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segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Eles chamam-lhe cumbre

Guerra da Restauração
Quando a Guerra da Restauração entre Portugal e Espanha terminou e pediu a continha, em 1668, foi deveras porreiro. Os espanhóis começaram a vir comer bacalhau a Valença e os portugueses passaram a ir às bandejas de marisco a Vigo. Foi bom para o negócio e, entre mortos e feridos, salvaram-se consideráveis estabelecimentos.

Em 1986, a Pousada de Santa Marinha, na Costa, em Guimarães, recebeu a terceira edição de uma coisa chamada Cimeira Luso-Espanhola. Aníbal Cavaco Silva era o primeiro-ministro de Portugal, Felipe González era o presidente do Governo espanhol e eu era jornalista de O Primeiro de Janeiro. Estivemos lá os três, evidentemente.
Tarde e a más horas, o meu jornal lembrou-se de me mandar para o local do crime. Tarde e a más horas, quero dizer, no caso em apreço, já depois de a coisa ter começado. E eu fui todo contente, de braço de fora na Catrel com letras, pendurado no Adélio Santos, que era o homem do volante, das fotografias e de outras habilidades e excessos. Eu tinha muita vaidade na minha profissão.
Com alguns empenhos e uma sorte do caraças, consegui credenciar-me numa esquina do Toural, que, tenho ideia, era posto de turismo mas tinha sido superiormente requisitado para todos os efeitos. Cheguei lá acima engatilhadíssimo para colocar certas e determinadas questões tanto ao Silva como ao González, que os havia de entalar, porém, sem me deixarem sequer abrir a boca, mandaram-me para uma sacristia que era a "sala de imprensa" ibérica. Ficámos lá todos de quarentena a contar larachas uns aos outros, chistes de espanhóis e portugueses, "Valevale...", diziam eles, "Já me tinhas dito...", dizíamos nós. Os jornalistas somos uns gajos com piada. Somos piadéticos sem fronteiras, Aljubarrota, na nossa irmandade, é como se fosse uma anécdota.
A cimeira eram dois dias. Escrevi um primeiro texto, de lançamento da coisa, na véspera da coisa, ainda na redacção, e assinei, com grande lata e imensa ignorância, "Hernâni Von Doellinger - enviado-especial a Guimarães". Creio que na altura era "enviado-especial" que se usava, com hífen, o que dada uma certa solenidade à função. Não fui corrigido por quem devia ter tarimba e mais juízo do que eu - portanto estava certo. É preciso que se note: estava a começar no ofício e era a minha primeira saída para o "estrangeiro". Para além disso, como decerto estais recordados, eu tinha muita vaidade na profissão. Vai daí, fiz as malas e parti da portuense Rua de Santa Catarina rumo ao fim do mundo, onde cheguei passado um bocado.
Naqueles bons velhos tempos, os jornais pagavam generosamente as pernoitas aos seus jornalistas, e eu resolvi dormir em Fafe. Jantei, fora de horas, no restaurante do Café Académico e dormi em casa da minha mãe. No segundo dia, almocei no Fernando da Sede. O Pimenta foi buscar-me e levar-me a Guimarães. O importante era que eu estava para fora, eu era enviado-especial, estais a perceber? O Adélio infelizmente não concordava comigo, e foi dormir a casa, ao Porto, que lhe dava muito mais jeito e era a coisa mais natural do mundo.
Da cimeira, enquanto lá estive, só soube os recados que os chegamissos do Cavaco nos traziam de vez em quando, que a coisa estava atrasada e que "Eles" estavam a discutir isto e aquilo, tudo a correr muito bem para o nosso lado, Portugal 5-Espanha 3. Não me custa admitir que os llegamessos do González contavam aos jornalistas espanhóis o mesmo resultado mas ao contrário, e acho justo. A "Eles" só os vi na conferência de imprensa final. E na verdade nem os vi, estava muita gente à minha frente, câmaras, holofotes e microfones tapando-me a visão, mesmo sendo "Eles" maiúsculos. E também não os ouvi, mas isso a camaradagem resolveu, dando-me as notas detalhadas do que fora dito. Que era nada ou quase nada. E eu voltei a assinar, com grande gabarito e por mais três ou quatro vezes, "Hernâni Von Doellinger - enviado-especial a Guimarães". E voltou a sair assim no jornal.
Resumindo e concluindo: como combinado, a Cimeira Luso-Espanhola de Guimarães de 1986 foi um sucesso e a cobertura do enviado-especial de O Primeiro de Janeiro ainda mais. O Adélio Santos morreu há uma dúzia de anos e o jornalismo consta que também.

Enfim. A 35.ª cimeira ibérica foi no ano passado, em Faro, e a próxima, se Deus quiser, há-se realizar-se em Espanha, não sei quando. E isto passa por ser uma história interminável. Ao fim de tantos anos e encontros, cá e lá, alternadamente, portugueses e espanhóis não há maneira de chegarem a acordo sobre o essencial da coisa: nós continuamos a chamar-lhe cimeira, como é evidente, e eles insistem em chamar-lhe cumbre, vá-se lá saber porquê...

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

A arte de cuspir no prato

Foto Hernâni Von Doellinger

Saudações inimigas?
Escrevi aí a uma ungida criatura, assunto sério, melindroso, e, no final, mandei-lhe um "grande abraço". A criatura despachou-me às três pancadas e, no final, mandou-me, para a troca, "saudações amigas". Saudações amigas? Mas, Senhor Bispo, o que raio são saudações amigas? Evidentemente serão o contrário de saudações inimigas, mas o que são saudações inimigas? Abraço, eu sei: o abraço é sólido, palpável, vê-se, sente-se, dá-se, recebe-se, aperta-nos, aproxima-nos, humaniza-nos, igualiza-nos. Agora, saudações amigas? Isso traz água no bico...

Trabalhar no meu jornal era obra desenganada. As pessoas que contactávamos para fazermos as "notícias" sabiam que, se falassem, fosse do que fosse, tudo o que nos dissessem podia ser usado contra elas. E geralmente era. Nem que lhes telefonássemos apenas para perguntar as horas, havia de sair dali cagada da grossa. Nós depois ligávamos a ventoinha. Estupidamente, cuspíamos no prato em que comíamos. O 24horas era assim, fugia-lhe o pé para a escandaleira. Se não houvesse sangue, os meus chefes tratavam disso. Para os mais distraídos perceberem: estais a ver como são agora todos os jornais e quase todas as televisões? Pronto, o meu jornal é que começou. O 24horas é a bíblia do "jornalismo" que hoje se faz em Portugal. O 24horas chama-se actualmente Correio da Manhã, Jornal de Notícias, Sábado, Observador, Diário de Notícias, Sol, Record, A Bola, O Jogo, às vezes até Público e assim sucessivamente.
Portanto tínhamos muito poucas "fontes". As pessoas minimamente informadas fugiam de conversar connosco como o diabo foge da cruz. Umas tinham vergonha na cara ou medo e outras desprezavam-nos simplesmente. Umas e outras sabiam que as nossas perguntas tinham quase sempre volta de foda. Se desse jeito, pedíamos a A para falar de B, para a seguir metermos A e B no mesmo saco e malharmos nos dois como se fossem um só. O jornal escolhia os seus alvos e gastava a pólvora toda (seca, por norma) enquanto a coisa vendesse. Mas é preciso que se diga: isto de eleger "inimigos" e disparar até cair para o lado foi uma herança recebida de Paulo Portas, do tempo em que o ex-vice-primeiro-ministro era director do semanário Independente e fazia a vida negra ao Cavaco primeiro-ministro e respectivos ajudantes no Governo. Portas é que inventou esta receita de sucesso e gabava-se disso. O seu a seu dono.
No meu jornal, Lisboa encarregava-se de fechar as portas às quais nos mandava depois bater, aqui do Porto. Levávamos quase sempre com a porta no nariz. As pessoas respondiam-nos torto, muito torto, era o pão-nosso de cada dia. Uma vez calhou-me o Sócrates, nas vésperas de ganhar as primeiras eleições, e foi do bom e do bonito. Lembrais-vos do génio do gajo? Tendes presente o feitio da criatura? O seu amor aos jornalistas? Pois é. Foi uma discussão das antigas, uma bonita história que já contei aqui. Evidentemente levei com muitos outros malcriados, mas é gente que nem merece que lhes diga os nomes.
Claro que a grosseria não era geral. Havia também pessoas que muito simplesmente se recusavam a falar-nos mas sem baixarem o nível. O bom do Raul Solnado (1929-2009), Luís Represas, o actor José Pedro Gomes, são dos que me lembro agora que escrevo. Nenhum dos três me conhecia, mas, depois de me ouvirem educadamente, foram igualmente atenciosos na nega. Disseram-me: "Desculpe, Hernâni, não é nada de pessoal consigo, portanto ligue-me quando estiver noutro jornal. Então conversaremos do que quiser". Agradeci sinceramente a franqueza e a urbanidade. E pedi desculpa eu. Eu sabia que eles tinham razões.
Era vida difícil. Num jornal que precisava da "opinião" dos "famosos" sobre tudo e sobre nada. A propósito da nudez de Marisa Cruz num filme ou por causa do Fidel Castro que passou a pasta ao irmão. A minha sorte é que acabava sempre por encontrar uma alma caridosa que me ajudava a ganhar o dia. Gente que sabia o que era o 24horas mas que, fosse por que razão fosse, nunca me deixou ficar pendurado: gente como Marcelo Rebelo de Sousa, o comentador, e o bom Júlio Magalhães, jornalista e cara da TV, sempre disponível, sempre decente e generoso, os empresários e portistas Pôncio Monteiro (1940-2010), Manuel Serrão e Rui Moreira, os estilistas Miguel Vieira, Katty Xiomara, Luísa Pinto e Gio Rodrigues, os juízes Rui Rangel e Eurico Reis, o fiscalista Saldanha Sanches (1944-2010), Valentim Loureiro (o meu cromo da sorte), Júlio Isidro e Joaquim Letria, que também eram da casa, Tozé Brito, Luís Filipe Barros, José Cid, o humorista Nilton, Octávio Machado, Francisco José Viegas, Manuel Luís Goucha, José Carlos Malato, Jorge Gabriel, Hélio Loureiro, Paulo Teixeira Pinto e mais uns poucos de que injustamente me estou a esquecer. Dou-lhes, a todos, um grande abraço. Eram sempre os mesmos e a minha tábua de salvação. O meu piquete de emergência.
Cada qual lá teria os seus motivos. Alguns, tenho a certeza, era mesmo uma questão de bondade. Fiquei agradecido a todos. De vez em quando pago-lhes aqui nos meus blogues com umas ripeiradas. É este maldito 24horismo que não há maneira de me passar...

