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domingo, 29 de junho de 2025

Era fresca e doce

O génio da água destilada
Tinha um comportamento aparentemente excêntrico em dias de invernada: saía à rua com o guarda-chuva aberto mas virado ao contrário. As pessoas riam-se. Não sabiam que ele era recarregador de baterias...

No Verão da minha terra, no Verão antigo, umas abençoadas senhoras andavam pela caloraça das feiras e romarias vendendo copos de água de mina adoçada com açúcar amarelo e um remoto gosto a limão. Não era limonada, atenção, era exactamente o que eu digo: água fresca com duas ou três colheres de açúcar e talvez uma casca ou somítica rodela de limão. E não havia gelo. Na vila de Fafe, às quartas-feiras, dia de mercado semanal, pelos 16 de Maio ou pela Senhora de Antime, a "mina" era a bica da poça do Santo, do meu Santo Velho, que ficava ali à beira e era só comodidade. Em cima da cabeça, as despachadas senhoras, equilibristas que remédio, levavam uma rodilha e por cima da rodilha, consoante o uso dos sítios, uma bilha de barro ou um cântaro de lata revestido a cortiça, para conservar a frescura natural. Anunciavam "Fresca e doce!", a água, e desatavam a fugir, de socos na mão e pés descalços, mal se precatavam da presença, ainda que distante e distraída, do perigosíssimo fiscal da Câmara. E o povo, coitadinho, morria ali à sede. Ou então metia-se no vinho, que era o mais certo.
Fafe funcionava assim. Eu, que nunca provei pirolito, por falta de dinheiro e de coragem para assaltar o Banco, que era apenas um e por isso se dizia com letra maiúscula e ficava entalado entre o Martins Relojoeiro e o Nelo da Electra, eu, que só sabia dos gelados nas mãos dos outros, bebi uma ou duas vezes um daqueles copinhos, evidentemente mais em conta e decerto prenda extraordinária já não sei de quem nem porquê. E quereis saber? Era realmente fresca e doce, a água, como dizia a publicidade popular, e, palavra de honra, soube-me pela vida!

Já quentes e boas eram as castanhas, assim chamadas derivado à própria cor. No último Inverno por acaso até só foram quentes, às vezes nem isso, de resto apresentaram-se geralmente uma boa merda - secas, bichosas, bolorentas até. Mas ao que interessa: o pregão era, e ainda é, "Quentes e boas!", ou, como também se dizia em Fafe, "Castanhas assadas a vapor, ó que boas, ó que boas!..."
Quereis saber mais? Quem as vendia, às castanhas, ali no Santo Velho à beira do tasco do Zé Manco, era a Maria Barraca, que morava com as Ferreira Leite, na casa de rés-do-chão e primeiro andar quase em frente, isto antes de juntar dinheiro para abrir uma lojinha de plásticos e outras utilidades caseiras, uma portinha apenas, um bocado mais abaixo na Rua Monsenhor Vieira de Castro, um pouco antes do Ponto Final, mas do outro lado, encostada ao casarão do ricaço e benemérito encartado Zé de Freitas que desapareceu não sei para onde e hoje em dia parece que é o supermercado do Aldi. O casarão. Quanto à Maria Barraca, casou-se. Tarde, era o que constava, mas decerto muito a tempo.

Naquele mesmo correr, no terreiro do Santo face à estrada para o Picotalho, aproveitando a passagem obrigatória do povo em barda que trabalhava na Fábrica do Ferro, montavam banca também a Mocha e a D. Filomena, sardinheiras de categoria, e a Marrequinha da Recta, que curtia e vendia tremoços. Os tremoços da Marrequinha gozavam de muita fama e tinham um segredo. Dizia-se que eram a especialidade que eram porque a boa senhora lhes mijava regularmente durante a demolha.

domingo, 20 de abril de 2025

Posso pedir um disco?

O último pedido
Vinham o padre, o presidente da câmara, o chefe da polícia e o doutor juiz. O carcereiro, que vinha também, desatarraxou a porta da cela e o director da prisão, na boa, informou o condenado: - Tens direito a um último pedido. O condenado pensou um bocadinho e disse: - Pode ser "A mula da cooperativa", do Max?...

A primeira jukebox de todos os tempos entrou em funcionamento no "saloon" Palais Royale, de São Francisco, EUA, no dia 23 de Novembro de 1889. A Fafe, as primeiras jukeboxes deverão ter chegado no final da década de sessenta do século passado, com as barracas de matraquilhos que se instalavam por baixo da Arcada, mais central era impossível, pelos 16 de Maio e pelas Festas da Vila. Havia um brilhantíssimo grupo de jovens fafenses,  bem mais velhos do que eu, que dava excelente uso à novidade. Dessa malta porreira fariam parte, se não me engano, o Berto Dantas, tio, o Eduardo do Retiro, Eduardinho, o Mesquita, creio que o Mané, Dr. Mané, o Jorge Lem, se era assim que se chamava, o Jorge Barros, filho do Nelinho, bissextamente o Ginho Cardoso e não tenho a certeza se o Bi Valente, gente assim desta categoria, e estou decerto a esquecer alguém ou alguéns e talvez a confundir nomes. Eram a vanguarda de Fafe. Eu admirava muito estes tipos cheios de classe, seguia-os sempre que podia, distâncias à parte, uma vez até me levaram com eles para um jogo de futebol que foram fazer a Felgueiras, não sei a que propósito, e no fim ainda tiveram a bondade de convidar-me para a almoçarada no primeiro-andar da Juditinha, evidentemente depois do Bertinho ter pedido por mim à minha mãe.
Mas tornando à maquineta dos discos, que mais tarde haveria de exibir também videoclipes, aliás de muito duvidosa qualidade, artística e técnica. Aquela rapaziada, já com algum mundo, tinha fino gosto musical e conhecia o que, regra geral, em Fafe ainda não se sabia. Acredito que me educaram o ouvido, entre alguns outros a quem o devo. A escolha na jukebox era muito limitada, pindérica, a ementa ao dispor consistia quase só naquilo a que hoje costumamos chamar música pimba. "O autocarro do amor" - de Os Taras e Montenegro, por onde andava um moço chamado Quim Barreiros - tocava de manhã até à noite, num despique fratricida e interminável com "Eu te amo, meu Brasil", de Os Incríveis. Uma xaropada insuportável, um atentado às orelhas de qualquer um, nem que não as tivesse ou por mais moucas que elas fossem. A minha sorte é que os rapazes do bando do Bertinho, chamemos-lhes assim, faziam questão de destoar da ignorância geral e caprichavam na evangelização, pondo a tocar, de forma paciente e cirúrgica, Beatles, obrigatoriamente, um cheirinho de Rolling Stones, Sheiks, Nat King Cole, que eu desconhecia, Sinatra, Joan Baez, Bob Dylan, Neil Young, Beach Boys, Mungo Jerry e "In the summertime", Scott McKenzie e "San Francisco", Los Bravos e "Black is black", lembro-me também da poderosa versão de "I'm free", da ópera rock Tommy, dos The Who, com a London Symphony Orchestra, e sobretudo, e estou-lhes tão grato por isso, ensinaram-me a inestimável "Eloise", de Barry Ryan, que ainda hoje ouço com prazer e nostalgia.

Assim que tal, as festas acabavam, as barracas eram desfeitas, as jukeboxes iam-se embora e a minha vida entristecia. Sobrava-me o rádio e Quando o Telefone Toca, do Matos Maia, e era preciso dizer a frase.
Os 16 de Maio agora são Feiras Francas e as Festas da Vila, graduada em cidade, chamam-se Festas do Concelho ou Festas de Fafe, já não sei bem, as barracas dizem-se "pavilhões", muita água passou entretanto por baixo das pontes e carros por cima então nem se fala. É tudo muito sofisticado e cosmopolita, mas os discos de vinil estão outra vez na moda e a música pimba parece que também.
Por outro lado. Os matraquilhos foram inventados pelo galego Alexandre Campos Ramires ou Alexandre de Fisterra, que também era editor e escritor. O nome mais bonito dos matraquilhos é, digo eu, pseberico. Assim se falava pelo menos em Fafe.

segunda-feira, 31 de março de 2025

O circo ao virar da esquina

Pediram-lhe que indicasse alguns dos principais números de circo. Envergonhado, lembrou-se apenas do 69.

