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terça-feira, 15 de julho de 2025

Os sonhos são como o algodão, hidrófilos

Prioridades
O amor é muito lindo. O "jackpot" do Euromilhões é muito mais.

Ultimamente dá-me para sonhar com pessoas que já morreram. Pessoas de quem gosto - familiares e amigos, vizinhos de infância, povo do meu antigamente, gente de Fafe. Sou um simples, acho que são saudades, velhice. Mas dizem-me que não, que o assunto é muito mais complicado, especialistas em correntes de ar, astrologia e afins garantem-me que os sonhos querem dizer coisas, significam, e que não enganam. Os sonhos são como o algodão, hidrófilos. Nos sonhos está lá tudo, e tudo acaba por bater certo. Limpinho.
Sonhar com pessoas amigas que já morreram, falar com elas no sonho, explicam-me que é o melhor que me podia acontecer. É o pré-aviso de que está aí a rebentar-me nas mãos uma fartura de boas notícias, um mar de felicidade e saúde como o aço para mim e para os meus. O que é preciso é estar atento aos recados que os defuntos da corda me querem segredar, às tantas até os números do Euromilhões da próxima sexta-feira. Isto é a regra geral, científica, embora possa parecer o horóscopo da Crónica Feminina, patrocinado pelo Sonasol.
Não sei se esta tão conveniente interpretação dos sonhos com mortos também vale para Portugal e para vivos chamados Hernâni Von Doellinger, naturais de Fafe e residentes em Matosinhos-sur-Mer. Suspeito que não, pelo que me tem calhado, mas cá fico à espera de melhores dias.
Tenho alguma pressa, confesso, porque se uma coisa sei de certeza é que os sonhos padecem de prazo de validade. Um gajo deita-se uma noite moço e convencido de que os sonhos molhados até são um acontecimento, vá lá, engraçaaaaado..., e acorda de manhã ancião e alagado em mijo derivado à incontinência. A vida é tão breve, não foi?
Sonhar com algodão, dizem que é muito bom para a saúde e que traz uma vida cheia de dinheiro e de felicidade. Bem empregue. Eu por acaso pensava que era com merda que a coisa funcionava. Quer-se dizer, ensinaram-me em pequeno que pisar merda é que dava sorte, é que era sinal de dinheiro e felicidade, se calhar porque naquela maré éramos tão pobres que não tínhamos acesso ao algodão. E merda, realmente, era uma fartura...
Quando morávamos no Santo Velho, o algodão, esse símbolo branco da escravatura negra, passava quase todos os dias por mim, em fardos, em camiões transbordantes, descendo a Rua Monsenhor Vieira de Castro a caminho da Fábrica do Ferro, Companhia de Fiação e Tecidos de Fafe, onde depois havia milhares de operários a trabalhar, entre os quais o meu pai e, mais tarde, a minha irmã e o meu cunhado Álvaro, e variados chefes a roubar - e deu no que deu. Ia daqui de Matosinhos, o algodão, do Porto de Leixões, agora mesmo à beirinha de onde moro com vista para o mar se me puser de lado. Quer-se dizer: por mais voltas que a vida dê, estamos sempre no mesmo.
Agora vou dormir e passo à escuta.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Valia-nos São Valentim

Foto Tarrenego!

