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quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Era um artista português

Alma de poeta
Tenho dentes sensíveis, disse-me o dentista. É a minha alma de poeta.

Esqueçamos por momentos as eleições, o futebol e outras guerras. Puxemos à memória aquele extraordinário anúncio da televisão a preto e branco com um homem (africano do Império, por sinal) a abocanhar uma cadeira e a fazê-la andar à roda acima da cabeça como ventoinha de helicóptero. Um enorme sucesso sempre que dava no café Peludo, que era onde se via TV. E pensando bem, chamar-lhe anúncio até acaba por saber a pouco: aqueles 20 segundos eram todo um programa de variedades e talvez manifesto político, mas isso agora não vem aqui ao caso. Aquilo é que eram dentes fortes, gengivas sãs, boca saudável! E tudo porquê? Porque o artista era um artista português e usava Pasta Medicinal Couto.
Eu, que sou dos tempos áureos do Restaurador Olex, também usei a Couto durante mais de um quarto de século, julgo que inicialmente "receitada" pelo extraordinário Quinzinho da Farmácia, o "médico" dos pobres de Fafe, o melhor médico de família que Deus ao mundo botou, ainda os médicos de família não tinham sido inventados. Aquela coisa de ser "Medicinal" no nome do meio também me convencia, tenho de confessar, e só a larguei após sucessivas tentativas falhadas para fazer sequer mexer uma cadeira de plástico com os dentes e depois de ir ao dentista pela primeira vez na vida, aos 45 anos.
A Couto nasceu no Porto há 93 anos, quando não era natural um preto de cabeleira loira e um branco de carapinha. A primeira fórmula da "Pasta Medicinal" foi registada a 13 de Junho de 1932, por Alberto Ferreira Couto e um amigo dentista. O novo produto prometia não só lavar os dentes, mas também, tomai nota, protegê-los dos malefícios da sífilis, reduzir os casos de infeção gengival e limitar o fenómeno crescente da retração das gengivas. Em 2001, por imposição das normas comunitárias relativas a este tipo de artigos, a marca foi obrigada a deixar cair a tão sedutora quanto conveniente designação de "Medicinal", passando a chamar-se simplesmente Pasta Dentífrica Couto. Até hoje.
Em 2012, o então principal accionista da empresa Couto, em Vila Nova de Gaia, anunciou que tinha dois pretendentes à compra da marca. Um da área da cosmética e outro do sector farmacêutico, ambos com intenções de "aumentar mais as vendas". O negócio deveria ser fechado até 2017. Não sei se foi, desinteressei-me do assunto. Mas também hoje em dia as cadeiras são muito mais leves...

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Monólogo do barbeiro

"Cabeleireiro masculino". Olho para o reclame e fico sempre naquela. Mas quê, será masculino porque é homem? Ou será masculino porque atende homens, isto é, barbeiro? E se o cabeleireiro masculino for mulher, não deveria dizer-se, sem ofensa, cabeleireira masculina? E se o cabeleireiro for feminino, o que é que temos a ver com isso? E se o barbeiro for mulher, não vamos mais longe, porque é que não é barbeira? E em caso de indefinição ou escolha múltipla, coisa absolutamente natural, poderá ser, por exemplo, barbeire? Cabeleireire? São problemas assim que de facto me afligem - quero lá saber de outras guerras.

Eu e o meu barbeiro comunicamos por sinais. Ele sabe que comigo não há conversa: entro no estabelecimento, levanto a mão direita em saudação índia mas não digo "Ugh!", sento-me na zona de espera, espero, varejo O Jogo, olho com fastio para as folhas do Jornal de Notícias, vejo as figuras da revista Volta ao Mundo, coço a cabeça e eventualmente os testículos, espreito-me aos espelhos, que realmente me favorecem, espero, espero, levanto-me quando chega a minha vez, que me é indicada pelo meu barbeiro com um aceno de cabeça, coisa cá entre os dois, aproveito os três passos de caminho para apontar se é só barba ou se é barba e cabelo, sento-me e está tudo dito. São muitos anos!
Conversa de barbeiro é uma seca. E um perigo. Os barbeiros sabem de tudo e nós, simples e indefesos clientes, não. Portanto, de navalha em punho, eles começam a falar na crise dos mísseis de Cuba de 1962 e só terminam, uma hora depois, já a socar-nos o tralhame com a escova, quando chegam ao caso do dono do café ao lado que tem a mania de deixar a janela do carro aberta, "Qualquer dia ainda se fode, com sua licença, Senhoreee...", e, depois de termos saído e já irmos longe, ainda vão à porta gritar: - O Senhoreee... também deixa a janela do carro aberta? Deixa? Ai é motorizada? Pois, nesse caso...
Ai de quem se atreva a meter conversa com o seu barbeiro, nem sabe no que se está a meter! Porque os barbeiros são óptimos a servir à pinta. Pasmados, à volta do cliente, de pente e tesoura suspensos no ar, como bailarina sevilhana pronta a tocar castanholas, dizem que "Sim" e que "Sim" e que "Sim" e que "Sim", "Sim senhor", "Não me diga", "Parece impossível", "A sério?", "A sério?", "É o país que temos", "Pois, hoje em dia", "Tem toda a razão", "Senhoreee...", "Senhoreee...". O nosso barbeiro nunca sabe o nosso nome, somos todos "Senhoreee..."
O meu barbeiro, treinei-o à minha feição. Nem um pio! Comigo, nem se atreve a pegar no espelho mostra-carecas para me perguntar, no final do serviço, se está tudo bem. Já sabe que comigo não vale a pena, até porque não me consta que se possa descortar cabelo. Vamos direitos ao assunto, quero dizer à máquina registadora, espreito os numerozinhos verdes a ver se ainda é o mesmo preço, é, pago, recebo o troco, levanto a mão direita em saudação índia e saio novamente sem dizer "Ugh!", que ele não estranha. Aliás, o meu barbeiro ficou bastante admirado quando, uma vez, eu lhe disse que não sou mudo.
Mas, para termos chegado a este superior estádio de entendimento silencioso, tácito, a esta combinação tão antiga e cómoda, precisei de me começar a impor logo no princípio, há mais de quarenta anos, quando cheguei de Fafe, habituado a barbeiros para homens de barba rija, e que hoje em dia, afinal, também já não passam de suspeitíssimos "salões de beleza"...

