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sábado, 21 de junho de 2025

Fui para padre e não me quiseram

Quanto mais alto, melhor
Ouço a poderosa Abertura 1812, de Tchaikovsky, e é como se fosse o Minho, o meu Minho. Isto é: quanto mais alto, melhor.

Rui Valério entrou para o seminário aos 11 anos, destacava a CNN Portugal, e o Papa, então Francisco, escolheu-o para ser o novo patriarca de Lisboa. Eu também entrei para o seminário aos 11 anos, mas, lá está, mais uma vez não fui escolhido. Em todo o caso, não me dava jeito. Aquilo foi em Novembro de 2024 e eu tinha e tenho a produção toda tomada até ao final de 2026. Viessem mais cedo. Ou, então, que não me tivessem deitado fora. Para além disso, devo confessar, convinha-se um lugar cá mais para cima, para o Minho, se possível, no Alto Minho então é que era, uma casinha mesmo sem sacristia mas com terreno, pequeno que fosse, o rio e o mar à beira...

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Perfume de mulher

E foi lavar-se
A velha prostituta, muito limpa e organizada, consultou a agenda, meia dúzia de linhas encriptadas em gatafunhos analfabetos, e leu baixinho, como que soletrando, acariciando as impossíveis sílabas uma a uma: - O do talho às onze, o taxista ao meio-dia, o padre às três e o senhorio às cinco. Desarriscou-os a todos, um atrás do outro, meticulosamente, com gosto, sorriu para o espelho do toucador, provocando-se, e resolveu tirar o dia. Guardou a agenda e pegou no telemóvel, vagarosamente, com requebros e biquinhos, imitando um gesto coquete que vira uma vez na televisão. Marcou encontro com a Amélia Calçuda. O espelho corou. E ela foi lavar-se.

Na minha infância e princípios da juventude lidei muito com padres. E os padres cheiravam. Isto é, tinham ou emanavam um certo e determinado cheiro. Não como o extraordinário Padre Clementino ou o Secónego, casos particulares, que cheiravam naturalmente a mofo, mas outro cheiro, doce, aperfumado, que também não era incenso nem ares de santidade ou sacristia. Cheiravam não sabia bem a quê. Aquilo intrigava-me, ainda por cima porque eu nem fazia ideia de que havia perfumes para homens, quanto mais para padres!
Que se segue? Na vasta sabedoria dos meus dez-onze anos, resolvi então que aquilo de os padres cheirarem a perfume era para disfarçar o cheiro a tabaco, como, por exemplo, o nosso senhor abade. Os padres não queriam que o povo soubesse do cigarrito às escondidas. Bem visto! Porque, naquele tempo, fumar era um pecado muito grande, praticamente ao nível do pecado da sagrada masturbação.
E nisso fui acreditando, bem-aventurados os néscios, até que um dia, espigadote e epifanado, finalmente percebi: aquilo do perfume dos padres era mas é cheiro a mulher, cheiro de convívio com mulher. E, nesse caso, Deus os abençoe...

quarta-feira, 18 de junho de 2025

A xalxixa, mas em francês

Atenção. Si six scies scient six saucisses ici, six cent six scies scient six cent six saucisses ici. No seminário também aprendíamos coisas assim, interessantes para a vida. Esta foi-me ensinada pelo padre Américo Ferreira Alves (1917-2013), na aula de Francês. O tonitruante e escuteiríssimo padre Américo era um excelente professor, moderno, por estranho que possa parecer. O Francês que aprendi com ele nos dois primeiros anos do "Ciclo" chegou-me e sobrou-me para todo o "Liceu", com dispensa de professores e exames, para o linguajar de férias com os nossos emigrantes, em Fafe, e até para viagens a França sem sobressaltos linguísticos de maior. O padre Américo, depois monsenhor, era autor de um livrinho muito prático para Português e Francês, de aquisição obrigatória, creio que se chamava "Analyse", e gostava muito de poetar. Escrevia os seus versinhos no quadro, para que os copiássemos, se quiséssemos, e declamava-os a ritmo marcial, num vozeirão de bradar aos céus. Se os sargentos fossem diseurs, diriam certamente assim. Já lá vão mais de 50 anos, mas lembro-me de um poema, tremendo, que começava talvez desta maneira, citando de cor:

Céu de puro anil
e de graças mil
pelo mês de Abril
és a beleza.

Só pra ti olhar
faz-me suspirar
e em ti buscar
toda a riqueza.


Quer-se dizer: não tenho a certeza quanto à localização certa de "beleza" e "riqueza", se era por esta ordem ou ao contrário, também não sei se "riqueza" entra mesmo, ou seria "tristeza" ou "clareza" ou "leveza" ou "pureza", mas "beleza" é exacto que constava e a rima era realmente esta, em "eza". Em todo o caso, estais a ver a profundeza?

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Epístola aos Travassolenses

A desobra de Deus
Deus criou o homem. E o homem inventou a religião. E talvez não houvesse necessidade...