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Contra fatos não há argumenctos

Desorientação sexual
A verdade é só uma: ele ainda não consegue distinguir um tecto de um teto. E elas levam a mal...

Eu tenho um fato. Um. Comprei-o pronto a vestir em 1987, se não me engano, para um casamento, isso é certo, e ficava-me muito bem. O casamento para o qual eu comprei o meu fato já teve pelo menos dois divórcios, só do lado do noivo, e outras complicações. O meu fato, não. Mantém-se fiel e simples. Eu tenho um fato que é um facto à moda antiga. E nem sei se ainda me serve, sequer se estará em condições de ser vestido. Mas é o meu fato. E contra fatos não há argumenctos.

Sou esbraguilhado por opção. Ao longo de quase quarenta anos, usei o meu fato mais quatro ou cinco vezes nos casamentos de mais quatro ou cinco amigos, sobrinhos e primos, e deram também já quase todos em divórcios, num par de ocasiões solenes em Fafe, para agradar à minha mãe, que gostava de me ver todo tirone, numa excursão copofónica a Lisboa para acompanhar o Prémio Gazeta do nosso Agostinho Santos, entregue pelo Presidente Mário Soares, e numa ou duas idas à televisão para aparecer bem por dever de ofício. É, portanto, um fato praticamente novo, mas ando agora preocupado: o casaco é de trespasse. Sem chave na mão.

Para quem se interesse por estatísticas: também tenho um par de sapatos. Um. E também não sei se ainda caibo lá. De resto, é com botas e sapatilhas que me governo. E tenho quatro bonés e três mochilas.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

As nudezes de Marisa Cruz

O terceiro homem
O terceiro homem foi Abel. Adão foi o primeiro, como o próprio nome indica; Caim, o segundo; e Abel, o terceiro. A seguir veio Sete, que, pela ordem natural das coisas, deveria ter sido Quatro, mas a Bíblia é como é e quanto a isso nada. Caim matou Abel, numa história negra muito bem contada pelo jornalista, espião e escritor inglês Graham Greene. O livro deu filme de Carol Reed, que meteu Orson Welles e ganhou Cannes, BAFTA e um Óscar da Academia. Óscar evidentemente acúrsio.

Era uma vez Marisa Cruz, que entrou num filme e apareceu nua. Foi no ano de 2004. O filme, de António Cunha Teles, chamava-se "Kiss Me" e entravam lá também o bom Nicolau Breyner (1940-2016), Rui Unas, Marcantónio Del Carlo e até Clara Pinto Correia, entre outros e outras, certamente. Marisa Cruz estava então com o jogador de futebol João Pinto, com quem assinaria casamento em 2009 e do qual rescindiria em 2013. Tiveram tempo para dois filhos. João Pinto é hoje dirigente ou funcionário da Federação Portuguesa de Futebol, mas em 2004, época da estreia do filme, jogava no Boavista de boa memória. Eu não entrei no filme, casei com a minha mulher no século passado e ainda cá estamos, nunca joguei no Boavista nem sou assalariado da FPF. Em 2004 trabalhava no 24horas, Redacção do Porto, e as inteligências lisboetas do meu jornal mandaram-me telefonar ao Jaime Pacheco, que era o treinador dos boavisteiros, a perguntar-lhe se tinha visto o filme, o que é que achara do corpo nu da Marisa e se tinha comentado o assunto com o João Pinto, tipo "a tua mulher é boa como o milho". As inteligências lisboetas do meu jornal mandaram-me também telefonar aos colegas do João (lembro-me do Frechaut, do Diogo Valente e do Martelinho, por exemplo), a perguntar-lhes se tinham visto o filme, o que é que acharam do corpo nu da Marisa e se tinham comentado o assunto no balneário, tipo "por acaso esta noite sonhei com a tua mulher". As inteligências lisboetas do meu jornal mandaram-me ainda para a porta do cinema, no NorteShopping, se não estou em erro, a perguntar aos espectadores que saíam se tinham gostado de ver a Marisa nua, se, ao léu, ela era mesmo toda boa como parecia vestida, e se coisa e tal...
Às inteligências lisboetas do meu jornal, eu mandei-as à merda. E ao filme também. Nunca o vi e não gostei, não sei como é que era realmente a rapariga em pelote, desconheço-lhe as intimidades que afinal não são. Por outro lado, percebi aqui atrasado, vinte anos depois, que Marisa Cruz continua a querer mostrar, e mostra, nas suas redes e nas redes dos outros, e faz ela muito bem, suponho, está  absolutamente no seu direito. Eu se lhe soubesse desta mania, às tantas, em 2004, em vez de guardar respeito, por assim dizer, talvez devesse ter-me dado ao trabalho e ao gozo. Mas não. Tenho a certeza de que fiz bem em não fazer nada...
Os jornalistas e similares que eram as inteligências lisboetas do meu falecido jornal estão hoje quase todos muito bem colocados nos periódicos de referência da capital e vão assiduamente às televisões comentar as últimas da política nacional, internacional, solar e intergaláctica. Levam-nos a sério, e eles próprios parece que também. Não sei se viram a Marisa Cruz nua e, se viram, o que é que acharam. Talvez lhes perguntem um destes dias.

terça-feira, 8 de julho de 2025

Sobre Artur Jorge, duas ou três "coisas bonitas"

O carregador de piano
Era uma equipa tecnicamente evoluída, formada por jogadores habilidosos e repentistas, mágicos, predestinados, futebolistas de eleição. Mas precisava evidentemente de alguém que vestisse o fato-macaco, de um carregador de piano. Aproveitando a janela de Inverno do mercado de transferências, foi contratado o Sr. Saraiva, precário da Casa da Música que costumava alombar nas deslocações da Orquestra Sinfónica do Porto.

Antigamente não havia Liga Revelação nem equipas B, tínhamos, era, às quartas-feiras à tarde, o campeonato de reservas. Nas reservas jogavam os mais fraquinhos da equipa principal, que raramente entravam em campo ao domingo, duvidosas aquisições à experiência, ex-lesionados em fase final de recuperação e jovens promessas recrutadas aos juniores para fazerem número. Não existia treinador das reservas. A equipa era, por assim dizer, orientada pelo treinador do primeiro time, que geralmente delegava num dos seus adjuntos. Lembro-me vagamente de jogos de reservas em Fafe, ainda no tempo do Campo da Granja, mas sobretudo do FC Porto, quase duas décadas mais tarde, no campo de treinos n.º 1 do Estádio das Antas, entalado entre as costas da "Maratona" e a zona de pavilhões e piscina, onde passei tardadas a ensinar portismo ao meu filho recém-nascido. Muitos dos grandes craques azuis e brancos, futuras estrelas mundiais, vi-os ali em início de carreira, ou, em todo o caso, antes da afirmação definitiva, medindo forças desiguais com as poderosíssimas equipas do Senhora da Hora, do Candal, do Infesta ou, vá lá, do Salgueiros, do Leixões ou do Boavista.
Uma vez, Artur Jorge (1946-2024) era treinador do FC Porto e foi para o banco num desses jogos de reservas. A certa altura do encontro, resolveu fazer uma substituição e deu ordens a um jogador para aquecer. O jogador, e nem lhe recordo o nome, tirou o blusão para vestir a camisola, colocou as caneleiras com adesivo e tudo, puxou as meias para os joelhos, calçou-se e estava a começar a atar os cordões das chuteiras quando o treinador olhou para trás, estendeu o dedo apontando dali para fora e mandou-o tomar banho, isto é, recolher aos balneários, assim a frio. Alteração táctica na substituição? Nada disso. Apenas castigo. Artur Jorge, que não raras vezes fazia substituições logo nos primeiros minutos de jogo, se pressentia alguém em dia não ou a dormir na forma, queria os seus homens sempre prontos para o que desse e viesse. Preparados e alerta, permanentemente disponíveis para o imediatamente. Mesmo os que ficavam no banco, que era local de trabalho. Isso. O banco de suplentes, com Artur Jorge, não era beira de piscina.