Havia uns circos muito jeitosos, pequeninos, descapotáveis, que andavam de terra em terra. Eram circos de rua, de esquina, próprios para terras de remediada dimensão. Nada de tendas, rulotes, camiões, jaulas, luzes, altifalantes, cartazes, grandes trupes, nomes extraordinários, antes pelo contrário. Eram circos de bolso, anónimos, amiúde unifamiliares - uma velha carripana, o homem, a mulher, duas ou três crianças, todos artistas, e o cão, magro como um faquir, mas não praticava. A fome devia ser muita. E o guarda-roupa deixava demasiado a desejar. A carripana era transporte, armazém, camarim e casa.
Em Fafe, na então orgulhosa vila de Fafe, abancavam no Largo, que era onde tudo acontecia, até a feira e a Volta a Portugal. Ali no ângulo da Rua 31 de Janeiro com a Praça 25 de Abril, num pedaço de passeio mais espaçoso onde hoje encosta, se não me engano, a Fafetur, era esse o sítio. O verdadeiro salão nobre da terra, com licença do Jardim do Calvário.
Eram circos sazonais e breves, praticamente espontâneos. Precisavam apenas de um cantinho, vinham num pé e iam noutro. Chegavam numa tarde de Verão, estendiam uma lona no chão, chamavam o povo ali à volta com umas gaitadas e iniciavam a função. Sempre a toque de caixa. Umas palhaçadas, umas cabriolas, sucintos números de malabarismo, equilibrismo e contorcionismo, às vezes até uma amostra de funambulismo ainda que curta e a baixa altitude, mas sim, porque circo que é circo obviamente trabalha no arame. Meia hora, se tanto, e estava feito. No final da apresentação e dos merecidos aplausos, uma das crianças, geralmente menina, passava pela roda do excelentíssimo público com um chapéu ou um prato na mão, recolhendo o dinheiro que cada um resolvesse dar de paga, e havia quem atirasse moedas de agradecimento para a lona coçada e rota. Assim, uma ou duas matinés, três no máximo, se a plateia o justificasse ou o dinheiro em caixa ainda não chegasse para a sopa, depois as crianças desvestiam-se do circo, os pais arrumavam os tarecos, a lona era recolhida, e toca a entrar na carripana, partiam todos, ainda de dia, decerto por causa da imensidão da viagem e aparentemente em direcção a Guimarães, que, no meu ponto de vista, naquele tempo, era em direcção ao mundo. E eu ficava como a noite.
Estes circos de porta a porta, de soleira, estes extraordinários espectáculos, ando capaz de dizer que seriam os sucessores ou, pelo menos, uma derivação directa dos saltimbancos que itineravam o Portugal mais profundo durante as décadas de cinquenta e sessenta do século passado, apresentando o famoso show da cabra ou "cabrinha", outro assombro dos antigos. Uma cabra, ou cabrito, vá lá, que fazia equilibrismos em cima, por exemplo, do gargalo de uma garrafa de cerveja, ela própria, a garrafa, colocada, por sua vez, em cima de um banco de madeira, dos de cozinha. Uma coisa realmente de pasmar!
A cabra, ou cabrito, vá lá, às vezes era um cão ou um gato, mais raro um macaquito marca sagui ou, também acontecia, um burro. Mas eu não me lembro de ver, nem essa parte me interessava por aí além. Não tinha, naquela idade, qualquer posição estruturada sobre a problemática da exploração de animais domésticos em sede de circo de pé-rapado, mas sabia, sempre soube, que de burros já estava Fafe bem servido. Basta pensar na burra do Reigrilo, e não é preciso ir mais longe...

quarta-feira, 26 de março de 2025

Serafim Lamelas, o homem do pilas

Era um atleta de mão cheia. Dele se dizia, e com razão, que dava cartas no jogo de bilhar. Passou ao lado de uma grande carreira, exactamente porque nunca percebeu que bisca lambida é uma coisa e as três tabelas são outra. As duas juntas, com efeito, não fazem modalidade.

No tempo em que Fafe era o Largo com árvores e os fafenses eram todos bons rapazes, "os" 16 de Maio e a Senhora de Antime eram festas de rebimba o malho. Havia de tudo: cestinhas, aviões, carrinhos de choque, carrossel, farturas, fome, apalpões às moças, estaladas de resposta, barracas de matraquilhos com jukebox, poço da morte, mulher-serpente, água fresca com longínquo sabor a limão e açúcar amarelo, parrecas e rebuçados, procissões, promessas, anho assado no forno, corridas de jericos e pilas. Pilas principalmente.
O bom povo de Fafe jogava ao quino, pelo Natal, no Peludo. Jogavam maus meninos bem, todo o ano, toda a noite, no Club Fafense, desperdiçando sorrateiras fortunas de berço. Jogavam os novos cavalheiros da indústria, desalinhados e ricos a estrear, toda a noite, todo o ano, no Fernando da Sede, de porta respeitosamente fechada. (Para entrar era preciso saber o santo-e-senha. Eu sabia, entrava, mas não jogava.) Jogava-se aos pinhões em casa, jogava-se ao bilhar, ao dominó, aos flippers, à sueca, à lerpa, às copas, ao sete e meio, ao montinho e à malha em todo o lado, a dinheiro, a cerveja ou a vinho, e até se jogava ao pau e à bola, mas isso já era para predestinados. Em Fafe jogava-se forte e feio. A tudo. Mas o pilas estava à frente. E nos 16 de Maio era fatal. E na Senhora de Antime também. E não tenho a certeza se no Corpo de Deus amém.

O Serafim Lamelas é que era o verdadeiro homem do pilas - a História nunca o poderá negar. O Serafim Lamelas era o nosso Stanley Ho e também um bocadinho o nosso Vito Corleone. Tinha a sua famiglia, por assim dizer. Montava casino em todas as festas, grandes feiras e romarias da região, bastavam-lhe uma esquina, uma quelha, um desvão de escada, onde calhasse e parecesse invisível. O Senhor Serafim reconhecia-me e respeitava-me, sendo eu apenas miúdo, mas sabendo ele que eu era filho da minha mãe, e isso era o meu melhor atestado.
O pilas é, para quem eventualmente o ignore, um jogo de mesa e de rua, de sorte e azar. Sorte para o banqueiro, azar para o apostador. Regra geral. É também um jogo evidentemente proibido, e por isso é que se jogava tanto. Os músicos das bandas filarmónicas eram naquele antigamente os melhores clientes do pilas, mas eu estaria capaz de jurar que muitas das vezes eles andariam por ali feitos com a casa, só para chamar patos.
O casino do Serafim consistia num resumido cavalete manufacturado com ripas de madeira ultraleve sobre o qual era estendido, a modos de tampo, um cartão, um papelão, um papel qualquer, uma toalha de mesa, sempre que possível um rectângulo em cabedal, tudo material facilmente dobrável, enrolável e sobretudo escondível.
O tampo estava dividido em quadradinhos pintados e numerados de 1 a 6 com tinta vermelha e de uma forma que parecia intencionalmente tosca ou então andaria ali a mão de Picasso. Apostava-se num número apenas, "singelo", ou dividia-se a aposta por dois números ou até por quatro, se bem me lembro, bastando para isso colocar o dinheiro da aposta em cima das setinhas que indicavam as múltiplas.
Havia depois o copo de plástico, dos de lavar os dentes, e o dado, provavelmente amestrado, que saíam como que por magia de um dos bolsos interiores do larguíssimo casaco do Serafim. O copo era agitado por mãos experimentadas, rápidas e enganadoras, virado ao contrário, suspense, saía o dado cansado, gasto, desilusão, este já está, não há nada para ninguém, só para mim, nova corrida, nova viagem. O Serafim era, por acréscimo, o nosso Luís de Matos.
O imenso casaco do Serafim Lamelas servia também para guardar o dinheiro da banca, num enchumaço que engrossava cada vez mais. E ninguém me tira da ideia: lá dentro estavam escondidas navalhas, pistolas e até metralhadoras, daquelas de carregadores redondos como nos velhos filmes dos ganguesteres de Chicago mas a cores.