Paulo de Tarso, ou Saulo de Tarso, também conhecido como Apóstolo Paulo, São Paulo Apóstolo, Apóstolo dos Gentios ou simplesmente São Paulo, nem sempre foi o santo que hoje se pinta. Tem atrás de si um passado, como todos nós, mas um passado mais negro do que o da maioria de nós. Saulo era um fariseu radical, impiedoso, feroz, um zelota que se dedicava sem descanso à perseguição dos seguidores de Jesus. Era portanto do piorio, mau como as cobras, o diabo em pessoa, e só amansou e ganhou juízo quando Deus Ele mesmo lhe saiu ao caminho, dando-lhe um valente safanão e cegando-o temporariamente, a ver se ele aprendia. E ele aprendeu.
Assim miraculosamente convertido, Paulo resolveu pôr a correspondência em ordem e desatou a escrever missivas. Para além da algumas cartas com destinatário individual, sempre para homens, que fique devidamente registado, epistolou aos Romanos, aos Coríntios, aos Gálatas, aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, aos Tessalonicenses e eventualmente aos Hebreus. Catequizou também os Gentios, e quando eu descobri a parte nova da Bíblia, em pequenino, contada pelo senhor abade, julgava que os Gentios eram um povo assim como os Helvéticos ou os Teutónicos, naturais e residentes num país de que era proibido ou eventualmente pecado dizer o nome, por indecente e má figura.
Aprendi muito, depois, no seminário. Tive bons mestres. Agora ao caso, tive até um famoso especialista em "St Paul'ssss Cathedraaaal", o cónego Azevedo, ou "Ticha", por ser professor de Inglês, realmente um pândego, excêntrico e musical, bailarino de sobrepeliz e crónico mestre de cerimónias da Sé de Braga, figura que a minha memória tola às vezes confunde injustamente com o cónego Rodrigo, ou "Pipa", derivado à própria forma, outro cromo mas menos dado, também antiquíssimo e, no que me diz respeito, ineficaz professor de Latim. Já agora: o cónego Azevedo era o cónego Manuel Rodrigues de Azevedo (1915-1988) e o cónego Rodrigo era o cónego Rodrigo Guilhermino Ernesto de Carvalho. Cá está, eu e os cónegos...
Os nomes na Bíblia sempre me fascinaram. Tanto que eu pensava (e ainda penso) que se São Paulo fosse hoje e se por acaso resolvesse escrever aos portugueses só se dirigiria, arrisco dizer, aos Albicastrenses, aos Egitanienses, aos Escalabitanos aos Brigantinos, aos Freixenistas ou Freixienses ou Freixonistas ou Freixonitas, gente assim de nome fidalgo, ainda que indeciso, e nunca abaixo disso. Aliás, creio que os fafenses, padecendo de tão simples onomástica, ficariam de fora. Os fafenses assim entendidos de um modo geral, mas já não diria o mesmo, deixa-me cá ver, em relação, por exemplo e em concreto, aos Serafonenses ou aos Travassolenses que também podem ser Travassoenses, que se apresentam com gentílicos realmente de categoria, com gabarito bastante para merecerem a atenção do apóstolo e bem capazes de integraram a sua lista de contactos favoritos. E eu parece que estou a ouvir nas capelas e igrejas por esse mundo fora, palavra de honra, "Leitura da Segunda Epístola de São Paulo aos Travassolenses. Meus irmãos..."
E Melquisedeque? Ai o que eu gostava do nome Melquisedeque! E Ponto e Bitínia e Capadócia e Antioquia, nomes assim de perlimpimpim, de números de circo de Natal. Antioquia que me fazia sonhar aventuras das mil e uma noites, lamentando embora que São Paulo, que por estas bandas terá pregado o seu primeiro sermão, nunca tenha mandado uma epístola na volta do correio, uma sequer para amostra, aos simpáticos e desamparados Antioquenses.
Já no que respeita aos sodomitas, habitantes de Sodoma, continuo a achar que ficaram com a pior parte da fama. Os gomorritas, que eram outros que tais, safaram-se, vá-se lá saber porquê, e nem constam nos dicionários, quanto mais! A História nem sempre é justa, e parece-me que a Bíblia, às vezes realmente tão atrevida, devia ter aqui uma palavra a dizer.

domingo, 1 de junho de 2025

Os convencidos da vida

Espelho meu
Ele era careca, completamente careca. Careca e vaidoso. Aliás, penteava-se de risca ao meio.

O problema dos ex-colegas. Sim, a chatice dos ex-colegas. Para um gajo a caminho dos setenta, embora em estado de praticamente novo, a questão dos ex-colegas é um aborrecimento quase tão grande como os calhamaços do José Rodrigues dos Santos se por acaso eu os lesse. Uma aflição. Os ex-colegas são uma pedra no sapato, e é por isso que há muitos anos só calço botas ou sapatilhas. Imaginem-me: com ex-colegas da minha rua e da escola primária, os melhores de todos, com ex-colegas do seminário, já lá irei, com ex-colegas do liceu que foram para doutores e foi um ar que se lhes deu, com ex-colegas dos Comandos que acham que são muito audazes e eu realmente não sou, com ex-colegas da fábrica de quem tenho tantas saudades, com ex-colegas dos jornais e da rádio que têm lá as suas vidas, vejo-me à rasca para os aturar a todos, mesmo quando eles não querem saber de mim, o que é regra geral. E quando querem saber de mim, então ainda é pior. O caso do seminário, e eu disse que vinha cá, é absolutamente paradigmático. Para quê? Digmático. Ninguém me mandou para o seminário, fui porque quis, porque queria ser padre, e às vezes ainda quero. A minha mulher sabe disso, desta minha impenitente inclinação, e, mais, somos felizes. No ano em que lá cheguei, ao seminário, éramos 136 crianças, eu tinha 11 anos e havia um documento de acção psicológica (isto anda tudo ligado) que rezava assim: "Começar é fácil. Recomeçar é de muitos. Chegar ao fim é de heróis. Nesta marcha ascensional é nosso dever caminhar! A empresa é difícil, mas fascinante O Ideal!"...
E há criaturas que acreditam nisto, os supra-sumos que chegaram ao "O Ideal!" e que, portanto, só podem imaginar que são os maiores, os "heróis". Se tivessem ido para os Comandos, esses supra-sumos, sumos sacerdotes, andariam agora por aí de boina vermelha e crachá, eventualmente de G3 a tiracolo se os deixassem, e, em vez de melancólicos ego te absolvo, diriam esfuziantes mama sumae! Estes rapazes tiveram os melhores mestres do mundo, o padre Fonseca e o padre João Aguiar, para não irmos mais longe, e afinal não aprenderam nada com eles, não perceberam nada da vida. Não percebem nada da vida.
Eu explico. Reencontrei-me ultimamente com ex-colegas do seminário que deram em padres. E até gostei, a princípio. Há aquela festa propedêutica, "ó pá, há que tempos, és mesmo tu, estás mais gordo, estás mais magro, está igualzinho, dá aí um abraço...", como pessoas normais, e depois os meus ex-colegas enfiam no cu um daqueles feijõezinhos milagrosos que lhes dão aquela voz sacrista e falseta, e, magníficos, condescendentes e compassivos, com a superioridade moral dos eleitos, dos exclusivos de Deus, perguntam sempre lá do alto, como se estivessem secretamente combinados uns com os outros, "e então, o que é que tens feito?"...
Fico atrapalhado. O que é que eu tenho feito? Começo a suar, a gaguejar, não sei o que hei-de dizer em minha defesa. Afinal estou perante um dos que chegaram ao topo do Kilimanjaro e eu nem sequer passei do sopé do Bom Jesus do Monte, onde o Secónego tinha uma casa. Conto o melhor que consigo: "ó pá, tenho sido sobretudo jornalista mas também trabalhei numa fábrica, sou casado há mais de quarenta anos, sempre com a mesma mulher, o que é censurável no meu ofício, porém continuo apaixonado, tenho um filho que é uma jóia e o meu maior orgulho, temos a casa e o carro pagos, damos umas voltinhas para arejar, eu não sei conduzir mas cozinho muito bem, tenho quatro amigos, pendurei a carreira profissional para tomar conta primeiro do meu sogro e depois da minha sogra, e não me lembro se já disse que sou jornalista"...
Mas não chega. Eu sei que não chega! E continuo à aflito, gago e suado, mortinho por desaparecer por mim abaixo. Eu até acho que a classe dos ex-colegas está muito sobrevalorizada. Parece-me que a maioria das pessoas passa distraidamente ao lado do negativismo, da carga pejorativa que a própria expressão em si encerra. Ex-colega, ex-colegas. Se, por analogia, as pessoas pensarem no que pensam quando pensam em ex-amigo, em ex-amigos, em ex-mulher ou ex-mulheres, certamente compreenderão o que eu quero dizer. Mas não adianta. Isso não me salva. Os ex-colegas aparecem-me, realizadíssimos da vida, e eu, que sei que sou a desgraça que sou, a mediocridade em pessoa, encho-me de vergonha, só me apetece fugir...
Que raiva! Porque é que os nossos ex-colegas, mesmo os que não conhecemos de lado nenhum, estão todos melhor de vida do que nós? Tenho um desgosto muito grande.