Artur Jorge era homem de poucas falas. Distante, dizia-se. Gostava de "coisas bonitas", isso sabia-se. Exigente, duro, mantinha realmente distância em relação aos seus jogadores, que fazia questão de só "conhecer" no emprego, isto é, no balneário e no campo. De resto, nada de convívio, nada de confianças. Cá fora, na vida real, até os cumprimentos só se fossem por telepatia. Era assim nas Antas, onde os vi chegar e sair, treinador e jogadores, tantas e tantas vezes, passando um pelos outros como se nem os visse. Tinha sido assim na sua época de Vitória de Guimarães, como adjunto ou treinador de campo de José Maria Pedroto (1928-1985), por volta de 1980, se não estou em erro. O Vitória vinha regulamente treinar a Fafe, às vezes, na preparação de jogos nocturnos, vinha ao final do dia, daqueles dias curtos e agrestes do antigo Inverno minhoto, acendia-se a iluminação que havia, fraquinha mas de boa vontade, e o Estádio ficava à média-luz, como se fosse casa de fado. Eu por acaso até gostava. Artur Jorge no meio do pelado, voz potente e rara, explicando a jogada, corrigindo posições, dando nas orelhas aos jogadores enregelados, e mestre Pedroto seguindo o treino da bancada, de pé, bem agasalhado, à civil, contando piadas finas para a corte babada à sua volta, palavra de honra. O deus Pedroto. Chamavam-lhe então manager. E eu achava que deviam ir chamar manager a outro...

Conta-se. Naquele tempo, os jogadores e treinadores de futebol eram pessoas livres, cidadãos inteiros, e falavam com os jornalistas sem pedir licença ao dono. Artur Jorge era então treinador do FC Porto, e um famoso jornalista pediu-lhe uma entrevista nas vésperas e a propósito de um grande jogo qualquer. Homem inteligente, culto, reflexivo, avesso ao circo da banalidade e com mais que fazer na vida, poeta, filósofo, melómano e coleccionador de arte, Artur Jorge terá dito ao jornalista para escrever o costume, aquilo que os treinadores de futebol costumam dizer nestas circunstâncias, que é sempre a mesma coisa e nada. A entrevista não se fez, mas saiu. E saiu muito bem. Ou por outra. Aproveitando-se do facto de tertuliar bissextamente com Artur Jorge, o jornalista famoso abusou da confiança do então treinador do FC Porto, não lhe pediu a entrevista, não lhe fez a entrevista, não o avisou sequer da entrevista, mas a entrevista saiu. E Artur Jorge não gostou. Conta-se.
Eu conheci Artur Jorge, de vista, do lado do admirador, e conheci muito bem o famoso jornalista, do lado de dentro do ofício. A respeito da tal "entrevista", sei, das duas, qual é a versão verdadeira, sei como se passaram realmente as coisas. Mas o que é que isso interessa agora?

sábado, 21 de junho de 2025

Fui para padre e não me quiseram

Quanto mais alto, melhor
Ouço a poderosa Abertura 1812, de Tchaikovsky, e é como se fosse o Minho, o meu Minho. Isto é: quanto mais alto, melhor.

Rui Valério entrou para o seminário aos 11 anos, destacava a CNN Portugal, e o Papa, então Francisco, escolheu-o para ser o novo patriarca de Lisboa. Eu também entrei para o seminário aos 11 anos, mas, lá está, mais uma vez não fui escolhido. Em todo o caso, não me dava jeito. Aquilo foi em Novembro de 2024 e eu tinha e tenho a produção toda tomada até ao final de 2026. Viessem mais cedo. Ou, então, que não me tivessem deitado fora. Para além disso, devo confessar, convinha-se um lugar cá mais para cima, para o Minho, se possível, no Alto Minho então é que era, uma casinha mesmo sem sacristia mas com terreno, pequeno que fosse, o rio e o mar à beira...

sábado, 7 de junho de 2025

António Rebordão quê?...

O livro
Chegou à última página com o coração dilacerado entre a euforia e o desalento. Que mundo extraordinário, o livro. Quinhentas e sessenta e três páginas cheias de mistério, de sonho, de imaginação, de fantasia, certamente romance, amores e desamores, aventuras e desventuras, acção, suspense, final previsto e inesperado, feliz. Por outro lado, pensou, acariciando-lhe vagarosamente a lombada macia, num gemido mal disfarçado de suspiro: - Ah, se eu soubesse ler!...

Uma vez, há catorze ou quinze anos, tive a sorte de almoçar com o escritor António Rebordão Navarro (1933-2015). Eu e mais três amigos e velhos camaradas de ofício, dos jornais, num acidental e feliz reencontro à beira-Douro, na Ribeira de Gaia. Falámos sobretudo de banalidades risíveis, como convém à mesa, mas era fatal chegarmos aos livros. Meti conversa, como quem não quer a coisa:
- Sabe que fomos praticamente vizinhos durante alguns anos? O senhor doutor ainda mora lá para a nossa Foz?...
O senhor doutor era para mim senhor doutor porque Rebordão Navarro era formado em Direito e chegou a exercer de advogado e de delegado do Ministério Público, antes de se entregar de corpo e alma à escrita, como ficcionista, poeta e editor. Já quanto à resposta, às respostas que eu, molageiro, lhe pedia, disse-me que não e que sim. Que não sabia que fôramos vizinhos, que aliás não me conhecia de lado nenhum nem isso lhe fazia falta, mas que realmente continuava pela Foz, embora já não na Praça de Liège.
Porém, era ali que eu queria chegar. Com esta minha notável capacidade para fazer figuras tristes, que já então se manifestava exuberantemente, eu estava mortinho por demonstrar mais uma vez quão sólido é o cuspo com que argamasso os meus pindéricos alicerces culturais. E acrescentei, todo vaidoso:
- Sabe, eu tenho o livro, tenho "A Praça de Liège". Se soubesse que me ia encontrar com o senhor doutor, até o tinha trazido para que me fizesse o favor de uns sarrabiscos, de um autógrafo. Tenho o livro, está lá em casa...
- Ai tem o livro? Mas eu escrevi mais livros, escrevi para aí uns catorze... - cortou Rebordão Navarro, sem disfarçar o sorriso malandro como o arrozinho de feijão e legumes que lhe acompanhava os bolinhos de bacalhau com que se deliciava.
A minha primeira reacção foi largar o meu habitual "Eu sei!" com que tento sair das enrascadas em que por mania me meto, e recitar ali mesmo, de cor e salteado, da trás para a frente e da frente para trás, por ordem alfabética e depois por ordem cronológica, os outros treze títulos do reputado autor que tinha à minha frente de faca em punho, mas a verdade é esta: eu só conhecia "A Praça de Liège". Optei, portanto, por tornar pública a minha segunda reacção, que também me saiu uma boa merda e que foi "Pois faço ideia, mas lamentavelmente não tenho acompanhado a carreira do senhor doutor"...

"A Praça de Liège" foi um sucesso tremendo aquando da sua publicação, em 1988. Era o livro da moda (pois se até eu o comprei!) e ganhou o Prémio Literário Círculo de Leitores. Na altura em que me encontrei com o autor, contou-me o próprio, no Círculo de Leitores já não sabiam quem ele era, quem era o escritor António Rebordão Navarro. Alguém do Círculo contactou a irmã do escritor por uma razão qualquer, a senhora falou do irmão e do famigerado prémio e obteve como resposta um lamentável
- Quem? Rebordão quê? Não conheço...
Pois é: a memória. As empresas enxotam quem sabe da poda, despedem os funcionários pelas mãos dos quais passaram os factos e as pessoas, preferem juniores renováveis e analfabetos, verdes como os recibos, fiam-se no Google e na inteligência artificial, mas não vão lá. E depois ninguém sabe nada de nada, por manifesta estupidez natural.
Há anos que está a acontecer o mesmo nas redacções dos jornais portugueses e até se contam algumas saborosas anedotas a esse respeito. São de rir tanto, as anedotas, que às tantas até são verdade.

