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sábado, 12 de julho de 2025

Quando o Natal chegou a Fafe

É triste o fim do Natal
O fim do Natal é muito triste. Terminasse o Natal em m, Natam, terminasse o Natal em x, Natax, terminasse o Natal em y, Natay, terminasse o Natal em z, Nataz, terminasse até o Natal em k, Natak, e, quer-se dizer, o fim do Natal até teria alguma piada. Agora, terminar em l, Natal, um esquelético tracinho ao alto, um pauzinho desamparado armado em guarda-redes, é realmente uma tristeza muito grande, um fim que ninguém merece.

O primeiro Natal que eu conheci em pessoa chamava-se Higino. Natal Higino. Ou por outra, chamava-se e chama-se, felizmente sobretudo para ele, mas também para nós todos que tivemos a fortuna de o herdar sem mais nem menos. O nosso Natal veio directamente de África, no tempo em que Fafe era o fim do mundo. Para quem viesse de comboio, como o Natal veio, acabar em Fafe era obrigatório, não havia mais linha, batia-se com o nariz na parede que aguenta até hoje a velha Rua do Retiro. Muito tratante desaguou assim em Fafe, para mal dos nossos pecados, mas o Gino é vinho de outra pipa.
O Natal chegou a Fafe em 1975. Tinha 19 anos de idade. O Natal chegou, Natal Higino, instalou-se nos Bombeiros, na Bomba, e tornou-se "como se fosse da família", que, tomai bem sentido, é muito mais e melhor do que ser mesmo da família. Creio não estar a dizer grande asneira quando afirmo que, na nossa terra, o mais forte laço "familiar" que nos une acaba por ser esse mesmo, o de sermos uns para os outros como se fôssemos da família, meus ricos meninos. A família sanguínea, de árvore genealógica, não passa de um que remédio, é uma fatalidade, cai de madura. A esse respeito, no entanto, devo ressalvar que a minha tia Laura e o meu irmão Nelo saberiam falar do Gino com muito mais propriedade do que eu, mas o Nelo, por recato, sei que nunca o faria, e a querida tia deixou-nos infelizmente há cinco anos, mas conto um destes dias trazê-la outra vez aqui. A tia Laura foi quem encarrilou o Gino para a vida.
O Natal chegou a Fafe, Natal Higino, e, apesar de alardear algum jeito para a bola, com passagens registadas por Antime, Vinhós e Estorãos, pelo menos, foi como espectador, isto é, como aplaudidor, que ele mais se notabilizou. Batia umas palmas que eram realmente um assombre, como se dizia em fafês, assombre, palavra inventada pelos músicos antigos da Banda de Revelhe, ou talvez não, porque um destes dias ouvi-a no Alto Minho e acertadamente encaixada, para minha surpresa e grande alegria. Um assombre! Umas palmas que, quando bem batidas, ouviam-se da Cumieira a Santo Ouvídio e da Fábrica do Ferro à Ponte do Ranha. Como se fossem duas rijas tábuas de soalho saídas da máquina da serração e lançadas violentamente uma contra a outra e ligadas aos altifalantes do Baptista, um estrondo assim tremendo, uma coisa nunca ouvida! Lembrais-vos do PA-SSA A BO-LA! do tonitruante Aníbal Carriço? Pois estas palmas andariam por lá perto. Em todo o caso, um extraordinário melhoramento sonoro para Fafe, e sem despesa para a Câmara ou para o Governo. Para além disso, Natal Higino, que veio de África, soube fazer-se fafense excelentíssimo. Que é! Acrescentai-o à lista, se fazeis o favor.
O Natal, o nosso, trouxe um apenso de alegria e bondade a Fafe. O Higino é isso, um homem alegre, bom, generoso, honrado, companheiro. Para o Gino, toda a gente tinha a categoria de Você. Era o meu tempo de seminário, e o Gino chamava-me "Sacerdote". Suponho, aliás, que ainda hoje me chama "Sacerdote". Éramos, somos, amigos. A minha mulher sabe quem é o Gino, o que o Gino representa, conhece-o, que eu apresentei-lho, e isso é o topo no meu barómetro da amizade, prenda tão rara.
Eu não sei se Fafe já se apercebeu da sorte que teve por causa do comboio acabar obrigatoriamente ali e dele ter saído por acaso o Gino. Eu tenho noção. Ao longo da vida vim a conhecer alguns Natais, não muitos, porque o nome também não é assim tão popular, mas não me lembro de outro que me tenha verdadeiramente impressionado. E acho que sei porquê. Porque, como noutras encomendas da vida, não há Natal como o primeiro. E o meu chamava-se Higino.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Firme e hirto como uma barra de ferro

O grande prestidigitador
Era um mágico extraordinário: em vez de coelhos da cartola, tirava macacos do nariz.