Aquando da Senhora de Antime ou pelos 16 de Maio, que eram então dois dias, e daí decerto tão singular plural, o Serafim chegou a instalar-se encostadinho às escadas da Arcada, do lado mais esquerdo de quem desce, curiosamente o local onde ele e a mulher tinham lugar de feira, às quartas. Os jogadores apareciam ali num repente, como moscas não se sabe vindas donde. Amagotavam-se à volta da mesa, numa arriscada luta de cotovelos encasacados, nervosos, cheios de vício e de pressa, um olho nos números e o outro nas costas, não se desse o caso. O Serafim, que tinha mais olhos do que um razoável quintal com couves, assumia a pose de mestre de cerimónias, orientando a mêlée e reclamando espaço para a função, exibia molhos de notas dobradas no meio dos dedos lestos e, para desviar atenções, exercitava a lábia, muita lábia, debitando ladainhas encantatórias. Os seus lugares-tenentes à coca, um em cada dobrar de rua, tomando conta da polícia, que estava careca de saber daquilo tudo. Um polícia chegava a correr, dizia, num susto, "Vinte escudos no 3, rápido, rápido!", saía o 3, mas é claro que saía o 3, e o polícia desaparecia dali com os bolsos cheios e como se nunca lá tivesse estado.
Se a polícia fosse a sério, em missão, o Lamelas e seus acólitos desmontavam a banca num relâmpago e evaporavam-se com todo o dinheiro que estivesse em cima da mesa. Quando o dia estava a correr mal, faziam este número as vezes que lhes desse jeito. Fingiam que fugiam e mudavam de poiso, levando sempre a massa. E os clientes ficavam num desconsolo burgesso, sem os cinquenta paus da quase aposta, sem o prémio que agora é que era e, não vamos mais longe, porventura também sem a carteira. Era um golpe bem ensaiado. E cinquenta escudos davam realmente para muito vinho naquela altura. Uma tragédia!
Outras vezes, por malandragem, era comum ouvir-se gritar de cima da Arcada, anonimamente, "Olha a polícia!", só para se meterem com o Serafim, e o Serafim, molageiro, aproveitava a deixa ou não, consoante o enchumaço do supercasaco lhe parecesse mais ou menos atravancado e satisfatório.
Vi pilas em muito lado, quando corria atrás da Banda de Revelhe por este nosso Norte festeiro acima e abaixo. Em muito lado, e pilas de vários feitios e díspares dimensões, é preciso que se note. Mas pilas como deve ser, pilas de categoria, pilas a sério, era em Fafe e mais nada. Essa é a verdade, e a verdade é para ser dita. Lamentavelmente, não sei se hoje em dia ainda há pilas em Fafe.
Embora possa parecer o contrário, o nosso pilas era um jogo muito completo. Para além do grande Serafim Lamelas e dos seus homens de mão, do cavalete de ponta e mola e dos algarismos mal-ajambrados, do copo de plástico e do dado porém nunca arregaçado, da polícia infiltrada e dos carteiristas por conta da casa, o pilas fafense revestia-se amiúde de pancadaria, navalhadas e tiros. Mortes, não posso jurar. Mas era realmente uma coisa muito bonita, animada.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

A burra do Reigrilo

Quadrúpedes
O burro é um quadrúpede. Meio polvo também.

Nos últimos tempos, é todos os anos mesma coisa. Chegam os 16 de Maio e não há corrida de jericos. E a corrida de jericos faz falta. Uns 16 de Maio sem corrida de jericos é como orelheira de porco sem sal ou como, não vamos mais longe, o lago do Jardim do Calvário sem crocodilos. Um desconsolo. O programa bem tenta disfarçar, anunciando, todo vaidoso, a "corrida de cavalo a passo-travado", assim chamada, com hífen e tudo. Mas é tão pouquinho. E, ainda por cima, uma prova desportiva estigmatizada por essa denominação assaz amaricada, "passo-travado" com hífen e tudo, não vai a lado nenhum, só faltava mesmo dizer-se que as cavalgaduras também correm de minissaia e salto alto. Mas burros é que nada, e logo nos tempos que correm e em Fafe. Parece impossível. Quer-se dizer: vim-me embora, e agora não há mais asnos na terra, é nisso que quereis que eu acredite?
Lembro-me muito bem como era. Havia a corrida de cavalos, sim senhor, coisa série mas amadora, com montadores e montadas cá da terra e arredores, medindo forças por entre um mar de gente cheia de entusiasmo, chapéus e vinho, na mais nobre rua da vila, o empedrado - ou pavê, como dizem agora os especialistas - onde costuma terminar a etapa da Volta a Portugal em Bicicleta. Partiam em frente ao Café Império e iam dar a volta na Cafelândia, ainda não havia rotunda nem banco, com as ferraduras novas a chisparem por todos os lados e alguns animais, de travões bloqueados, a espargatarem contra vontade para um 10 de nota artística nos Jogos Olímpicos e mandando os donos irremediavelmente de focinho ao chão. Ao Império regressavam apenas três ou quatro conjuntos completos, e o pódio era discutido já depois de cortada a meta, à força de varapau, ameaças de tiros e polícias de fraldas à mostra e agarrados aos bonés, baldeados de um lado para o outro ao sabor da maré, com a multidão a tomar diferentes partidos, de cabeça e chapéus perdidos, mortinha por também molhar a sopa. Isto eram as pessoas. Os cavalos, naturalmente mais ajuizados, não se metiam. Mesmo os cavalos que tinham terminado a prova sozinhos, apesar de um tudo-nada desorientados e talvez contrafeitos, mantinham o fair play, viravam as costas à confusão e iam procurar os donos mercurocromados para pedirem desculpa pelo mau jeito. Quanto ao júri, ponderava criteriosa e responsavelmente todos os argumentos em discussão, sobretudo os argumentos que metiam pistola, e depois entregava a taça às primeiras mãos que a agarrassem.
O melhor vinha a seguir. Era a corrida de burros, que não era bem uma corrida, porque os burros, que não eram assim tão burros, recusavam-se terminantemente a correr. Davam uns passos, nem sempre no sentido correcto, na direcção proposta, davam umas voltas, mudavam de rumo quando lhes apetecia, contrariando em flagrante o ditado de que "só os burros é que não mudam", e se calhar às vezes até nem havia vencedor. Mas o povo ria-se. É preciso que se note, porém, que os burros portavam-se assim não por serem burros mas por serem ignorantes. Na verdade, naquele tempo eles ainda não sabiam do estudo da Universidade de Londres que aqui atrasado descobriu que os burros não são animais estúpidos nem teimosos. Serão surdos ou não compreendem inglês, quando muito, mas agora já sou eu a extrapolar.
Ora bem. O Reigrilo tinha uma burra que se chamava a burra do Reigrilo. O Reigrilo era tão teimoso como a burra, portuguesa e analfabeta, mas bebia muito mais. Eu nunca na vida vi o Reigrilo sóbrio. A sorte dele, quando saía do tasco do Paredes em adiantado estado de fermentação, era exactamente a burra, que o levava a casa, submissa e em piloto automático, debaixo de um chorrilho de insultos e chibatadas absolutamente desnecessárias e imerecidas. Eu tinha medo do vinho do Reigrilo e a burra parecia que também.
Creio não cometer nenhum erro histórico se afirmar que a burra do Reigrilo só fazia frente ao dono pelos 16 de Maio, na corrida que nunca era. O Reigrilo, altamente decilitrado, aparecia sempre na horinha, nem mais cedo nem mais tarde, para incómodo da organização e gáudio da populaça. Podiam dar a partida quantas vezes quisessem: a burra do Reigrilo não saía do sítio, apesar das bordoadas impiedosas que apanhava, e se se mexia era apenas para deitar o dono de cangalhas, uma e outra vez, numa vingança anual e certamente bem amadurecida, ali mesmo à frente de todos, onde a humilhação do homem podia ser maior.

