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terça-feira, 8 de abril de 2025

O Texas, a caminho do Picotalho

Flute de Portugal
O Três Marias, o Casal Garcia, o Campelo, o Magos e até o "champanhe", matrimonial ou de alterne, eram à taça, prova rainha. Agora deu-lhes para o flute. Ou flauta. Pfff...

O Texas era um tasco e era em Fafe. Chamava-se também Quiterinha, derivado ao nome da dona, senhora respeitável, ou Pensão Império, e isso eu nunca soube derivado a quê. Estais a ver a Rua Monsenhor Vieira de Castro, quem vai para o Picotalho, do lado do Cinema, depois da padaria do Sr. Rodrigues e encostado à loja do Noré, mesmo em frente à cabine, antes de chegar às Grilas e ainda mais às Turicas, nas barbas da procissão da Senhora de Antime, que lhe passava à porta? O Texas era exacta e geograficamente aí, previamente a ter-se instalado de armas e bagagens no sul dos Estados Unidos da América, resvés com o México, segundo vi depois nos filmes a cores.
O Texas, o nosso Texas, o verdadeiro Texas, era a preto-e-branco como o regime e tinha, após o balcão, um reservado com vista para a cozinha e para os campos do Santo, onde hoje se ergue o cimento do Pavilhão Municipal. Foi no nosso Texas, na sala da frente, que eu vi na televisão os jogos de Portugal no Mundial de 1966. Eu e a RTP éramos miúdos da mesma idade. Ao Texas fui com o meu pai, no Texas confraternizei com os músicos antigos da Banda de Revelhe, que tinha casa de ensaio ali a dois compassos, coisa tão a calhar, no Texas aprendi vida com o querido Senhor Ferreira do Hospital e até com o Queirós, meu camarada bissexto na fábrica e provavelmente o melhor tintureiro do mundo, desse-se o caso extraordinário de ele aparecer ao trabalho...

(Isso. O Texas era como se fosse uma segunda casa de ensaio da Banda de Revelhe, centro de convívio líquido, arena de ateimadores encartados, a verdadeira sede da agremiação. Músicos e apaixonantes reuniam-se e discutiam ali, à volta de umas valentes infusas de vinho verde. Falava-se de música, cortava-se na casaca, contrariava-se por uma questão de princípio, celebrava-se a existência. Houve um tempo em Fafe. Um tempo preciso e uma forma de ser diversa. Havia uma maneira talvez boémia, romântica, idiossincrática, de ser-se músico na nossa terra, naquele tempo. Estava-se assim na vida. É esse tempo, esse modo de vida e esses músicos, figuras extraordinárias, que eu gosto de contar. Quando o meu pai foi para França, os compinchas que ficaram, incluindo o meu padrinho e tio Américo, irmão do meu pai, escreviam-lhe de vez em quando mandando-lhe novidades de Fafe, da banda e do tasco, e, malandros, castigadores, costumavam carimbar a assinatura colectiva da missiva com um fundo de caneca esborratado de tinto matão, acirrando-lhe saudades e apetites. Lembro-me como se fosse hoje.)

Vamos dizer, então, que o Texas, o nosso, era uma casa de pasto - sem ofensa para todos os verdadeiros americanos do faroeste, incluindo gado cavalar e vacum. As portas do Texas eram verdes, mas não eram de saloon. Cobóis, apareciam alguns, sobretudo às quartas-feiras, porém não me lembro de tiros, e os índios era como se fossem da família. Naquele tempo em Fafe, terra de paz e amor, matava-se mais à sacholada, domesticamente, e a Justiça de Fafe era um postal com quadras bairristas do Zé de Castro, poeta-cauteleiro, o nosso Aleixo. Borracheiras havia-as, e eram acontecimento de alta patente, é preciso que se note. Não tínhamos xerife, mas tínhamos o Chester, tínhamos o regedor de pistolete à cinta e tínhamos o Miguel Cantoneiro, que padecia de uma questão com os erres e, para todos os efeitos, também era autoridade. Às vezes, quando não era precisa, também tínhamos polícia.