Não sei se foi pelos 16 de Maio ou pela Senhora de Antime, talvez fosse pelo Natal ou então ocorreu num dia qualquer, anónimo, um dia sem atributos que o destaquem ou recomendem. Mas aconteceu. Uma vez, um artista hipnotizador, quiçá mentalista e certamente ilusionista veio dar um espectáculo ao nosso Cinema e eu, que era mocico e pobre, não entrei, não vi, porque era preciso pagar bilhete para entrar. E era uma bonita tarde de sol. Para chamar povo como no Poço da Morte dos 16 de Maio e da Senhora de Antime, o artista hipnotizador, quiçá mentalista e certamente ilusionista fez cá fora, na Rua Monsenhor Vieira de Castro, o famoso número de conduzir um carro com os olhos vendados, naquele bocado de estrada entre a esquina do Santo Velho e o ateliê do Zé Manel Carriço, exactamente nesse sentido, que era permitido na altura, nem cem metros sempre em linha recta, assim também eu, foi o que então pensei, e no entanto ainda hoje não sei conduzir nem tenho carta de condução, com os olhos abertos ou fechados. O mirabolante número da condução em braille terá sido feito cá fora de mais a mais porque lá dentro decerto não daria jeito, cheguei também a essa importante conclusão aqui atrasado, quando finalmente percebi que o bonito Teatro-Cinema de Fafe, apesar de realmente glorioso e frequentemente "icónico", é muito mais pequeno do que eu o supunha no meu tempo.
Esperei pelas horas à sombra, no passeio em frente, fazendo malha com o cotão dos bolsos, discretamente, encostado à histórica casa-mãe dos Summavielles, como já lhe chamei, e que era habitual sítio de estar, antes e após o cinema, e nos intervalos também. No final da função, os ilustres que pagaram para entrar e ver disseram-me que aquilo lá dentro não prestou, que não valera o dinheiro. Felizmente para eles, a saída era de graça...
O artista talvez fosse o Professor Karma, esse extraordinário e irrefutável hipnotizador de galinhas, lembrei-me agora, mas de momento não estou em condições de o afiançar sem correr risco de levar com um par de desmentidos no focinho. Era, em todo o caso, um Professor Karma qualquer, ainda que vestisse outro nome mais ou menos estrambólico. O grande Zandinga não foi, esse haveria eu de conhecê-lo pessoalmente, alguns anos mais tarde, numa noitada para lá de estranha, no Porto. E Alexandrino, o cromo do "firme e hirto como uma barra de ferro" a quem Herman José deu fama, é muito mais recente, ainda nem sequer tinha sido inventado.
Em Fafe apareciam de vez em quando uns fenómenos assim, vendedores de sonhos e de retroescavadoras com luzinhas, empresários de carregar pela boca e artistas a bem dizer, micro e pequenos vigaristas em tournée pelo país que era paisagem e gostava bastante de ser levado de conversa. De preferência, a preço módico. Uma ocasião até nos quiserem impingir uns sensacionais espectáculos de luta livre, nos antigos Bombeiros, era só tirar os carros todos cá para fora e montar lá dentro o ringue e assentos à volta, realmente uma trabalheira, e o meu avô, que era o quarteleiro, torceu logo o nariz. Prometiam-nos um festival de pancadaria a fingir, mas eu não sabia, com os assombrosos Tarzan Taborda, José Luís e Carlos Rocha, eram os nomes dos cartazes, vindos directamente do Coliseu dos Recreios, do Parque Mayer e do Pavilhão dos Desportos de Lisboa, pelo menos os retratos colossais, e para mim era como se viessem do Coliseu de Roma. A coisa ficou sem efeito, nunca soube porquê, ninguém me consultou nem explicou, o meu avô foi dormir a sesta, todo contente, e eu fiquei-me com um desgosto que até hoje. Carago, nos Bombeiros eu tinha borla garantida...

segunda-feira, 16 de junho de 2025

O avô da Bomba fazia fisgas

O amigo dos animais
É veterinário porque gosta muito de animais. Coelhos, lebres, perdizes, rolas, tordos, javalis e sobretudo toiros. E só lamenta que em Portugal não sejam de morte.

O Bô da Bomba era muito amigo dos animais. Gostava deles por perto, se fosse no prato, melhor. Tinha andorinhas. Sim, o meu avô da Bomba tinha as paredes exteriores da casa de quarteleiro enfeitadas com andorinhas de porcelana e um crocodilo também de louça que tomava conta da entrada pelas escadas interiores. O crocodilo apresentava a mandíbula inferior presa por arames, deve ter sido luta valente, se calhar com mortes, história antiga feita segredo de família, porque eu nunca conheci o bicho doutra maneira e até hoje ninguém me contou o sucedido.
O meu avô tinha uma tremenda paixão por pintassilgos e canários. Apanhava-os à falsa fé num alçapões que ele próprio fazia e depois alimentava-os e educava-os com paciência de chinês e desvelo de pai babado, espiando-lhes diariamente a definição da plumagem e ensinando-os, ti-trrriii, a dobrar o canto. Quando os considerava prontos, de solfejo na ponta da língua, o Bô apresentava-os então à sociedade local, chamava os especialistas para uma primeira audição pública. A ocasião era solene. Era o momento da verdade. "Este não o vendo nem por dois contos", costumava dizer a mangar, se a exibição corria bem, mortinho que lhe aparecesse logo ali um comprador por muito menos. O meu avô era assim, enganadorzinho...
Na Bomba havia cão, que se chamava sempre Roni, havia coelhos e galinhas. As galinhas eram fundamentais naquele lar de entusiásticos consumidores de medicamentos e canjas. Havia cabrito na engorda pela Senhora de Antime, como manda a tradição fafense, e houve porco, pelo menos uma vez. O avô mandou capar o porco, lembro-me muito bem do serviço encomendado ao Senhor Beta, capador encartado e satisfatório saxofonista na Banda de Revelhe. Mas lembro-me sobretudo dos guinchos do pobre animal, ferido à traição na sua virilidade, e aquilo afligiu-se-me até aos ossos. Eu estava de partida para o seminário, diziam-me que também ia ser capado, estais a ver, portanto, a impressão que de repente se me fez entre pernas.

O meu avô da Bomba, que construía armadilhas para caçar canários e pintassilgos, mantinha em funções uma banca do seu tempo de moço sapateiro, velho e honrado ofício de que nunca se apartou. Enquanto pôde, num cantinho por baixo das escadas que subiam para "o salão" do quartel da Rua José Cardoso Vieira de Castro, onde os finalistas da Escola Industrial levavam à cena a sua récita anual e a AD Fafe realizava as suas assembleias gerais, ele fez, com desenho próprio, as sandálias e sapatos que calçavam a família de entre portas. Sapatos e sandálias que duravam duas ou três vidas. Até fez os sapatos que o meu padrinho e tio Américo levou no dia do seu casamento com a querida tia Laura, e que catitas que eles eram: os sapatos e os noivos. O Avô da Bomba era uma artesão habilidoso e perfeito. Mãos de ouro. Um artista, uma figura. Fazia também fisgas, que dava de prenda aos netos. Depois mandava-nos matar pardais.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

A minha alegre Carrinha

Foto Tarrenego!