Ora bem. Não sei o que deu ao meu barbeiro, que, sem mais nem menos, resolveu falar. Comigo! E eu, de boca fechada e dentes cerrados, perante semelhante fenómeno ou talvez traição - falta de respeito, pelo menos -, mandei-o calar com os olhos, quase o fulminei. Mas ele fez-se de ceguinho e continuou com o relambório. Os barbeiros de um modo geral são assim, falam sempre, mesmo que a gente não lhes responda. Como os dentistas. E o meu barbeiro, parecia possuído, estava igual aos outros barbeiros, abriu o livro. Porque conversa de barbeiro tem técnica.
O meu barbeiro começou pela política, quer-se dizer: pelo Ventura, que vai meter estes mamões todos na ordem. O que até me veio a calhar para eu continuar calado, porque não percebo nada de política e, além disso, não gosto de dizer palavrões em público nem chamar nomes a ausentes. Perante o meu militante silêncio, o meu barbeiro passou para o futebol, quer-se dizer: Luís Filipe Vieira, gangues, facadas, polícia, e eu, nada. O meu barbeiro tentou-me, então, com o Trump, agora é que o vão apanhar. Valha-me Deus, antes de almoço não, lá se me ia o apetite. E o funeral da rainha, que foi uma categoria? E eu a pensar que o real evento, se foi mesmo uma categoria, esteve certamente a cargo do nosso Baptista de Antime, mas moita-carrasco! E as notícias? Quer-se dizer: o Manuel Luís Goucha que mandou a Teresa Guilherme para a prateleira. E a Cristina Ferreira, que foi de fim-de-semana a Sevilha. E a Fátima Lopes que deslumbrou em biquíni. E o Malato que diz que dá para os lados todos como as circunferências. E a Sónia Araújo, e o Jorge Gabriel, e o João Baião. Também não. Nem assim. Mantive-me irredutível, irrevogável, calado como uma porta, mudo como um herói.
O meu barbeiro pareceu desistir. Silenciou-se, magoado. E assim esteve, pareceu-me, durante uma boa meia hora. Até que, indo ao fundo da sua alma, arrancou um imenso suspiro, pôs a cara mais sofrida do mundo, suspendeu a tesoura trabalhadeira num gesto teatral e atirou-me, certeiro: - E este tempo, hã?! Isto está...
Ah!, bom, o tempo. Falando do tempo, assim já nos entendemos: tivemos ali conversa até à hora de almoço e ligámos um ao outro, à tarde, para esclarecermos dois ou três pontos.

É claro que eu não vou ao barbeiro há mais de dez anos, derivado à crise. Se deixei de ir ao cardiologista, para poupar dinheiro, por que razão havia de continuar a ir ao barbeiro? É a Mi quem me corta o cabelo e a barba cá em casa, na varanda sem marquise que temos mesmo em frente ao mar, se nos pusermos de lado. Mas eu e o meu barbeiro éramos exactamente assim. Praticamente assim. Entretanto a minha mulher aprendeu na Internet a realizar cateterismos, e cá nos vamos arranjando.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

O povo quer é sangue

Acusado de violência doméstica, o político esclareceu que, sim senhor, aviou dois ou três bufardos à mãe dos filhos, três ou quatro vezes, mas sempre no carro, nunca em casa. Portanto, violência rodoviária, quando muito, e exige um pedido de desculpas.

Quando eu era puto e a ambulância acudia a um desastre com a sirene em altos berros, as pessoas de Fafe corriam logo para as escadas do Hospital. Ali se plantavam, esperavam, prognosticavam, diagnosticavam, e finalmente assistiam ao espectáculo. Ao vivo. Em casos muito graves e raros, assistiam também ao morto. As escadas do Hospital eram um palco de desgraças e caldeirão de fervilhantes emoções, passerelle de horrores, cenário de reality show sem que Portugal sequer soubesse o que isso viria a ser. Eram também muito jeitosas para tirar fotografias de grupo a casamentos, bombeiros em festa e bandas de música ou ranchos folclóricos, palavra de honra. Eram, portanto, o sítio mais in da nossa terra, com a Igreja Nova à mão direita e o Tribunal em frente, e só estorvavam naquilo em que deveriam melhor servir, que era carregar macas com feridos e doentes por aqueles degraus acima ou por aqueles degraus abaixo, às vezes ia tudo de cangalhas até ao chão, doentes e feridos incluídos, e era realmente uma risota. Por outro lado: em fafês, como eu lhe chamo, "escadas" também se dizia "caleiras".
Ora bem. A ambulância saía, a sirene avisava o povo, e o povo corria, corria urgentemente, como se fosse ele próprio tratar do assunto. Mas ia à festa. Era de graça. E essa parte parecia-me bastante estranha, porque, naquele tempo, em Fafe, os espectáculos eram todos a pagar, inclusive as visitas a familiares e amigos internados no Hospital. Como é que a Santa Casa da Misericórdia nunca se lembrou de cobrar bilhete à mironagem que se ajuntava cá fora à espera do circo, como se fosse mais um número das Festas da Vila? Bilhetes avulsos, pontuais, caso a caso, evento a evento, digamos assim, mas também, porque não, assinaturas de temporada, globais, para o ano inteiro, evidentemente com desconto e eventualmente com cadeira, para os adeptos mais ferrenhos. Era o que eu então pensava, na minha indesmentível inocência.
À falta da polícia municipal, que ainda não tinha sido inventada, o bom do Senhor Ferreira via-se à rasca para manter na ordem aquela gente toda e tola que fazia guerra por um lugar na primeira fila, sobretudo mulheres afogueadas e gordas, com os socos e o coração nas mãos ou enrodilhados no avental arregaçado. Faço notar que não foi por distracção que escrevi "a" ambulância. O artigo definido singular é aqui propositado e certo, porque à época, acreditai no que vos digo, os Bombeiros de Fafe tinham apenas uma ambulância, uma velha Skoda 1200 ou 1201 da década de 1950, suponho, uma viatura com carroçaria de aço, pesada, vermelha e carrancuda que regularmente ficava sem travões no meio das descidas mais ingremes e perigosas. Depois chegou a primeira Peugeot, naturalmente de França, como os bebés, e pegou a moda das ambulâncias brancas.
Pois, como dizia, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do Hospital, esperavam às vezes horas a fio e regalavam-se de braços decepados e orelhas arrancadas e narizes esborrachados e fémures a céu aberto e pés desfeitos e tripas de fora e miolos ao léu e espinhelas partidas e... - Foi tiro?, Foi facada?, Foi sachola?, Foi o home?, Foi a amante? Foi desastre?, Foi o vinho? Ai que desgraça tão grande! E muitos Uis! e muitos Ais! e muitos Coitadinhos! e muitos Valha-nos Deus! E deixavam-se ficar, no relambório, a dar água sem caneco, num altruísmo tremendo, esquecendo-se da própria vida para falar da vida dos outros, e a benzerem-se na direcção da igreja, que estava ali mesmo a pedi-las, mas sem perder pitada. Vampiros de olhos arregalados, dentes afiados e línguas compridas, pelo menos até aos cotovelos, e os braços cruzados segurando as mamas, iam ao sangue, queriam molhanga, muita, vermelha vermelha como a ambulância que chegava enfim, esbaforida e ganinte. Era um fartote, uma comoção, talvez até desmaios. E nas cozinhas abandonadas e sombrias das casas pobres da vila antiga, os tachos esturricando ao lume pachorrento, azul e resmungão da máquina a petróleo no mínimo...