No que me diz respeito, e como penitência pela minha ignorância àquela data quanto à dimensão da obra literária de António Rebordão Navarro, que afinal era qualquer coisinha mais do que catorze títulos, aqui deixo o registo essencial, com sinceros votos de que faça também bom proveito à rapaziada do Círculo de Leitores: poesia - "Longínquas Romãs e Alguns Animais Humildes", 2005; "A Condição Reflexa", 1989; "27 Poemas", 1988; "Aqui e Agora", 1961; teatro - "Sonho, Paixão, Mistério do Infante D. Henrique", 1995; "O Ser Sepulto", 1972; crónica - "Estados Gerais", 1991; ensaio - "Juro Que Sou Suspeito", 2007; conto "Dante Exilado em Ravena", 1989; romance - "As Ruas Presas às Rodas", 2011; "A Cama do Gato", 2010; "Romance com o Teu Nome", 2004; "Todos os Tons da Penumbra", 2000; "Amêndoas, Doces, Venenos", 1998; "A Parábola do Passeio Alegre", 1995; "As Portas do Cerco", 1992; "Mesopotâmia", 1984; "A Praça de Liège", 1988; "O Parque dos Lagartos", 1981; "O Discurso da Desordem", 1972; "Um Infinito Silêncio", 1970; "Romagem a Creta", 1964.

quinta-feira, 5 de junho de 2025

O autógrafo do Tino

Foto Tarrenego!

O Tino, o imprescindível Tino, estava de partida para a "Quinta das Celebridades" da TVI, com a missão mais que esperada de fazer figura de urso, isto lá pelo ano de 2005, se não estou em erro. O meu jornal, que só tratava de assuntos assim importantes, mandou-me a Rans cobrir a festa de despedida do herói local, que meteu comes e bebes, família, vizinhos, amigos, os dois penetras do 24horas, isto é, eu e o repórter-fotográfico, muitos abraços e algumas lágrimas. Um exclusivo à moda antiga. O Tino, que é um cromo mas não é tolo, teve a gentileza de oferecer-me o seu livro "De Palanque em Palanque", inesperadamente prefaciado por D. Manuel Martins (1927-2017), famoso bispo de Setúbal, e acrescentou-lhe uma profética dedicatória, sarrabiscada mesmo antes de entrar para o carro rumo à capital. Escreveu: "Hernâni, espero-te quando sair da Quinta em ombros. Rans sairá em ombros também." E assinou: "Tino de Rans".
Eu não sei se o Tino saiu em ombros, decerto não, mas sei que não fez figura de urso enquanto esteve na Quinta. Fez com que outros fizessem por ele, e já não foi pouco. Repito: o Tino não é lerdo, apenas se esforça por parecer. E goza o prato...
De resto, para mim, o Tino de Rans é praticamente presidente da república. Por isso guardo com tanta vaidade o livro e o autógrafo com que ele me agraciou.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Ordem para tramar Sócrates

Até começou bem...
Sócrates começou como filósofo em Atenas e jogou na selecção brasileira de futebol. Anos mais tarde foi primeiro-ministro de Portugal. Estragou tudo. 

Ano de 2004. O Presidente da República Jorge Sampaio despede o primeiro-ministro Pedro Santana Lopes, por indecente e má figura. Eleições legislativas são antecipadas e marcadas para 20 de Fevereiro de 2005. José Sócrates é o novo líder do PS e da oposição. Vai a votos. Durante a pré-campanha e campanha eleitoral, critica Santana Lopes, que se recandidata pelo PSD e promete não aumentar impostos. Como se não aumentar imposto fosse defeito.
O meu jornal manda-me "tramar" Sócrates. "Vamos entalar o gajo". É preciso ligar-lhe imediatamente e perguntar-lhe então se, caso ganhe as eleições, vai subir os impostos. Mas que pergunta inteligente! Que armadilha bem montada! Pincéis desta marca sobravam sempre para mim. Como já deveis saber, porque eu estou farto de o contar, as pessoas de bem, ou as pessoas de mal que faziam questão de aparentar uma fachada de bem, recusavam-se a falar com o 24horas: tinham consciência de que, se abrissem a boca, tudo o que dissessem poderia ser usado contra elas. E geralmente era. Nem que lhes telefonássemos apenas para saber as horas, haveria de sair dali cagada da grossa. Nós depois ligávamos a ventoinha e espalhávamos a merda toda. Dito de outra forma: as pessoas minimamente informadas fugiam de conversar connosco como o diabo foge da cruz. Umas tinham vergonha na cara ou medo e outras desprezavam-nos simplesmente. Umas e outras sabiam que as nossas perguntas tinham quase sempre volta de foda. Se desse jeito, pedíamos a A para falar de B, para a seguir metermos A e B no mesmo saco e malharmos nos dois como se fossem um só. Por outro lado, havia quem fizesse tudo para aparecer, mesmo no 24horas, ou principalmente no 24horas.
Portanto, o meu jornal manda-me "tramar" José Sócrates. É só ligar-lhe, a ele que nunca atende o 24horas e que escorna os jornalistas em geral por uma questão de princípio. Ligo, ligo, ligo, o dia inteiro. E nada e nada e nada, o dia inteiro. Ao pôr-do-sol tento o inimaginável truque, o long shot, como Lisboa gosta de me dizer e eu parto-me a rir: marco o número de Pedro Silva Pereira, o braço-direito de Sócrates, e sai-me do outro lado o Sócrates inteiro e desconfiado, num por acaso que me enche de adrenalina. Identifico-me, ele vai desligar de seguida, peço-lhe que não e faço-lhe a pergunta de um milhão de dólares: - Se vencer as eleições, se for para primeiro-ministro, vai subir os impostos?
José Sócrates não me manda àquela parte, mas podia, que eu não lhe levaria a mal. Ainda assim, empertiga-se, serigaita-se, despeita-se, esganiça-se e responde-me agressivamente: - Mas quem é que você é? E quem é que pensa que eu sou? Isso é uma pergunta ridícula. Acha mesmo que eu lhe vou responder? Sei muito bem o que quer, mas daqui não leva nada. Não lhe respondo. Acha que eu sou um principiante? E o senhor não tem nada de útil para fazer?...
Tenho. E faço. "Reformulo" e ponho pó de talco na pergunta: - Se o Senhor Engenheiro for o próximo primeiro-ministro, posto que ganhe as eleições, vai subir os impostos?
Sócrates quase que rebenta. Discutimos mais uns três minutos, tempo de um assalto no boxe, um a bater no ceguinho, o outro a agredir o invisual, eu não sabia que sabia discutir assim com cabeçudos, e ele desliga.
Saio dali exausto, nervoso e contente com a discussão. É ainda a adrenalina a mexer comigo. Geralmente, o que (não) consegui é mais do que suficiente para ser a capa inteira do meu jornal no dia seguinte, em letras garrafais: "Sócrates entalado pelo 24horas" ou "24horas entala Sócrates" ou "Sócrates não responde ao 24horas" ou "Sócrates tem medo do 24horas" ou "24horas assusta Sócrates" ou.
Apresso-me a ligar para Lisboa. Conto a minha façanha, espero pelos parabéns. O chefe de turno, jovem turco, critica-me, irritado, "A resposta do gajo é inaceitável!", engulo em seco e explico ao chefe, "Olha, foi o que eu disse ao gajo, que até ia da tua parte e que tu nunca na vida irias aceitar uma resposta assim, e que portanto ele que me dissesse mas é o que tu queres que ele diga, que até já tens o título feito e tudo, mas não adiantou..."
O meu textinho saiu a uma coluna numa página interior, provavelmente par. Do assunto da manchete desse dia não me lembro. Quanto a José Sócrates, por aí anda. E o jovem chefe, velho e ainda tolo, também...

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Atrás de Mário Soares

O candidato agarrou, pois, no microfone, coçou-lhe a cabecinha com a unhaca da cera, soprou-lhe o pó num imenso e sonoro perdigoto e, sem mais delongas, disse: - Alô, chape, chape, um, dois. Um, dois, três, microfone, experiência. Chape, chape, um, dois. Um, dois, três, quatro, microfone...
E a multidão irrompeu em aplausos.

Era uma vez campanha eleitoral e saí do trabalho, na tripeiríssima Rua de Santa Catarina, com a ideia de apanhar o autocarro 37, no Largo dos Lóios, com destino à Foz. Havia sol para mais meia dúzia de horas. E quando cheguei à Avenida dos Aliados, que era a meio caminho entre Santa Catarina e os Lóios, esbarrei num enorme ajuntamento que, percebi mais tarde, rodeava e seguia um Carocha de tecto de abrir, e aberto, aquilo parecia o cortejo da Queima das Fitas, mas em sóbrio, por assim dizer. Era muito povo, povo a dar com um pau, agitando bandeiras e gritando palavras decerto de ordem mas tão desordenadas e esdrúxulas que eu não percebia o que é que as pessoas diziam. Aproximei-me, chamado pela curiosidade ou não sei mais por quê, entranhei-me conforme pude, usei o cabedal e o treino dos Comandos, provoquei decerto várias baixas à passagem, furei pelo meio daquele fervor todo e consegui chegar ao carro. Quem é que lá estava de cabeça de fora e braço em modo limpa-pára-brisas acenando à multidão como se fosse Mário Soares ou talvez o Papa? Por acaso não era o Papa, palavra de honra, era mesmo ele, muito melhor, Mário Soares em pessoa.
Eu fiquei a um metro do homem. E deixei-me ficar. O Volkswagen careca andava devagar. E eu deixei-me ir. Mas só percebi depois, muito depois. O maralhal desceu à Praça, subiu a Rua dos Clérigos, passou pelos Leões e pelo Hospital de Santo António, entrou na Rua D. Manuel II e, quando dou fé, Mário Soares está em frente ao Palácio de Cristal, que era assim que se chamava. O esquisito, o inexplicável, é que eu também lá estava. Ainda a um metro do homem. Eu fui atrás dele e não sabia. E já não me lembro como é que afinal cheguei a casa, noite cerrada e atrasado para o jantar, o mais certo é que fosse de táxi, que remédio.
Foi no ano de 1986 e é a história que eu costumo contar quando quero explicar o que é o carisma. Carisma é aquilo: aquele íman, aquele poder sobre as massas, mesmo sem abrir a boca, aquela força invisível que uns poucos têm de aglutinar e empolgar tudo e todos à sua volta, até a mim, que sou um cínico e já tinha andado atrás de Soares pelo menos outra vez, moço ainda, em Fafe, do Largo para o Grémio da Lavoura e, por falta de espaço para tanta gente, do Grémio novamente para o Largo, à procura de sítio onde o comício coubesse.