Ou por outra, tinha. Porque aqui atrasado fui a Fafe a um funeral e mudei de táctica. Fui a Fafe, dizia, e esbarrei com um dos meus que deu em padre e que, ainda por cima, estava encarregado do serviço fúnebre. Conversámos na sacristia da Igreja Matriz, intermediados pelo meu sobrinho Geno, que me saiu um tipo bem porreiro. Como de costume, inquirido sacramentalmente, pelo ex-colega, "e então, o que é que tens feito?", confessei na mesma o "ó pá..." do parágrafo ali de cima, o "ó pá..." completo, porque tenho este defeito de informar, deformação decerto profissional, mas depois acrescentei, perguntando-lhe também, para livração da minha alma:
- E tu? Não fazes nada, não é? Quer-se dizer, nunca fizeste nada, pois não? És padre...

P.S. - Em todo o caso e nos tempos que correm, com o que vai aí de pedofilia e outros abusos eclesiásticos: como diria a minha mãe, que é sábia mas também queria um filho padre, "mais vale não fazer nada do que fazer asneiras"...

sábado, 17 de maio de 2025

Estamos no Natal, meus meninos!

Quantos eram os três reis magos?
Os três reis magos eram não se sabe quantos, e na verdade nem eram reis nem eram Magos. Provavelmente inexistiram. Ou então seriam Moët & Chandon. Mas isso não interessa. O certo é que, depois de terem adorado o Menino Jesus, em Belém, e de lhe terem oferecido ouro, incenso, mirra, um tambor, um cavalinho de pau e um carrinho de bombeiros, dedicaram-se à bola: Gaspar brilhou no Rio Ave, Baltasar fez seis épocas no Sporting e Belchior jogou na selecção de futebol de praia. Por outro lado, que raio de ideia foi aquela de oferecer mirra a uma criança? Mirra!? Mas isso é algum presente?...

O Natal começa cedo cá em casa. O mais tardar no início da segunda semana de Novembro, a minha mulher tira um dia, desencaixota o Natal e espalha-o pela casa inteira. O pinheiro, os presépios, a aldeia de Natal, bonequinhos de neve, arranjos de mesa, canecas de Natal, Pais Natais de todos os materiais, tamanhos e feitios, laços, lacinhos, azevinhos, estrelas-do-natal naturais e artificiais, soldadinhos de madeira a fazerem de soldadinhos de chumbo, peluches alusivos e musicais, Ferrero Rocher, Mon Chéri, calendários do Advento, bengalinhas, comboiinhos, renas e grinaldas e estrelinhas e anjinhos, velas, bolas e embrulhinhos por todo o lado, em todos os cantos e corredores, em todas as portas, em todas as divisões, incluindo casas de banho, despensa e quarto de arrumos. A iluminação é geralmente inaugurada quando o Kiko e a Sara vêm jantar, que é à quinta. A minha mulher gosta muito do Natal, o meu filho gosta muito do Natal. Eu gosto muito da minha mulher e do meu filho. Portanto, que remédio...