Os meus dias de São Valentim eram porreiros. Sempre. Recebesse ele quem recebesse, Presidente da República, primeiro-ministro, ministros disto ou daquilo, fossem quiçá o Papa, Trump, Cicciolina ou até a rainha de Inglaterra, ele, Valentim Loureiro, em funções de presidente da Câmara de Gondomar ou da Metro do Porto, ultrapassava tudo e todos, tomava conta do protocolo e das operações, comandava as tropas e... armava barraca. Sempre. Era um regalo para mim e para o meu jornal de então, o 24horas, que me mandava atrás do Major à procura das partes gagas. Eu era o enviado-especial, o especialista em Valentim Loureiro, e o homem nunca me deixou ficar mal. Ele era, como eu então lhe chamava, o meu cromo da sorte. Trabalhávamos a meias, tipo parelha de palhaços. O meu papel consistia em transformar depois a notícia em anedota, e creio que também não me saía nada mal.
Desconfio que isto não me elogia, talvez até me desclassifique, mas Valentim Loureiro gostava de mim. E ria-se do que eu escrevia. Quero dizer, ria-se dele próprio, o que só lhe enaltece a inteligência. Não éramos amigos, nada disso, mas desaguisámo-nos apenas uma vez, se bem me lembro, numa desconversa em privado, e por causa da Fábrica do Ferro, de que ele entretanto destomara conta em Fafe...
Quando os putos de Lisboa que rebentaram com o 24horas resolveram começar por fechar a redacção do Porto, a ver se salvavam as suas próprias pessoas, Valentim Loureiro disse-me logo que fosse ter com ele, que me arranjava emprego. Agradeci, naturalmente, mas nunca mais lhe apareci. Prezo inegociavelmente a minha liberdade e a minha independência pessoal e profissional, ou vice-versa, mas registei. E continuo grato. Ele foi um dos poucos.
Valentim Loureiro, o nosso Valentim, não era santo nenhum, antes pelo contrário. Tinha um feitio lixado, e espero que ainda tenha, que é bom sinal. Teimoso, virulento, desbocado, vendedor de banha de cobra e de retroescavadoras com luzinhas, de pares de sapatos só direitos ou só esquerdos, oferecedor de varinhas mágicas e outros electrodomésticos, desinformado, populista, voluntarista e amiúde irresponsável e talvez trafulha, nem sei como não foi ele o inventor do Chega, o Major trocava sistematicamente as voltas aos seus desgraçados e bem pagos assessores, que não conseguiam ter mão nele e escondiam-se pelos cantos (já que não conseguiam esconder o patrão), chorando baba e ranho e arrepelando os cabelos de incompetência. Estes, sim, é que tinham paciência de santo, mais ordenado chorudo e garantido no fim do mês, fora as mordomias e as abébias e os segredos que iriam acabar em livros patetas, mais reforma de político, instantânea e garantida, coitadinhos, tenho tanta pena deles...
Dirigente desportivo carismático e afável trampolineiro, visionário construtor do Boavista moderno, para o bem e para o mal, Valentim presidiu aos destinos do clube do Bessa durante 19 anos. Oficialmente. Não oficialmente, foram, são, muitos mais. O treinador Manuel José, que orientou os axadrezados durante a primeira metade da década de noventa do século passado, teve talvez a melhor tirada acerca de Valentim Loureiro. Disse um dia o míster, na televisão, resumindo tudo: - Às vezes, aturar o Major é pior do que ir a pé a Fátima...
E decerto era, mas eu nunca fui a Fátima a pé, e na única vez que tentei ir a São Bentinho, sem promessa ou compromisso, desisti parece-me que por alturas das Cerdeirinhas, para grande desgosto do saudoso Agostinho Cachada, que era o nosso guia. Mas Valentim Loureiro, o cromo, faz falta. Faz-me falta. Que isto Portugal está uma tristeza, um desconsolo. Uma perigosa pasmaceira...

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Salazar via tudo

Foto Tarrenego!

Sessão solene na Sala da Direcção dos Bombeiros Voluntários de Fafe, quartel antigo, Rua José Cardoso Vieira da Castro, entre os dois palacetes e ao lado da garagem do Zé Bastos, como quem vai para o Hospital, algures pelas décadas de cinquenta ou sessenta do século passado. Uma sala que eu frequentei e conheci muito bem. Da esquerda, Deus me perdoe, para a direita: o eterno presidente da corporação, Albino Fernandes; o então presidente da Câmara, Manoel Cardoso, no uso da palavra; o cónego Leite de Araújo, que ainda não era cónego e estava a gostar muito; e, fumegante e condecorado, condescendente, João Mendes Ribeiro, discreto comandante da Legião Portuguesa, deputado à Assembleia Nacional e procurador à Câmara Corporativa, dois anos presidente da Câmara Municipal de Guimarães, golfista amador, benfeitor à la carte, senhor da Fábrica do Ferro e dono daquilo tudo. Pregado à parede como Nosso Senhor Jesus Cristo na cruz, pairando sobre presentes e ausentes, tomando conta da Nação - Salazar.

