sexta-feira, 20 de junho de 2025

Perfume de mulher

E foi lavar-se
A velha prostituta, muito limpa e organizada, consultou a agenda, meia dúzia de linhas encriptadas em gatafunhos analfabetos, e leu baixinho, como que soletrando, acariciando as impossíveis sílabas uma a uma: - O do talho às onze, o taxista ao meio-dia, o padre às três e o senhorio às cinco. Desarriscou-os a todos, um atrás do outro, meticulosamente, com gosto, sorriu para o espelho do toucador, provocando-se, e resolveu tirar o dia. Guardou a agenda e pegou no telemóvel, vagarosamente, com requebros e biquinhos, imitando um gesto coquete que vira uma vez na televisão. Marcou encontro com a Amélia Calçuda. O espelho corou. E ela foi lavar-se.

Na minha infância e princípios da juventude lidei muito com padres. E os padres cheiravam. Isto é, tinham ou emanavam um certo e determinado cheiro. Não como o extraordinário Padre Clementino ou o Secónego, casos particulares, que cheiravam naturalmente a mofo, mas outro cheiro, doce, aperfumado, que também não era incenso nem ares de santidade ou sacristia. Cheiravam não sabia bem a quê. Aquilo intrigava-me, ainda por cima porque eu nem fazia ideia de que havia perfumes para homens, quanto mais para padres!
Que se segue? Na vasta sabedoria dos meus dez-onze anos, resolvi então que aquilo de os padres cheirarem a perfume era para disfarçar o cheiro a tabaco, como, por exemplo, o nosso senhor abade. Os padres não queriam que o povo soubesse do cigarrito às escondidas. Bem visto! Porque, naquele tempo, fumar era um pecado muito grande, praticamente ao nível do pecado da sagrada masturbação.
E nisso fui acreditando, bem-aventurados os néscios, até que um dia, espigadote e epifanado, finalmente percebi: aquilo do perfume dos padres era mas é cheiro a mulher, cheiro de convívio com mulher. E, nesse caso, Deus os abençoe...

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