No ano passado metemos o galo no presépio. Todos os anos experimentamos um melhoramento natalício, há muito que andávamos com o galo debaixo de olho, e foi no ano passado. E lá ficou ele, instantaneamente afeito aos seus novos quefazeres, altaneiro e bico calado, mas gostamos de imaginá-lo todo kikirikiki como o Jerónimo do reclame da Compal na televisão, a anunciar o nascimento do Menino Jesus exactamente às 7h30, conforme muito bem podia constar da Bíblia.
O nosso galo do presépio é "um" galo de Barcelos, mas, atenção, não é "o" Galo de Barcelos. Nada de parolices, valha-nos Deus! É um galo de capoeira, obra de mestre barcelense, isso sim, 6x4 centímetros, a obra, um euro e meio, o preço. É arte, comprada nas barraquinhas do Senhor de Matosinhos.
Só presépios temos oito, para além de mais meia dúzia de Meninos Jesus avulsos, e nem a varanda e o escritório escapam ao nosso Natal. Pusemos o galo novo no presépio principal, evidentemente. O nosso é um presépio inclusivo, ao contrário do presépio do falecido papa Bento XVI, que em 2012 resolveu expulsar a vaca e o burro, porque, sentenciou, no local do nascimento de Jesus "não havia animais". Portanto, concluí eu, também não havia ovelhinhas, o que quer dizer que também não houve pastorinhos do deserto. Sobravam, inequivocamente, os três reis magos. Gente fina, vinho de outra pipa. Reis. E magos (porque o champanhe ainda não tinha sido inventado). Esses, é certo, estiverem lá, em representação de toda a humanidade - segundo Ratzinger. Estiveram os reis magos e os anjos cantadores. Os anjos também estiveram.
Que se segue? Eu por acaso até era mais dado a acreditar no burro e na vaca do que na mirabolante história de Gaspar, Melchior, aliás Belchior, e Baltasar, uma boa linha média para quem jogue em 4-3-3, mas que se há-de fazer? Na verdade, eu por acaso até sou capaz de acreditar mais no burro e na vaca do que nos anjos e no presépio completo, a começar pelo dogma da virgindade de Maria tal como está estabelecido. Mas quê? Mais de dois mil anos a aquecerem o Menino com os respectivos bafos, e foi este o pagamento que o burrinho e a vaquinha receberam.
Cá em casa não expulsamos ninguém, pelo contrário. No nosso presépio entram todos. Todos são bem-vindos, sem excepção. Pastores, trolhas, cabrinhas, escafandristas, empregados de mesa, com e sem-abrigo, prostitutas, levandiscas, lambe-botas, grilos, reis magos e outros artistas de circo, polícias municipais, cães e gatos, sapos e ciganos, evidentemente o burro e a vaca, que se lixe o Vaticano!, e desde ano passado o galo, este ano a minha mulher ainda não se decidiu pela novidade, se calhar para o ano um porco e depois uma avestruz, o Ben-Hur, se também quiser, o He-Man, o Super-Homem, o homem-estátua, a Justiça de Fafe, a Barbie, o Nenuco, a Popota, a Irmã Lúcia, os Power Rangers, o Padre Cruz, os Transformers e as Tartarugas Ninja, o Zé Povinho e o Fradinho das Caldas, o Tutankhamon, o Yoda, Marcelo Rebelo de Sousa e até Bento XVI se entretanto sair em boneco.
Deus é grande, e o nosso presépio será cada vez maior.

É. Chegamos ao Verão e a minha mulher começa logo a programar o Natal, a fazer compras de Natal, a falar do Natal, e realmente num lampo estamos lá, num lampo estamos cá. Agora, nesta idade, os dias fogem-nos com uma bolina que já não conseguimos controlar. "Estamos aqui, estamos no Natal!", dizemos quase sem querer. E de repente estamos, mal acabamos de dizer. Como se estivéssemos sempre no Natal. Como se o Natal fosse um presente contínuo. E, olhai, do mal o menos.
Faz-me lembrar o padre Fraga, mestre e amigo na minha infância sacrista. Há muitos anos, no seminário, em Braga, o querido padre Fraga passava a vida a tentar chamar-nos à razão, a apelar ao redobrar do esforço no estudo, à recuperação de notas, ao brio escolar. O bom padre Fraga, Albano Teixeira Fraga, que é fafense de Travassós e que se desfazia em riso de cada vez que queria falar de mau, perorava com os braços cruzados no peito, gesticulando com uma mão de cada vez, "por um lado isto, por outro lado aquilo", coisa bonita de se ver. Ele tinha uma teoria, um argumento poderoso. Estávamos ainda em Janeiro, no início do 2.º período, e o padre Fraga agitava as juvenis (in)consciências, alertando, apocalíptico: "Porque, meus meninos, estamos no fim do ano!..."
Isso. A urgência da vida. Com o padre Fraga, desde o princípio do ano que estávamos no fim do ano, não havia tempo a perder. Cá em casa, a Mi é com o Natal. Os nossos Natais, verdade seja dita, são como os cigarros das férias grandes, que eu, o Bilinho e o Bergiga íamos fumar às escondidas atrás do Jardim do Calvário: acendem-se uns nos outros.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Os cartoleiros

Os cartoleiros eram os protegidos ou favoritos dos "superiores", quer-se dizer, dos padres, no seminário. Isso e nada mais. Eram geralmente alunos acima da média, com direito a pequenas mordomias e tolerância alargada. Insignificâncias. Eram os que tinham maior proximidade e convívio com os mestres. Além disso, os cartoleiros eram também, como se dizia em Fafe, escovas, graxistas, lambe-botas e, frequentemente, bufos. Eu, devo confessar, gozei do estatuto de cartoleiro no que diz respeito à primeira parte, isto é, aos benefícios, mas fui vítima da segunda, da manha hipócrita dos chegamissos. Os cartoleiros eram apontados a dedo e invejados pelos colegas, e invejavam-se entre si.
É claro que, no Brasil, a palavra cartoleiro desfruta de um significado diverso e muito próprio, no âmbito dos trabalhos manuais em particular ou do artesanato de uma forma geral. Mas isso, valha-me Deus, já nos levaria por outros caminhos...

quinta-feira, 24 de abril de 2025

O Sr. Pimenta, isto é, o Bataman

O homem-tocha
O homem-tocha mudou de residência, mas ficou na zona. Chamam-lhe agora homem-mealhada.