sábado, 26 de abril de 2025

Funerais de categoria, fazia-os o Baptista

Susto de morte
Era um defunto que dava gosto: parecia que estava a dormir. E estava. Quando acordou, morreu do susto.

No princípio era a SIF. Depois é que apareceram os altifalantes do Costa e Castro de Travassós. É assim que eu me lembro. A SIF do meu vizinho Zé - o Zé da SIF -, do senhor Vilhena e até do filho do senhor Vilhena. Escrevo de memória, mas creio que estou a dizer bem. Quando não tinha o meu pai, eu entrava no futebol com o Zé da SIF, fazendo de conta que carregava uma corneta que era do meu tamanho, e por isso é que sou um especialista em Campo da Granja e em "amplificações sonoras", com formação em feiras, festas e romarias, missas cantadas e procissões. Desde pequenino.
"Amplificações sonoras" - atentai bem. Fazei como eu: dizei, em voz alta, "amplificações sonoras". Isso. Mais alto. Agora, dizei outra vez, com voz de "continue connosco" e arrastando as sílabas. Não são palavras mágicas? São. Mas não é isso que aqui interessa.
Onde eu quero chegar é ao Baptista de Antime. Às "Amplificações sonoras de João Baptista Gonçalves, de Antime, Fafe, deslocam-se a qualquer localidade, haja ou não haja corrente eléctrica", e que, quando apareceram no mercado, rebentaram logo com a concorrência.
E eu acho que consigo perceber porquê. O Baptista de Antime era um tipo porreiro. Até tinha um tasco - e isso, salvo duvidosas excepções, é o melhor que se pode dizer seja de quem for. Apesar de disputar a rua com o Lando da Rampa, que era realmente vinho de outra pipa, o bom do senhor Baptista manteve o tasco e lançou-se nos altifalantes com um sucesso que só ouvido. Parece que o estou a ver agora, hiperactivo, falador, a ligar fios atrás de fios, cigarro na boca, a barba por fazer e a mão a mandar para trás a melena rebelde do cabelo brilhantinado, sempre magro, sempre de fato, sempre disponível e sorridente. Tenho ideia de que os altifalantes para a Festa da Bomba eram de graça, mas se calhar aqui estou a exagerar.
De tão bom, de tão dado às pessoas e vice-versa, o Baptista de Antime até cometeu a proeza de ganhar a Junta de Freguesia para o Partido Comunista. Antime fica no concelho de Fafe, é preciso que se note. E Fafe, para quem não sabe, fica no Minho, pertence ao distrito de Braga, que era como se fosse o Alentejo mas, politicamente, ao contrário. Estais a ver a façanha?
Um dia, o Baptista de Antime, que já tinha um tasco e alugava "amplificações sonoras" e electricidade em pó aos fins-de-semana, resolveu alargar a sua carteira de negócios ao ramo da funerária. E em boa hora o fez, numa esperta lógica de complementaridade que continuaria a ser dinheiro em caixa. E em caixão. Romarias e funerais, o casamento perfeito, na alegria e na tristeza, venha mais um copo. O homem estava em todas. E a treta das sinergias foi ele que inventou.