Pois agora nada, que tristeza! E nem sei se os camarários doutores da mula ruça acabaram com aquilo de propósito para enxotar dali os nossos ciganos, os bons e honrados ciganos de Fafe que também marcavam o ponto com os seus burros atletas. Não sei, palavra de honra que não sei, mas veio-me agora à cabeça essa terrível dúvida. Sei é que a corrida de jumentos era uma verdadeira e querida tradição. Era tema de conversa entre os fafenses. Chegavam os 16 de Maio e, no café ou na rua, à saída da missa, perguntavam-se uns aos outros: - Então, este ano corres? E já tens quem te monte?
Pois, era assim a vida antiga. Bonita e tão agradável. E tenho a certeza de que a malta nova havia de se divertir à brava com a corrida de asnos, se ela tornasse, toda gaiteira e revivalista. Mas quê, tirante eu, parece que mais ninguém se acusa! O que é que se há-de fazer? Sozinho também não corro...

domingo, 2 de fevereiro de 2025

Crocodilos no Jardim do Calvário

A comissão de festas tinha prometido "um grande nome" e cumpriu satisfatoriamente. Quando as luzes do palco se acenderam e foi pomposamente anunciado, o cantor chamava-se, com efeito, José Manuel-António Ferreira Rocha Vieira da Silva Pereira Gonçalves Ribeiro e Castro Melo Antunes Bastos Monteiro Neves Brochado Macedo Nogueira Santos Oliveira Costa Rodrigues Martins Carvalho Marques Almeida Cunha Pires Lopes de Perestrelo e Lencastre-Maldonado. E tinha bailarinas...

Uma vez, o Jardim do Calvário recebeu uma exposição de dinossauros, coisa realmente imponente, mastodôntica, quinze dinossauros completos e em tamanho natural, instalados em Fafe durante um mês e picos, certamente uma considerável despesa pelo menos em penso e água, porque isto os dinossauros, já se sabe, comem como alarves e bebem como camelos, dinheiro bem empregue e que, estou convicto, redundou num enorme sucesso, porque todas as iniciativas do Município redundam em enormes sucessos, pelo menos de acordo com a avaliação insuspeita do próprio Município.
Portanto, foi porreiro para Fafe. E foi também, de alguma maneira, um regresso às origens. Porque aquele bucólico espaço, cujo lago de bolso, para além de cisnes ou pelo menos patos, já teve barcos ou pelo menos barco, houve uma altura, e não vai assim há tanto tempo, em que tinha também crocodilos. E deviam ser uns crocodilos enormes.
Os crocodilos, que são do tempo dos dinossauros, faziam um barulho medonho à noite e não deixavam descansar o Mecas, que morava ali ao lado, em casa do padrinho, o Dr. Zé, na Travessa do Calvário, se estou a dizer bem. O Mecas ia depois para a fábrica (a Fábrica do Ferro, é claro) e, embora fosse por natureza um trabalhador exemplar, isto é, a ronha em pessoa, passava o dia inteiro a dormir lá em cima dos fardos de algodão exactamente por causa dos estupores dos crocodilos - conforme ele próprio explicava aos chefes, mestres, encarregados, afinadores e até patrões quando o apanhavam na sorna, que era todos os dias.
Sei quase tudo o que verdadeiramente interessa saber sobre o Jardim do Calvário, porque eu e o Jardim somos uma história muito antiga. Foi ali que eu me iniciei no mundo do espectáculo, evidentemente como espectador, com lugar cativo no serão das inesquecíveis Festas da Vila. Ano após ano, antes da marcha e do fogo, passaram-me pelas mãos a Senhora Dona Amália, a Hermínia Silva - que, para além do indispensável Pacheco, trazia atrás o filho, o tenor Mário Silva -, o Rodrigo, a Tonicha, o José Cid, o Paco Bandeira, a Dina, os putos do Mini Pop que tinham ido ao Festival da Canção e depois viriam a ser os Jafumega, o Hugo Maia de Loureiro que era cinturão negro e campeão de judo e ofereceu no focinho aos assobios de uns tantos por causa de um playback mal explicado, o Nicolau Breyner e o Herman José que andavam a passear pelo País a rábula do "Senhor Contente, Senhor Feliz", eventualmente a Lenita Gentil, a Florência, o Armando Gama e o Marco Paulo, e o mais certo é ter levado também com o Nelo Silva e com os Broa de Mel, com o Manuel Morais e com o "Cantinflas Português" que era uma coisa que só vista...
Estão a ver, portanto, o meu currículo. O nosso currículo. Eu e o Jardim do Calvário. Eu entrava à sorrelfa, todos os anos variando de expediente, porque os espectáculos eram a pagar, tinham plateia para a burguesia local, comerciantes e pequenos industriais, respectivas matronas e extremosa prole, que se acadeiravam no espaço de cimento aparentemente afectado por um cataclismo de filme e pomposamente chamado de "rinque de patinagem", os mais ricos dos mais ricos nas filas da frente, e à volta da vedação, de pé, apertadinhos e aos apalpões, era a geral, éramos nós, pessoal do rés-do-chão mas os que batíamos mais palmas quando tínhamos as mãos de vago.
Se não estou em erro, terá sido ali mesmo que começou essa tradição tão festiva e tão fafense do "cuelho", também chamado de empernanço ou, cientificamente falando, "estou a ver passar os ciclistas"...

No Jardim do Calvário iniciei-me também nos concursos do vestido de chita e, confesso, nos fumos. Pelos nove-dez anos, ia fumar para as escadas do inamovível portão das traseiras, o sítio de Fafe onde se faziam as coisas feias. O Bílio - sim, esse Bilinho, meu querido companheiro de infância - aparecia com meio maço de Definitivos, que ali queimávamos num instante, antes que alguém nos visse e fosse contar à minha mãe. Depois eu ia-me confessar. Porque Deus vê tudo e fumar, naquele tempo, era um pecado muito grande, um dos maiores pecados logo a seguir à masturbação. Não fiquei com o vício. Do cigarro, quero dizer.
Pelos dezoito-dezanove, já nas escadas da frente, lá no alto, fui apresentado à liamba, que tinha vindo de Angola com uma mão à frente e outra atrás e era muito fixe. Nunca percebi a moca dos outros, sempre pensei que estavam apenas a armar-se, porque comigo a coisa não funcionava. Quer-se dizer: engasgava-me, isso sim, não vou mentir, mas mais nada. E também não fiquei freguês.
Ao longo dos últimos anos, sempre que pude e posso, voltei e volto ao Jardim, para mostrar aos amigos, para ouvir os concertos da Banda de Revelhe (era ali o sítio certo, valha-me Deus!), ou apenas, e dizer aqui apenas é uma rematada tolice, para, sozinho, envergonhadamente comovido, apaziguar as saudades.