Em todo o caso: o Texas foi sempre um sítio pacífico enquanto esteve nas nossas mãos. Quando foi para a América é que se tornou perigoso.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

Chester, para todo o serviço

Lembrais-vos do futebol de salão? O que é que me vinha à cabeça quando se falava de futebol de salão? O salão. Uns cavalheiros vestidos de fraque e com um número nas costas e umas cavalheiras despidas nas costas e no resto, agarrados um ao outro e rodopiando pelo salão nobre do Teatro-Cinema como Fred Astaire e Ginger Rogers e uma bola pequenina no meio, um árbitro e o apito, um júri e tabuletas com pontuações. Para evitar ambiguidades, o futebol de salão passou a chamar-se futsal, joga-se em polidesportivos, como, por exemplo, no pavilhão do Grupo Nun'Álvares, e é o sucesso que se sabe...

Matt Dillon era o xerife de Dodge City, e Chester o seu leal escudeiro. Naquele tempo todos queriam ser Tarzan ou Mandrake, Buck Jones ou Fantasma, Mascarilha ou Cisco Kid. Os "artistas". Mas o Álvaro escolheu modestamente ser Chester, actor secundário, e assim se rebaptizou num involuntário equívoco cheio de ironia: na verdade, Álvaro Moreira Mendes nasceu para ser primeira figura, protagonista. E foi. No seu ofício de indústria, no movimento associativo, na intervenção cívica, na amizade fraterna e íntegra, foi sempre dos melhores, um fafense excelentíssimo, um homem maior do que o próprio nome, maior do que a alcunha sacada dos livrinhos de cobóis, maior do que o lugar que lhe queiram dar os menestréis da história recente de Fafe, tão desperdiçada em umbiguismos, capelinhas e bagatelas, maior do que melhor ou pior pensem dele. Acerca da opinião dos outros a seu respeito, creio, aliás, que o Chester, ajudante do xerife, não se coibiria de dizer, alto e bom som: caguei!!! E diria alto e bom som e assim com três pontos de exclamação porque ele não sabia falar de outra maneira.
Onde o Álvaro chegasse, constava. Ele encarregava-se de avisar logo à entrada, por entre raios e coriscos, avançando como um tornado de grau cinco, a enorme mão calejada e aberta desbravando caminho, oferecendo-se para um abraço, para uma palmada nas costas à moda antiga. Ser imperfeito como todos nós, mas menos imperfeito do que a maioria de nós, e muito menos imperfeito do que eu, por exemplo, o Chester tinha um coração enorme, desmesurado, e uma boca do tamanho do coração. Tinha o raio de um feitio, o homem, fazia inimigos com o dobro da facilidade com que fazia amigos. E também deu alguns pontapés na vida.
O Chester era generoso, impulsivo, excessivo e puro. E amiúde foi a primeira e principal vítima da sua generosidade sem peso nem medida. Era um bom selvagem, uma força da natureza, pau para toda a obra.
Era meu amigo. Forjámos a nossa cumplicidade no tasco, evidentemente. Nas tardadas de Inverno passadas à volta da braseira na cozinha da Dona Isabel, no Toninho Nacor, onde eu, com os bolsos cheios de cotão, ia levado pelo tio Américo. Em 1976, Barcelos acolheu o Campeonato da Europa de Hóquei Patins Sub-21 (juniores, chamavam-se então). O Chester falou do assunto. Comprámos duas assinaturas para o torneiro inteiro, e todas as noites lá íamos de Vauxhall até Barcelos por estrada nacional, que era o que havia, víamos os dois ou três jogos do programa, regressávamos a Fafe e eu chegava a casa já de madrugada. Fomos campeões.
Mais ou menos por essa altura, o Grupo Nun'Álvares estava instalado no edifício que fora posto da GNR, em frente à Igreja Matriz, e que hoje é, creio não estar enganado, casa paroquial. Ali foi construído um rinque em cimento e organizado, em 1977, o primeiro torneiro de futebol de salão em Fafe. Salão ao ar livre, é preciso que se note. Nunca falhei um jogo. Um dia vou à bilheteira comprar o bilhete do costume, está lá o Chester (o Chester tinha o seu quê de Deus, também estava em toda a parte) e entregou-me um livre-trânsito passado em meu nome e que dizia "Convidado da Organização - Prémio Assiduidade". Coisa inventada por ele, que era a alma daquilo tudo. Resultado: deixei de pagar para entrar e guardo religiosamente aquele cartão, como se fosse um santinho, uma relíquia da Terra Santa.
Quando terminei a minha felizmente efémera passagem pela tropa, o Álvaro foi a primeira pessoa a oferecer-me um emprego a sério e até já tinha tratado de tudo para eu tirar a carta de condução. Apareceu-me melhor, o Álvaro incentivou-me a aceitar a outra proposta, e ainda hoje não tenho carta nem sei conduzir.
O Chester alegrava-se quando me via em Fafe. Fazia questão que se soubesse que gostava muito de mim. E a verdade é que eu também gostava muito dele. E no entanto falhei-lhe miseravelmente na altura da vida em que por certo ele mais precisou dos amigos...
O Álvaro era, regra geral, do contra. Era um inquieto espírito de contradição. Tanto que, só para chatear, resolveu deixar-me a falar sozinho, quando tínhamos ainda tanto para conversar.

