quinta-feira, 26 de junho de 2025

Zé Cão e o boxevista

Alta Autoridade
Era polícia municipal e media mais de dois metros. Chamavam-lhe Alta Autoridade.

Guardo gratíssimas recordações de São Clemente de Silvares. No Ademar, tasco praticamente gourmet, acolhedor e excelentíssimo, com a ramadinha à porta e lá dentro o vinho de categoria a refrescar no poço, eu costumava encontrar o Zé Cão, que tinha trabalhado com o meu pai na Fábrica do Ferro e era o homem mais alto do mundo. Pelo menos era o homem mais alto de Fafe e arredores, e não há mundo melhor do que o nosso, isso ainda hoje me parece. Por outro lado, para que nos situemos, informo que venho do tempo do pai do Ademar, o Sr. António, a quem chamavam "Sereno", e ele não gostava.
O Zé Cão, sentado, os joelhos batiam-lhe nos queixos com a barba por fazer. Era uma torre, pele e osso, vagaroso, comovido, desengonçado, gentil, decilitrado, só, pobre, criança em corpo descomunal, com uns sapatões de palhaço feitos certamente de encomenda e sempre agarrado à caneca de quartilho de verde tinto, que naquelas mãozonas mingava até parecer uma xícara de chá de casinha de brincar. Mãos hirsutas, nodosas e honestas. O Zé Cão era um homem com zê grande. 
O Valença, uma das maiores glórias do futebol local, tinha a mania de se meter com o Zé Cão, quando o nosso gigante descia a Fafe e parava, fatalmente, no Peludo. Na verdade, o Valença tem a mania de se meter com toda a gente, também se metia com o Landinho, o Nosso Menino, mas o que aqui interessa é o Zé Cão. E o Valença, quando o apanhava a jeito, obrigava o Zé Cão a contar vezes sem conta as suas idas ao Porto, ao Royal e ao Derby, velhos cafés de putas na Rua Chã, quase em frente um do outro, e o bom do Zé ia lá para aliviar o tesão a preço combinado, e uma famosa ocasião teve mesmo de se haver com um "boxevista", um "boxevista" a sério, se calhar chulo, na parte de cima da Ponte de Luís I, ali ao pé, discutindo exactamente e em vias de facto por causa das senhoras ou talvez honorários. E o Zé Cão ganhou. Ganhou, evidentemente, nem podia ser de outra maneira, o Zé Cão era nosso. E a piada a espremer da historieta seria tão-só fazer o Zé Cão dizer "boxevista", que a palavra era dele, isto é, "bocsvista" ou "boquessevista". A mando do Valença, o Zé Cão dizia, e tornava ao combate, e fazia os gestos como foi, e disparava ganchos e uppercuts, cruzados e directos, e era um campeão sem sair do seu canto, desajeitado, quase caindo, porém olímpico e ainda invicto, a lutar por merecer mais um copo que alguma alma caridosa fizesse o favor de lhe pagar.
O Zé Cão lutava um faz-de-conta tão escangalhado e convincente que parecia mesmo que estava no ringue a enfrentar-se ao peso-pesado cubano Teófilo Stevenson, por exemplo, o maior "boxevista" amador de todos os tempos, dando-se o devido desconto ao sentido da palavra "amador" em certos países naquela altura. Stevenson - triplo campeão do mundo e medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Munique 1972, Montreal 1976 e Moscovo 1980 - recusou sempre tornar-se profissional, por opção ou imposição, Havana é que sabe, rejeitando os sucessivos contratos de milhões de dólares com que os EUA lhe iam acenando. Morreu em 2012, infelizmente sem se ter tirado a limpo se ele era, de facto, melhor do que Muhammad Ali, como alguns puristas defendiam e, tanto quanto sei, ainda defendem. Melhor do que o Zé Cão, é que de certeza não era!
Lembro-me tão bem. O Zé Cão de São Clemente, o nosso gigante bom, que me contava histórias do meu pai, com os olhos piscos e rasos de água, desiludo e triste, quase tão órfão como eu. Quem diria que aquela figura frágil e desarticulada, aquela imensa marioneta, levara ao tapete, no seu tempo, um "boxevista", um "boxevista" a sério, porventura chulo de ponta e mola, e logo em cima da ponte, ao luar, como se fosse no cinema? As notícias nunca dão tudo, é verdade, mas não consta que Muhammad Ali ou Teófilo Stevenson alguma vez o tenham feito. Um "boxevista", por causa das putas, em cima da ponte? Não, não há registos. Façanha assim, só o nosso Zé!

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