Os funerais do Baptista eram muito gabados. O Zé Maria Sapateiro dizia que eram "uma categoria".
O Zé Maria Sapateiro, que sabia muito de funerais, era também de Antime e pai da minha querida tia Laura. Era, portanto, sogro do meu tio e padrinho Américo. Era avô do Zé e da Zulmira - para que os de agora se situem. Em cima de tudo isto, o senhor Zé Maria era uma figura, malandro e esforçado piadista, com o porém do benfiquismo.
Eu gostava muito de ouvir o senhor Zé Maria. E o senhor Zé Maria, quando já morava com os meus tios, gostava de terminar as suas dissertações, à mesa da cozinha da casa do Lombo, com um "Viva o Benfica e mais nada!" que me incomodava um bocadinho. Ainda por cima, conhecendo a cor do meu coração, que era e é só uma - azul e branco -, insistia em reclamar os meus améns, "Não é, Hernâni?", porque, dizia ele, "O Hernâni é que sabe". E eu não sabia.
Uma vez o senhor Zé Maria morreu e eu fui a Fafe ao funeral. Foi um funeral de categoria. Deve ter sido o Baptista. Só pode ter sido o Baptista.

Conheci gente extraordinária em Fafe. E às vezes arrependo-me de ter crescido. Tenho saudades do tempo em que a vida da vila andava ao toque do sino da Igreja Nova e do apito da Fábrica do Ferro. É. A minha terra, infelizmente, já não existe.

sábado, 12 de abril de 2025

O poeta Augusto Fera

Escritor e tudo
É um autor impaciente e impulsivo. Publicou o seu primeiro livro sem sequer o ter escrito, e a obra revelou-se o sucesso que se vê: vai na décima sétima edição e já ganhou quatro prémios literários - um, internacional. E continua a surpreender o mercado, à média de três novos livros por ano. Para além disso, é também pintor, "performer", crítico de cinema, prefaciador, antiquário, amigo n.º 1 de Manuel António Pina, forcado amador, talhador de trasorelhos, apresentador de variedades e prepara-se para lançar o seu segundo disco de originais.

O poeta Augusto Fera morreu no dia 27 de Novembro de 2012. Durante meio século espalhou a sua poesia pela imprensa local, fartou-se de ganhar prémios e em 2011 publicou o seu primeiro e único livro - "Cruz de Chumbo e Outros Poemas" -, num acto de justiça em boa hora praticado por José Mário Silva, então presidente da Junta de Freguesia de Fafe, que editou a obra.
Confesso: não me revejo na estética da poesia de Fera, demasiado (diria) maneirista para o meu gosto, mas admirava-lhe o contínuo labor na procura das palavras, a intenção de chegar aos clássicos, o esforço, a ingenuidade às vezes, a seriedade na escrita e a honestidade na mensagem. Convenhamos, no entanto, que a minha opinião literária é aqui absolutamente irrelevante, até porque incompetente.
Conheci muito bem Augusto Fera. O homem sábio, simples e humilde. No meu tempo de miúdo e de Santo Velho, maravilhava-me a vê-lo dobrar a esquina do Palacete, em direcção a casa, na Ponte do Ranha, quando ele vinha do trabalho, na Fábrica do Ferro. Sabia sempre onde e a quantas andava. Como é que ele, cego, conseguia? Como é que ele percebia que a esquina estava exactamente ali? Aquilo sempre me intrigou. Diziam-me que ele contava os passos, que via as horas com os dedos. Para mim, não: aquele homem era mágico, tinha poderes. Pois se até fazia versos...

O poeta fafense Augusto Fera morreu, e a Biblioteca Municipal de Fafe não lhe dedicou então uma única linha. No dia da morte do nosso poeta, lembro-me bem, o blogue da Biblioteca Municipal de Fafe destacou o Prémio Portugal Telecom de Valter Hugo Mãe. Também está certo...
Augusto Fera não fazia parte dessa plêiade de convencidos da vida que amiúde afunila e esgota a "cultura" fafense em genialidades de trazer por casa. Augusto Fera era a sério e era povo, corria por fora. Percebo, por isso, o intelectual silêncio à volta da morte do poeta. Um silêncio quebrado, numa honrosa e justificada excepção, pelo blogue Sala de Visitas do Minho, de Artur Coimbra.
Não. O poeta Augusto Fera não era cego. O poeta, não! Outros serão.

sábado, 5 de abril de 2025

Fafe em ponto

Pegou em todas as suas economias e comprou um relógio de ponto. Agora já só lhe falta o emprego.