O senhor de óculos e sem boné é Baltazar Rebelo de Sousa, ministro do outro tempo, destacado colaborador de Oliveira Salazar e Marcelo Caetano, pai de Marcelo Rebelo de Sousa e grande amigo de Fafe. Vinha à nossa terra muitas vezes e nunca de mãos vazias. A fotografia conta uma das suas visitas aos Bombeiros, e à direita, impecavelmente fardado de gala, está o carismático e severo comandante Luís Mário, pai do comandante Armindo, querido amigo que era pelo Vitória de Guimarães e fazia questão de explicar que "no andebol não há penáltis, são livres de 7 metros".
Nenhum deles, porém, interessa para o meu assunto. Eu quero é falar do carro que domina a cena. Uma velha Austin, refugo inglês da Segunda Guerra Mundial, tal qual os pesados capacetes pretos para incêndios, os cintos com machadinha, mosquetão, sarilho e tudo, um pesadelo, e os blusões e capotes de serviço, iguais aos dos soldados ingleses e americanos nos filmes. Foi material que deu jeito, que cumpriu por muitos e bons anos. Menos, se não me engano, as sinistras máscaras antigás, cirurgicamente adaptadas, isto é, pintadas de vermelho, e que só serviam para as minhas brincadeiras de miúdo e ficavam muito bem a ganhar pó em cima dos armários.
O carro tinha nome, chamava-se Carrinha e, de acordo com o "MG" da matrícula, ainda deverá ter passado pelas mãos do Exército português antes de chegar a Fafe, orgulhosamente de volante à direita e "piscas" de puxar por um cordel, como o coiso do fradinho das Caldas. Tinha também manias e birras, provavelmente derivado à idade, e constava que só o Casimiro das Caixas lhe conhecia as neuras e sabia fazer-lhe as vontades todas. O Casimirinho era, para além de intrépido praticante de palavras cruzadas, o nosso especialista em Carrinha.
A Carrinha apareceu na minha vida já completamente coberta por uma chapa ondulada em forma de U invertido e com uma grossa lona e correias de cabedal para fechar atrás. E foi o meu primeiro e único carro. Quer-se dizer: o carro não era meu, nunca foi meu, nunca o levei para casa nem dormi com ele, mas a verdade é que nunca conduzi mais nenhum. E conduzir talvez também não seja o verbo adequado ao caso, portanto passo a explicar:
Mal dei fé que chegava aos pedais, o que eu fazia era ligar o motor e solavancar as mudanças até que uma delas, uma qualquer, pusesse o carro a andar. Às vezes calhava para a frente, outras vezes calhava para trás. Viajava imensos dois, três metros, e invertia a operação, sem curvas, novamente com a alavanca à sorte, voltava ao exacto centímetro de partida e depois desaparecia dali a todo o gás, antes que alguém me descobrisse o sítio das orelhas e me enfiasse dois ou três bofardos à traição. Esta parte era muito importante.
Uma vez o quartel da Rua José Cardoso Vieira de Castro entrou em obras, crescendo para a frente, e os carros dos Bombeiros mudaram-se provisoriamente para uma garagem muito grande do "benfeitor" José Freitas Nogueira, bastava dobrar a esquina, no encontro da Rua Monsenhor Vieira de Castro com a Rua Dr. José Summavielle Soares, quase em frente ao campo de futebol. Seria mais ou menos por onde depois se estabeleceu a oficina do Evaristo e onde agora se resfatela a grande superfície do Aldi, paz à alma do comércio tradicional. Era um enorme portão verde e tinha lá dentro, assim que se entrava, uma rampa muito jeitosa para as minhas habilidades. Sobretudo ao baixo. Melhor ainda: ali o meu avô não ouvia as coças que eu dava na desgraçada caixa de velocidades da pobre Carrinha, gemente e ganinte por todos os lados. Bons tempos...
Dei também as minhas voltas no carro de bois do Sr. José do Santo e, com expressa licença da minha mãe, na carroça do Moniz Azeiteiro. "Os azeites do Moniz são os melhores do País", dizia na retaguarda do veículo, e nunca vi que fosse desmentido. A carroça do Moniz era puxada a cavalo, mas, francamente, nem o carro nem a carroça se comparavam à Carrinha. Não me enchiam as medidas. Nem sequer os carrinhos de choque, de que fui, não é para me gabar, prestigiado ainda que bissexto executante. Não. Nada. A Carrinha foi o meu primeiro e único carro. Como no amor. Nunca mais quis outro.

Resumindo e concluindo: eu não tenho carta de condução, não sei conduzir e não tenho carro. E faço questão de elencar estas três fundamentais asserções, porque elas, as asserções, parecendo sinónimas e redundantes, não o são, não o são. Não o são. Na verdade, há quem não tenha carta de condução, saiba conduzir e não tenha carro; há quem não tenha carta de condução, saiba conduzir e tenha carro; há quem tenha carta de condução, não saiba conduzir e não tenha carro; há quem tenha carta de condução, saiba conduzir e não tenha carro; e até há quem tenha carta de condução, saiba conduzir e tenha carro - o que é uma raríssima coincidência. O mais certo é eu não ter esgotado todas as variáveis possíveis, mas desconfio que já perceberam o meu ponto de vista. Portanto, resumindo e concluindo este resumindo e concluindo: não tenho carta de condução, não sei conduzir e não tenho carro. Tive a Carrinha.

sábado, 24 de maio de 2025

O homem-rã

O homem-rã apareceu à tona em câmara lenta e saiu da água com toda a calma do mundo, perante o evidente embaraço do casal de patos-bravos que faz segurança ao local. Vestia um blusão cor-de-laranja que dizia nas costas "Bombeiros Voluntários de Fafe", "BVF", passou por um bando de turistas inesperadamente japoneses e acabadíssimos de descarregar no novo terminal de cruzeiros da Barragem de Queimadela, sorriu para os flaches e continuou naquele andar cómico até ao bar da praia fluvial. Entrou no bar, saltou para cima de um banco, depois saltou para cima do balcão e mandou vir, com uma nota de cinco euros na mãozinha verde e imperativa: - Coach!, coach!