A Vida, que me tem sido tão boa, concedeu-me, vinte anos mais tarde, nas Presidenciais de 2006, a prenda extraordinária de poder acompanhar no terreno, profissionalmente, a última verdadeira campanha eleitoral de que Portugal deve ter memória. E com Mário Soares, que se borrifava cada vez mais para os soundbites, para os assessores de imprensa e até para o seu ausente director de campanha, que ele frequentemente não sabia muito bem quem era. Em vez de apelar ao voto, em vez de criticar a concorrência, Soares contava histórias, contava História em pequenos auditórios vagamente frequentados, falava de António Sérgio, de Álvaro Cunhal, de Agostinho da Silva, de Camilo Castelo Branco (lembro-me, em Famalicão), de Antero de Quental. Contava Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Irene Lisboa, José Gomes Ferreira, José Régio, Almada Negreiros, Vitorino Nemésio, Miguel Torga, Carlos Queiroz, Adolfo Casais Monteiro, Manuel da Fonseca, Sophia de Mello Breyner Andresen, Carlos Oliveira, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, Natália Correia, Alexandre O'Neill, David Mourão-Ferreira, Alberto Lacerda, Ruy Belo, amigos ou conhecidos em graus diversos. E eu regalado. O meu jornal, que era o estrambólico 24horas, mandara-me à procura das proverbiais gafes e partes gagas do velho leão, então já com uns bem vividos 82 anos. Eu consolei-me com o resto.

domingo, 11 de maio de 2025

O bisavô Lindolpho, pedagogo e jornalista

No país dos setores
Há o setor público e o setor privado. O setor público ensina sobretudo em escolas do Estado e o setor privado em colégios fardados e universidades altamente propinadas. Há também, por exemplo, o setor da saúde, que, regra geral, é médico. O setor da saúde também pode ser público ou privado. Ou público e privado...

Um por acaso lembrou-me aqui atrasado do meu bisavô Lindolpho, pai do meu avô da Bomba e egrégia figura que infelizmente não conheci. Fui aos papéis. Lindolpho Von Doellinger, pedagogo, nasceu no Rio de Janeiro, Brasil, na freguesia de Santo António dos Pobres - tanto quanto consigo perceber na certidão de nascimento do meu avô, assento n.º 71, que preservo com devoção e fita-cola. Dos Pobres, e eu nunca tinha ligado. A minha vida começa finalmente a fazer sentido...
Que se segue? Fafe marcou o 10 de Junho de 2017 com a inauguração do Museu da Educação, em Silvares, dando estupenda serventia ao recuperado edifício da centenária Escola Deolinda Leite. Ora acontece que o primeiro professor desta escola deverá ter sido exactamente o meu bisavô (situemo-nos nos anos de 1892 a 1894), sendo certo que não parou por lá muito tempo - o que me faz lembrar uma pessoa que conheço muito bem. Ano e meio, se tanto, e já o "Sr. Lindolpho Von Doellinger" manifestava a sua "vontade férrea" de mudar de ares para "abrir uma escola particular denominada Santa Virgínia, em Fafe, por insistência de muitos pedidos de vários seus amigos", segundo leio num documento do sítio do Museu das Migrações e das Comunidades.
Outro por acaso fez-me descobrir que, provavelmente entre os anos de 1907 e 1912, o meu bisavô Lindolpho - a quem puseram uma alcunha que, por maldosa, aqui não repito, embora não me envergonhe - foi director do semanário político fafense "A Verdade". Quer-se dizer: isto anda tudo ligado, velho camarada!

sábado, 10 de maio de 2025

Aí para as curvas

Foto Tarrenego!

Uma vez, em 1991, Basílio Horta foi candidato à Presidência da República e fazia frio em Portugal, porque era Janeiro e o tempo naquela altura não era ainda tão tolo e incerto como é agora. O tempo. O Doutor Horta, que já vai nos oitenta e, entre outros afazeres, é um filósofo, quero dizer, um filósofo praticamente como eu, explicou em entrevista ao Expresso que realmente "há quem olhe para a vida como uma linha reta", mas ele não. "Eu não abdiquei das curvas", enfatizou o ex-União Nacional do tempo do fascismo, fundador do CDS e actual militante do PS, ministro em quatro governos, pela direita, conselheiro de Estado, deputado, embaixador na OCDE, presidente da AICEP, pela esquerda, e hoje em dia presidente da Câmara de Sintra em final do terceiro e último mandato, dizia eu, enfatizou, como quem não quer a coisa, como quem oferece ao jornalista o título para a prosa e não se fala mais nisso.
Quanto à fotografia, bem, Basílio Horta, ao centro, avança determinado para o comício nocturno na cidade de Braga, por entre meia dúzia de bandeiras da AD, da AD verdadeira, mas que naquela altura já não havia nem o apoiava, e o jornalista a vê-los passar, a tomar conta, bem à direita, o que não deixa de ser paradoxal e embaraçoso, mãos nos bolsos, estantio, olhar enfastiado e bem agasalhado, porque, é o que eu digo, o tempo naquele tempo ainda era de confiança, e fazia frio em Portugal. Frio à moda de Fafe.
A seguir, se bem me lembro, abandonei discretamente a "caravana" basilista e fui ao velho Restaurante Maia, no Sameiro, comer por minha conta e consolar-me com o inevitável bacalhau com natas, que era então uma verdadeira especialidade.

Para que conste. A comida oficial da política portuguesa é o lombo de porco assado, que por acaso é quase sempre apenas estufado, e uma desgraça. Canja, lombo e musse de chocolate. Assim. Se calhar até em Fafe, terra da melhor vitela assada do mundo. Quem já passou por campanhas eleitorais e comeu lombo todos os dias, ao almoço e ao jantar, sabe muito bem do que é que eu estou a falar. Lombo assado, e é um pau. Depois, quando alcançam o poleiro ansiado e o povo é que paga, os políticos esquecem-se do porco, tão em conta, tão prato do dia, e servem-se entre eles peixinho da alta à lá qualquer coisa, nanja sardinha, faneca ou carapau de pé-descalço.
Olhai, por exemplo, o Professor Marcelo. Também já comi lombo de porco com ele, diga-se em abono da verdade, mas logo que pulou para Presidente a coisa passou a fiar mais fino. No almoço cerimonial da tomada de posse, a primeira, foi creme de espargos, robalo a vapor e gelado. E no almoço comemorativo dos 40 anos da Constituição, em 2016, a ementa versava creme de couve-flor, tranches de garoupa e pudim de Estremoz. Também um desconsolo, realmente, mas ao menos não é lombo de porco.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Cheirava-lhes a cadáver...


"António von Doellinger, sargento reformado do Exército Colonial, foi levado a enterrar.
Na câmara ardente, ao redor dum caixão de quatro tábuas singelas, os seus filhos, crianças tamaninas, choram.
A mais inocente e novinha de todas desvia um lenço sedalino que cobre o rosto esverdeado do defunto. O cadáver está ainda morno, exalando um cheiro canfórico a denunciar a decomposição deletéria que embriaga os abutres e as corujas. O olhar, derramado, vítreo, tem os estigmas reveladores dum horrível sofrimento moral, adivinhando-se que, daquele corpo macerado, foi o coração, alanceado pela dor cruciante da despedida à orfandade, o derradeiro órgão a morrer.
E o lenço de prateada seda cobre de novo os lábios descarnados do pobre Doellinger.
Tuberculizara. Passara privações. Desde que a doença entrara naquele tugúrio, a Conferência de São Vicente de Paulo, de sinistra nomeada, ofertou socorro ao Doellinger. Impunha, porém, uma condição: o doente devia confessar-se, devia confortar-se com os sacramentos da Igreja Católica. Não era penosa a exigência... Um tuberculoso nada adianta nem atrasa, em tal estado, engolindo a hóstia consagrada - um pedaço de obreia amassada com saliva de sacristão.
António von Doellinger, contudo, tem escrúpulos, só porque era anticlerical.
Mas um padre insistia - e, aguardando o momento desejado, quando o doente entrava no estertor da agonia dolorosa, abeirou-se-lhe do leito frio, vestindo de saia negra, na noite negra, como a morte negra que rondava à cabeceira do tuberculoso.
Doellinger recusou ainda nobremente.
Mas era necessário dizer à estupidez do indígena crédulo, fanático e supersticioso, que o ateu implorou, na hora derradeira, na hora do delírio, da alucinação, da inconsciência, o perdão de Deus e a piedade da Santa Madre Igreja. Ainda o sargento Doellinger, estóico ante a morte que tantas vezes lhe fora companheira na inóspita África, quando lutava nas fileiras, teve um gesto grandioso, heróico e teatral, bradando:
- "Não preciso da Igreja, não preciso do perdão de Deus... Não sou um criminoso..."
O padre teria sentido um arrepio de medo, um estremecimento de consciência - e largou a vítima inofensiva.
E, ao nascer da aurora, um sino dobrou, plangente, a finados!
A consciência alheia, as ideias dos nossos semelhantes são, para a Igreja Católica, coisas sem sentido.
O que é preciso, para maior glória de Deus, é que os adversários do catolicismo se arrependam, na hora derradeira, na hora suprema, quando o espírito vacila, quando o corpo arrefece ao contacto do gelo da morte, quando o indivíduo está já em estado de inconsciência, de irresponsabilidade, quando entra no delírio, na demência! Então a vítima pode ceder, porque costuma fraquejar ante o fantasma sinistro que gargalha na ronda nocturna.
O cheiro a cadáver embriaga e consola os abutres que começam a grasnar, sedentos de sangue, ávidos de carnagem dos corpos pútridos!"