Chegava a altura dos pontos e eu baixava à enfermaria. Academicamente falando, os pontos eram aquilo a que hoje, suponho, ainda se chama testes, e a enfermaria já então era o que é - enfermaria. Atenção: eu dava parte de doente não porque fosse mau aluno, mas porque era muito bom preguiçoso. Para além dos percevejos na cama e do tradicional concurso de punhetas logo pela manhãzinha e a meio da tarde, o melhor que a enfermaria tinha era a sineta a tocar lá fora para os outros, a comida "de dieta" e o enfermeiro propriamente dito, que na verdade era barbeiro. O Sr. Pimenta, se bem me lembro. O Sr. Pimenta era enfermeiro suponho que por usucapião, porque tinha a bata branca de barbeiro, trazia os termómetros no bolso, via as febres, passava raspanetes e dava-nos uns comprimidos de faz de conta que, se não me engano, eram sobras do Laboratório Militar. Os comprimidos serviam para tudo e não faziam nada. As febres eram forjadas na fricção com os cobertores - chamava-se àquilo "manipular a febre" ou apenas "manipular". Para além disso, o Sr. Pimenta dava também muito mal injecções, provavelmente de água destilada. E eu contava anedotas.
Figura mítica, consagrada instituição da velha Tamanca e autoridade local, espécie de regedor interno, o Sr. Pimenta era um homem gordo, de andar pesado e lento, periclitante. A cada passo parecia-me que ia cair redondo para um dos lados, consoante a perna curta que avançava. O Sr. Pimenta tinha idade para ser meu avô, achava eu, e uma barbearia montada como se fosse a sério, no pequeno corredor mesmo em frente à capela e ao lado da sala de aulas que era também a "loja" onde os padres nos vendiam os "objectos", mas cortava tão mal o cabelo como os tosquiadores fardados que mo raparam sem dó nem piedade, uns anos depois, quando dei entrada nos Comandos. O Sr. Pimenta era barbeiro porque tinha a bata branca de enfermeiro.
Quer-se dizer: o Sr. Pimenta era a bata.
E poderia ter sido, quem sabe, o Homem-Bata, isto é, o Bataman, se, derivado aos seus múltiplos poderes e polivalentes predicados, a Marvel lhe tivesse deitado a mão em devido tempo. Infelizmente a Marvel não recruta em Portugal, e é o que perde.
Apesar de ter tudo para ser um super-herói, o Sr. Pimenta era só Sr. Pimenta para mim, porque a minha mãe tinha-me ensinado a tratar os senhores por senhores. Para o resto da rapaziada do seminário, meninos bem ou matarruanos, o Sr. Pimenta era o Pimenta, ordens de cima, nada de confianças. Paradoxalmente. E os outros funcionários ou acoitados, os que nos serviam no refeitório, certamente lerdos mas filhos de Deus como a gente, eram "criados". Criados. Ordens de cima. Já nem falo de educação - a caridade cristã tem definitivamente muito que se lhe diga.

Portanto, chegava a altura dos pontos e eu baixava à enfermaria. Um ano, o padre Vilar, o bom padre Vilar, não quis que eu ficasse sem nota a Religião e Moral. Visitou-me, fez-me duas ou três perguntas que valeriam o ponto, perguntas do mais elementar possível, só para que eu fizesse boa figura. Perguntou-me:
- Quem é Deus para ti?
- Deus é o meu pai - respondi.
- Todos somos filhos de Deus - atalhou o padre.
- Mas eu sou mais, porque sou órfão - defendi-me, com uma não ensaiada porém oportuna lágrima no canto do olho que me valeu para aí um dezoito.
Isto é: sou malabarista desde pequenino.

Na enfermaria havia sempre um bufo que ia contar ao impiedoso padre Coutinho as minhas anedotas, mas omitia a parte da sagrada masturbação, que era regra geral e ideia não sei de quem, minha é que não, parece impossível. E eu também não sabia a malícia das anedotas que levava de Fafe para contar. Fiquei a saber quando fui chamado à pedra por uma orelha - e assim me roubaram a inocência. O padre Coutinho gostava muito de música clássica, e eu tenho a certeza absoluta de que a música clássica, que é tão boa, não gostava nada dele.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Era uma música muito estranha

Apontamento musical
Era um pequeno apontamento musical. Estava escrito num "post-it". 

Uma vez, há muitos séculos, levaram-me a uma espécie de concerto no auditório do Conservatório de Música de Braga. Eu estava no seminário, teria no máximo os meus dezasseis anos e portanto que remédio. Fomos talvez para compor a sala, não faço ideia. E aquilo foi muito chato, não é para me gabar. Pela primeira vez na vida ouvi Béla Bartók, por interposta pessoa, e Cândido Lima, por ele próprio, creio que também com direito a comentários, ainda por cima. Saí de lá muito zangado com a padralhada e convencidíssimo de que o que acabara de ouvir não era música, até porque já tinha aprendido nas aulas que "música é um conjunto de sons agradáveis aos ouvidos", e na verdade eu vim cá para fora com as orelhas todas fodidas.
Que se segue? Descobri recentemente que existe o Dia Internacional da Música Estranha, festejado a 24 de Agosto, e lembrei-me deste lamentável episódio, que me marcou como ferro em brasa até aos dias de hoje. E então, quer-se dizer, talvez aquilo fosse isso: música estranha. Mas eu não sabia. Devo acrescentar, em minha defesa, que entretanto mudei de opinião a respeito daquela, digamos assim, especialidade musical. Mudei de opinião, mas apenas um bocadinho...

quinta-feira, 20 de março de 2025

Os capados

Os pontos nos ee
"Sexualmente falando, és imprestável", disse ela. "Tá bem", disse ele, e foi organizar-se com a vizinha. Ele percebera "emprestável". São coisas que acontecem...