O mundo girava ao ritmo dos sinos da Igreja Nova e do apito da Fábrica do Ferro. Estávamos em Fafe e naquele tempo não me constava que houvesse outro mundo. A vida, as horas, os chamamentos, era tudo com norma, à tabela e a toques. Para a fé e para o trabalho, para a devoção e para a exploração - os sinos avisavam para a missa, o apito marcava a mudança de turnos, entradas e saídas de povo às revoadas na velha Companhia de Fiação e Tecidos de Fafe. Comia-se quando a igreja desse meio-dia. Aquelas eram as horas certas de Fafe. Oficiais.
Claro que havia quem destoasse, porque o mundo, para ser realmente mundo completo, e Fafe era completíssimo, tem de ter de tudo, mesmo tolos e destoantes, senão o que é que seria de mim? E era também o caso daquele operário da Fábrica do Ferro que uma vez foi impedido de picar o ponto para pegar ao serviço, porque, disseram-lhe, passava um minuto da hora.
- Estás atrasado! Não ouviste o apito? - atirou o porteiro.
- O apito está adiantado, ainda faltam dois minutos. Olha, tenho e relógio acertado pela Emissora Nacional! - argumentou o operário.
- Então vai trabalhar para a Emissora Nacional... - mandou o porteiro.

Era assim a vida. Era assim o mundo. E o mundo era em Fafe, disso não há dúvidas.

P.S. - A Emissora Nacional era a actual RDP. Era a rádio nacional e rádio do regime. Os seus "pis" horários, antes dos noticiários, acertavam os relógios do país inteiro.

domingo, 2 de fevereiro de 2025

Crocodilos no Jardim do Calvário

A comissão de festas tinha prometido "um grande nome" e cumpriu satisfatoriamente. Quando as luzes do palco se acenderam e foi pomposamente anunciado, o cantor chamava-se, com efeito, José Manuel-António Ferreira Rocha Vieira da Silva Pereira Gonçalves Ribeiro e Castro Melo Antunes Bastos Monteiro Neves Brochado Macedo Nogueira Santos Oliveira Costa Rodrigues Martins Carvalho Marques Almeida Cunha Pires Lopes de Perestrelo e Lencastre-Maldonado. E tinha bailarinas...