Mas aos dinossauros é que eu não fui. Achei muito bem que os dinossauros viessem pastar a Fafe, as  residências artísticas servem para isso mesmo, disse-o sinceramente na altura, e estimei-lhes os maiores sucessos. Porém, era no Jardim e a pagar, e eu não dou para esse peditório. Por uma questão de princípio. Não sabia como é que as coisas iam ser organizadas, se os fafenses poderiam desfrutar do seu Jardim do Calvário durante o tempo da exposição, parece que não, se poderiam levar os seus filhos aos baloiços, parece que não, se poderiam passear livremente com a família por aqueles caminhinhos de brincar, parece que não, se poderiam procurar e descobrir sem encargos os nomes das plantas, arbustos e árvores, parece que não, se poderiam ocupar um banco sem serem presos, parece que não. Isto é: seria obrigatório comprar bilhete para simplesmente entrar no Jardim? Parece que sim.
O próprio Município cataloga o Calvário como o "mais importante jardim público da cidade". Público. E no entanto o Jardim do Calvário parece às vezes privatizado por pessoas que pensam que o jardim é só delas, e não é, o jardim é de todos, e eu não percebo nada disto. Sempre me incomodou a visão merceeira do serviço público mas pouco, a ausência de bom senso, o quero, posso e mando de quem está de passagem e não respeita o povo nem cuida dos mais pobres. Sempre me fez espécie a esperteza saloia de convidarmos visitas para nossa casa e cobrarmos bilhete à entrada da sala de estar.
Pagar para entrar no Jardim do Calvário, jardim público? Nunca! Quando eu era pequeno e me diziam que estávamos no fascismo, eu suspeitava que fascismo era exactamente aquilo: pagar para entrar no Jardim do Calvário ou para ir ao escorrega. Portanto não fui aos dinossauros. Por uma questão de princípio, repito. E também já não tenho idade para saltar muros...

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Gosto da palavra parreca

"Tudo o que é pequenino é bonito", disse ela, caridosa, quando ele baixou as calças. Isto é: há coisas, valha-me Deus, que não se dizem.

Gosto de nomes, gosto de palavras. Gosto do falar antigo, gosto de palavras que me fazem rir. Gosto de dizer que está tudo na ponta da unha, gosto de dizer que é daqui, detrás da orelha, gosto do nosso conversar arraçado de galego e tão único, gosto do fafês, a minha língua, e gosto de a falar tal e qual como a aprendi da minha mãe e dos meus avós, cheia de éntes, de ches, de inhos e de éssssesss... Gosto, pronto!
Gosto da palavra parreca. Está dito. Pachacha, não. Nem crica. Pito, cona, buceta, siririca, vulva, rata, pássara, passarinha ou perereca, apesar de legalmente registadas, então é que nem admito. Pior, só mesmo vagina, uma obscenidade que me tira do sério e absolutamente comparável à alarvidade de chamarem pénis à ferramenta, que deve ler-se e dizer-se ferraménta. Ou encomenda, que deve ler-se e diz-se encoménda. Pénis e Vagina (neste caso leia-se vajaina, se não for incómodo) até parecem nomes de um casal da Mattel, e se calhar ambos de virilhas vazias, como os outros dois, o Ken e a Barbie. Pila está muito bem. Pirilau, vá que não vá. Mas...
Da parreca é que eu gosto. Para além de uns rebuçados de açúcar suponho que amarelo, formatados em pequenos ladrilhos e embrulhados em papéis de cores diversas e garridas, vendia-se antigamente nas barracas das feiras e festas de Fafe uma espécie de doce alegadamente em forma de pato, ou de pata, vá lá - e esse doce era a parreca. Pata, marreca, portanto parreca - o povo sabe muito, até de gramática, etimologia, formação de palavras...
Diga-se em abono da verdade, o doce, isto é, a parreca, resumia-se a uma somítica camada exterior de açúcar, agora branco, se não me engano, e o resto era um pedaço de massa castanha, azeda e dura como cornos, para lamber, lamber, lamber, lamber, até se desfazer à força de dentes, se a gente não desistisse antes por falta de vagar ou paciência. Comer ou lamber uma parreca era empreitada para umas boas horas, se levada até às últimas consequências.
Quando nos vinha visitar, às quartas-feiras, pelos 16 de Maio e na Senhora de Antime, a querida Bó de Basto trazia-me sempre uma mancheia dos tais rebuçados e, infalível, uma parreca que me entretinha a tarde inteira. Foi decerto daí que eu fiquei freguês.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Os tirones de Fafe

Diz-me o que vestes
A forma de vestir diz tudo acerca das pessoas. Vejamos, por exemplo, os nudistas.

Um homem saía de casa com fato novo, sapato engraxado, talvez flor na lapela e até chapéu, que eu ainda sou desse tempo, e na rua diziam-lhe - Eh pá, estás todo tirone! E quereis saber? Era um elogio, melhor cumprimento era impossível para começar bem o dia. Falava-se assim em Fafe, mas este aqui não era um falar exclusivo nosso, fafês autêntico, seria, antes, de uso particularmente nortenho, isso estou em crer que digo bem.
O termo, tirone, remonta certamente a meados do século passado e virá do cinema, do famoso e elegantérrimo actor americano Tyrone Power, que fazia então um enorme sucesso sobretudo entre o público feminino. A estrela apagou-se, o galã acabou por desaparecer, mas ficou o nome, a alcunha, esta espécie de adjectivo a calhar tão bem aos vaidosos sessentões fafenses, tirone, sinónimo de elegante, bem-posto, aprumado, chique, catita, peralta, peralvilho, casquilho, janota, pimpão, boneco, emperiquitado, dândi, indivíduo bem vestido com o seu quê de preciosismo, bem ajambrado, que veste à moda, nos trinques, como se diz agora no português das telenovelas brasileiras.
Em Fafe, naquele tempo, as pessoas ricas vestiam muito bem. Ou então as pessoas ricas vestiam bem em todo o lado, mas eu não sabia, porque eu só conhecia Fafe e, como mundo, Fafe bastava-me. A minha mulher ri-se quando repetidamente lhe conto, com todos os pormenores e mais um, como as pessoas ricas de Fafe vestiam bem, os casacos assertoados ou em tweed ou em linho, os blazers azuis, as calças em lã, com pinças e dobra em baixo, muito vincadinhas, ou em terilene cinzento, que era uma novidade, as camisas triple marfel, os sapatos italianos clássicos, com sola alta de Inverno e com sola baixa de Verão, os sobretudos impecáveis, esculturais, colados ao corpo, as gabardinas double-face, o guarda-chuva irrepreensivelmente enrolado, londrino até dar com um pau, porém comprado na selecta Chapelaria Antunes, e os lenços e as gravatas e os perfumes e a cigarreira e o isqueiro pelo menos de prata e às vezes a boquilha, eles realmente todos tirones, como mandava o figurino, e nós de calças de cotim remendadas no cu e nos joelhos, os pés arrastando chancas e uma vergonha enorme de sermos pobres.
Regra geral, os homens de Fafe eram uns fidalgos, por assim dizer ou parecer, pelo menos aos domingos, feriados e dias santos, casamentos, comunhões e baptizados, ida às sortes, idas à feira, visitas à madrinha, idas às putas, excursões a Fátima e ao Portugal dos Pequenitos, e muito particularmente, por maioria de razão, nos 16 de Maio e pela Senhora de Antime. Aí então, não é para os gabar, apresentavam-se com todos os matadores e roupa geralmente a estrear.
É preciso que se diga que Fafe tinha uma colecção de alfaiates de altíssimo coturno, e espero falar deles com mais vagar um destes dias. Os nossos tirones iam ao alfaiate, tinham alfaiate privativo, escolhiam modelo, cor e tecido, e vestiam-se por medida. Mas não iam à Riopele comprar o corte, atenção, isso era para os remediados. Por outro lado, os fatos prontos a vestir chegaram às excelentíssimas Lobas já em plena década de setenta, eram Corte Inglés, eu bem lhes namorava a montra, como boi olhando para palácio, mas aquilo também ainda não era para nós. Nem para os tirones fafenses, que, classe acima de tudo, continuaram a preferir a exclusividade, o serviço personalizado e impecável da nobre alfaiataria local, honra lhes seja. Só depois é que vieram as calças vermelhas, os pulôveres cor-de-rosa ou amarelos pelos ombros e os sapatos com berloques. Isto é, o betismo...