Fafe, 1938 talvez. Este belo naco de prosa, pesado, com o título "Cheirava-lhes a cadáver...", foi escrito, muito provavelmente, pelo jornalista e resistente antifascista fafense Manuel Teixeira, então proprietário e director do semanário republicano O Combate. José Manuel Teixeira da Silva e Castro (1906-1980) era irmão do também jornalista (António) Teixeira e Castro (1928-2004), com quem acamaradei no Primeiro de Janeiro. O Combate, fundado em 1930, teve vida atribulada e efémera. Foi fechado definitivamente pela Censura em 1941. Há anos que guardo religiosamente a reprodução fotográfica da primeira página deste número, que me foi revelado pelo Sr. Vale do Arquivo do Janeiro. Copiei o texto com recurso a lupa e não garanto isenção de pequenos erros na transcrição. Até da data não tenho a certeza: mas se não é de 1938, anda por lá perto.
Visito-o frequentemente. Leio e releio, e cada vez fico mais desconfiado de mim. Com um antepassado da marca deste sargento von Doellinger, donde raio é que me vem a costela sacrista?

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Nas mãos de Agustina

O jornalista cultural
Homem de cultura, presença assídua em verbenas poéticas e chás-dançantes, organizador de bienais e reuniões mensais, colaborador em jornais e televisões digitais, presidente de cineclubes diversos, nome com assinatura reconhecida nos melhores suplementos de artes e letras, inclusive blogues, Bonifácio de Montalvar foi ao cinema de ciclo. Viu "Guerra e Paz", de King Vidor, com Audrey Hepburn, Henry Fonda, Mel Ferrer e o italiano Vittorio Gassman. Gostou do enredo, ou da estória, como prefere escrever. E declarou à saída, alto e bom som, para que ficasse lavrado em acta: - Isto, sim, dava um bom livro.

Agustina Bessa-Luís ocupou o cargo de directora de O Primeiro de Janeiro entre 1986 e 1987. Digo bem: ocupou o cargo. Fazendo o favor ao CDS e a Diogo Freitas do Amaral, a quem o jornal da portuense Rua de Santa Catarina tinha sido dado pela família Pinto de Azevedo. Agustina entrou e mandou logo mudar de sítio a secretária do sombrio gabinete da direcção, a sua secretária de trabalho, para melhor aproveitar a posição da janela e poder apanhar solzinho nas perninhas. É a grande marca do seu consulado. De resto, era bonito de se ver aquela mulherzinha de carrapito e xaile ou lenço pelas costas, sentada quase invisível, debruçada sobre o mesão, com os pés balançando a meio caminho do soalho, manuscrevendo laboriosamente numa letrinha mínima, encarreirada e esdrúxula que era preciso desvendar.
Ora bem. Durante muitos anos eu confundi Agatha Christie com Miss Marple. Quero dizer, a cara de Agatha Christie era, para mim, a cara da veterana actriz inglesa Margaret Rutherford, e só já bastante adulto e atirado à vida é que desfiz o equívoco, perante o verdadeiro retrato da famosa autora de romances policiais, porventura descoberto na badana de um livro. Mais curioso ainda é que, em Fafe, eu mantinha sob apertada vigilância meia dúzia de velhas senhoras que eram Miss Marple de certeza absoluta, por mais que tentassem disfarçar. Senhoras antigas, amiúde intrometidas, vestindo com quase cinquenta anos de atraso, senhoras assim como a nossa Milinha Vaqueiro ou como as manas Grilas em dias de maior asseio. E que quereis que vos diga? A Senhora Dona Agustina, assim que lhe pus a vista em cima, entrou logo também para a minha lista.
Alheia à agenda e à actualidade, Agustina escrevia para o jornal uns "editoriais" extraordinários, que eram tudo menos editoriais. Eram pérolas literárias, histórias, contos, ensaios, que viam a luz do dia no cantinho superior esquerdo, ou talvez direito, da primeira página.
A directora não sabia nada do jornal e o jornal também não queria saber dela. Um dia o chefe de redacção entrou-lhe no gabinete perguntando-lhe o que fazer com uma notícia eventualmente mais melindrosa e que agitava na mão. É, antigamente as notícias viajavam em folhas de papel. "Eu não sei nada disso", enxotou a directora, "vá falar com o chefe de redacção". E o chefe de redacção disse "Com certeza, senhora directora", e foi falar consigo mesmo, modalidade, aliás, em que ele era e ainda é campeão intercontinental.
A directora Agustina Bessa-Luís deixou O Primeiro de Janeiro depois dos pascácios da administração lhe terem feito a sacanagem de publicar, sem lhe dar cavaco, uma edição apócrifa do jornal, a pedido das bolachas Triunfo, acrescentando-lhe à sorrelfa a convocatória de uma assembleia, o relatório e contas ou algo do género, enfim, uma diligência qualquer que legalmente carecia de um certo prazo que já tinha sido ultrapassado, se bem me lembro. A escritora exigiu a demissão dos administradores, que se mantiveram nos seus lugares, agarrados ao tacho como lapas. Saiu ela.
Sei disto tudo e outro tanto porque conheço muito bem o tipo que revia os "editoriais" de Agustina no velho Janeiro e que, vítima do efeito dominó provocado pela honrada renúncia da directora, acabaria por ter de tomar conta da redacção. Conheço-o tão bem que é como se me visse ao espelho.

No Janeiro, onde entrei como revisor, após concurso, lidei também com os extraordinários gatafunhos do filósofo Sant'Anna Dionísio (1902-1991), um velhinho minúsculo, já algo distraído e inesperadamente simpático que nos visitava amiúde, com os bolsos do casaco quase pelos pés, atafulhado de folhas de papel manuscritas, riscadas, emendadas e acrescentadas numa letra desengonçada e a bem dizer indecifrável que me calhava sempre a mim, por ordens expressas do chefe da revisão, o sábio Professor Horácio. Sant'Anna Dionísio escrevia uma infindável série de artigos sobre o também filósofo Leonardo Coimbra (1883-1936), que tinha sido seu mestre e era o seu ídolo, por assim dizer. Por lá andavam também, cronicando, o cineasta António Lopes Ribeiro (1908-1995), Cruz Malpique (1902-1992) ou Daniel Constant (1907-1984), entre outros, mas José Augusto Santana Dionísio seria talvez o mais notável colaborador do prestigiado suplemente literário do PJ, "Das Artes Das Letras", no meu tempo coordenado pelo poeta presencista Alberto de Serpa (1906-1992), outro incorrigível praticante da escrita manual e razoável filho da mãe.

terça-feira, 29 de abril de 2025

O Amigo Bastos

Foto Tarrenego!