Uma vez, o Jardim do Calvário recebeu uma exposição de dinossauros, coisa realmente imponente, mastodôntica, quinze dinossauros completos e em tamanho natural, instalados em Fafe durante um mês e picos, certamente uma considerável despesa pelo menos em penso e água, porque isto os dinossauros, já se sabe, comem como alarves e bebem como camelos, dinheiro bem empregue e que, estou convicto, redundou num enorme sucesso, porque todas as iniciativas do Município redundam em enormes sucessos, pelo menos de acordo com a avaliação insuspeita do próprio Município.
Portanto, foi porreiro para Fafe. E foi também, de alguma maneira, um regresso às origens. Porque aquele bucólico espaço, cujo lago de bolso, para além de cisnes ou pelo menos patos, já teve barcos ou pelo menos barco, houve uma altura, e não vai assim há tanto tempo, em que tinha também crocodilos. E deviam ser uns crocodilos enormes.
Os crocodilos, que são do tempo dos dinossauros, faziam um barulho medonho à noite e não deixavam descansar o Mecas, que morava ali ao lado, em casa do padrinho, o Dr. Zé, na Travessa do Calvário, se estou a dizer bem. O Mecas ia depois para a fábrica (a Fábrica do Ferro, é claro) e, embora fosse por natureza um trabalhador exemplar, isto é, a ronha em pessoa, passava o dia inteiro a dormir lá em cima dos fardos de algodão exactamente por causa dos estupores dos crocodilos - conforme ele próprio explicava aos chefes, mestres, encarregados, afinadores e até patrões quando o apanhavam na sorna, que era todos os dias.
Sei quase tudo o que verdadeiramente interessa saber sobre o Jardim do Calvário, porque eu e o Jardim somos uma história muito antiga. Foi ali que eu me iniciei no mundo do espectáculo, evidentemente como espectador, com lugar cativo no serão das inesquecíveis Festas da Vila. Ano após ano, antes da marcha e do fogo, passaram-me pelas mãos a Senhora Dona Amália, a Hermínia Silva - que, para além do indispensável Pacheco, trazia atrás o filho, o tenor Mário Silva -, o Rodrigo, a Tonicha, o José Cid, o Paco Bandeira, a Dina, os putos do Mini Pop que tinham ido ao Festival da Canção e depois viriam a ser os Jafumega, o Hugo Maia de Loureiro que era cinturão negro e campeão de judo e ofereceu no focinho aos assobios de uns tantos por causa de um playback mal explicado, o Nicolau Breyner e o Herman José que andavam a passear pelo País a rábula do "Senhor Contente, Senhor Feliz", eventualmente a Lenita Gentil, a Florência, o Armando Gama e o Marco Paulo, e o mais certo é ter levado também com o Nelo Silva e com os Broa de Mel, com o Manuel Morais e com o "Cantinflas Português" que era uma coisa que só vista...
Estão a ver, portanto, o meu currículo. O nosso currículo. Eu e o Jardim do Calvário. Eu entrava à sorrelfa, todos os anos variando de expediente, porque os espectáculos eram a pagar, tinham plateia para a burguesia local, comerciantes e pequenos industriais, respectivas matronas e extremosa prole, que se acadeiravam no espaço de cimento aparentemente afectado por um cataclismo de filme e pomposamente chamado de "rinque de patinagem", os mais ricos dos mais ricos nas filas da frente, e à volta da vedação, de pé, apertadinhos e aos apalpões, era a geral, éramos nós, pessoal do rés-do-chão mas os que batíamos mais palmas quando tínhamos as mãos de vago.
Se não estou em erro, terá sido ali mesmo que começou essa tradição tão festiva e tão fafense do "cuelho", também chamado de empernanço ou, cientificamente falando, "estou a ver passar os ciclistas"...

No Jardim do Calvário iniciei-me também nos concursos do vestido de chita e, confesso, nos fumos. Pelos nove-dez anos, ia fumar para as escadas do inamovível portão das traseiras, o sítio de Fafe onde se faziam as coisas feias. O Bílio - sim, esse Bilinho, meu querido companheiro de infância - aparecia com meio maço de Definitivos, que ali queimávamos num instante, antes que alguém nos visse e fosse contar à minha mãe. Depois eu ia-me confessar. Porque Deus vê tudo e fumar, naquele tempo, era um pecado muito grande, um dos maiores pecados logo a seguir à masturbação. Não fiquei com o vício. Do cigarro, quero dizer.
Pelos dezoito-dezanove, já nas escadas da frente, lá no alto, fui apresentado à liamba, que tinha vindo de Angola com uma mão à frente e outra atrás e era muito fixe. Nunca percebi a moca dos outros, sempre pensei que estavam apenas a armar-se, porque comigo a coisa não funcionava. Quer-se dizer: engasgava-me, isso sim, não vou mentir, mas mais nada. E também não fiquei freguês.
Ao longo dos últimos anos, sempre que pude e posso, voltei e volto ao Jardim, para mostrar aos amigos, para ouvir os concertos da Banda de Revelhe (era ali o sítio certo, valha-me Deus!), ou apenas, e dizer aqui apenas é uma rematada tolice, para, sozinho, envergonhadamente comovido, apaziguar as saudades.