Em todo o caso, Tirone também foi um nome regularmente usado em Fafe para cães. Mas, quanto a isso, não sei que diga.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Mais um quartilho para a mesa do canto

Aqui há gato
"Aqui há gato", avisava o papel colado na janela escangalhada da velha casa de pasto. Isto às segundas. Às quartas eram tripas e aos sábados vitela assada.

Casas de pasto. Durante muito tempo cuidei que se chamavam assim por causa das vacas que ficavam cá fora presas pela soga às argolas da parede, ruminando uma pouca de palha ou erva, enquanto os donos enchiam a mula lá dentro. "Casa de Pasto - Bons Vinhos e Petiscos", dizia a tabuleta, geralmente de madeira, numa letra desenhada às três pancadas e desbotada pelo uso do olhar. Já lá vão tantos anos, mas juro que até hoje ainda não encontrei coisa mais linda de se ler.
Nas décadas de sessenta, setenta e um cheirinho de oitenta do século passado, a vila de Fafe era o céu na terra para os devotos dos comes e bebes. Tascos, tabernas, casas de pasto, pensões e outros arraçados de restaurante, havia-os de vários feitios e para todos os gostos e bolsos, quase porta sim, porta não. O Escondidinho, o Alberto Coveiro, a Silvina Monteiro, na Rua Montenegro, o Sanica, o Marinho, o Guarda-Fios, o Vale D'Estêvão, o Manel Bigodes, da Granja, o Quinzinho e o Tanoeiro, ambos em Santo Ovídio, a Rapa e o Ferrador, os dois na Feira Velha, o Feira Velha propriamente dito, na Rua Visconde Moreira de Rei, o Jaime Biró, da Rua de Baixo, o Toninho da Ponte do Ranha, o Neca do Hotel, o Toninho Pires, o Zeca Batata, o Magalhães da Olímpia e o Matazana, só estes são mais do que as estações de uma via-sacra e havia quem entrasse para molhar a palavra em todos eles. Religiosamente.
Mais ou menos no meu raio de acção, centrado ali no Santo Velho, havia ainda o Peludo, o Zé Manco e o Paredes, mesmo ao pé da porta, o Chupiu, as pataniscas do Miranda, a Quiterinha, ou Texas, a Adega dos Vasinhos e as mãos de ouro da Juditinha, o vinho branco e bacalhau frito (há lá melhor mata-bicho!) no Lameiras da Rua de Baixo, o bolo com sardinhas da Brecha, a Dinâmica, o insubstituível Nacor, a Peninsular, o Zé da Menina, que também fazia sandes da famosa vitela e aviava umas quartilhadas avulsas fora do horário das refeições, a Esquiça, que ainda faz das tripas coração, a Adega Popular, ou Fernando da Sede, e o Manel do Campo, onde uma vez o meu querido tio Américo, que me iniciou nestas vidas, me levou a comer um arroz de ervilhas de quebrar com fanecas fritas que estava de se lhe cantar um Te Deum.
O Manel do Campo propriamente dito era um homem imenso, o homem mais gordo do mundo aos meus olhos de miúdo. Mas, de casa para o trabalho e do trabalho para casa, ia e vinha de bicicleta e suspensórios, naquela pedalada lenta e pesada que parece que estás aqui estás a malhar, cantando a plenos pulmões, numa voz grave porém afinada, o "Marina, Marina, Marina" do Rocco Granata. Quem se lembra, que pouse a caneca só por um bocadinho e levante o braço.

Os tascos e casas de pasto de Fafe eram lugares de culto e devoção. Templos, igrejas, capelas. Instituições de serviço público, monumentos de interesse nacional, património da humanidade. Ali praticava-se a fraternidade. Ali, do doutor ao sapateiro, como então se dizia, com os queixos numa caneca que passa de mão em mão, os homens (e as mulheres, que também as havia) eram todos iguais. O vinho unia-os. Eram irmãos. O coitado que levava a caneca ao fim, mandava vir a próxima.
Bebia-se aos quartilhos, uns atrás dos outros. Depois de três ou quatro, ou cinco ou seis, consoante a disposição e a companhia, bebia-se o último, depois o da porta e depois o da sossega e depois o da saída e depois o último e depois o da porta e depois o da sossega e depois o da saída e assim sucessivamente. Beber, em Fafe, era uma história interminável...
Nenhum recém-chegado começava a beber sem antes erguer a caneca aos presentes:
- São servidos, meus senhores?
- Estamos no mesmo - respondiam, à volta.
Este cerimonial, creio, ainda se pratica.
O vinho, a qualidade do vinho, era a pedra-de-toque para o sucesso de uma casa de porta aberta. Um sucesso traidor, de ida e volta. Sabia-se que em certo sítio havia pipa nova, pinga de estalo, um "assombre", como se dizia, e era a invasão. A pipa chegava às últimas e todos lhe viravam costas, mesmo antes de ela exalar o derradeiro suspiro. Os apreciadores procuravam novo poiso, onde a história de amor e traição se repetia.
Era inevitável. Claro que também se apanhavam umas cardinas monumentais. De caixão à cova. Eu não vou dizer nomes, mas podem acreditar no seguinte: por causa das coisas, havia uns bebedores muito conhecidos e prevenidos que, consoante os casos, tinham burro, bicicleta e até motorizada de tal maneira amestrados que podiam ir para casa de olhos fechados. E iam. Os bichos, incluindo os de duas rodas, já sabiam o caminho...
As quartas-feiras, por causa da feira semanal, as sextas-feiras, os sábados, os domingos, os 16 de Maio, a Senhora de Antime e o Corpo de Deus eram épocas particulares de procissão e visita pastoral obrigatória pelos inumeráveis tascos de Fafe, como se fosse preciso pretexto. Havia quem tentasse batê-los a todos, mas não conseguia, soçobrando a meio, num desgosto que só visto. As bebedeiras eram mais que as mães e realmente de se lhes tirar o chapéu - mas faziam parte. Era assim naqueles dias especiais. Quanto às segundas, terças e quintas e outras festividades mais pataqueiras, também.

E os tascos eram tascos. Tascos. Aqui o género interessa. Embora ninguém me leve a sério (ou à séria, se por acaso lido em Lisboa), tenho passado a vida a pregar a respeito da irreconciliável diferença entre tasco e tasca (ou tasquinha). Prego aos peixes e prego a fundo. Mas é como digo: tasco é tasco, sítio do povo com povo dentro, e tasca ou tasquinha é... outra coisa, coisa fina, sítio de moda. O tasco é jurássico, a tasca é cosmopolita. O tasco é rasca, a tasca é chique. A tasca é in, o tasco é out. Sei do que falo. Insisto: sou de um tempo e sou de Fafe, terra de tascos e com muito gosto. Sou dos tascos. Só para dar mais um exemplo apartador, fiquemo-nos então por aqui: no tasco bebe-se verde tinto e come-se bolo com sardinhas ou bacalhau frito; na tasca, bebe-se ginjinha e come-se caril de lavagante, como vi outro dia no jornal Expresso. Percebem o que eu quero dizer?
E sim, é provável que já quase não haja tascos, que os tascos puros e duros, os irredutíveis, mesmo em Fafe, estejam perigosamente em vias de extinção, mas isso, de momento, não é para aqui chamado.