Descíamos no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo. Era aquela caloraça das ilhas, aquele esplêndido exagero de luz, o ar quase sólido que sufoca a respiração dos menos habituados, o bom odor de salsugem, que peço emprestado ao mestre. Eu de barrete branco enfiado na cabeça e lenço tabaqueiro atado ao pescoço, as barbas suando em bica, ele no seu fato impecável, o laço "de fazer" milimetricamente composto, dizia-me "Oiça lá, você parece o Hemingway!...", e soltava uma enorme gargalhada, exabundante, para ser ouvida pelos passantes e sobretudo pelas passantes, porque, estivesse onde estivesse, sempre fez questão de que se soubesse, sobretudo elas, que por ali andava o famoso Baptista-Bastos.
Andávamos ambos, mas evidentemente eu era invisível. Tínhamo-nos conhecido alguns anos antes, numa viagem à Irlanda. Eu iniciante no ofício e ele O Grande BB, nesse tempo ainda intrépido "praticante do desporto líquido", como gostava de dizer, e contador ininterrupto de extraordinárias histórias que outros jornalistas da capital desmereciam por inveja. Diziam-lhe nas costas que ele inventava reportagens e entrevistas. Não sei se inventava ou não inventava - isto é, caguei! Eu queria era ouvir o Senhor Baptista-Bastos. Aprender. Ouvia-o embatocado, reverente, assombrado, deliciado. Ouvia-o enquanto ele me apresentava abundantemente à Guinness e ao Jameson, e os invejosos também à roda, flatulando améns, onzeneiros e hipócritas. Ia eu apenas no segundo pint, ao balcão do Kitty O'Sheas's Bar, em Dublin, e já lhe pedia repetições: "E daquela vez?..."
Baptista-Bastos gostava, inchava. Dizia, como se estivesse a dar-me corda, "O puto vai longe". Enganou-se redondamente. O mais longe que fui foi aos Açores, e ali estávamos os dois, dizia, eu e o mestre, descendo no nosso vagar a Rua Direita rumo ao Porto das Pipas, na velha Angra do Heroísmo, ilha Terceira, invadida por poderosas pick-ups de matrícula americana e nas narinas o aroma intenso, miscigenado, a especiarias e a mundos libertados pelas portas provocantemente escancaradas do loja antiga e encantatória. Chamava-se a loja, se não estou em erro, Basílio Simões & Irmãos, e quem dera que ainda exista.
Eu num sino, se fosse visível, o coração aos saltos e a cabeça num turbilhão. "O Baptista não faz ideia da vaidade que tenho por ir aqui à sua beira", confessei-lhe de repente, atrapalhando palavras. "Baptista, não", corrigiu-me, "sou Armando para a família e amigos do peito ou Baptista-Bastos para o geral, mas você, que já é da minha equipa, chame-me Amigo Bastos, que é como eu prefiro". Percebi o generoso raspanete como se, para o BB, Amigo fosse nome próprio e Bastos o apelido. (Quer-se dizer: afinal, AB.) E creio que percebi bem.

- Mas oiça lá: "à sua beira", foi o que disse? Que expressão tão bonita! "À sua beira"...
- É assim que se fala na minha terra. Sou de Fafe...
- Fafe? Justiça de Fafe, não é? Grande terra, terra de gente vertical!

Por aqueles dias mantivemos longas conversas em que eu só ouvia. Baptista-Bastos contou-me de Soares, de Cunhal, de Salazar, de Caetano, do PCP, do PS, do pai, de tipografia, de Lisboa, do Bairro Alto, de jornais, de jornalistas e simpatizantes, de tertúlias, da boémia, da noite, de sábios, de analfabetos diplomados, de livros, de Aquilino, de Branquinho da Fonseca, de Carlos de Oliveira, de Manuel Mendes, de Eugénio de Andrade, do amigo Manuel da Fonseca. Da beleza da sua mulher, do orgulho nos filhos. E de freiras pentelhudas, e de mulheres, e de mulheres, e de mulheres...
Insistia nas suas basezinhas, que já então eram um clássico: que os jornalistas se tratam mutuamente por tu e são camaradas, porque colegas são as putas, e tratava-me por você. E não me lembro se me perguntou se eu sabia onde estava no 25 de Abril, e eu por acaso sabia.

Já no aeroporto de Lisboa, no regresso a casa, Baptista-Bastos fez questão de apresentar-me à mulher, que era realmente uma senhora muito bela, e a um dos filhos, que o foi buscar. Quando nos despedimos ofereceu-me o seu excelentíssimo livro de reportagens "As Palavras dos Outros", com um recadinho escrito ali na hora na terceira página, e, como se estivesse a chamar passageiros para o voo do Porto, repetiu, tonitruante, o essencial de tudo o que copiosamente me ensinara na ilha: - Doellinger, não se esqueça, ler e escrever todos os dias! Todos os dias!...
E eu não esqueço, Amigo Bastos.

terça-feira, 22 de abril de 2025

Relações públicas, vícios privados

Jornalista, disse ele

- Profissão?
- Jornalista.
- Imprensa, televisão, rádio, agência noticiosa ou multimédia?
- Câmara municipal.


Uma vez, há muitos séculos, começava eu no meu ofício, mandaram-me a uma conferência de imprensa no palacete da secção do Porto da Ordem dos Médicos. A Ordem dos Médicos do Porto tinha então um assessor de imprensa, relações públicas ou director de comunicação, como parece que agora se diz, que era jornalista no activo, certamente com carteira profissional validada, com cargo de chefia em agência noticiosa pública e que, se a memória não me atraiçoa, também era treinador de futebol. Era portanto o verdadeiro enciclopedista do século vinte. Ou o sebastião come tudo, tudo, tudo. O homem sorria à porta da salinha preparada, com uns bilhetinhos na mão que ia entregando um ou dois a cada jornalista que entrava, como se estivesse a passar rifas.
Os bilhetinhos. Eram perguntinhas dactilografadas como quadras para concurso de São João no Jornal de Notícias. As perguntinhas que os da Ordem dos Médicos do Porto, ou pelo menos o meu obtuso camarada, queriam que os jornalistas fizessem na tal conferência de imprensa, posto que eles por acaso já tinham a resposta na ponta da língua, "Ora ainda bem que me coloca essa questão...". Perguntas de conveniência, grosseiramente encomendadas, batotice, jornalismo viciado, por assim dizer, que também o há! Mandei o assessor da treta lamber sabão, como se diz na minha terra, vim-me imediatamente embora e nem sequer quis saber se alguém aceitou a encomenda e alinhou na fantochada.
Mas, na verdade, sei.

segunda-feira, 21 de abril de 2025

No tempo em que os animais falavam

Foto Gaspar de Jesus

Houve um tempo em que os presidentes dos maiores clubes de futebol falavam com os jornalistas e até convidavam os directores dos jornais para jantar. Os jornalistas, todos eram tratados por igual e quem tivesse unhas que tocasse viola. Mas isso foi muito, muito antigamente, no tempo em que os animais falavam e não havia telemóveis. Depois, conta-se que os presidentes dos maiores clubes resolveram dividir os jornalistas em dois grandes grupos: os que levavam recados e os que levavam no focinho - e deixaram de falar aos restantes. Mais tarde, os presidentes dos maiores clubes criaram as suas próprias televisões e passaram a ser "entrevistados" pelos seus próprios assalariados. E agora, quando se dignam descer até ao ecrã das televisões ditas generalistas, falam directamente de casa e exigem tratamento de primeiro-ministro, pelo menos. São outros tempos!
E, entretanto, já não sobramos todos daquela mesa...

quarta-feira, 19 de março de 2025

Pica, 6 - Fareja, 0

Fafe tem nomes que são um mimo, uma primeirinha. Uma terra que tem um lugar chamado Pica e uma freguesia chamada Fareja só pode ser uma grande terra. E Fafe é realmente. Gosto de contar esta minúscula história: em pleno Verão de 2014, por acaso em dia de apuramento para a Liga dos Campeões, Pica e Fareja, equipas de futebol, fizeram um jogo-treino, e o resultado, sendo contundente, não significa nada por aí além, a não ser que dá para rir: Pica, 6 - Fareja, 0.
E era isto. Mas é preciso que se note: para quem é de Fafe, como eu sou, Fareja e Pica são nomes absolutamente normais, corriqueiros, que só fazem confusão ao jornalista ou ex-jornalista Nuno Azinheira, famoso comentador social, que chamou Fajães a Fareja, e a uns caralhos de fora que não conseguem passar pela tabuleta da Pica sem lhe meter a cedilha...

sexta-feira, 14 de março de 2025

O último comunicador

Os Sá Morais
Os Sá Morais são uma família muito antiga. Remontam, pelo menos, ao século X, no Japão.

A minha missinha das oito era ouvir o Prof. José Hermano Saraiva (1919-2012) a contar histórias na RTP Memória. Já o sabia de cor como ao padre-nosso, mas gostava de o ter ali, exactamente ali, a servir de música de fundo ao meu jantar. E a minha mulher também apreciava. Aqui que ninguém nos ouve, o homem tinha tanto de historiador como eu de monge tibetano, o que lhe dava ainda mais valor: porque não há quem invente História tão bem como ele inventava, não há quem estraçalhe com tanto panache tudo o que os verdadeiros especialistas escreveram com rigor, substituindo-o, num estalar de dedos, pelos seus próprios supores, e não há quem depois diga tudo o que acha com tanta graça, com tanta clareza, com um português tão perfeito e tão acessível e com tanta convicção como ele dizia. José Hermano Saraiva era único. Ele era o comunicador.
O professor sabia compor os "factos" como ninguém, sabia pintar a "realidade", conseguia fazer com que a sua História fosse sempre melhor e mais bonita do que aquilo que efectivamente se passou. E era cativante a contar. Vendia bem. Muitas vezes não era verdade o que ele dizia, mas podia ter sido, e a sua versão era sempre muito mais interessante do que a verdade ela mesma. Quase que se poderia dizer que, inadvertidamente, José Hermano Saraiva foi o inventor do moderno jornalismo português.

