sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Mestre Nelo Barros

 A ordem natural das coisas
O Paços de Ferreira de José Mota, o Rio Ave de Carlos Brito, o Vitória de Setúbal de Manuel Fernandes, o Nacional de Manuel Machado, o Aves do Professor Neca, o Boavista de Manuel José, a Académica de Vítor Manuel, o Varzim de Henrique Calisto, o Marítimo de Nelo Vingada, o Salgueiros de Filipovic, o Vitória de Guimarães de Jaime Pacheco, o Chaves de Raul Águas, o Belenenses de Marinho Peres, o Farense de Paco Fortes, o Portimonense de Vítor Oliveira, o Gil Vicente de Álvaro Magalhães, o Beira Mar de António Sousa, o Braga de Manuel Cajuda, o Felgueiras de Jorge Jesus, parece impossível, o Riopele e o Tirsense de Ferreirinha, o Infesta de Augusto Mata, o Fafe de Nelo Barros, e o FC Porto campeão. Assim eram as coisas e estava tudo certo, ninguém ia para o Brasil ou para as Arábias abanar a árvore das patacas, eu entendia-me com o futebol e era feliz. Era adepto. Agora? Agora o futebol está de pernas para o ar, chamam-lhe "o jogo" e tem polícia de choque, cordões de segurança, jaulas, petardos, periodizações tácticas e claques profissionais, bandidas e amiúde assassinas, os treinadores duram dois ou três jogos, ninguém é de ninguém, o meu Fafe anda pela terceira divisão, o Sporting foi campeão, rebentaram com o FC Porto e eu também já não estou grande coisa...

Tive a sorte de conhecer Nelo Barros. Manuel Coelho de Barros (1917-2007) foi um grande treinador de futebol e um mestre de treinadores de futebol. Nunca fez primeiras páginas de jornais, porque sempre se recusou a deixar o emprego no escritório da que era então a maior fábrica de Fafe e uma das maiores do País. Equipas da 1.ª divisão chamavam por ele, ano após ano, pediam-lhe disponibilidade total, trabalho a tempo inteiro, mas ele nunca quis ir por aí. O Nelinho era assim.
Pessoa excelentíssima, homem elegante, distinto, culto, carismático, Nelo Barros era reconhecidamente um catedrático da táctica, sabia muito de bola e dava gosto ouvi-lo falar de futebol. Ele entusiasmava-se e entusiasmava. O futebol de Nelo Barros tinha pessoas e histórias dentro. O futebol contado por Nelo Barros era simples, percebia-se à primeira vista, batia certo, era lindo!
Uma noite, no velho salão dos Bombeiros, então ainda instalados na Rua José Cardoso Vieira de Castro, entre os dois palacetes, o mestre encantou uma plateia à pinha que o foi ouvir falar de desporto e de futebol, de jogadores e de jogos, de treinadores e de tácticas, como nunca se tinha ouvido falar por aquelas bandas. O Nelinho falou como de costume, sem tabus, sem grandes teorias, sem peneiras, falou simples mas com convicção. Até eu, que era um rapazola, entendi tudo. E fiquei a gostar ainda mais de futebol.
Perguntaram-lhe o que é que era preciso para se ser um bom treinador. Nelo Barros, provavelmente um dos melhores treinadores portugueses de todos os tempos, respondeu assim lapidarmente, que esta cá me ficou: "Não há bons treinadores. Os bons jogadores é que fazem os bons treinadores". E depois desenvolveu, desmontou a aparente contradição, mas nem era preciso.
Eu gostava tanto de ouvir Nelo Barros, que ia assistir a todos os treinos, que eram sempre ao fim da tarde, por causa do tal emprego do treinador na fábrica. Uma vez, o jogo em preparação era contra o Riopele. E digo contra de propósito, porque aquele era um tempo de rivalidades à moda antiga, dentro e fora do campo, acabando quase sempre tudo à trolha.
Mas, voltando ao treino, o Nelinho reuniu os jogadores à sua volta e deu a táctica. E eu por perto, de radar ligado. Fiquei deslumbrado: eram indicações precisas para cada um dos jogadores, para o funcionamento da defesa, para o desempenho do meio-campo, para o trabalho dos avançados, para as movimentações da equipa como um todo, as trocas, as compensações, até o Berto Magalhães ia jogar como médio vadio para secar os criativos riopelenses. O Berto era um suplente muito fraquinho, mas generoso e com um pulmão se faz favor, para além disso mandava-me cá um bigode que metia realmente respeito. Nas palavras do mestre, tudo encaixava, tudo fazia sentido. E tudo dito com tanta certeza, que no domingo só podia dar certo.
Mas não deu. Do outro lado estava uma equipa poderosíssima, histórica. Se a memória não me atraiçoa, no Riopele jogariam, por essa altura, o Piruta, o Vital, o Barros, o Albano, o João e o Luís Pereira, todos craques, treinados por outro que também a sabia toda: Ferreirinha. Saímos de Pousada de Saramago vergados a uma pesada derrota, já não sei por quantos, mas eu não perdi a fé no nosso Nelo Barros. Pelo contrário. Na humilhação da goleada, aprendi a beleza original do futebol, tal como o mestre o ensinava: onze contra onze e uma bola que é redonda. O resto é treta.

Hoje, uma nova raça de treinadores, colunistas, comentadores, ex-treinadores-comentadores e ex-comentadores-treinadores, todos paineleiros enfim, quer fazer-nos acreditar que o futebol é praticamente uma ciência oculta, só percebida por uns poucos predestinados que, modéstia à parte, são eles próprios. E inventam palavras e expressões para complicar o que é simples. E já não há bola nem futebol. Eles, que sabem inglês, "inventaram" o jogo. O jogo. Pois, pela parte que me cabe, parabéns à prima! Sou um simples já com razoável uso. E tenho é saudades de ouvir o Nelinho, treinador e cavalheiro, a falar de bola. De bola simplesmente.

2 comentários:

  1. Hoje, meu caro Nane, os técnicos,
    os professores portugueses não são mais treinadores, são psicologos, psicanalistas e, quiçá, até psiquiatras. Basta ver o que, segundo os novos entendidos, eles fazem nas equipas. Jorge Jesus no Flamengo; Abel Ferreira no Palmeiras; Artur Jorge no Botafogo ou mais recentemente o Rúben Amorim no Manchester United mudaram a mentalidade dos jogadores.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E isso não abona muito a favor da "mentalidade" dos jogadores, pois não? Grande abraço, meu caro Pedro!

      Eliminar