terça-feira, 23 de dezembro de 2025

O Natal do padre João Aguiar


O número
O candidato a comediante subiu ao palco, aproximou-se do microfone e anunciou que tinha um número para apresentar. Apresentou o cinquenta e três e foi um sucesso.

O Padre João Aguiar celebraria hoje 76 anos se não tivesse falecido no dia 27 de Abril de 2023. E pelo menos sorriria ao ler esta abertura assim tão tola. João Aguiar Campos (1949-2023), a quem cometeram a desfeita de fazer cónego, foi um dos mestres da minha vida, e eu disse-lho em tempo útil, portanto não vou falar disso agora. Era o Padre João, como gostava que lhe chamassem, ou o nosso Padre Aguiar, como lhe chamávamos, prefeito, mirabolante professor de História e sobretudo amigo. Também poeta. Trago aqui uns versinhos que são dele e que eu guardo há 50 anos. Mandei-lhos em fotografia pelo Natal de 2017, ficou admirado, não sabia deles, e constou-me que então os publicou nas suas redes sociais. O original continua comigo.
Os versos escreveu-os o Padre João Aguiar propositadamente para serem lidos na abertura de um concerto de Natal que o orfeão do Seminário de Filosofia gravou com meses de antecedência para a então Emissora Nacional no auditório do Conservatório de Braga, que parece que tinha uma acústica perfeita, sob a supervisão técnica e embebecida do maestro Silva Pereira, se não me engano. O ensaiador e regente do orfeão, disso tenho a certeza, era o cónego José Sousa Marques, isto é, o famoso Galinhola, lá cheio dos seus meneios e trejeitos, e daí a alcunha que lhe puseram. Eu e o Salomão lemos o poema, ao jeito de jograis, ora agora digo eu, ora agora dizes tu. Aconteceu por alturas de 1974, depois meteu-se o 25 de Abril, graças a Deus, e o extraordinário concerto, tanto quanto sei, nunca foi emitido.
Sem mais delongas, o poema do Padre João Aguiar é assim, e até dói de actualidade:

Vieram de longe abraços amigos
trazendo o calor de muitas fogueiras.
Escorreram melodias
nos dedos das ruas,
abriram-se risos
nos rostos das montras.

Natal...

Correram as crianças,
falaram avós
dos tempos que foram
e não voltarão

Natal.

Desfilaram no musgo
soldados de chumbo,
presença involuntária
das guerras reais.

Natal.

Mas
porque perdemos nas mesas
as fomes alheias
e na corrida ao passado
as lágrimas de hoje?!

porque falamos de Deus
e esquecemos Seu nome,
olhamos a estrela
e destruímos a terra?!

porque mentimos cantando?

Filho de Deus,
tem piedade de nós!

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