O vinho, como sabem os mais antigos, já deu de comer a um milhão de portugueses. Beber chegou a ser um honesto modo de vida, à falta de acesso a outros afazeres igualmente honrados. Hoje, esquecida a propaganda salazarista, o vinho só dá de beber e, suponho, a mais não é obrigado. Mas eu sou daquelas memórias.
Ou por outra. Isto é a minha memória, a memória dos meus. E a minha homenagem sumária e porque sim. Os tascos da minha terra têm uma história e histórias que deviam ser contadas ao detalhe por quem as saiba procurar e contar, com o rigor e a graça que os ilustres nomes dos tasqueiros de antanho justificam e merecem. No meio de tanta treta que se edita, patrocina, apresenta e promove em Fafe, ora cá está um livrinho que até eu era capaz de ler. Enquanto espero, sentado, venha mais um quartilho para a mesa do canto, e era a continha, se faz favor...

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

O último dos Bernardinos

Pianíssimo...
Estou como diz o outro: Bach leve, levemente...

Eu não posso andar na rua e ver bandas de música ou grupos de zés-pereiras, sobretudo zés-pereiras, que me passo, que me perco! Vou atrás, armado em cabeçudo, feito em gigantone, como aprendi com o Pimenta, e sigo-lhes a arruada como se fosse do grupo, um deles, acabadinho de sair da camioneta, esqueço-me da vida, já não sei que recado ia fazer. Eram quatro ou cinco pães? Ou seriam bananas? Ou era para dar a contagem da luz? Quando a minha mulher me liga, preocupada, eu já estou em Carrazeda de Ansiães e ainda tenho de ir fazer o almoço a Matosinhos. Os "trampolineiros" da minha infância alegram-me os dias da madureza, descompassam-me o bater do coração, tornam-me a Fafe e à pureza original, fazem-me chorar, comovem-me quase até ao ranho. Que querem? Eu queria que houvesse discos pedidos para poder encomendar todos os dias o "Resineiro", cantado de mansinho mas muito bem picadinho, com aqueles rufos nervosos e valentes da caixaria no final de cada estrofe, como era antigamente de tasco em tasco, da Cumieira à Fábrica, da Rua de Baixo à Ponte do Ranha, do Retiro à Recta de Armil - e eu atrás. O Picotalho, tomo agora inesperada nota, não tinha tascos, passado o Chupiu, pelo menos tascos que se dissessem assim, e portanto, ainda por cima sendo hoje em dia uma rua troca-tintas, que se passou sem vergonha para o lado das vias-rápidas, acaba de dar-me um desgosto considerável. E queria pedir muitas e sentidas desculpas, a todos os zés-pereiras em geral e a cada zé-pereira em particular, por, ignorante e tolo, lhes ter chamado "trampolineiros", coisa feia. Eram, são, tamborileiros. Os tamborileiros da minha alegria triste. E da saudade.

O meu avô Bernardino Neques, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria, tinha o seu lado musical. Era de Passos, Cabeceiras de Basto, logo abaixo de Várzea Cova, caminho que se fazia a pé, e desunhava-se satisfatoriamente com a concertina e o acordeão, isto é, o "acórdeo", e já velho e doente veio-lhe a mania do violão, lembro-me que com alguma falta de jeito, Deus me perdoe se estou a ser injusto. Esqueçamos, porém, o violão, o acordeão e a concertina, que foram só para meter conversa. Tornemos aos bombos, à caixaria.
O Neques do meu avô Bernardino não era de baptismo. O verdadeiro nome do meu avô de Basto era Amigo Pereira - assim lhe chamava toda a gente por essas feiras e romarias ali à beira, a começar pela Lagoa, onde ele varria o terreiro com o varapau de lódão girando por cima da cabeça como ventoinha de helicóptero, e suponho que não é preciso dizer mais nada para que se perceba de que marca era o homem. (Mas vou dizer: quando fazia de jogador do pau e estava decentemente avinhado, o meu avô tinha um grito de guerra que era "Olraitecamoniésse!". E tinha um cão de pele e osso ao qual dera o nome de Tuísta, que queria dizer Twist. O meu querido avô, que aprendeu a escrever na tropa, era anglófilo americanado e não sabia. De americano, o Bô só conhecia o vinho, quer-se dizer, o binho, e talvez o João Massagista, aliás, João Americano, mas desta parte não tenho a certeza.) A alcunha que ficou famosa, Neques, veio-lhe do seu tempo de moço, contava-se, quando rufava a bom rufar na caixa, honesto instrumento por onde começou na arte. E tocava naquele ritmo manso e exacto que ele gostava de explicar, maestro, como neque-neque-neque, neque-neque, neque-pum. Neques, pois.
O meu avô era apaixonante, por correspondência. Para quem não sabe, os apaixonantes são pessoas, geralmente homens, que gostam muito de bandas de músicas, que as seguem, e têm paixão por uma em especial, como se fosse o seu Porto ou o seu Benfica. No caso do meu avô, obviamente Banda Revelhe, por causa do meu pai e por bom gosto natural. E o toque de caixa, para o Amigo Pereira, tinha ciência, solfejo. Nas minhas inesquecíveis férias grandes, na aldeia, o Bô gostava de perguntar-me, por exemplo, "Quantas pranas tem uma rana?", como se estivéssemos a elaborar sobre fusas e semifusas. Eu dizia que não sabia, que era o que o velho Neques queria ouvir, para logo a seguir me ensinar, matreiro e mais uma vez, "Conta-as, rapaz: rana-catrapana-catrapana-pana-pum; quantas são?..."
É. Já não há Bernardinos assim. E faz-me diferença. Pum!

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

O meu tio Al Pacino

Foto Tarrenego!

Eu tenho um tio que se parece com o Al Pacino quando o Al Pacino parece bem, o que é raro. O meu tio Zé de Basto não é actor e nunca foi a Hollywood. É um mestre pedreiro de mão cheia, arte que herdou do pai, o meu avô Bernardino, dá as suas gaitadas no "acórdeo" e na concertina, tentou duas vezes a emigração no tempo antigo, em Inglaterra e em França, mas não se deu. As saudades matavam-no. Saudades da mulher, a querida tia Margarida, do sino da igreja de Passos, das leiras suadas mas generosas, da comida feita à lareira, dos amigos do peito, de uns tiros às perdizes, de umas boas malgas de vinho verde e sobretudo dos filhos, duas moças e dois moços que lhe enchem o coração.
Eu e o meu tio Zé de Basto, que trato por você e a quem peço a bênção, fazemos pouca diferença de idade. Ainda fomos parceiros de aventuras durante os gloriosos dias das férias grandes que eu, em miúdo, passava na aldeia. Ele era já um rapazola. E juntos éramos um desastre.

Foi o meu tio quem me ensinou a andar de mota de pau, o que correu muito bem e até nem lhe deu grande trabalho, porque, se não sabem ficam agora a saber, nas motas de pau não se anda, cai-se. E eu nasci para aquilo, caía muito bem, era trambolhão de criar bicho.
O meu tio largava-me carreiro abaixo e ao fim de dois metros eu já tinha deixado a mota para trás, enrodilhado em séries de espectaculares e descontrolados vira-cus que só acabavam lá no fundo da ribanceira, com as costas espetadas numa árvore e a mota a cair-me em cima e em cheio, de rodas para o ar, a girarem, a girarem, como nos filmes, só faltava a fumaça...
Ou talvez nem faltasse. Eu punha-me a pé no meio de uma nuvem de pó, lento, trôpego, zonzo, pronto a chorar, com a boca cheia de sangue e de terra, os joelhos a discutirem com os cotovelos quem é que estava mais esfolado, e o meu tio só se ria lá de cima. O que é que eu havia de fazer? Ria-me também. Vinham buscar a mota para o local de partida e lá ia eu outra vez de cangalhas até bater na árvore que já me conhecia de ginjeira, e quando íamos dois então ainda era pior.