Ministro da Educação de Salazar, José Hermano Saraiva esteve no centro do vulcão que foi a crise académica de 1969. Figura polémica, criticado nos meios intelectuais e políticos, o professor ganhou o coração de sucessivas gerações de portugueses através dos programas que fazia para a RTP. Penso, porém, que o fantasma do seu passado fascista às vezes ainda o incomodava. Num episódio onde revisitava os retratos dos vários presidentes da República, no Palácio de Belém, o professor deixou cair um curioso comentário sobre Canto e Castro, creio, que era monárquico convicto e assumido, que foi mesmo deputado no tempo da monarquia (eu percebi "ministro"), mas que ocupou depois, ainda que por pouco tempo, o cargo de chefe de Estado no novo Portugal republicano. "Fez a transição com elegância...", concluiu José Hermano Saraiva, e foi óbvio para mim que ele estava era a falar de si próprio, aproveitando para meter a ficha, como quem não quer a coisa, em mais um pouco de Omo.

José Hermano Saraiva foi considerado, sem favor, uma das "dez caras mais emblemáticas da RTP", num ranking que há década e meia elaborei para a revista de fim-de-semana do jornal 24horas, entretanto liquidado. O humorista Nilton dizia-me então que "nem o Google sabia tanto de História" como o velho professor. Saraiva era um fenómeno de popularidade em Portugal e em todo o mundo onde se falasse e ouvisse português. Os seus programas na RTP - O Tempo e a Alma, A Alma e a Gente e Horizontes da Memória - foram anos a fio o menos e o mais que muito e bom povo aprendeu da História de Portugal.
Jurista de formação e historiador por vocação, antigo embaixador de Portugal no Brasil, José Hermano Saraiva era personalidade sem consenso sobretudo ao nível das chamadas elites pensantes. Os que não gostavam dele criticavam-lhe uma certa visão fantasista da História e o facto de não possuir qualquer grau académico superior nesta área do saber. Os seus defensores preferiam enfatizar as suas inegáveis capacidades de comunicador e de divulgador cultural junto das camadas menos instruídas da população. Alheio a estas guerras do alecrim e da manjerona, Saraiva continuava a ser uma presença assídua, entusiasta e apreciada na TV.

Comecei por dizer que gostava de ouvir o professor na RTP Memória. Ali, nas repetições, nas repetições das repetições, onde ele era ainda um jovem de 80 anos cheio de genica. Mas incomodava-me ver os seus novos episódios na RTP 2. Não conseguia, mudava de canal, perdia a missinha, Deus me perdoe. Não lhe deviam ter feito aquilo. Não o deviam ter deixado fazer aquilo.
José Hermano Saraiva tinha 92 anos e continuava na TV. Era uma boa notícia em absoluto, apesar dos meus incómodos, que para o caso são irrelevantes. Então como antes, novas gerações poderiam continuar a aprender com ele, se não História a sério, pelo menos a falar bom português e a respeitar e a amar o nosso património. Mas era preciso que se percebesse o que o pobre homem dizia naqueles monólogos já infelizmente inenarráveis.
Sempre gostei de ouvir quem me contasse. Aprendi isso em Fafe. Ao longo dos anos fui frequentador assíduo e prazenteiro das palestras televisivas de figuras culturalmente incontornáveis como António Pedro, Vitorino Nemésio, Pedro Homem de Mello, David Mourão-Ferreira, Natália Correia, António Victorino d'Almeida ou, numa outra dimensão, das charlas poéticas de João Villaret ou Mário Viegas, sem esquecer os inspirados desempenhos do Landinho Bacalhau, o antigo, e do Zé Fala-Barato, microfónicos fafenses que, mesmo sem honras televisivas e não desfazendo, nunca deixaram os seus créditos por mãos alheias, é preciso que se note.
E acreditai no que eu digo: estes, sim, eram comunicadores. O resto que por aí anda são habilidosos, meros entertainers. Copiam os gestos, imitam os tiques, mas falta-lhes a substância. José Hermano Saraiva saiu de vez dos ecrãs e acabou-se o que era bom. Como ele, já não há mais. Era o último.

quarta-feira, 12 de março de 2025

Roma em trajes menores

Imagem Arquivos RTP

Uma vez eu fui a Roma comprar um Pinóquio para o meu filho, que era pequenino, coitadinho. E aproveitei para acompanhar a visita de Cavaco Silva ao Vaticano e a Itália, creio que assim nos entendemos. Isto foi em Outubro de 1987, Cavaco era primeiro-ministro de Portugal, mas eu não. Eu trabalhava no Primeiro de Janeiro e o jornal é que me mandou atrás do outro. Lembro-me muito bem do mês e até de um dia em especial, porque eu fazia anos, certos e determinados, e o padre António Rego, que ia pela Rádio Renascença, se não me engano, pôs a comitiva de jornalistas portugueses a cantar-me os "Parabéns!" ao jantar, numa osteria à moda antiga lá para o meio daquelas ruinhas de filme, cheias de buzinas, lambretas, gestos exagerados, gritos de figlio di puttana e roupa a secar.
A imagem ali de cima é exactamente desse dia de festa, cantam as nossas almas, numa conferência de imprensa dada por Cavaco Silva nos jardins da Embaixada de Portugal junto da Santa Sé. No retrato só couberam pessoas importantes. O João Pacheco de Miranda, da RTP, televisão única, a fazer perguntas sem se rir, o nosso "primeiro" e o embaixador respectivo muito atentos, ou a fazerem de conta, e eu, não sei como é que fui ali parar, altaneiro e barbado, dominando a cena e fiscalizando as obras, até parece que faço parte da súcia. Reparem-me na airosidade, na categoria da minha pessoa, não é para me gabar, na classe da meiinha branca, no requinte do sapatinho dirópito. O casaco a estrear tinha cotoveleiras de camurça. E a gravata? A gravata evidentemente era azul e branca, como a cor única do meu coração, em delicado degradê. Gostava muito daquela gravata, acho que ainda a tenho, mas não faço ideia para quê. Eu não uso gravata, eu nem sequer uso colarinho ou casaco, eu há anos que não uso sapatos, valha-me Deus!...
Cavaco Silva foi a Roma e viu o Papa. Era João Paulo II, que agora dizem que é santo. O primeiro-ministro português levava-lhe o delicado e doloroso dossiê Timor-Leste. E eu levava umas palas de sol polaroid em cima dos óculos de ver. Umas palas de levantar ou baixar, consoante a sombra ou a luz, It is I, Leclerc, o que de repente descompôs um par de guardas suíços, que se partiram a rir com o meu desempenho em plena Escadaria de Bramante, eu seja ceguinho.

Era uma das minhas primeiras saídas em serviço ao estrangeiro. E eu levava muito a sério a encomenda de enviado-especial. O meu chefe - mestre Costa Carvalho - exigia-me pelo menos uma página por dia, e uma página por dia, naquele tempo, se quereis saber, com o tamanho que as páginas dos jornais tinham, tipo lençol, era obra desenganada. Instalaram-me no Collonna Palace Hotel, na Piazza di Monte Citorio, e era do quarto com vista para a praça e pornografia na televisão que eu, ao fim do dia, antes do jantar, preparava e enviava o serviço. Por telefone - que era a tecnologia mais avançada que havia, logo a seguir ao pombo-correio. E O Primeiro de Janeiro não tinha dinheiro para pombos-correio.
Eram duas ou três horas de alta tensão. Conferir apontamentos, seleccionar e hierarquizar assuntos, escrever tema principal e caixas, escolher títulos e destaques, pedir a ligação para o Porto, esperar, esperar, esperar, ditar para o gravador o material todo de uma ponta à outra. No Porto, o camarada da secretaria de redacção ouvia a cassete com travão, marcha-atrás e acelerador, como os pilotos de rali ou os pivôs de telejornal, batia os textos a todo o vapor e no final ligava-me de volta, a meu pedido especial, para uma releitura que pudesse servir de emenda a eventuais lapsos de transmissão, que eram praticamente palavra sim, palavra não. E esperar, esperar, esperar. Eram muitos nervos, muita ansiedade, muito ruído e interferências na linha, muita chamada a ir abaixo, muita pomba assassinada, muito aperto na garganta, muito coração nas mãos.
Eu suava em bica, quero dizer, em espresso. Portanto trabalhava em cuecas. Isso mesmo, em cuecas. Um pobre jornalista em cuecas, era o que eu era, com uma toalha a cobrir e proteger a cadeira, outra enrolada no pescoço e um lenço tabaqueiro atado à volta da cabeça tipo Willie Nelson. Um homem de família, pai de filho, respeitado em dois ou três sítios de Fafe e pelos menos numa freguesia de Cabeceiras de Basto, um ex-seminarista de créditos firmados, um intrépido frequentador dos Comandos da Amadora, e ali naqueles preparos, a trabalhar em cuecas e com água por todos os lados. Que triste figura! Que ridículo! Que vergonha!
Para disfarçar, eu imaginava que era nadador-salvador.

Entretanto o Kiko cresceu e uma vez foi a Itália e trouxe-me dois Pinóquios. Eu nunca mais fui a Roma e, é claro, estou a perder dois-um.