Felizes os ignorantes: quem não conheceu o Chester, não sabe o que perdeu. Trabalhador incansável, empreendedor contumaz, homem dos sete instrumentos e de mil causas, o Chester é uma história extraordinária e isto aqui é apenas um humilde lembrete, um quase nada. Grande, grande era ele. Álvaro Moreira Mendes. Chester, para todos os efeitos e para todo o serviço. Uma vida que dava um livro, um nome que merece rua. Em Dodge City já teria.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

E tudo começou no Campo da Granja

Na sacramental ronda pelos vários campos, o pivô da emissão radiofónica pergunta ao repórter de serviço: - Tempo e resultado? O repórter de serviço informa, conciso e preciso: - O tempo está bom e o resultado mantém-se.

Comecei a ir ao futebol pela mão do meu pai. Íamos ao Campo da Granja ver o Fafe. A AD Fafe teria então cinco ou seis anos de vida, tantos como eu, calhava bem. O Campo da Granja tinha uma bancada pequena para ricos apontada ao grande círculo e uma nora atrás da baliza do lado de São Gemil. A nora, neste caso, era um engenho para tirar água de um poço e não funcionava. Mas ficava num altinho muito jeitoso para a assistência. A assistência naquele tempo não era passe para golo, era pessoas, o povo. Os balneários, coisa rudimentar de que nem fazeis ideia, estavam no outro topo do campo, ao lado da entrada principal e do caminho de terra com portão desengonçado que ligava à subida da Avenida da Granja. A subida da Avenida da Granja, no fim do prélio, era descida, e ainda bem, porque os jogos eram à tarde e o campo tinha um canto chamado "bar", à beira do mijadoiro. Esta parte, que fique registado, não nos dizia respeito. Eu e o meu pai cortávamos caminho, atravessávamos os milheirais do Santo, entre poças e urtigas, e quem quisesse saber de nós até ao escurecer, era ali: víamos os treinos, os jogos, os juniores em vez da missa (o que arreliava sobremaneira a minha mãe), as reservas e, ao domingo à tarde, o primeiro time, que era assim que se dizia. Também havia quipers, beques, corners, lainers e ofessaides. Os domingos à tarde da minha infância eram os melhores dias do mundo. Até tinham altifalantes com marchas do John Philip Sousa, e é preciso que se note que os altifalantes são um acontecimento muito importante na minha vida. Depois o meu pai deixou de ir à bola, por razão de força maior, isto é, morreu sem mais nem menos, "na flor da idade", como disse num pranto o meu avô da Bomba, quando se soube, e eu continuei.
O Campo da Granja, porém, desistiu para dar lugar a uma escola de pré-fabricados que eu vi instalar. E foi bom para todos em Fafe. Ganhámos o ciclo preparatório e um estádio que havia de ser, mesmo encostado aos Bombeiros, nem de propósito para mim. Apareceu-me o buço e, embora uma coisa não tenha a ver com a outra, passei a acompanhar a Associação para todo o lado, pendurado na generosidade de amigos mais velhos e com emprego. Com o Pimenta, o Sérgio Lopes, o Valdemar Galego e outros que tais, isso lhes devo, frequentei todos os campos e estádios do Norte do País e, já praticamente de bigode, até fui ao Barreiro arrancar à CUF um lugar nas meias-finais da Taça de Portugal que nos roubaram. A Associação era o Fafe, o Fafe era a Associação, não havia nada que confundir.