O Al Pacino não conhece o meu tio Zé de Basto. Calha bem, porque o meu tio Zé de Basto também não conhece o Al Pacino. Por aí, estão ela por ela, empatados. Onde o meu tio fica a ganhar ao americano é no alambique. Exactamente. O meu tio tinha um extraordinário alambique, onde queimava o vinho estragado da vizinhança, e fazia uma aguardente tão medonha que era um sucesso muito constado. As autoridades fecharam-lhe o alambique. Acho que mais do que uma vez. E sendo certo que, no seu tempo, Al Pacino também não destilava nada mal, a verdade é que não me consta que tivesse um alambique. Um-a-zero para o meu tio Zé de Basto, que é tio Zé de Basto para se distinguir do tio Zé da Bomba, o Fone.
Ao contrário do outro Al Pacino, o meu tio Zé de Basto nunca ganhou um Óscar, nem que fosse Acúrsio. Mas merece o Nobel, talvez da Medicina. Foi ele quem inventou uma talhadura de infalibilidade papal para curar bebedeiras, sejam elas de que tamanho forem. O revolucionário método, experimentado e comprovado pelo meu próprio tio, consiste basicamente em arriar as calças e chapinar o traseiro na água fresca de uma levada. A versão urbana, descartado o uso do rio Ferro, por insuficiência líquida, e da Barragem de Queimadela, por questões de segurança, passará inevitavelmente pelo bidé, devendo juntar-se gelo à água do cano, para recriar as condições naturais do tratamento original. E é remédio santo.

O meu tio Zé de Basto é um homem geralmente feliz, às vezes austero e honrado sempre. Teve sorte com os filhos que tem. Ele e eu também somos compadres, baptizei-lhe o rapaz mais velho: é "o nosso Nane" como eu. E é como compadres que gostamos de nos abraçar, "Eeehhh compaaaaaaaadre!!!...", com umas valentes palmadas no lombo, quando nos reencontramos. E eu gosto muito de abraçar o meu tio Al Pacino.

(E a fotografia, já agora, quereis saber? Cavalgando à la minuta as vastas pradarias de Cima da Arcada, em Fafe, algures por uma Senhora de Antime ou por um 16 de Maio no tempo do faroeste em cuecas: eu e o meu tio Al Pacino, o xerife, em direcção ao sol poente. Aiô, Silver!)

domingo, 5 de janeiro de 2025

Fafe cheirava a sabão amarelo

Ele era muito cuidadoso com a ferramenta. Todos os dias, de manhã e à noite, lavava as intimidades com um bom naco de sabão azul. Lavava, lavava, lavava. O sabão, se não me engano, é um poderoso desinfectante e antibacteriano. Um dia, faltando sabão azul em casa, lavou-se com sabão rosa. Nunca mais foi o mesmo homem.

Do que eu gostava mais em Fafe, do que eu realmente sinto falta? Do cheiro. Fafe tinha o seu próprio cheiro, distintivo, memorial. Fafe cheirava a esmero, cheirava a limpo, a lavado. Fafe cheirava a sabão amarelo. E era isto o ano inteiro, mais ainda na semana da Páscoa, quando as nossas mães asseavam a casa especialmente para receber o Senhor. Fafe, em boa verdade, era uma acolhedora mistura de cheiros bons, um bouquet requintado, mas o honesto odor do sabão amarelo pairava sobre tudo e sobre todos. Sobretudo.
Parecia penitência, castigo. As nossas mães, dobradas horas a fio com os desgraçados joelhos enfiados naquele caixote de madeira a que uns chamam tacoila e outros chamam cunco ou outro nome qualquer, conforme a região, em todo o caso instrumento de suplício, ou então com um simples farrapo servindo de rodilha ou joelheira, as nossas mães, dizia, lavando, lavando, esfregando, esfregando, água, sabão amarelo e palha de aço, e depois chupar e secar, e depois, e só depois, talvez no dia seguinte, outra vez o castigo, outra vez a penitência, a cera regrada, o lustro puxado e repuxado, até que o soalho brilhasse como um espelho, como o sol. E ficava o cheiro. Aleluia!
E pelos 16 de Maio também. E igualmente pela Senhora de Antime, pelo Corpo de Deus. De resto, os domingos em Fafe cheiravam que era uma categoria. Os domingos em geral. Cheiravam a desodorizante, a perfume, a brilhantina, a laca, a graxa, a sebo e a naftalina - tudo misturado, na missa das onze, com a Igreja Nova à pinha, dava uma certa vontade de gomitar, não vou mentir -, mas o melhor era o que se passava entretanto nas ruas da vila antiga, logo desde as primeiras horas da manhã, aquele extraordinário aviso dos velhos fogões de lenha, tão de confiança, tão competentes, tão autónomos, assando vitela tenra e dourada com todos os vagares, com todos os matadores, o cheiro e o fumo magníficos escapulindo-se pela chaminé carbonizada ou pelo telhado mal aparelhado e alastrando de porta em porta, como maldição de filme de mortos-vivos de hoje em dia, mas em bendição, que outros eram os tempos, graças a Deus.
Fafe cheirava. Embora hoje possa não parecer, Fafe era uma povoação rural, íntima, pacata, território de lavradores teimosos e polivalentes - tirante o Largo, isto é, o por Cima e o por Baixo da Arcada, e para além da Fábrica do Ferro e do Bugio, que eram outras vidas. Só por exemplo, toda aquela zona envolvente da Torralta, onde agora estão o bairro tão bem tratado, as várias escolas, o Pavilhão Municipal, as vivendas, as estradas e avenidas, os semáforos, as rotundas, a Biblioteca, os Bombeiros, a Feira, a Central de Camionagem e por aí fora, aquilo era tudo campos, terrenos agrícolas particularmente fecundos, os campos do Santo, Granja e São Gemil, campos, caminhos, quelhas, noras e minas, levadas e poças, com muito milho, fruta e umas quantas pipas de vinho. Era zona de carros de bois, aquela, e actualmente abunda de automóveis e tem o chão pintado a furta-cores. Fafe realmente cheirava. E à semana metia a cotio o cheiro a eido, a estrume, a lavadura, a gado, a galinheiro, a couves cegadas, a erva acabada de cortar, a terra seca acabada de regar, a medas húmidas, a chuva era farta e cheirava muito bem em Fafe.
Fafe tinha o cheiro doce das glicínias, cheirava a alfádega, a cidreira, a amoras, às tílias do Santo Velho, a uvas americanas, aos pinheiros de São Jorge e Castelhão, a castanhas assadas pela Maria Barraca à beira do tasco do Zé Manco, ao azeite do Moniz e ao bacalhau frito da Dolorzinhas no tasco do Paredes. Cheirava a maçãs guardadas nos barrotes secretos dos tectos, cheirava a geleia e a marmelada, a vinho novo, a aletria quente, a canela. Fafe cheirava todo o ano a Natal. Cheirava ao incenso da procissão do Corpo de Deus. E cheirava a piche derretido ao sol das tardadas de Verão, e cheirava a cano de escape de motorizadas sem cano de escape na noite atolambada da passagem de ano. Fafe cheirava à aguardente e ao engaço do fantástico alambique do Cinema, copiosamente manobrado pelo Sr. Zé dos Alhos, parece que ainda o estou a ver e ouvir. A cheirar.
Fafe cheirava a roupa a corar. Cheirava ao avental sempre lavado da minha mãe, que cheirava tão bem a sabão, a segurança e a felicidade, e eu, criança, pequenito, abraçava-me a ele, a ela, com quanta força tinha, e fechava os olhos à espera que o tempo à minha volta não passasse. É. Fafe cheirava à minha mãe.