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Salazar via tudo

Foto Tarrenego!

Sessão solene na Sala da Direcção dos Bombeiros Voluntários de Fafe, quartel antigo, Rua José Cardoso Vieira da Castro, entre os dois palacetes e ao lado da garagem do Zé Bastos, como quem vai para o Hospital, algures pelas décadas de cinquenta ou sessenta do século passado. Uma sala que eu frequentei e conheci muito bem. Da esquerda, Deus me perdoe, para a direita: o eterno presidente da corporação, Albino Fernandes; o então presidente da Câmara, Manoel Cardoso, no uso da palavra; o cónego Leite de Araújo, que ainda não era cónego e estava a gostar muito; e, fumegante e condecorado, condescendente, João Mendes Ribeiro, discreto comandante da Legião Portuguesa, deputado à Assembleia Nacional e procurador à Câmara Corporativa, dois anos presidente da Câmara Municipal de Guimarães, golfista amador, benfeitor à la carte, senhor da Fábrica do Ferro e dono daquilo tudo. Pregado à parede como Nosso Senhor Jesus Cristo na cruz, pairando sobre presentes e ausentes, tomando conta da Nação - Salazar.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Quando Fafe saía em excursão

O passeio do idoso
O autocarro de aluguer levava à frente, à mão direita do motorista, uma tabuleta que dizia "Passeio do Idoso". Convenhamos: a tabuleta é necessária, porque uma câmara municipal ou uma junta de freguesia não se podem dar ao luxo de organizar um "Passeio do Idoso" e o mundo ficar sem saber que a câmara municipal ou a junta de freguesia organizaram um "Passeio do Idoso". Portanto, a tabuleta anunciava "Passeio do Idoso". Olhei com atenção para o interior do autocarro de 56 lugares, e lá no meio ia realmente um velhinho, só um, o resto eram bancos vazios. A tabuleta estava certa - era, com efeito, o passeio do idoso.

O Bô da Bomba jurava que nunca pôs nem nunca na vida poria pé na praia. Que era muito sol ao desamparo, areia demais para a sua camioneta. Queixava-se: a água estava molhada e, ainda por cima, salgada. O meu querido avô era "uma pessoa muito doente" e precatada quanto ao sal. Portanto, o sol e o sal. "Se ainda ao menos houvesse a sombrinha de uma árvore", dizia, molageiro, aí que contassem com ele nem que fosse só para a soneca da tarde. Assim, nada feito. Mas o meu avô era um exagerado, um mentirosinho sem tenção de ofensa - e aquela jura, eu sabia que era a mangar.
Para o meu avô da Bomba, como para todo o fafense que então se prezasse, a palavra praia queria dizer Póvoa de Varzim. Exactamente. Ir à praia e ou ir para a praia (conceitos que importa diferençar) era ir à Póvoa ou ir para a Póvoa, via Guimarães e Famalicão. E no entanto o meu avô conhecia também satisfatoriamente os longínquos areais de Ofir, da Figueira da Foz e da Nazaré, o que já não era brincadeira! E de onde é que lhe vinha esta extraordinária mundivivência, este cosmopolitismo tão antes do tempo? Pois bem: o meu avô organizava excursões - dois dias ao Alto Minho, com pernoita em Viana do Castelo, dentro do autocarro, no Largo da Agonia a esbordar de camionetas e parolos como nós, e umas senhoras cá fora a fazerem café de cafeteira em máquinas a petróleo, à luz do petromax até que o sol nascesse. Três dias a Fátima, pelo 13 de Maio. Em anos alternados. Partida e chegada no quartel dos Bombeiros, sempre, então na Rua José Cardoso Vieira de Castro, ao lado da garagem do Zé Bastos e entre os dois palacetes. Com as estradas que tinha, Portugal era naquele tempo um país imenso. Ir de Fafe aos Arcos de Valdevez ou a São João da Madeira, por aquela altura, era como embarcar por engano numa expedição de Júlio Verne ao fim do mundo. Agora imaginem uma viagem praticamente de circum-navegação com escala no Portugal dos Pequeninos e no Mosteiro da Batalha, e com procissão de velas e tudo. Era um verdadeiro acontecimento, um marco de vida!