Agora as pessoas não precisam de ir a correr para as escadas do Hospital. Sentam-se em casa, ligam a televisão e vêem a CMTV. O que se perdeu em calor humano, convívio, ganha-se em Tânia Laranjo.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Fulanos, sopranos e beltranos

Compensações
Quem disse que o crime não compensa, decerto não sabia fazer contas...

Os sopranos têm, por definição, o tom de voz mais agudo e com mais alcance de mulher ou de rapaz muito novo. Se os sopranos forem homens, os puristas preferem chamar-lhes contratenores, que há quem confunda com contentores. Os sopranos dividem-se essencialmente em sete partes: soprano ligeiro, soprano lírico-ligeiro, soprano lírico, soprano lírico-spinto, soprano lírico-dramático, soprano dramático e soprano ultraligeiro. Também podem ser saxofones ou clarinetes. Nos Estados Unidos, os Sopranos ainda piam mais fino: falam com sotaque e gestos italianos, são mais que as mães, maus como as cobras e convictos frequentadores de meretrizes. São extremamente mafiosos e profundos conhecedores, estes sim, de contentores, blocos de cimento, peixes e rios, para além de cabeças de cavalo, que há quem confunda com cabeças de cavala. De escabeche. Quando inadvertidamente apanhados por famílias de outros naipes, liquidados e desmembrados como manda a lei, os Sopranos são chamados, por divertimento, meios-sopranos. Os Sopranos americanos fizeram uma excelente série de televisão e posteriormente derem em filme, o que se lamenta. O melhor Soprano do mundo (portanto, o pior) chamava-se Tony e padecia de ansiedade.
O meu pai era músico e tocava saxofone, tenor, na Banda de Revelhe, de Fafe. Isto antes de ir para França. O meu irmão Orlando também. Também foi músico e também tocou saxofone, alto, na Banda de Revelhe. Isto antes de se dedicar a outros consertos. O meu irmão José Manuel foi músico toda a a vida na Banda de Revelhe, mas tocava trompete ou, vá lá, fliscorne. Isto antes de se cansar. Eu cheguei a aprender música para a Banda de Revelhe, porém o máximo que sei tocar é campainhas de porta.

Lágrimas por Marcelo

A ignorância vem com a idade
Eu sabia tudo. Palavra de honra, eu sabia tudo de tudo. Depois cresci e deixei de ter certezas. Certeza nenhuma. Disseram-me que me fizera homem, com muito atraso, mas que sim. Não sei...

Junho de 1973. De visita a Londres, Marcelo é recebido por uma manifestação de protesto contra a presença de Portugal nas então chamadas províncias ultramarinas e, de uma forma geral, contra a, por assim dizer, política africana do Governo português. "Portugal no more massacres. Get out of Africa now!", lê-se em alguns cartazes de más-vindas. Eu nem queria acreditar. Fiquei de todo. Os meus olhos, virgens e patrióticos como eu inteiro, viam a preto-e-branco o que se passava no televisor do bar dos Bombeiros de Fafe, que eu tinha só para mim naquela clandestina hora do meio-dia, e a revolta transformava-se-me inesperadamente em choro. Chorei de raiva, dorido pelo Senhor Presidente do Conselho. Como se atreviam aqueles gajos?! Que vergonha! Que falta de respeito! Angola é nossa e ponto final, ainda que o caso fosse particularmente Moçambique.

No regresso a Lisboa, Marcelo foi, graças a Deus, surpreendido por uma manifestação espontânea muito bem organizada, uma manifestação a bem da Nação, de desagravo pessoal e de apoio às políticas africanas do Governo, uma manifestação contra as manifestações de Londres, mas com muito mais povo, muitas mais camionetas, muitos mais letreiros, muitos mais garrafões de vinho e salpicões e muitos mais Vivas!, toma lá ò camone a ver se gostas...
De certeza que foi gente de Queimadela. Queimadela estava sempre presente! "Não esperava esta manifestação, mas compreendo-a", dizia Marcelo, modestíssimo, do alto da varanda do Palácio de São Bento, rodeado pelos pândegos mandadores de Vivas!, assim à moda do nosso Velhinho, o Castro Mendes de Travassós, o trabalhista fafense, "ide por esses tascos abaixo, comei, bebei e pagai". E depois Marcelo falou de política, mas isso já não me interessava. Eu estava outra vez comovido, ranhoso, mas agora de auto-satisfação nacionalista, de respeitoso respeito a Sua Excelência. Quem me dera estar lá também com o garrafão. Ainda por cima eu nunca tinha ido a Lisboa e o vinho, certamente como a viagem, devia ser também de graça. Chorei, pois claro que chorei, e as lágrimas já me toldavam o preto-e-branco do aparelho, mas saí dali de alma lavada e, se quereis que vos diga (e ainda que não queirais), também eu algo desagravado. E então ri-me. Junho de 1973. O Marcelo era Caetano e eu, miúdo, ignorante, burro como uma porta, pensando que sabia tudo, ainda não sabia nada.

quinta-feira, 5 de junho de 2025

O autógrafo do Tino

Foto Tarrenego!

