A obra-prima
Os especialistas dividem-se e a opinião pública também. Há quem defenda que o melhor trabalho de Miguel Ângelo são os frescos da Capela Sistina. Outros preferem a Baía de Cascais...
Infelizes, em verdade vos digo, os que nunca ouviram o Moisés a peidar-se pelo soleno da noite, ali para os lados da Feira das Galinhas, que realmente tinha uma excelente acústica naquele tempo e hoje parece-me que é um parque de estacionamento e chama-se Praceta Egas Moniz. O Moisés era uma figura, um figurão. Era o homem perfeito, tinha tudo do melhor: portismo, habilidade para a bola, vaidade, ondinha no cabelo, fastio para o trabalho, gases. Semeador de ventos, colhedor de tempestades, Moisés, o nosso, era um artista, um predestinado, um exímio executante, como se dizia em gíria musical. Os flatos do Moisés, tomai nota, eram acutilantes, poderosos como pragas, abriam mares, incendiavam sarças, esculpiam lei em pedra maciça, abanavam os alicerces da Igreja Nova, levantada mesmo em frente, Deus nos perdoe, não sei como é que o Moisés nunca se aleijou. O Moisés peidava a capella. Os traques do Moisés seriam hoje considerados e explorados e exportados como energia alternativa, verde talvez, e vendidos a Espanha, para os espanhóis aprenderem. Mas também eram mansos, melodiosos, trinados, sin-co-pa-dos, contidos, suspiros nocturnos, meditabundos, quase confidenciais. O Moisés solfista trabalhava, com efeito, em vários registos, um dos quais, de interpretação particularmente exigente, mezzo piano, denominava-se "rasgar chita" e costumava encerrar o concerto, com mais dois ou três encores, porque o Moisés levava audiência atrás. As bufas do Moisés, que aceitava pedidos como crooner que se preze, eram um tremendo êxito. Para uma carreira internacional que se adivinhava, faltou-lhe quiçá entrar em estúdio e gravar um disco, provavelmente de janelas abertas, e não sei se isso seria tecnicamente possível. Em todo o caso, ficou a perder a posteridade, que hoje em dia não sabe o que era bom.
Para rematar, é preciso que se note que o sintetizador, instrumento musical electrónico tal como actualmente o conhecemos, ainda não tinha sido inventado. Moisés era o seu próprio instrumento. No seu tempo, e no panorama artístico nacional, Moisés, o nosso Moisés, foi profético, vanguardista, pioneiro, radical, fracturante. Uma autêntica pedrada no charco. Uma indesmentível lufada de ar fresco. Pum!
Sem comentários:
Enviar um comentário