O nosso homem no terreno
Quando ela falava do seu homem no terreno, havia logo quem imaginasse histórias de espiões, acção, aventura e romance. Mas não. Ela falava do marido e da hortazita que o desgraçado fabricava nas traseiras da casa em horário pós-laboral.
Mas nem todos têm a minha sorte. Os lisboetas, por exemplo. Os lisboetas são uns infelizes, uns desgraçados, não sabem da vida, não sabem da terra, não sabem sequer de que terra são. Aqui atrasado, o Continente, esse, o dos supermercados, fazia de velho mestre-escola e, uma vez por ano, tomava conta dos lisboetas, assim ditos, e levava-os em gaiteira excursão de volta às suas raízes mais profundas. Às berças. Aos campos do Minho, de Trás-os-Montes, das Beiras, do Alentejo ou dos Algarves de onde eles partiram há duas ou três gerações, com a saca da merenda enfiada no cajado ao ombro, os pés descalços e as chancas nas mãos. Quer-se dizer: embora o ignorem, os lisboetas são tão parolos como os outros parolos todos à volta. Lisboa já não diferencia. Faz cada vez mais parte do resto que é paisagem neste país que não existe.
Naquele dia, os lisboetas, que são parolos mas não se lembram, aprendiam ou reaprendiam, por exemplo, que o leite não nasce em pacotes, que as galinhas estão vivas antes de estarem mortas, como diria a senhora dona Lili Caneças, que os ovos só podem ser produzidos com aquele feitio ou que o bife não é um animal, pelo menos um animal completo. E, com um bocadinho de sorte, até talvez pudessem descobrir o mais extraordinário segredo da vida, que é: a vaca não dá leite. Isso, a vaca não dá leite, ao contrário do que consta. A vaca não dá leite, não dá carne que serve para a nossa alimentação, não dá pele que serve para fazer sapatos nem dá chifres que servem para fazer pentes, como nos exigiam nas redacções da escola primária. A vaca não dá nada, porque a vida não é de graça. É preciso ir lá, à vaca, e dar-se ao trabalho e tirar e tratar e transformar e fazer - é assim que o Lopes ensina os netos.
Mas então, o Continente oferecia aos lisboetas uma espécie de circo rural onde não faltavam as vacas e os cavalos, os patos e os gansos, as ovelhas e os porcos, as avestruzes e os burros. E enfartava-os com um megapiquenique a que o analfabetismo vigente não se cansava de chamar "Mega Pic Nic". Um arraial dos antigos para recriar, em plena Avenida da Liberdade e no Parque Eduardo VII, o "espírito do campo", o "ambiente de uma grande quinta", com o patriótico desiderato - acrescentava a propaganda do Continente - de "chamar a atenção dos portugueses para a importância do apoio à produção nacional". Pois se calhar.
E os lisboetas juntavam-se aos milhares, aos milhares de milhares, de boca aberta, entusiasmados até mais não com a novidade, fresquinha e ao vivo, das cores, dos sabores e dos aromas do campo, como se o campo fosse aquilo. Mas, sobretudo, os lisboetas do país inteiro, do país que não existe, iam ao cheiro do concerto do Tony Carreira. À borla. Tony Carreira apresentado aos lisboetas como "o melhor da música portuguesa".
Ora bem. Honra lhe seja, Tony Carreira, isto é, António Manuel Mateus Antunes, 61 anos, natural de Pampilhosa da Serra, é um profissionalão, provavelmente o melhor do seu ofício, mas não é "o melhor da música portuguesa". Entendamo-nos: por mais multidões que congregue, por mais corações que despedace, por mais sutiãs ou cuecas de senhora que lhe atirem ao palco, Tony Carreira é apenas um cantor romântico com imeeeeeenso sucesso e acaba de fazer constar que o próximo disco pode ser o último, Deus o ouça. Mas a música portuguesa, desculpem-me a expressão, é outra coisa. E felizmente.
Depois o Continente trouxe o arraial para o Porto, para os lisboetas do Norte. O estardalhaço chama-se cá em cima Festival da Comida e invade e atafulha o martirizado Parque da Cidade, aproveitando uma ínfima parte da parafernália montada para o já de si devastador Primavera Sound. E com Tony Carreira sempre! Eu sou um ferrinho, todos os anos: nunca lá ponho os pés. Aliás, porque moro ao lado, nesses dias de confusão fujo para o sossego do Minho antigo, esse sim, quanto mais alto melhor. Já disse. Sou de Fafe e doutro tempo. Do tempo em que os Óscares eram Acúrsios. E os Tonys eram de Matos.
Sem comentários:
Enviar um comentário