O Tino, o imprescindível Tino, estava de partida para a "Quinta das Celebridades" da TVI, com a missão mais que esperada de fazer figura de urso, isto lá pelo ano de 2005, se não estou em erro. O meu jornal, que só tratava de assuntos assim importantes, mandou-me a Rans cobrir a festa de despedida do herói local, que meteu comes e bebes, família, vizinhos, amigos, os dois penetras do 24horas, isto é, eu e o repórter-fotográfico, muitos abraços e algumas lágrimas. Um exclusivo à moda antiga. O Tino, que é um cromo mas não é tolo, teve a gentileza de oferecer-me o seu livro "De Palanque em Palanque", inesperadamente prefaciado por D. Manuel Martins (1927-2017), famoso bispo de Setúbal, e acrescentou-lhe uma profética dedicatória, sarrabiscada mesmo antes de entrar para o carro rumo à capital. Escreveu: "Hernâni, espero-te quando sair da Quinta em ombros. Rans sairá em ombros também." E assinou: "Tino de Rans".
Eu não sei se o Tino saiu em ombros, decerto não, mas sei que não fez figura de urso enquanto esteve na Quinta. Fez com que outros fizessem por ele, e já não foi pouco. Repito: o Tino não é lerdo, apenas se esforça por parecer. E goza o prato...
De resto, para mim, o Tino de Rans é praticamente presidente da república. Por isso guardo com tanta vaidade o livro e o autógrafo com que ele me agraciou.

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Éramos pelos touros

Referendo tauromáquico
Fez-se um referendo sobre as touradas - sim ou não? Os touros votaram não.

Sim, creio que se poderá afirmar, sem demasiado escândalo, que havia uma certa afición em Fafe. Uma espécie de penha taurina intermitente e inorgânica, espontânea, funcionava, digamos assim, no Peludo, café do povo, sempre que houvesse corrida na televisão, o que acontecia muito raramente e ainda a preto e branco. Gostávamos, portanto, de touradas. Éramos conhecedores, exigentes, e só nos interessavam as pegas.
As touradas eram entretém de Verão, geralmente à noite, e as nossas noites de Verão decorriam naquele bocadinho de passeio que servia de esplanada ao Peludo, na rua do Cinema e quase em frente, dois bancos corridos, de jardim, encostados à parede, e três ou quatro mesas com cadeiras a atravancarem a passagem. Estava-se bem! A tourada era lá dentro, no televisor pendurado num dos cantos da pequena sala, logo após a porta. O espectáculo começava, cortesias, cavaleiros, toureiros, matadores, bandarilheiros ou simples peões de brega, e o pessoal cá fora como se nada fosse, aquilo não interessava para nada. Porém. Tocava o cornetim a anunciar a pega, e entrávamos todos a correr para ganhar lugar e pedir mais um fino. As pegas é que nos diziam respeito. E éramos, obviamente, pelo touro. Para o nosso grupo de aficionados, uma boa pega, uma pega realmente de encher o olho, era quando o animal, sozinho, conseguia dizimar a formação de forcados inteira, um a um ou todos aos mesmo tempo, o valentão da cara, os ajudas e até o rabejador, tudo levado à frente, tudo pelos ares e, se possível, que não era, a coisa repetida depois duas ou três vezes, em câmara lenta. 
Rematada a função, amiúde de cernelha, que tristeza, após três, quatro ou cinco tentativas de pega natural falhadas, tornávamos ao exterior, talvez para mais uma sessão de anedotas com o Tónio Augusto Ferreira ou para ouvirmos as mirabolâncias do Zé Manel Carriço, que aparecia de repente, parecia impossível, só tinha de atravessar a rua. E ali ficávamos no comentário e na galhofa, até à próxima gaitada.

Que Fafe também teve a sua tourada, isso já é outra história. Foi no Campo da Granja, em 1963, provavelmente por ocasião das Festas da Senhora de Antime, que é o mais certo, mas também poderá ter sido por alturas das Feiras Francas, lembro-me é que era um belo dia de sol e, agora que penso nisso com mais vagar, não faço a mínima ideia de como é possível lembrar-me. Uma tourada que terá sido a primeira organizada em terras de Fafe e que, se não me engano, foi igualmente a única, e portanto última, até hoje.
O redondel não era assim tão redondo como o nome poderia indicar à partida: digamos que foi construída, com robustos troncos de madeira, uma espécie de lua cheia fanada, cortada em linha recta na zona da bancada, que era para o excelentíssimo público poder estar em cima do acontecimento. As digníssimas autoridades locais e a nossa mais distinta burguesia, orgulhosamente alapadas na bancada de cimento com tecto de chapas de zinco, quero crer que com umas discretas almofadinhas aliviando os respectivos traseiros, e o povo a pé, no meio do campo da bola, encostado às tábuas, mas seria muito pouco, meio dúzia de gatos-pingados, se tanto, e eventualmente já razoavelmente decilitrados, porque os bilhetes, mesmo os bilhetes mais baratos, eram bastante caros. Foram certamente ao engano e, diga-se em sua defesa, o calor era realmente muito e a situação deveras incómoda e eventualmente perigosa. Se naquele tempo já havia praças de toiros desmontáveis e alugáveis, não foi daquela vez que uma delas chegou a Fafe.
A tourada, segundo me lembro, e confesso que continuo sem perceber como é que me lembro, foi uma merda. Os do Peludo, especialistas encartados, nem lá pusemos os pés. Oficialmente. Quer-se dizer: mandaram-me a mim, que era puto, dar uma espreitadela, dei, e por isso é que sei do que estou a falar. Acho eu.

No tempo das feiras de gado, havia uma, valente, na Lameira, acontecimento constado ali à volta. Realizava-se todos os anos "pelos 21", isto é, no dia 21 de Agosto, ponto alto das Festas em Honra de Nossa Senhora da Saúde. Ora bem. Uma ocasião, uma vaca espantou-se não sei com quê, soltou-se do sítio onde estava a guardar e correu o arraial inteiro de uma ponta a outra a espalhar o pânico e o caos em direcção à Pica, escornando e escoiceando a torto e a direito, desfazendo tendas, barracas e ornamentações, tudo em pantanas, invadindo tascos e casas sérias, saltando para cima de carros e outros veículos mais ou menos motorizados e levando a eito aquele povo todo, aflito e tolo que não sabia aonde se havia de meter, anjinhos e mordomos incluídos. Eu, muito bem entrincheirado e de barriga cheia após merenda na Albertininha, ri-me como um perdido. Quer-se dizer: a coisa não constava do programa, mas também foi uma bonita tourada.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

O calor dilata os copos

Ele era um fafense à moda antiga. Praticante de fino durante três quartos do ano, chegava ao Verão e dedicava-se à caneca. Dizia: - O calor dilata os copos...