Mas aos dinossauros é que eu não fui. Achei muito bem que os dinossauros viessem pastar a Fafe, as  residências artísticas servem para isso mesmo, disse-o sinceramente na altura, e estimei-lhes os maiores sucessos. Porém, era no Jardim e a pagar, e eu não dou para esse peditório. Por uma questão de princípio. Não sabia como é que as coisas iam ser organizadas, se os fafenses poderiam desfrutar do seu Jardim do Calvário durante o tempo da exposição, parece que não, se poderiam levar os seus filhos aos baloiços, parece que não, se poderiam passear livremente com a família por aqueles caminhinhos de brincar, parece que não, se poderiam procurar e descobrir sem encargos os nomes das plantas, arbustos e árvores, parece que não, se poderiam ocupar um banco sem serem presos, parece que não. Isto é: seria obrigatório comprar bilhete para simplesmente entrar no Jardim? Parece que sim.
O próprio Município cataloga o Calvário como o "mais importante jardim público da cidade". Público. E no entanto o Jardim do Calvário parece às vezes privatizado por pessoas que pensam que o jardim é só delas, e não é, o jardim é de todos, e eu não percebo nada disto. Sempre me incomodou a visão merceeira do serviço público mas pouco, a ausência de bom senso, o quero, posso e mando de quem está de passagem e não respeita o povo nem cuida dos mais pobres. Sempre me fez espécie a esperteza saloia de convidarmos visitas para nossa casa e cobrarmos bilhete à entrada da sala de estar.
Pagar para entrar no Jardim do Calvário, jardim público? Nunca! Quando eu era pequeno e me diziam que estávamos no fascismo, eu suspeitava que fascismo era exactamente aquilo: pagar para entrar no Jardim do Calvário ou para ir ao escorrega. Portanto não fui aos dinossauros. Por uma questão de princípio, repito. E também já não tenho idade para saltar muros...

