Na sacramental ronda pelos vários campos, o pivô da emissão radiofónica pergunta ao repórter de serviço: - Tempo e resultado? O repórter de serviço informa, conciso e preciso: - O tempo está bom e o resultado mantém-se.
Comecei a ir ao futebol pela mão do meu pai. Íamos ao Campo da Granja ver o Fafe. A AD Fafe teria então cinco ou seis anos de vida, tantos como eu, calhava bem. O Campo da Granja tinha uma bancada pequena para ricos apontada ao grande círculo e uma nora atrás da baliza do lado de São Gemil. A nora, neste caso, era um engenho para tirar água de um poço e não funcionava. Mas ficava num altinho muito jeitoso para a assistência. A assistência naquele tempo não era passe para golo, era pessoas, o povo. Os balneários, coisa rudimentar de que nem fazeis ideia, estavam no outro topo do campo, ao lado da entrada principal e do caminho de terra com portão desengonçado que ligava à subida da Avenida da Granja. A subida da Avenida da Granja, no fim do prélio, era descida, e ainda bem, porque os jogos eram à tarde e o campo tinha um canto chamado "bar", à beira do mijadoiro. Esta parte, que fique registado, não nos dizia respeito. Eu e o meu pai cortávamos caminho, atravessávamos os milheirais do Santo, entre poças e urtigas, e quem quisesse saber de nós até ao escurecer, era ali: víamos os treinos, os jogos, os juniores em vez da missa (o que arreliava sobremaneira a minha mãe), as reservas e, ao domingo à tarde, o primeiro time, que era assim que se dizia. Também havia quipers, beques, corners, lainers e ofessaides. Os domingos à tarde da minha infância eram os melhores dias do mundo. Até tinham altifalantes com marchas do John Philip Sousa, e é preciso que se note que os altifalantes são um acontecimento muito importante na minha vida. Depois o meu pai deixou de ir à bola, por razão de força maior, isto é, morreu sem mais nem menos, "na flor da idade", como disse num pranto o meu avô da Bomba, quando se soube, e eu continuei.
O Campo da Granja, porém, desistiu para dar lugar a uma escola de pré-fabricados que eu vi instalar. E foi bom para todos em Fafe. Ganhámos o ciclo preparatório e um estádio que havia de ser, mesmo encostado aos Bombeiros, nem de propósito para mim. Apareceu-me o buço e, embora uma coisa não tenha a ver com a outra, passei a acompanhar a Associação para todo o lado, pendurado na generosidade de amigos mais velhos e com emprego. Com o Pimenta, o Sérgio Lopes, o Valdemar Galego e outros que tais, isso lhes devo, frequentei todos os campos e estádios do Norte do País e, já praticamente de bigode, até fui ao Barreiro arrancar à CUF um lugar nas meias-finais da Taça de Portugal que nos roubaram. A Associação era o Fafe, o Fafe era a Associação, não havia nada que confundir.Quando mudei a minha vida para o Porto, ainda se ia ao futebol em família. Quero dizer: famílias inteiras, com pai, mãe, avós e netos, sobrinhos, primos, namoradas e namorados. Podia-se ir, não era perigoso. Eu fui logo morar para o Estádio das Antas, Superior Norte, porta com porta com o meu tio Zé da Bomba, que já lá morava há que anos. Consegui converter a minha mulher ao FC Porto, fi-la também sócia e passámos a ir à bola os dois, eu e ela com a cesta do merendeiro atrás, porque naquele tempo não havia lugares marcados e para jogos grandes era mesmo preciso entrar de véspera. E quando digo merendeiro quero dizer exactamente merendeiro, à moda de Fafe: frango assado, sandes de vitela ou lombo de porco, panados, bolinhos de bacalhau, bacalhau frito, pataniscas, feijoada, salada russa, iscas de fígado, rojões, moelas de coelho, mandadas vir evidentemente do Peixoto, arroz à valenciana, filetes de pescada, salpicão, presunto e rebentos de soja, uma toalha de linho em cima dos joelhos, uma garrafosa de verde tinto bem fresquinho, ou duas, e uma garrafa de litro de cerveja, ou duas, por causa dos descontos. Entrava tudo. E marchava tudo. Para não virmos carregados para casa. Aquilo é que era futebol!
Se o FC Porto não jogava nas Antas, então eu ia aqui ao Estádio Mar torcer pelo Leixões ou ao Bessa ver o Boavista. Aos sábados acamaradava com o Lopes e puxava pelo Salgueiros em Vidal Pinheiro que Deus tem ou matava o vício no claustrofóbico campo do Infesta, que me dava falta de ar. Sempre que podia, levava comigo o Kiko, meu filho, que tinha a quem sair e gostava muito de ir lanchar aos campos de futebol. Às quartas, dia da minha folga do trabalho, papava campeonatos de reservas, desempates da Taça, liguinhas de subida de divisão e torneios de apuramentos de campeões. Em Santo Tirso, em Vila do Conde, na Póvoa de Varzim, em Espinho, em Aveiro, onde calhasse aqui à roda. Havia jogo, eu estava lá. E regalava-me. Dei a volta a Portugal, fui espreitar ao estrangeiro, e tudo começou no Campo da Granja. Mas depois chegaram as sades e as claques organizadas, e eu vim-me embora. Bandidos, polícia de choque, petardos, emboscadas, navalhadas, carneiradas, jaulas "de segurança", mortes, sei que não incomodam a maioria, mas são merdas que me chateiam. Nos últimos anos, voltei aos estádios apenas por obrigação profissional, em serviço, mas até isso felizmente terminou. Recuso-me a ir ao futebol como quem vai para a guerra.
Às vezes tenho saudades. Tenho saudades do tempo do futebol ingénuo, em estado quase puro, futebol asseado, sem sades, sem ceos e sem administradores e consultores e assessores pornograficamente remunerados e premiados no final do ano ainda que não ganhem nada em campo, ainda que destruam a equipa de futebol e ainda que levem o clube à falência. Do tempo em que os clubes de futebol eram clubes de futebol, associações, colectividades, agremiações, e eram dos sócios, e os sócios eram os sócios. Do tempo em que os presidentes e os directores dos clubes de futebol punham dinheiro do próprio bolso e ainda biscatavam graciosamente arranjos e obras ou, como o Fernando da Sede ou o Chester, carregavam botijas de gás às costas até aos balneários para que nada faltasse aos seus "meninos". Do tempo em que dirigentes pagavam bifes a jogadores à rasca da vida. Do tempo dos espectadores, da massa associativa, dos adeptos, dos apaniguados, dos grupos excursionistas, das comissões de auxílio, das rusgas espontâneas de apoio, com bombos e até gigantones e cabeçudos, que não eram poucos. Era o futebol, e o futebol era uma festa! Confesso: às vezes tenho saudades - mas não torno!
O meu pai compreenderá.
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