A este respeito, embora não pareça, diga-se que todos os anos, desde 2014, o dia 21 de Junho é Dia Mundial da Girafa e é completamente merecido. Os filmes de cinema e as telenovelas e até os concertos musicais particularmente sinfónicos não seriam possíveis tais quais os conhecemos hoje em dia sem a girafa. A girafa é, como aprendemos desde os bancos da escola, um suporte móvel no qual se prende um microfone. E é também uma vasilha considerável para consumo de cerveja de pressão. A girafa é realmente muito importante.

sábado, 3 de maio de 2025

Os homens medem-se aos furcos

Branca e radiante
Branca de Neve brincava às casinhas com a casa dos sete anões. Com os anões ela brincava aos médicos. Mas não sei se, hoje em dia, isto se pode dizer.

O Tatu está de volta, volta e meia. Perguntar-me-eis: mas qual Tatu?, e eu poderia dar uma certa e determinada resposta, rimada e bem conhecida aí por uns tantos, porém, pessoa educada que sou, digo simplesmente: o Tatu da "Ilha da Fantasia", que a RTP Memória resolve pôr a arejar quando lhe dá na cabeça. O Tatu (Tattoo) era o francês Hervé Villechaize, um excelente anão mas fracativo actor. Ainda assim, gosto mais de o ver trabalhar do que, por exemplo, ao ultrafamoso Tyrion Lannister (Peter Dinklage) da "Guerra dos Tronos", essa tão aclamada série de culto que a mim não me assiste. Não vão mais longe. Se andavam à procura do indivíduo que, a nível mundial, nunca viu um episódio da "Guerra dos Tronos", spoilers tampouco, podem mandar suspender as buscas - c'est moi.
Anões e o mundo do espectáculo - assunto menor? Não creio. Os homens não se medem aos palmos. Medem-se aos furcos, como toda a gente sabe. E as mulheres também. Falo primeiro por mim, que, perguntado ainda na escola primária acerca das minhas perspectivas de futuro, respondi que, quando fosse grande, queria ser anão para ir para o circo. E antes de mim já havia o Peter Pan e depois de mim saiu da cartola aquela improvável linha média - Adelino Teixeira, Alves, Vítor Martins e Octávio - com que mestre José Maria Pedroto calou Wembley-o-Velho e empatou a arrogante Inglaterra, no nosso mítico ano de 1974. Parece que ainda os estou a ouver, em Dolby 4-4-2, subindo em passinhos curtos a estrada dos tijolos amarelos: The house began to pitch. The kitchen took a slitch. It landed on the Wicked Witch in the middle of a ditch, Which was not a healthy situation for the Wicked Witch.
Dos pequenos, sim, reza a História. Coloquemos, pois, os anões em cima da mesa, porque merecem. Se me pedissem uma shortlist dos anões mais famosos, sendo que a fama mede-se obviamente em televisão e cinema, eu escolheria:
Talvez a Thumbelina (Debbie Lee Carrington), de "Desafio Total". Talvez o Mini Me (Verne Troyer), de "Austin Powers: O Espião Irresistível". Talvez Deep Roy, o múltiplo oompa loompa em "A Fantástica Fábrica de Chocolate". Talvez o duende Marcus (Tony Cox), em "Um Pai Natal para Esquecer". Talvez o professor Filius Flitwick (Warwick Davis), na saga "Harry Potter". Talvez o Mickey Abbott (Danny Woodburn), na série "Seinfeld". Talvez o "Arnold" Gary Coleman. Talvez o R2-D2 (Kenny Baker), da "Guerra das Estrelas". Talvez o Wee-Man (Jason Acuña), do "Jackass" da MTV. Talvez o munchkin Karl Slover, do "Feiticeiro de Oz". Talvez James Cagney, Mickey Rooney, Edward G. Robinson ou o apalpador Dustin Hoffman. Evidentemente poderia juntar à lista o Danny DeVito e o Tom Cruise, mas estes, peço desculpa, dizem-me muito pouco. Talvez...
Ou talvez o fogoso Nelson Ned, que era de outras artes e me dava cabo da cabeça aos domingos à tarde, nos castigadores altifalantes dos Comandos, da Amadora a Santa Margarida. Ou talvez o anão do Multibanco. Ou talvez, porque não, o Sr. José Nogueira, de Fafe, que, em meados do século passado, esteve quase a ir para Lisboa e ser famoso. Ou ainda talvez, puxando ao sentimento, as minhas duas queridas avós, a Bó de Basto e a Bó da Bomba, pequerrichas também, ou o senhor Flórido Engraxador, que trabalhava no velho Peludo e, aos sábados e domingos, também em Cima da Arcada, ou o César da Recta ou o senhor Clemente que fazia pipas e escadas para as vindimas e decilitrava aguardente como um alambique. Talvez...
Mas que fique registado que o meu anão favorito é uma anã. Chama-se Cadence Roth, Cady para os amigos, e chegou a ser a mulher mais pequena do mundo, se tivesse realmente existido. Conheci-a num livro, "Talvez a Lua", de Armistead Maupin. Procurai o livro. Atentai na Cady.

sexta-feira, 14 de março de 2025

O último comunicador

Os Sá Morais
Os Sá Morais são uma família muito antiga. Remontam, pelo menos, ao século X, no Japão.