domingo, 19 de janeiro de 2025

As armas do Sr. Carlos da Cantina

Vinho na pipa
couves na horta
se não nos der nada
cagamos na porta

A casa do Sr. Carlos da Cantina, na Recta, tinha no portão um aviso que dizia, mais ou menos, "Atenção! Perigo! Propriedade protegida por arma de fogo!", e aquilo metia-me muito medo, arrepiava-me, perseguia-me, não porque me passasse pela cabeça enveredar pela carreira de assaltante de residências, longe disso, caramba, a minha mãe batia-me, mas porque, na minha natural infantilidade e ignorância, eu ainda não ligava "arma de fogo" a espingarda, caçadeira, metralhadora ou pistola, mas a uma série de armadilhas explosivas e incendiárias que rebentariam sem dó nem piedade em todo o perímetro mal alguém ousasse sequer pôr o pé na vedação, por acaso alta e gradeada. Não haveria sobreviventes. Aquilo não era uma casa, era uma mansão, um cofre-forte ou quartel-general, uma imensa ratoeira, um cogumelo nuclear em potência, com muito terreno à frente e hei-de crer que também atrás. Eu, ai ninas, mudava sempre para o outro lado da rua quando por lá passava por algum recado.
Portanto, para quem não soubesse que o Sr. Carlos da Cantina era um homem rico, muito rico, o aviso pedante estava lá: - Sou! E é tudo para mim. Isto é: estão a ver o Marco Paulo? No que diz respeito a fortuna, cinjamo-nos a esse departamento, o Sr. Carlos da Cantina devia ser um bocado como o Marco Paulo, mas em careca. Filhos, não posso precisar se tinha ou não, não me lembro deles se os houve, pelo menos não foram das minhas relações, o que só lhes abonaria, mas sei que tinha um afilhado, que também se chamava Carlos, noblesse oblige, creio que morava frequentemente lá no palácio e foi meu colega de escola primária, na Conde Ferreira. Era um moço porreiro, o Carlos, e o que lhe estimo é o que para mim desejo.
A Recta é a Avenida de São Jorge. Era uma recta de respeito, antes de se ver interrompida por semáforos e outras alcavalas urbanísticas. Era uma recta tão recta e comprida, sem fim à vista, coisa até então nunca experimentada na nossa terra, que passou a chamar-se desta maneira, Recta, com maiúscula outorgada pelo povo, que nestes assuntos vale mais do que papel do Registo. Estais a ver o Estádio Nacional, imponente, redondo e fascista? A nossa Recta também era assim, mas sempre a direito. Na Recta realizaram-se provas de atletismo escolar - haverá decerto ainda quem se lembre de por lá ter corrido.
E o Sr. Carlos era da Cantina porque era o responsável-mor pela Cantina da Fábrica do Ferro, grande negócio, uma mina, e era por isso que era rico, muito rico, porque todos os responsáveis da Fábrica do Ferro ficaram ricos, muito ricos, só os operários, evidentemente irresponsáveis, é que ficaram pobres, muito pobres, e se, pelo Natal e por vingança, algum deles, mais atrevido ou revolucionário, resolvesse saltar o muro do shangri-la do Sr. Carlos da Cantina tendo em vista, digamos assim, orientar uma braçada de couves-galegas para a panela da consoada, morria logo ali que se fodia, feito em picado como na Guiné, e essa imagem não me saía da cabeça.
Ainda por cima, uma vez, em Passos, isto é, em Basto, nas minhas inesquecíveis férias de Verão, vi uns rapazes a construírem uma verdadeira "arma de fogo", com um pedaço de madeira, um tubo, arames, pólvora, farrapos e varetas de guarda-chuva aguçadas, que eram as balas. Chamavam àquilo "espoleta" ou, realmente, "esporeta". Era para ir à caça, e foram. Um dos miúdos ficou cego de um olho, já não me lembro se derivado a explosão desorientada ou vazado pelo projéctil - meteu-me impressão, de qualquer maneira. E eu, tornando a Fafe e ao fort knox do Sr. Carlos da Cantina, imaginava milhares de varetas de guarda-chuva a rebentarem-lhe do quintal inteiro e a assobiarem os ares, como se fosse Senhora de Antime, mas flamejantes as varetas, certeiras e mortíferas na descida, levando tudo a eito, a ferro e fogo, desde a Parefa, sejamos razoáveis, pelo menos até ao tasco do Lando da Recta, no fim da mesma, onde a estrada começa a curvar e a descer para Armil. Uma carnificina extraordinária, espectacular, nunca vista em lado algum, nem mesmo no nosso Cinema, que, não desfazendo, era de tiro e queda e de caixão à cova, sexo é que não. E a gente a morrer ali desalmadamente, sem tempo sequer para levar a caneca aos queixos.
Ora bem. O que eu digo é o seguinte: conheci muito bem o Sr. Carlos da Cantina e a sua imensa viatura, mas sou capaz de admitir que o filho da puta do letreiro de ponta e mola me tenha indrominado a mente a respeito do homem propriamente dito, que se calhar até era uma jóia de indivíduo, eu que é estou para aqui a fazer filmes. Admito, sim senhor. Aliás, tanto quanto sei, entre mortos e feridos, jamais alguém se aleijou. Em todo o caso, e pelo sim e pelo não, nunca lhe fui cantar os Reis ou as Janeiras, no tempo deles e delas, nessa nunca me apanharam. Eu, que era um solista requisitado por vários e afamados grupos, voz de anjo já com certificação seminarística, tinha medo àquele reclame armado em parvo, já disse, ali nunca ninguém me haveria de ouvir. Cagar-lhe à porta, talvez. Mais do que isso, não.

P.S. - A quadra lá de cima era cantada, em Fafe, no final das Janeiras e dos Reis, espécie de encore caso tardasse a abertura da porta da casa e a moedinha da ordem. E, na verdade, não se dizia "cagamos" mas "caguemos", "caguemos na porta", como se ainda faláramos o velho e indesmentível galego, de onde nos nasceu a língua. Era também uma reclamação, um aviso, mas da parte de fora, uma ameaça, quem sabe se alguma vez consumada...