Quando mudei a minha vida para o Porto, ainda se ia ao futebol em família. Quero dizer: famílias inteiras, com pai, mãe, avós e netos, sobrinhos, primos, namoradas e namorados. Podia-se ir, não era perigoso. Eu fui logo morar para o Estádio das Antas, Superior Norte, porta com porta com o meu tio Zé da Bomba, que já lá morava há que anos. Consegui converter a minha mulher ao FC Porto, fi-la também sócia e passámos a ir à bola os dois, eu e ela com a cesta do merendeiro atrás, porque naquele tempo não havia lugares marcados e para jogos grandes era mesmo preciso entrar de véspera. E quando digo merendeiro quero dizer exactamente merendeiro, à moda de Fafe: frango assado, sandes de vitela ou lombo de porco, panados, bolinhos de bacalhau, bacalhau frito, pataniscas, feijoada, salada russa, iscas de fígado, rojões, moelas de coelho, mandadas vir evidentemente do Peixoto, arroz à valenciana, filetes de pescada, salpicão, presunto e rebentos de soja, uma toalha de linho em cima dos joelhos, uma garrafosa de verde tinto bem fresquinho, ou duas, e uma garrafa de litro de cerveja, ou duas, por causa dos descontos. Entrava tudo. E marchava tudo. Para não virmos carregados para casa. Aquilo é que era futebol!
Se o FC Porto não jogava nas Antas, então eu ia aqui ao Estádio Mar torcer pelo Leixões ou ao Bessa ver o Boavista. Aos sábados acamaradava com o Lopes e puxava pelo Salgueiros em Vidal Pinheiro que Deus tem ou matava o vício no claustrofóbico campo do Infesta, que me dava falta de ar. Sempre que podia, levava comigo o Kiko, meu filho, que tinha a quem sair e gostava muito de ir lanchar aos campos de futebol. Às quartas, dia da minha folga do trabalho, papava campeonatos de reservas, desempates da Taça, liguinhas de subida de divisão e torneios de apuramentos de campeões. Em Santo Tirso, em Vila do Conde, na Póvoa de Varzim, em Espinho, em Aveiro, onde calhasse aqui à roda. Havia jogo, eu estava lá. E regalava-me. Dei a volta a Portugal, fui espreitar ao estrangeiro, e tudo começou no Campo da Granja. Mas depois chegaram as sades e as claques organizadas, e eu vim-me embora. Bandidos, polícia de choque, petardos, emboscadas, navalhadas, carneiradas, jaulas "de segurança", mortes, sei que não incomodam a maioria, mas são merdas que me chateiam. Nos últimos anos, voltei aos estádios apenas por obrigação profissional, em serviço, mas até isso felizmente terminou. Recuso-me a ir ao futebol como quem vai para a guerra.

Às vezes tenho saudades. Tenho saudades do tempo do futebol ingénuo, em estado quase puro, futebol asseado, sem sades, sem ceos e sem administradores e consultores e assessores pornograficamente remunerados e premiados no final do ano ainda que não ganhem nada em campo, ainda que destruam a equipa de futebol e ainda que levem o clube à falência. Do tempo em que os clubes de futebol eram clubes de futebol, associações, colectividades, agremiações, e eram dos sócios, e os sócios eram os sócios. Do tempo em que os presidentes e os directores dos clubes de futebol punham dinheiro do próprio bolso e ainda biscatavam graciosamente arranjos e obras ou, como o Fernando da Sede ou o Chester, carregavam botijas de gás às costas até aos balneários para que nada faltasse aos seus "meninos". Do tempo em que dirigentes pagavam bifes a jogadores à rasca da vida. Do tempo dos espectadores, da massa associativa, dos adeptos, dos apaniguados, dos grupos excursionistas, das comissões de auxílio, das rusgas espontâneas de apoio, com bombos e até gigantones e cabeçudos, que não eram poucos. Era o futebol, e o futebol era uma festa! Confesso: às vezes tenho saudades - mas não torno!
O meu pai compreenderá.