A minha missinha das oito era ouvir o Prof. José Hermano Saraiva (1919-2012) a contar histórias na RTP Memória. Já o sabia de cor como ao padre-nosso, mas gostava de o ter ali, exactamente ali, a servir de música de fundo ao meu jantar. E a minha mulher também apreciava. Aqui que ninguém nos ouve, o homem tinha tanto de historiador como eu de monge tibetano, o que lhe dava ainda mais valor: porque não há quem invente História tão bem como ele inventava, não há quem estraçalhe com tanto panache tudo o que os verdadeiros especialistas escreveram com rigor, substituindo-o, num estalar de dedos, pelos seus próprios supores, e não há quem depois diga tudo o que acha com tanta graça, com tanta clareza, com um português tão perfeito e tão acessível e com tanta convicção como ele dizia. José Hermano Saraiva era único. Ele era o comunicador.
O professor sabia compor os "factos" como ninguém, sabia pintar a "realidade", conseguia fazer com que a sua História fosse sempre melhor e mais bonita do que aquilo que efectivamente se passou. E era cativante a contar. Vendia bem. Muitas vezes não era verdade o que ele dizia, mas podia ter sido, e a sua versão era sempre muito mais interessante do que a verdade ela mesma. Quase que se poderia dizer que, inadvertidamente, José Hermano Saraiva foi o inventor do moderno jornalismo português.

Ministro da Educação de Salazar, José Hermano Saraiva esteve no centro do vulcão que foi a crise académica de 1969. Figura polémica, criticado nos meios intelectuais e políticos, o professor ganhou o coração de sucessivas gerações de portugueses através dos programas que fazia para a RTP. Penso, porém, que o fantasma do seu passado fascista às vezes ainda o incomodava. Num episódio onde revisitava os retratos dos vários presidentes da República, no Palácio de Belém, o professor deixou cair um curioso comentário sobre Canto e Castro, creio, que era monárquico convicto e assumido, que foi mesmo deputado no tempo da monarquia (eu percebi "ministro"), mas que ocupou depois, ainda que por pouco tempo, o cargo de chefe de Estado no novo Portugal republicano. "Fez a transição com elegância...", concluiu José Hermano Saraiva, e foi óbvio para mim que ele estava era a falar de si próprio, aproveitando para meter a ficha, como quem não quer a coisa, em mais um pouco de Omo.

José Hermano Saraiva foi considerado, sem favor, uma das "dez caras mais emblemáticas da RTP", num ranking que há década e meia elaborei para a revista de fim-de-semana do jornal 24horas, entretanto liquidado. O humorista Nilton dizia-me então que "nem o Google sabia tanto de História" como o velho professor. Saraiva era um fenómeno de popularidade em Portugal e em todo o mundo onde se falasse e ouvisse português. Os seus programas na RTP - O Tempo e a Alma, A Alma e a Gente e Horizontes da Memória - foram anos a fio o menos e o mais que muito e bom povo aprendeu da História de Portugal.
Jurista de formação e historiador por vocação, antigo embaixador de Portugal no Brasil, José Hermano Saraiva era personalidade sem consenso sobretudo ao nível das chamadas elites pensantes. Os que não gostavam dele criticavam-lhe uma certa visão fantasista da História e o facto de não possuir qualquer grau académico superior nesta área do saber. Os seus defensores preferiam enfatizar as suas inegáveis capacidades de comunicador e de divulgador cultural junto das camadas menos instruídas da população. Alheio a estas guerras do alecrim e da manjerona, Saraiva continuava a ser uma presença assídua, entusiasta e apreciada na TV.

Comecei por dizer que gostava de ouvir o professor na RTP Memória. Ali, nas repetições, nas repetições das repetições, onde ele era ainda um jovem de 80 anos cheio de genica. Mas incomodava-me ver os seus novos episódios na RTP 2. Não conseguia, mudava de canal, perdia a missinha, Deus me perdoe. Não lhe deviam ter feito aquilo. Não o deviam ter deixado fazer aquilo.
José Hermano Saraiva tinha 92 anos e continuava na TV. Era uma boa notícia em absoluto, apesar dos meus incómodos, que para o caso são irrelevantes. Então como antes, novas gerações poderiam continuar a aprender com ele, se não História a sério, pelo menos a falar bom português e a respeitar e a amar o nosso património. Mas era preciso que se percebesse o que o pobre homem dizia naqueles monólogos já infelizmente inenarráveis.
Sempre gostei de ouvir quem me contasse. Aprendi isso em Fafe. Ao longo dos anos fui frequentador assíduo e prazenteiro das palestras televisivas de figuras culturalmente incontornáveis como António Pedro, Vitorino Nemésio, Pedro Homem de Mello, David Mourão-Ferreira, Natália Correia, António Victorino d'Almeida ou, numa outra dimensão, das charlas poéticas de João Villaret ou Mário Viegas, sem esquecer os inspirados desempenhos do Landinho Bacalhau, o antigo, e do Zé Fala-Barato, microfónicos fafenses que, mesmo sem honras televisivas e não desfazendo, nunca deixaram os seus créditos por mãos alheias, é preciso que se note.
E acreditai no que eu digo: estes, sim, eram comunicadores. O resto que por aí anda são habilidosos, meros entertainers. Copiam os gestos, imitam os tiques, mas falta-lhes a substância. José Hermano Saraiva saiu de vez dos ecrãs e acabou-se o que era bom. Como ele, já não há mais. Era o último.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Torna! Torna! Torna!

Dizia o povo antigo, na sua proverbial sabedoria, que os de Guimarães esfolam gatos e matam cães. Eu parece-me que devia ser proibido...

Torna! Torna! Torna! - gritava-se quando o gado fugia, implorando o socorro de quem por ali andasse e ouvisse e, de braços abertos balançantes e palavras mansas, pudesse suster, sossegar e encarreirar de volta os animais. Tornar era mandar para trás. Era como quem dizia "Cerca! Cerca! Cerca!", versão mais em uso pela moçarada para animar as hostes, convocar reforços e impedir a fuga dos da outra rua, em plena emboscada à coiada por causa do golo que não valeu, e mais ainda nem havia VAR. "Torna! Torna! Torna!" era também grito de guerra dos equívocos caça-cães fafenses, armados de redes, laços de contenção e palavrões de diversos calibres, levando a eito para o matadouro canídeos ostensivamente vadios ou, por azar, apenas sem dono à vista.
Para apanhar perigosos fujões, isto é, crianças com medo da pancada em casa ou bandidos sem medo nenhum, berrava-se igualmente "Torna! Torna! Torna!", como aconteceu daquela vez com o desgraçado oficial de justiça a correr atrás do preso que se lhe escapuliu à porta do Tribunal, de mãos algemadas mas pé ligeiro, e só foi agarrado já no nosso Santo, à força da ajuda do povo, quase em frente às Ferreira Leite e à Milinha Vaqueiro, que também saltaram para a molhada. "Torna! Torna! Torna!" era, em Fafe, o clamor de recaptura pelos tresmalhados em geral. Claro que também havia o "Toma! Toma! Toma!", que eu sabia dos robertos na televisão e uma maré, pelas feiras ou festas, vi ao vivo num biombo montado em Baixo da Arcada. E o "Tora! Tora! Tora!", mas isso, evidentemente, já é outro filme.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Eu tive um sapo

Engolidores, há-os. Como por exemplo engolidores de sapos, metaforicamente falando, engolidores de fogo, que na verdade não engolem mas borrifam, e engolidores de espadas. Engolidores de copas e engolidores de ouros não sei, mas engolidores de paus também há-os.