O meu avô era um videirinho, interesseiro. Tinha casa e salário de quarteleiro dos Bombeiros, não sei se era muito ou pouco, mas não perdia oportunidade de fazer dinheiro extra no que lhe estivesse mais à mão: o tasquinho clandestino na cave do quartel, os tremoços, os bolinhos de bacalhau e o vinho na Festa da Bomba, a aguardente e o vinho, sempre o vinho, nas sessões nocturnas do cinema ao ar livre na parada das traseiras, muito antes de a sétima arte descer ao campo de futebol, a banca de sapateiro por baixo das escadas que subiam para o salão de festas, umas refeições especiais encomendadas por um certo grupo de amigos, respeitosos admiradores das mãos de ouro da minha avó para a cozinha. Uma vez, há quase sessenta anos, o papa Paulo VI veio a Fátima e pouca gente tinha televisão em casa. No salão dos Bombeiros foram montados um projector e uma tela para a transmissão em directo e em "ecrã gigante", com entradas a pagar. A sala encheu, o dinheiro da receita revertia naturalmente para a Associação Humanitária, mas de certeza que o avô também conseguiu sacar dali algum, nem que fosse a vender rebuçados para a tosse ou cascas de amendoins.
Ora é aqui que encaixam as excursões, que os candidatos a excursionistas pagavam em suaves prestações semanais desarriscadas nuns cartõezinhos que o meu avô mandava fazer na tipografia. Isto para aí durante um ano. O avô da Bomba fazia a cobrança aos sábados ou domingos de manhã, não sei precisar. Ia de motorizada e às vezes levava-me, primeiro numa Florett e depois na Lambreta, uma Vespa azul, antes e depois de haver sentidos proibidos nas ruas de Fafe. Para o meu avô nunca houve, o caminho foi sempre o mesmo, a direito, e tinha sempre razão quando lhe apitavam ou gritavam para não ir por ali. Eu, nem pio.

(A Florett tem muito que se lhe diga em Fafe, era um veículo de pecado, mas, por ser verdade, aqui declaro que o meu avô nunca foi dado a essas actividades por assim dizer extracurriculares. A Florett calhou-lhe, e só isso.)

Mas as excursões. Eram viagens épicas, cheias de cheirinho bom a merendeiro e muitas paragens para "mudar a água às azeitonas", enjoos e borracheiras de caixão à cova. As excursões cheiravam também a gomitado, a naftalina, a sapatos novos, a botas ensebadas de fresco, a chulé, a urina, a tabaco, a suor, a desodorizante Lander, em stick, a perfume barato, a brilhantina, a laca, a mundo. Dormia-se na camioneta. A coberto da noite soltavam-se uns traques enfeitados com risinhos solertes que ajudavam à festa. Era uma convívio muito grande. A camioneta avariava, pessoas perdiam-se. Cantava-se o "Treze de Maio", o "Queremos Deus" e "O carrapito da Dona Aurora". Rezava-se o terço ao passar a Ponte de Fão, sobre o rio Cávado, porque já naquela maré constava que a estrutura estava a cair de podre. Morreríamos todos muito bem - iríamos para o céu, se Deus quisesse, embora o grupo excursionista do meu avô se chamasse, com todo o mérito, "Grupo Excursionista "Os Arrebenta Pipas" - Fafe", assim tal qual, num pano hasteado por dentro no vidro traseiro do autocarro. Na Póvoa, as mulheres arregaçavam saias e combinações, os homens arregaçavam calças e ceroulas e os miúdos ficavam em cuecas ou em pelote, consoante a idade, e todos se agarravam, com quanta força tinham, à grossa corda que ligava o mar ao areal, brincando aos sustinhos e trambolhões de felicidade histérica ali no sítio onde o mar enrola na areia, que também se cantava. E o Bô da Bomba em doca seca, a rir-se de tanta toléria, no cimento seguro do Passeio Alegre.
Sei disto tudo porque estive lá. Que me lembre, fui uma vez a Fátima e outra ao Alto Minho, esta ainda com o meu pai. O meu irmão Orlando ainda não tinha nascido. Eu, o Nelo e a Nanda queríamos ir sempre, mas não podia ser. O meu avô não dava borlas, nem aos netos. (Na verdade, o meu avô não dava nada a ninguém. Isto é: o máximo que dava eram os bons-dias e variadas ordens, mas exigia o troco e o recibo com número de contribuinte.) Ia portante só um, e no colo da mãe, mais do que isso seria prejuízo.
O meu pai, que gostava de fazer rir a minha mãe, dizia aos dois que ficavam: "Não é preciso chorar, vós também ides. Na sombra..."

Tanto relambório para chegar aqui: herdei do meu avô o horror à praia em dias de sol e gente, mas tenho a árvore que ele reclamava. Uma árvore na praia. Encontrei-a aqui em Matosinhos, mesmo ao pé da porta, encostada à esplanada do Lais de Guia, e agora até há mais duas de vago, à beira do paredão de entrada no Porto de Leixões. A Praia do Titan, por este andar, ainda acaba em floresta. Passo por lá todos os dias e vejo o avô à sombrinha, com os pés mansamente enfiados na areia morna. Gosto de o ver assim, peço-lhe a bênção e beijo-lhe a mão. Sossego as saudades. O Bô da Bomba era molageiro e videirinho, interesseiro, forreta do piorio - mas, carago, faz-me falta!

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

A Festa da Bomba

A sarça ardente (ou Chamem os bombeiros!)
Quando Moisés disse todo vaidoso "A minha vida dava um filme", Deus ficou bastante chateado, pegou lume ao monte e proclamou: - Agora apaga-o, que o Noé gastou-me a água toda.

Quando eu era pequeno, Fafe tinha três grandes festas e eram as maiores festas do mundo: a Senhora de Antime, a Festa da Bomba e a cascata do Santo António na minha rua. Quanto à enormeza da Senhora de Antime, sobretudo da sua incomparável e pungente procissão, suponho que estamos conversados. O nosso Santo António era também uma coisa constada, pelo menos para nós, e é preciso não esquecer que até tínhamos foguetes e altifalantes, que o Zé da SIF arranjava, e metíamos raivinha às outras ruas todas, incluindo avenidas, rampas, quelhas e largos como o nosso. O Zé da SIF é irmão do Armando Perrinha, e eles mais o Zé Maria, que foi comando no Ultramar, a Dina e a Luísa são filhos do Agostinho Cachada e da Senhora Laura, família quase minha, vizinhos do coração e gente do melhor que pode haver. Mas as festas. Falta esmiuçar a festa de anos dos Bombeiros Voluntários de Fafe - a Festa da Bomba, que se celebra regularmente por alturas de 19 de Abril -, e vamos a isso.

