, circunspectos, cândidos e amorosos, e no entanto vão passar quase duas horas a, pelo menos, chamarem-se "filho da puta!" uns aos outros, como o Senhor nos ensinou. Fazem o sinal-da-cruz antes da função, para que dê sorte, para esconjurar azares ou, sei lá eu, talvez porque não fazem ideia nenhuma do que aquilo quer dizer. Pelo sim e pelo não, sinal-da-cruz em versão resumida, "Em nome do Pai", mão direita na testa, "do Filho", mão no peito ou barriga, "e do Espírito", mão no ombro esquerdo, "Santo. Amém", mão no ombro direito. Tudo mais ou menos como se aprendia na catequese. Exactamente, benzem-se. Mas depois acrescentam-lhe ao beijinho na mão propriamente dita, no pulso, no dedo, fazem coraçõezinhos para a televisão, apontam para o céu, metem a bola na barriga, espetam bandarilhas, fazem mil e uma macaquices, benzem-se e beijam-se em seu nome pessoal, autobeijam-se, uma vez, duas, três, que desperdício mas foi a conta que Deus fez, num narcisismo sem jeito, numa espécie de egolatria canonicamente desautorizada, onanista, para não lhe chamar outra coisa.
Todos. Não passam sem a chupadelazinha no dedo, que - perdoai-me que vos diga - vale tanto no Céu como a entrada em campo com o pé direito. Deus está realmente à coca, tudo vê e tudo sabe, mas vê pouco futebol e também é Pai do pé esquerdo.
E não é só no futebol. Mesmo nas igrejas, onde o rigor deveria imperar, esta entorse litúrgica vem passando de geração em geração, e os frequentadores de hoje em dia até acreditam que foi sempre assim, que é assim. Mas não é: o beijo em mão própria está a mais, não faz parte do sinal-da-cruz.
Eu acho que sei como é que isto tudo começou. No tempo em que a missa era em latim e o povo, que já se via à rasca para perceber o português, aproveitava para ir rezando terços atrás de terços enquanto o padre, de costas voltadas para os fiéis e para o mundo, se ocupava naqueles Dominus vobiscum que eram lá um assunto entre ele e o pobre do sacristão, que ajudava o melhor que sabia sem saber muito bem a quê, entregava a galheta, tocava a sineta e segurava a patena.
Parece que ainda ouço. As igrejas ecoam, sabeis? O terço era sonoramente ciciado por mulheres enfiadas em bigodes e lenços pretos, bzzz, bzzz, bzzz, num cochicho ao despique remetido directamente a Deus Nosso Senhor, embora devesse levar Nossa Senhora no endereço - lá em cima que se entendessem. O comendador Santos da Cunha, que era governador civil de Braga e vinha a Fafe às inaugurações e aos casamentos e funerais dos ricos do regime, também fazia bzzz, bzzz, bzzz, mas com voz de trombone, de terço na mão ostensiva e papuda, durante a missa inteira, e já ela era praticamente toda em português, tirando o Agnus Dei. E se o senhor comendador fazia, e fazia que se soubesse, é porque era a Bem da Nação - naquele tempo não havia dúvidas a esse respeito.
Ora bem. No fim da reza, e independentemente do que o padre estivesse a fazer lá à frente e do ponto em que a missa fosse, as pessoas benziam-se e beijavam respeitosamente o crucifixo do terço, que levavam aos lábios entre o dedo polegar e o indicador. Beijavam a cruz, não a mão, mas estais a ver a confusão que dali saiu? Agora beijam a mão, batem no peito, soltam um ou dois palavrões e assoam-se à camisola, amém.

Quer-se dizer. António Maria Santos da Cunha (1911-1972) foi presidente da Câmara de Braga durante doze anos, governador civil do distrito e deputado à Assembleia Nacional. Vinha realmente muito a Fafe e era amigo do Mendes Ribeiro da Fábrica do Ferro e de outros figurões locais da situação fascista. Santos da Cunha tem um monumento na Cidade dos Arcebispos e é o imponente cidadão mais à esquerda, salvo seja, lá em cima no retrato, acompanhando de olhos revirados uma das visitas do ministro Baltazar Rebelo de Sousa aos Bombeiros da nossa terra. O pai do Presidente Marcelo é o segundo a contar da direita, o de óculos. Atrás, há por ali algumas caras da minha meninice que me trazem imensas saudades.
E já agora: a reforma da missa católica aprovada no âmbito do Concílio Vaticano II (1962-1965) foi publicada no dia 5 de Novembro de 1970 e virou o padre para o povo. Hoje em dia não se nota muito, mas foi assim que as coisas se passaram.

Sem comentários:

Enviar um comentário