Tive uma infância feliz, em Fafe, rodeado de animais de estimação, ditos agora de companhia. Tínhamos um cão chamado Rin Tin Tin, tínhamos uma cadela chamada Lassie, tínhamos um canguru chamado Skippy e até tínhamos um cavalo chamado Mister Ed ao qual nem faltava falar. Eu ia vê-los ao café, porque em casa não tínhamos televisão.
Tínhamos também um sapo. Isto é, uma vez à noite tivemos um sapo, mesmo nosso, nem foi preciso ir ao café ver televisão, se o Sr. Avelino estivesse bem disposto e por acaso a ligasse, mas não lhe pusemos nome. Ao sapo. Ao Sr. Avelino pusemos, era o "Hoss", por causa do gordo do Bonanza. Mas eu conto a história do sapo.
A porta da nossa casa no Santo Velho tinha, em baixo, junto ao chão, um bocadinho de folheta levantada, e era ali que se deixava a chave, de uns para outros, éramos pelo menos seis, como, por exemplo, à noite, quando a nossa mãe já nos dava licença de saída até às 22 horas, ao Nelo e a mim, e depois no regresso a gente metia a mão no buraco, tirava a chave, que era enorme, digna de São Pedro, há que dizê-lo, abria a porta em câmara lenta, a monumental chave de bico calado, bem oleada, e entrávamos em casa com os pés debaixo dos braços para não fazermos barulho, a nossa mãe fazia de conta que estava a dormir e portanto só de manhã é que nos acertava o passo por termos chegado às 22h01.
Acontece que. Uma noite, findo o serão, estamos à porta, e o Nelo, que é mais velho, manda-me apanhar a chave. Eu meto a mão no vazio da folheta e, em vez da chave, agarro um enorme sapo que lá se tinha metido, filho da puta, e apanhei um susto que me ia mijando todo, estremeci-me até hoje, argh!, enchi-me de nojo, arranquei a mão como se a tirasse do fogo e rasguei-me na chapa ferrugenta, gani, vomitei, cocei-me antecipando verrugas para toda a vida, palavra de honra, e o caralho do sapo, como se não fosse nada com ele, saiu nas calmas felizmente para o lado da rua, caso contrário eu nunca mais entraria em casa. Entrámos, a nossa mãe a pé, à nossa espera, e a hora de picar o ponto já não interessava para nada. Levámos logo ali, por causa do sapo, da ferida, do vomitado, do barulho, quer-se dizer, do "espectáculo", que a nossa mãe não tolerava, fosse em que circunstância fosse. Tudo por minha culpa. Ainda por cima eu tinha dito "argh!" e em nossa casa, que era muito pobre, estavam terminantemente proibidas as onomatopeias, sobremaneira as derivadas dos livros aos quadradinhos, um luxo...

Os sapos à porta realmente incomodam-me. E metem-me nojo sobretudo os sapos à porta dos restaurantes ou de outros estabelecimentos comerciais. É. Como sou um bocado cigano, recuso-me também a entrar.
Os sapos às vezes são de engolir, como aconteceu com Álvaro Cunhal e o PCP na segunda volta das eleições presidenciais de 1986, para derrotar Freitas do Amaral, candidato da direita, e, só por isso, eleger Mário Soares. "Vamos ter de engolir um sapo. Se for preciso, tapem a cara [de Soares] com uma mão e votem com a outra", recomendou Cunhal aos comunistas. Para se distinguirem dos faquires, que engolem facas, os engolidores de sapos chamam-se sapires.

No velho tasco do Toninho Nacor, em Fafe, havia um sapo que era um jogo, na zona cimentada do quintal logo depois da cozinha, por baixo do sombroso caramanchão, ao lado das famosas gaiolas dos pássaros e do forno de cozer vitela e bolo. O sapo era um jogo tradicional e de taberna, um jogo de mesa em forma de armário aberto com inúmeras ranhuras correspondentes a outras tantas gavetas. Jogava-se com pequenas patelas, que se lançavam para o "armário" e cada entrada correspondia a uma certa pontuação. A boca do sapo era o máximo, se não me engano. Servia para matar o tempo enquanto se esperava pela hora da merenda e dali poderia sair também "multa" aos perdedores para próximas quartilhadas.
Sobre este interessante assunto, os sapos, apraz-me finalmente registar que o Sapo, primeiro motor de busca português, foi criado por cinco estudantes da Universidade de Aveiro, em 1995. Antes disso, mas em Penafiel, o Sapo já era um famoso restaurante de enfarta-brutos e conceituado estabelecimento de compra e venda de árbitros de futebol. Outros tempos!

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

O ânus da prova

Concelhos de mãe
Cátia Soraia entrou na universidade e, mal se instalou, mandou uma mensagem à mãe a pedir um concelho. A mãe, que é rica e boa alma, enviou-lhe Freixo de Espada à Cinta.