A Festa da Bomba, um bocadinho acima e dois meses antes do nosso Santo António, era de arrebenta. Só de altifalantes - sempre os altifalantes! - eram dois dias, quase três, e coisa profissional, a encher de som fanhoso o ar da vila e arredores: "Amplificações sonoras de João Baptista Gonçalves, de Antime, Fafe, deslocam-se a qualquer localidade, haja ou não haja corrente eléctrica", levando atrás a discografia completa do António Mafra e da Maria Albertina, com o Tom Jones e o alemão Freddy Breck a emprestarem um toque de classe aos "trabalhos". E no domingo era povo que só visto. Havia bailarico no terraço do quartel e na parada, que era nas traseiras, havia discos pedidos - "E o disco que se segue é dedicado à menina de camisola vermelha que está encostada à parede na varanda do segundo andar, por um seu admirador", e saía "O Carrapito da Dona Aurora" -, havia os tremoços da minha avó e o verde tinto do meu avô, que era quarteleiro mas não era tolo, havia capacetinhos de folheta dourada e alfinete torcido para enfiar nas lapelas dos generosos pobretes mas alegretes que davam "qualquer coisinha para a ajuda". (Se calhar foram os primeiros pins de que há memória. Os lacinhos furta-cores e os autocolantes de mão estendida ainda não tinham sido inventados.) Arranjaram-se ali namoros, casamentos. Era uma festa popular, sim. Mas a minha Festa da Bomba, a parte que me dizia particularmente respeito, era a festa dos bombeiros.
Começava uns dias mais cedo, a distribuir pelas montras o programa do aniversário e a puxar pelo corpo para pôr os carros e o quartel como brincos, que naquele tempo eram só para mulheres e piratas. Depois ia na "Carrinha", uma velha Austin da II Grande Guerra, ajudar a recolher garrafões de vinho oferecidos pelos ricos da terra e amigos da Bomba: os Summavielles, o Zé de Freitas, o João do Sal, o Senhor Fernandes do Retiro (não por acaso, um quase eterno presidente da associação), que são os que me recordo.
O meu ponto alto, porém, era o içar das bandeiras, a toque de caixa e ao som da fanfarra, logo pela manhãzinha do dia grande. Eu fazia questão, tomava conta da bandeira dos Bombeiros, bela, azul e branca, passada a ferro pela minha querida tia Laura, feita num linho que dava gosto tocar, com a águia que afinal era a fénix renascida, as chamas e os machados no meio. Içava-a a compasso, orgulhoso, solene, tremente e, confesso, a chorar por mim abaixo como um madaleno arrependido nunca soube de quê.
Tinha mais que fazer no quartel, mas ia ao Largo ver o desfile engrossado pelas corporações convidadas e amigas. Caíam-me os olhos para os carros, todos mais modernos do que os nossos, mas isso não chegava para me desmoralizar. Eu sabia que os bombeiros de Fafe eram muito melhores do que os outros, nem que tivessem de ir a pé para o fogo. E às vezes iam.
Lembro-me sobretudo dos amigos de Vizela, que eram mais do que amigos, eram irmãos (futebol à parte), e, depois da obrigação feita, decilitravam com quase tanto gabarito como os bombeiros de Fafe, campeões mundiais da decilitragem. Era: após a cerimónia das medalhas é que começava a verdadeira festa. Cada um que se amanhasse para o almoço, em casa, era o mais certo, e já voltavam todos bem bons, mas a meio da tarde havia o "beberete" no salão de festas transformado em refeitório. O "beberete" constava de uns bijus e de uns bolinhos de bacalhau feitos pela minha avó e metidos em sacos plásticos de doses individuais e sumárias, acompanhados à fartazana pelo tal vinho dado pelos beneméritos da corporação e que era bebido como se só voltasse a haver Festa da Bomba dali a um ano. O que até nem estava mal visto.
Conclusão: era beberete demais para tão pouco comerete. Passavam-se ali carraspanas iglantónicas. Os de Vizela ficavam até ao fim, num taco-a-taco que chegou a ser histórico, mas o nosso Joãozinho do Opel levava sempre a taça para casa. E levavam-no sempre a casa. De padiola. E eu pensava que não fazia mal, que os nossos bombeiros voluntários mereciam de mão cheia aquele dia sem medida e só para eles, derivado ao resto do ano em que eles eram só para os outros. Pensava que, às tantas, a Festa da Bomba era essencialmente aquilo - aquela bebedeira geral, eucarística, redentora e uniformizada, em descompassada ordem unida. E achava bem. E quero acreditar que nunca mais na vida tive pensamentos tão acertados.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Quando a "puta" tocava

O bombeiro profissional
Ele era um bombeiro verdadeiramente profissional. Só aceitava incêndios das 9h às 13h e das 14h às 17h, de segunda a sexta-feira. Fora do horário de expediente, que ligassem aos voluntários!