Houve uma maré em que a minha mãe lavava para fora. Na poça do Santo e no rio da Ponte do Ranha, à beira do Matadouro, carregava e lavava montanhas de roupa alheia. Eu às vezes ia com ela. Aquilo era um trabalho muito duro. Tão duro que eu, preguiçoso por idade e por feitio, como vim a saber mais tarde, fazia tudo para "ajudar". Mas não me deixavam. Nem a minha mãe nem as outras lavadeiras, sobretudo estas. Diziam-me, entre cantigas e caralhadas, que os meninos do sexo masculino não podiam lavar roupa. Se os meninos do sexo masculino lavassem roupa - dizia o mulherio -, quando fossem homens não lhes crescia a barba, ó terrível maldição!
A mim, confesso, nem me aquecia nem me arrefecia, aquilo da barba. Eu já estava por tudo. Tinha 11 anos, faltavam-me duas ou três semanas para entrar no seminário, e logo que lá chegasse - também me diziam - iriam capar-me sem dó nem piedade! Então olha, perdido por um, perdido por mil...

sábado, 15 de março de 2025

Os melhores anos da minha vida 2

Foto Tarrenego!

Claro que crescíamos e éramos cada vez menos. As calças à boca de sino não ajudam muito à seriedade do acto e as guedelhas anticanónicas colocam-nos nos arredores do 25 de Abril. Por aí estávamos, de facto - o que me foi fatal. Já não éramos meninos. Alguns destes cromos deram em padres, consta-me que já vão em cónegos, mas não sei de que categoria. Os cónegos, como já aqui expliquei, dividem-se em três partes.

Há três dias que olho para esta fotografia, e o que me vai realmente na alma não é para aqui chamado. Olho para a fotografia e parece-me (nunca me tinha apercebido) que, por um aviso qualquer, nos juntámos todos à volta do Miguel Carlos. Miguel Carlos Lobo Pinto de Oliveira, se não me engano. E nunca o esqueci.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Deus falava às quartas-feiras

O pecado original
Corria tudo bem no Paraíso. Quer-se dizer: corria tudo na paz do Senhor. Poder-se-ia até afirmar, creio que sem forçar demasiado a nota, que o Paraíso era, naquele tempo, um autêntico paraíso. Estava escrito, porém, que Adão e Eva tinham de asnear. Podiam ter cometido um pecado qualquer, um pecadinho de nada, um pecado repetido, copiado, um que estivesse na moda. Mas não! - quiseram ser originais. E deu na merda que deu. Até hoje.

O sítio da Bíblia, em Fafe, era em Cima da Arcada, às quartas-feiras, entre o homem da banha de cobra e o triciclo motorizado com as mezinhas e os milagres da santa Alexandrina de Balasar, tudo muito bem documentado. Ficava-me no caminho para a escola. Em certas ocasiões também por lá constava o Rei das Limas, que usava um capacete colonial e tinha lábia de encantador de serpentes. A Bíblia apresentava-se nuns grandes desenhos muito coloridos e muito bonitos, montados num cavalete de madeira, e eu tinha-lhes muita devoção porque me pareciam cartazes de cinema, cenas de filmes de gladiadores e pirâmides, e o cinema, naquela altura, era a minha verdadeira religião. Eu creio que foi assim que despontou a minha "vocação" sacerdotal, a minha irreprimível vontade de ir para padre.
Quarta-feira era e é dia de feira semanal em Fafe. E eu perdia-me ali, naquele pedaço de passeio junto às escadas que desciam para o Largo antigo, mesmo em frente à actual praça de táxis. Adorava as lérias do cavalheiro das limas, facas e tesouras, que afinal vendia tudo e um par de botas, ajudado pela mulher, uma senhora toda jeitosa e chamativa, em cima da camioneta. Falava pelos cotovelos, o homem, embora, derivado aos perdigotos, tivesse pendurado ao pescoço, por um arame, um potente microfone envolto num lenço de assoar que era uma categoria. Dizia que tinha nascido numa freguesia de Fafe, não me lembro em qual - e Serafão vem-me agora à cabeça, mas não sei porquê -, e contava as aventuras passadas nas suas mais de mil voltas ao mundo, sobretudo a África, e daí certamente o capacete, Júlio Verne não o faria melhor. Para mim, estava tudo explicado. Com aquele capacete, o arame, o microfone e o lenço, eu via-o até, ao intrépido Rei das Limas, a ir ao centro da terra ou ao fundo do mar, à Lua ou mesmo a Marte, assim equipado de explorador. Ainda por cima, o astronauta era nosso, de Fafe, eventualmente de Serafão, não sei porquê, insisto, e quem diz Serafão pode dizer Moreira de Rei ou Pedraído...
Eu admirava os propagandistas. Profetas, apóstolos, missionários, pregadores, palavristas. Propagandistas, isso. Costumava, aliás, colaborar com o da banha da cobra, era o seu habitual ajudante naqueles números gagos de chamar povo e enganar tolos, a promessa sucessivamente adiada de exibir a gigantesca cobra jibóia guardada na velha mala de cartão colocada, sob rigorosas medidas de segurança, em cima de um banco de cozinha manco de uma perna. Competia-me alinhar em duas ou três pataqueiras habilidades de circo. Eu era o palhaço pobre, a cobaia, a vítima, e gostava de fazer parte. No término do espectáculo, ou da apresentação, digamos assim, o vendedor de banha da cobra dava-me de pagamento um pequeno sabonete que eu, de todas as vezes, entregava religiosamente à minha mãe, e a esperadíssima cobra, ia-se a ver, pouco maior era do que a bicha solitária exposta num frasco cheio de álcool e que, colocada sobre o capô do carro, como prova, ao lado das dezenas de embalagens da famosa pomada multifunções, atestava aos mais cépticos, caso os houvesse, que o assunto era científico, e de cura garantida, como estava ali à vista de toda a gente. - Não estou aqui para enganar ninguém!...
Eu deixava-me seduzir. Os da Bíblia explicavam os desenhos, um atrás do outro, qual deles o mais impactante e sugestivo, com aquelas senhoras muito vestidas e de cabelos compridos e aqueles senhores muito barbudos e grisalhos, as senhoras e os senhores em respeitosas poses colossais, e seguiam-se confortáveis paraísos terreais, e serpentes onzeneiras, e dilúvios vingativos, e cordeiros degolados, e sodomas e gomorras, e sarças ardentes, e cavalos e lanças, e baleias e leões, e pragas de gafanhotos, e mares abertos ao meio, e davides e golias, e céus escancarados, e bastante inferno, e raios e coriscos, e o fim do mundo, que por acaso em Fafe era feminino, dizia-se "a" fim do mundo. Cada conjunto de desenhos era um história inteira, completa, um filme. Pelo menos para mim. Spartacus, Maximus, Maciste, Hércules, Sansão, Demétrio, Ursus, eu via-os ali, claramente vistos. Até via o Homem Mais Forte do Mundo, que mais tarde conheceria pessoalmente, não é para me gabar, eu vi-o antes de o ver, juro, lá estava ele estampado de pleno direito nos santos desenhos, mas essa parte os da Bíblia às quartas-feiras infelizmente nunca viram, não sabiam, não faziam ideia. Eram, Deus lhes perdoe, uns circunspectos.
Era. Deus falava às quartas-feiras. Em Fafe. Entre a banha da cobra e o Rei das Limas. Na feira. A Bíblia contada aos simples, vendida a retalho, em folhetins.
No seminário, nos silenciosos dias de retiro, era mesmo desta parte que eu gostava mais. No grande salão de estudo, estores corridos, luzes apagadas, o tripé com cartazes substituído pelo projector de slides, o vozeirão do narrador saindo de um enorme gravador de bobinas com colunas como se fosse do céu, uma ou outra sacramental dessincronização e banda sonora de Vivaldi e Beethoven, o que certamente seria do particular agrado do incontornável padre Coutinho, que tinha tanto de melómano como de pide. As palestras cheias de aventuras do padre Fernando Leite, da revista Cruzada e do jornal Clarim, compunham-me a alma, é verdade, quase tanto como ler "O Meu Cristo Partido", de Ramón Cué, ou ouvir Ruy de Carvalho a dizer "Desiderata", mas, confesso, a Bíblia assim contada à moda das Testemunhas de Jeová, cataclísmica como na feira de Fafe e ainda por cima em versão eléctrica, isso é que era a minha cena. 
Ah! A Bíblia! Eu adorava a Bíblia. Eu adoro a Bíblia. E ainda estou para perceber como é que nunca cheguei atrasado à escola por causa da banha da cobra e porque é que me mandaram embora do seminário...