Eu, por exemplo, digo doénte em vez de doênte. Digo concelho e conselho em vez de conçalho e consalho. Digo mãe em vez de máim. Digo meio quando é meio e não maio. Digo têlha quando é telha e não talha. Digo coêlho quando é coelho e não coalho. Digo cóio em vez de côio. Digo câno em fez de cáno. Digo frónha em vez de frônha. Digo cachicha em vez de caxixa. Digo ferraménta em vez de pénis. Quer-se dizer: digo como era costume dizer-se na terrinha. Sou de Fafe, com muito gosto. Falo à Fafe como se nunca tivesse saído definitivamente de lá, e foi há mais de quarenta anos. Sempre que posso, falo a língua a que gosto de chamar fafês. Resultado: chamam-me parolo, labrego, matarruano, riem-se de mim.
Já o outro, urbanita de grande metrópole, frequentador de mundo e telejornais, ajeita delicadamente os botões de punho de dezoito quilates, afaga a gravata hermès sofisticada e cara, faz biquinho com os lábios suspeitos e diz, finíssimo porém acutilante, ânus da prova. Ânus da prova, é o que ele diz! Ânus da prova para aqui, ânus da prova para ali, enche a boca de ânus da prova! E chamam-lhe ó-doutor, jurista, comentador, especialista em molduras penais. E ninguém se ri.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Marcelo, o bruxo de Celorico

Quando o Feitiço se virou contra o Feiticeiro, o Feiticeiro resmungou: - Mal agradecido...

Sou fã de Marcelo Rebelo de Sousa, acho-lhe piada. Embora fosse mais fã e achasse mais piada no tempo em que ele era "apenas" comentador. Gostava mais dele nessa altura. Gostava daquele ar cartomante com que o Professor nos revelava tudo aquilo que nós já sabíamos. Parecia bruxo. Parecia O Astro, mas sem turbante. Gostava daquele sorrisinho matreiro, sorrisinho marca já-te-fodi. Gostava da forma como o Professor ia à televisão vender pedaços de nada como se fossem o mundo inteiro. O truque estava no poder de concentração e nos embrulhos. Marcelo usava papel de embrulho do melhor: papel de lustro, manobrista e recadeiro. E os fregueses adoravam. Marcelo sabia mais que o Papa. Sabia mais que a Irmã Lúcia, que está quase a ser santa. Sabia o passado e o futuro. Marcelo era o nosso presente. E agora é o nosso Presidente.
A omnisciência sempre me seduziu. Desde miúdo, quando, ainda em Fafe, eu ia a casa do Bertinho Dantas, meu rico menino, jogar O Sabichão. Depois, ao longo da vida, tive a sorte de encontrar sábios a sério em velhos lavradores, em professores, em camaradas de profissão, em três ou quatro amigos, gente que muito respeito e continuo a admirar. Nunca acreditei nas sinas lidas pelas nossas ciganas, às quartas-feiras, em Cima da Arcada, com um olho na mão e o outro na polícia, mas dava algum valor ao cartãozinho com o horóscopo que saía na balança colocada à porta do escritório das camionetas do João Carlos Soares, em frente ao Café Avenida, quanto mais não fosse a moeda de 50 centavos que aquilo custava.

Era uma vez 2005, ano de eleições legislativas em Portugal. Luís Filipe Menezes chefiava a lista do PSD por Braga e foi em pré-campanha a Celorico de Basto. O cabeça de cartaz do jantar-comício era Marcelo Rebelo de Sousa, o figurão. O meu jornal mandou-me atrás dele. PSD à parte, eu sentia-me ali particularmente à vontade, era a minha zona, a bem dizer. Na ementa, lombo assado evidentemente.
Não sei se sabeis, o lombo de porco assado, que por acaso é quase sempre apenas estufado, é a comida oficial da política em Portugal, e também é, regra geral, uma boa merda. Canja, lombo e musse de chocolate. Assim. Quem já passou por campanhas eleitorais e comeu todos os dias lombo, ao almoço e ao jantar, sabe muito bem do que é que eu estou a falar. Um suplício.
Mas adiante. Dos discursos, lembro-me apenas que Menezes "lançou" a candidatura de Marcelo à Presidência da República, oferecendo-lhe um quadro já não sei com que motivos. No final das intervenções, Marcelo andou de mesa em mesa, como noivo em dia de casamento, distribuindo bacalhauzada àquela gente toda a quem fazia questão de fazer de conta que conhecia cara a cara.
Eu aproveitei a confusão para dizer ao que ia:
- Sr. Professor, eu sou o...
- Eu sei - cortou simpaticamente Marcelo, estendendo-me a mão e um sorriso de orelha a orelha.
- ... o Hernâni Doellinger, do...
- Sei muito bem quem é - insistiu Marcelo, retirando a mão e reduzindo o sorriso.
- ... jornal 24horas - consegui informar, enfim.
- Exactamente, eu sei, sei muito bem, Hernâni, 24horas, eu sabia - concluiu Marcelo, metendo o resto de sorriso no bolso das calças e pedindo licença para continuar com os cumprimentos, que ainda havia muitas mesas para bacalhauzar no salão de cima e que falávamos no fim.
Claro que não falámos. Marcelo Rebelo de Sousa foi-se embora como quem não quer a coisa, fugiu pela porta dos fundos sem me dar uma segunda oportunidade, e se calhar até fez bem, o 24horas não se recomendava. Também não interessa. O importante é isto: o Professor não me conhecia de lado nenhum, nunca me tinha visto mais gordo nem mais magro, mas apareci-lhe à frente e ele "soube" logo quem eu era. Não é extraordinário? Agora que penso nisso, devia ter-lhe pedido que me deitasse as cartas. E que me desse os números do Euromilhões.

Ainda hoje guardo religiosamente a mão com que cumprimentei Marcelo Rebelo de Sousa naquele encontro histórico de Celorico de Basto. Os nossos contactos seguintes, tal como os anteriores, resumiram-se ao telefone. Ligava eu, por dever de ofício. E o Professor atendeu-me quase sempre. E foi sempre amável e útil. Depois mudou-se para Belém, e nunca mais falámos.

E para terminar. Sobre O Astro - "Pensar, Professor, pensar..." -, quem tiver idade para se lembrar da telenovela de Janete Clair e do desempenho do actor Francisco Cuoco percebe a história do cartomante, quem for mais novo que se informe. E reparai: em 2005, portanto há vinte anos, ainda as selfies em Portugal eram geralmente outra coisa, Luís Filipe Menezes também lia a sina, adivinhava a candidatura do Professor, exactamente em Celorico, mas não era assim tão difícil. Marcelo, estava-lhe nas linhas das mãos, trabalhava no assunto desde que nasceu. Com efeito, Marcelo Rebelo de Sousa é Presidente da República desde pequeninho. Pequeninho, que é como se diz pequenino lá para os nossos lados galegos de Fafe e Basto. Ou pequerricho. Como o nosso Luisinho, que, haveis de ver, também é homem para chegar lá.