A "puta" tocava e Fafe desatava a correr em direcção aos Bombeiros. A "puta" era a sirene. E os homens largavam tudo: trabalho, mesa, cama, mulher e até os socos ou as botas pelo caminho. Havia os que iam de bicicleta e os que apanhavam boleia de motorizada. Carros paravam para levar desgraçados vindos das lonjuras da Cumieira ou dos campos do Sabugal e já com os bofes de fora. Depois, havia o Casimiro das Caixas, que começava o dia a fazer as palavras cruzadas no jornal do Café Chinês e chegava na sua velha furgoneta. Mas quando "ela" tocava, era para todos. Tocava também para os curiosos, para os que iam apenas ver, saber onde era o fogo. E, em vez de estorvar, faziam-se úteis. Apanhavam e arrumavam as bicicletas e as motorizadas que os bombeiros atiravam em pleno andamento ao chegarem ao quartel, e um mirone encartado ainda tinha de estacionar em condições a carrinha do Casimirinho, deixada sempre à frente dos portões a empancar a saída dos carros de incêndio. O Casimiro da Caixas era um fafense que tinha vindo de Guimarães, onde decerto nascera, como talvez Portugal, e nunca se descolou daquela pronúncia carregada que nos fazia rir a todos.
"Ela" tocava e eu, miúdo, lá estava. O fogo era uma aflição. Olhava para aqueles homens, esbaforidos, trementes, brancos como a cal, a entrarem na "primeira viatura" apenas meio vestidos, a enrodilharem-se nas calças que não enfiavam ou nas galochas que levavam ainda nas mãos, cheios de urgência para enfrentarem as labaredas, e via heróis. Exactamente: heróis, muito melhores do que os dos livrinhos de cobóis e dos filmes, nem que fosse o Steven McQueen anos mais tarde na "Torre do Inferno", que os bombeiros de Fafe foram ver a Guimarães, em viagem oficial. Eu também fui. Os meios eram escassos, a formação era elementar, Fafe era uma terra pequena, mas aqueles homens tinham um coração bombeiro do tamanho do mundo. E o seu maior medo, que eles nunca confessavam, era chegar lá e o fogo já estar apagado...
Tão grande era o coração, grande demais para um homem só, que depois tinha de ser repartido. Ser bombeiro era coisa sanguínea, "doença" de família. Irmãos, pais e filhos, netos, tios e sobrinhos, primos, todos sofriam do mesmo bem. Creio que hoje ainda é um bocado assim.
Naquele tempo, eram os do Santo, os do Tónio Quim Calçada os Moleiros, os Costas do Assento, os Feira Velha, os Funileiros, os Quintos. Eram também o Agostinho Cachada, o Augusto Susana, o Frescaragem, que tinha lábia de leiloeiro, o Nogueira da Ponte do Ranha, que "fardava muito bem", o Zé dos Alhos, o Zé Sacristão, o Nelo Chapeleiro, o Chaparrinho, o Ferreira "Puta Velha", o Armando "Salazar", que era o viagra em pessoa, o enorme Sr. Humbertino, que trabalhava para os Summavielles e já só se apresentava no dia da Festa dos Bombeiros, tal como o Sr. Matias e como o Joãozinho motorista, que conhecia como ninguém as manhas do Opel descapotável e apanhava todos os anos uma carraspana de tal ordem que era preciso levá-lo a casa.

(E havia os espontâneos, que afinal não eram tão espontâneos assim. Moravam ali à porta e estavam sempre de prevenção para uma emergência que o fosse realmente. Faltava um motorista, a saída estava a atrasar-se? - era só chamar por eles e eles avançavam: lembro-me do Fredinho Bastos e do irmão Quinzinho, do Varinho Dantas ou do Toninho da Luísa, que tinha piada fina e eu gostava de imaginar DaLuísa derivado ao comediante americano Dom DeLuise, mas isso já é outro filme. Se calhasse, enfiavam um blusão e um bivaque, só para despaisanar, e avançavam a todo o gás, bombeiros como os de exame feito e papel passado e ainda mais voluntários, mas qual seguro qual carapuça! Ser-se bombeiro era efectivamente um estado de alma. E estes eram bombeiríssimos de primeira.)

Mas a pinga. Naquele tempo, ser bombeiro dava muita sede e a água era toda precisa para apagar incêndios. De modo que, conscienciosos, os voluntários fafenses, regra geral, decilitravam no verde tinto com apreciável pertinácia. O meu avô da Bomba, que era quarteleiro e videirinho, até montou um pequeno tasco que foi um sucesso. O meu vizinho Agostinho Cachada era um dos principais clientes, mas tinha um porém: pelava-se por bagaço e quando ia para casa nunca mais lá chegava, porque, mesmo depois de o meu avô fechar o tasco, o bom do Sr. Agostinho voltava sempre para trás para beber mais um. Era certinho. Uma noite, para lhe evitar a canseira e apressar o sono, o meu avô foi atrás dele até ao Paredes, já a meio caminho, com a garrafa da aguardente escondida debaixo do capote...

Quando o monte ardia, os bombeiros iam e pronto. Atulhados em viaturas desconfortáveis, vagarosas, barulhentas, fumegantes, inseguras e, não raro, caindo aos pedaços. Iam e pronto. Os bombeiros voluntários. Naquele tempo ninguém sequer sonhava ganhar dinheiro por apagar incêndios - eram uns tolos. Tolos, porém despachados e íntegros. Devotados. E espertos, desenrascados. Não havia rede, satélites, parabólicas ou fibra óptica, ainda não havia radiotelefones ao serviço, os telemóveis ainda não tinham sido inventados e nem sequer havia cabinas telefónicas nos montes. Parece impossível, mas lá em cima, no meio da penedia e das giestas, no Portugal das cabras e dos cabrões, não havia telefone de espécie nenhuma. E não havia SIRESP, graças a Deus. Que se segue: se eram precisos reforços, alguém vinha de motorizada dar o recado ao quartel.
Pelo menos em Fafe era assim, e não havia razão de queixa.

Quando a sirene tocava, também as mulheres de Fafe se sobressaltavam. Era a "puta" que lhes tirava os maridos de casa, da cama. E eles iam para os braços da "outra". Os Bombeiros eram uma tremenda paixão, a "amante" perigosa que levava tudo o que queria. E elas tinham medo que um dia os seus homens não voltassem. Tolices de mulheres. Então os heróis não voltam sempre?
Às vezes, não. Às vezes o herói faz o que tem de fazer, isto é, faz o que fazem os heróis, e depois desaparece em direcção ao sol poente. Desaparece e nunca mais.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

A sesta do meu avô da Bomba

O faquir
Homem que é homem não dorme. Passa pelas brasas. E sem ais nem uis!