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Os melhores anos da minha vida

Foto Fotografia Aliança

Naquela altura eu não sabia que aqueles eram os melhores anos da minha vida. Dito com mais rigor, os primeiros melhores anos da minha vida. E que ninguém se iluda com o aspecto formal, cinzento, tão manhã submersa. Rapazinhos vestidos de homens, tão coninhas. Não éramos nada disso, pelo menos não éramos todos. Éramos, pelo menos alguns, rapazes espertos e gandulos, mas tínhamos mestres. Sorte a nossa. Sorte minha. Devo-lhes tudo. E mandaram-me embora...
Alguns destes inesquecíveis cromos deram mesmo em padres, consta-me que até já vão em cónegos, mas não sei de que categoria. Os cónegos, como me ensinaram e eu gosto de explicar, dividem-se em três partes. Lá iremos...

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Um padre aí para as curvas

Fez todas as despesas da corrida. Quando, no fim, chegou à meta e lhe apresentaram a conta, ia morrendo do coração...

O Padre Clementino morava no seminário. Não porque fosse prefeito ou professor ou tivesse outras responsabilidades administrativas ou religiosas na instituição, mas apenas porque naquele tempo ainda não havia lares para padres velhinhos e desconsertados. O Padre Clementino não era velhinho, ainda não, avariara apenas, ninguém o reclamou e ficou por ali. Mas era uma figuraça, um ser fabuloso, um mito vivo e vivaço. Um cromo. Baixote, redondo, anafado, bonacheirão, vermelhusco de cara e sorriso gaiato, batina coçada, sebenta, amiúde carregada de nódoas, isto é, o Padre Clementino tinha tudo para ser cónego, mas, que eu saiba, felizmente nunca lhe fizeram essa desfeita.
O Padre Clementino era muito cuidadoso com a fruta, sobretudo com as maçãs. Punha-as a madurar na beira da janela do quarto minúsculo que lhe fora distribuído como reforma e só as comia quando elas estivessem satisfatoriamente podres, cheias de bolor, para aproveitar a penicilina. Por estas e por outras, o Padre Clementino tinha uma saúde que até metia impressão, havíeis de ver.
Contava-se, com o seu quê de lenda. Nas férias, pela calada da noite ou durante o horário lectivo, com a rapaziada nas salas de aula, o Padre Clementino andava de bicicleta pelos compridos e desérticos corredores do seminário. Apesar da ausência de tráfego, da via desafogada, apesar de ter os corredores só para ele, corredores largos, longas rectas sem sequer chicanas, a verdade é que às vezes o homem caía, sei lá se por falta de jeito ou apenas porque o raio da sotaina se lhe enrodilhava na corrente, não faço ideia. Caía e pronto. E pronto, não! Rectifico. Caía, levantava-se logo que conseguisse, não sei se estais e ver a tartaruga de pernas para o ar, verificava os estragos no material, que eram quase sempre nada, marcava o local do tombo com um grande sinal que ele já tinha preparado e que dizia, regra geral, "CURVA PERIGOSA!!!", nem mais nem menos, e saía dali todo lampeiro, novamente bicicletando como eminente ás do pedal. Com o Padre Clementino era mesmo assim, de categoria, tudo nos conformes. Fossem chamar tolo a outro...

sábado, 25 de janeiro de 2025

O Secónego

O orador
- Profissão?
- Orador.
- Faz discursos?
- Rezo pai-nossos.