Eu ainda não sabia que aquela meia horinha se chamava assim, mas o primeiro adulto que eu vi a fazer a sesta foi o meu avô Manuel, o 17 da Bomba, que não era terrorista e ganhara a explosiva alcunha derivado a ser o bombeiro número 17 e quarteleiro dos Bombeiros de Fafe. O meu avô morava no quartel dos bombeiros, que, para todos os efeitos, na nossa terra, era a Bomba, portanto era o avô da Bomba, e, pronto, sem fazermos mal a uma mosca, levamos com a CIA em cima e não há quem nos acuda. E era "avô da Bomba" também para se distinguir do meu "avô de Basto".
Naquela casa, isto é, na Bomba, só se comia e bebia do bom e do melhor, embora regrado. Muito regrado. Depois do almoço, o meu avô descia até à camarata e estendia-se numa das camas, a primeira à entrada do lado esquerdo, tapando a cara com o Jornal de Notícias. O JN era naquela altura um jornal grande, quase um lençol, muito jeitoso para a sesta, e o meu avô, contrariando a regra geral, gostava de dormir sob e não sobre aqueles assuntos.
As minhas tarefas de neto em relação à sesta do meu avô eram ir buscar o JN e passar de vez em quando pela camarata para, se necessário, corrigir a posição do jornal. O meu avô deitava-se de barriga para cima, mãos cruzadas sobre o peito, e ressonava com assinalável perseverança. As notícias nem sempre se aguentavam em cima dele, contra tantos ventos e marés. Restava-me uma terceira obrigação, não editorial, que era andar em bicos de pés e de bico calado.
O Jornal de Notícias do meu avô era comprado a meias com o Senhor Ferreira do Hospital, que o lia primeiro, e depois eu ia buscá-lo, ou então ficava cada um com metade das páginas e a uma certa hora da manhã eu fazia a troca, já não me lembro bem.
O Senhor Ferreira do Hospital e o meu avô foram amigos e cúmplices toda a vida. Eram unha com carne, apesar de diferentes como a água e o vinho: o Senhor Ferreira era comunista, tinha estado preso, e o meu avô... antes pelo contrário. Para além de comunista, o Senhor Ferreira era um homem bom, íntegro, sábio, um grande Homem que eu admirava e gostava de ouvir. Anos passados, aos domingos, eu à beira de ir para a tropa e portanto sem emprego, o Senhor Ferreira cumprimentava-me com uma nota de 20 escudos escondida e imperativa na mão tremente. Depois de cegar, o Senhor Ferreira conhecia-me pela voz, mesmo sem eu abrir a boca, quase que só pela presença ou talvez pela respiração, não sei o truque. Já casado e jornalista, no Porto, eu ia frequentemente a Fafe, entrava no Nacor, então transplantado para as megalómanas porém inóspitas instalações em frente ao tasco original, eu ainda à porta, limpando os pés, o Senhor Ferreira, sentado ao enorme balcão, lá ao fundo, com a sua malguinha à frente, adivinhava-me e atirava logo: - Está aí o Hernâni? Aquilo comovia-me tanto, enchia-me tanto a alma, eu ficava tão orgulhoso, que não fazeis ideia! Eu estava realmente ali, e ganhava o dia, palavra de honra! Pelo menos uma tardada de abraços e revigorante conversa. E ainda hoje fico à rasca quando me lembro disto.
Mas o meu avô. O meu avô da Bomba era um incansável fazer de sestas, e fazia-as muito bem, não é para o gabar. Era perfeito, irrepreensível, um mestre, um guru, de sestas e habilidades similares. O meu avô da Bomba passava pelas brasas com uma categoria digna de faquir. Naquele tempo ainda não era moda dizer-se que a sesta faz bem à saúde, o que até viria mesmo a calhar ao meu avô, que era "uma pessoa muito doente". Era também preguiçoso, como vim a concluir mais tarde, o que me livrou do divã do psiquiatra e despesas adjacentes, uma vez que consegui perceber sozinho que tenho bem a quem sair. E, evidentemente, ressono...
Quando éramos miúdos, o meu avô punha-nos a bulir como gente grande, a mim e ao meu irmão Nelo. Eu era pau para toda a colher: limpava e polia os capacetes e outros amarelos com solarine Coração e uma espécie de pó de talco, lavava as viaturas, verificava o óleo e colocava água nos radiadores, anotava as quilometragens, lavava, punha a secar e enrolava as mangueiras depois dos incêndios, metia baterias à carga, enchia as baterias com água da chuva colhida num garrafão com funil que estava no telhado, ia chamar motoristas para as saídas urgentes de ambulância, servia de bombeiro, varria o "parque do material", levava avisos a casa dos bombeiros, atendia o telefone, tocava a sirene (era a parte de que eu mais gostava), hasteava as bandeiras aos domingos e dias de festa, ia à cave buscar vinho, "sempre a assobiar!", segundo ordens superiores. Enfim, eu é que era o verdadeiro Bomba. E não saía de lá. Também porque naquela casa só se comia e bebia do bom e do melhor - já disse.

Tenho-me esquecido de ir buscar o jornal para o meu avô da Bomba e também já há muito que não estou com o Senhor Ferreira do Hospital - gostava de lhe pedir um retrato. Aqueles dois nem devem ter reparado. Estão entretidos a meterem-se um com o outro, foram sempre assim, ou então dormem uma bela sesta, cada qual com a sua metade de JN sobre o rosto. Eu também já durmo a sesta, percebo-os agora. Quando nos voltarmos a encontrar, os três, ainda nos havemos de rir disto tudo.