O Secónego era uma sumidade arqueológica. Um sábio. Sabia das lendas, da História, das pedras, das palavras, dos nomes e dos sítios, dos livros. Sabia de celtas, lusitanos e fenícios, gregos e cartagineses, romanos, visigodos e muçulmanos. Sabia das origens todas, e da verdadeira origem das origens. Sabia. Estais a ver o professor José Hermano Saraiva na televisão? Pronto, o Secónego era a mesma coisa, mas sem televisão e a sério, sem supores mais ou menos floreados e, pelo contrário, com base científica. Ainda por cima, tinha piada fina. O Secónego comprazia-se em explicar aos seus alunos porque é que a terra de cada um se chamava como se chamava e porque é que uns eram Silva e outros eram Lopes. Explicou-me porque é que Fafe é Fafe e eu expliquei-lhe que não tenho culpa de ser Von Doellinger, puseram-me assim desde pequenino.
O Secónego tinha uma maneira de falar muito cómica. Falava como quem não abre a boca, ventríloquo da sua própria pessoa, às vezes com a mão à frente, com medo talvez de que se lhe evadisse a placa. Chamava-nos a todos "Ó menino!", embora já fôssemos uns respeitáveis gandulos, e ria-se satisfatoriamente mas aos solavancos.
Quando me chegou às mãos, o Secónego já era um sábio intermitente, com apagões. Era um homem precocemente envelhecido e debilitado. De vez em quando desligava e isso fazia-me uma enorme impressão. Lembro-me que nessas alturas me apetecia chorar. Que injustiça para uma cabeça assim. Filhadaputice que ele não merecia, era o que eu achava e depois ia confessar-me, porque achar filhadaputice, fosse de que espécie fosse, era pecado no seminário.
Por falar em filhadaputice (e vão três), havia umas "brincadeiras" institucionalizadas para as aulas do Secónego, e até fora delas, por gozo, maldade pura, só para moer o juízo ao velhote. E os coninhas, que, borrados de medo, até respiravam pelas orelhas frente aos outros professores, que eram de gancho, pintavam a manta com o Secónego, numa risota sem fim nem compaixão, numa coragem cobarde que ainda hoje, quando me lembro, me mete nojo. Eu também não era nenhum santo - e certamente por isso (e por achar filhadaputices a torto e a direito) é que me mandaram dar uma volta -, mas, para mim, as aulas do Secónego eram sagradas. Eram as únicas em que eu não mijava fora do penico. Por pena. Quem me dera que tivesse sido por respeito.
Um dia o Secónego desligou-se o interruptor em plena aula. De repente ficou ali, sentado à secretária, olhando o nada, obviamente esquecido de nós e dele, e dizia apenas "Leia, menino", mecanicamente, apontando para ninguém, para o vazio. E nós lemos, mandei eu, e mandei também chamar quem tirasse dali o homem, com gentileza e dignidade. Porque eu mandava (e por isso me fizeram a folha). Lemos: três ou quatro de nós, uns atrás dos outros, passando a Selecta de mão em mão, Vaiamos, irmana, vaiamos dormir nas ribas do lago, u eu andar vi a las aves meu amigo. E lemos a cantiga até ao fim e voltámos ao princípio, uma e outra vez, numa lengalenga interminável, e tanto fazia quem lesse, eram as minhas ordens, mas que lesse bem, com expressão, porque eu sentia que o som das nossas vozes aprumadas apaziguava a alma cansada e ausente do velho professor. E ele merecia.
Depois levaram-no.

O Secónego tinha uma casa creio que à borda da estrada que sobe da cidade de Braga para o Bom Jesus, a cota baixa. Padres mais novos diziam-lhe, no gozo: "Ó Secónego, que pena, uma casa tão bonita, e quem por ali passa de carro só lhe vê o cume". E ele: "Pois, mas isso é à ida, menino. À vinda, nem o cume vê, hi! hi! hi!"...

(Quando acompanhava o seu próprio corpo, o que era cada vez mais raro, o Secónego sabia mesmo muito sobre os antigamentes de Fafe, que era o que mais me interessava, e eu regalava-me a ouvi-lo. O Secónego, assim chamado, era o cónego Arlindo Ribeiro da Cunha (1906-1976), autor, entre outras obras, de "A Língua e a Literatura Portuguesa" e de uma "Gramática Latina" que chegou à sétima edição, tendo participado como colaborador regular na Grande Enciclopédia Luso-Brasileira e na Enciclopédia Verbo. Vimaranense de São Torcato, é nome de rua em Braga. E já agora: o parágrafo anterior, imediatamente antes deste entre parênteses, deve ser lido em voz alta, como quem conta uma história, com todas as pausas tidas por convenientes, sobretudo o discurso directo da última frase. Fica melhor.)

Aqui chegados, como diria o nosso Luisinho Marques Mendes, que também é um latinista, devo informar e generalizar que, numa palavra, no seminário tive os melhores professores do mundo.

sábado, 11 de janeiro de 2025

Juventude em delírio

Foto Tarrenego!

Éramos os seminaristas de Fafe naquele ano não sei qual, algures pela primeira metade da década de setenta do século passado, se não me engano. De Fafe, vila. Éramos os padrecas. Não me lembrava do retrato, que me chegou às mãos aqui atrasado através do meu cunhado Álvaro, o homem que fazia as melhores punhetas de bacalhau do mundo, e eu tenho muitas saudades dele. Soube então que foi o cónego Leite de Araújo - senhor abade, senhor arcipreste ou senhor cónego, consoante a época - quem nos juntou e levou ao fotógrafo para a posteridade. O nosso padre tinha muita vaidade em nós, embora talvez nem lhe fornecêssemos consistentes razões para tanto, e acabámos por ficar todos pelo caminho. Por outro lado, também não sei o que é feito daquela juventude ali sem ponta de sorriso, numa compostura ou talvez tristeza de meter dó. Tínhamos decerto sonhos, mas, se os tínhamos, realmente não os mostrávamos. Nem os sonhos, nem os dentes. Já agora: na fotografia, eu sou o. Esse, exactamente.