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sábado, 30 de agosto de 2025

Os rabilhos, sem menosprezo pelos outros

Quem é que ainda se lembra de ver a funcionar o velho Mercado de Peixe de Fafe, na Feira Velha, o nosso pequeno "Ferreira Borges"? A funcionar e a cheirar, isto é, a feder e a exabundar de moscas, que aquilo era um pivete que não se podia. Talvez por isso o povo o tenha adoptado como latrina pública, mesmo ali nas barbas da Câmara, durante a sua longa temporada de abandono.

Rabilhos. Os japoneses são malucos por rabilhos. E as notícias dão conta disso, de vez em quando. É um assunto que me interessa sobremaneira, isto dos rabilhos japoneses. Aqui atrasado, um atum com 278 quilos foi comprado por dois vírgula sete milhões de euros, em Tóquio evidentemente, no mercado de Toyosu, que substitui o famoso mercado de Tsukiji, que era o maior mercado de peixe do mundo e uma das principais atracções turísticas da capital japonesa. O atum em questão foi a grande estrela do sempre muito aguardado primeiro leilão de Ano Novo, e bateu, sem culpa nenhuma, todos os recordes. Sei disto tudo porque o jornal Público mo contou na altura. E o Público, por favor não confundir com o Correio da Manhã, conta muito bem estas e outras extraordinarices. Para além disso, o Correio da Manhã é em vermelho.
Meses antes, um atum com 162 quilos tinha sido vendido por 4,3 milhões de ienes (quase 33 mil euros), ainda no velho Tsukiji, no seu último leilão, a uma escassa semana de fechar portas. Um atum praticamente dado, em boa verdade. Com efeito, em Janeiro de 2013, sempre contado pelo jornal Público, atentíssimo a estas coisas até mais não, um atum gigante fora comprado, no mesmo mercado, pelo então preço recorde de 1,38 milhões de euros. O peixão pesava 222 quilos, ficando por isso a cerca de quatro mil e setecentos euros cada quilo, é só fazer as contas. O outro, o tal do Ano Novo, custou mais de dez mil euros o quilo. Ora passa-se o seguinte: aqui atrasado comprei um atum anão, cá em Matosinhos, na peixaria da Dona Augusta, por pouco mais de euro e meio, eu seja ceguinho, e mais fresco era impossível. Pesava quase três quilos, saiu-me a rondar os 50 cêntimos o quilo.
As notícias afirmam que o atum gigante japonês era "rabilho". O meu atum anão, sinceramente não sei. Mas também foi comido. Em bifinhos. De cebolada. E que bem que nos soube.

Não percebo se é a fartura que os desorienta, mas a verdade é que os japoneses são mesmo um bocado tolos nisto de compras. Em Julho de 2014 soube-se que um cacho com 34 uvas, cada bago a pesar cerca de 30 gramas, foi vendido pelo simbólico preço de quatro mil euros. As uvas eram da raríssima casta ruby roman. E eu? Ainda ontem comprei na frutaria aqui da rua um bom gaipelo com 15 bagos e dois pequeninos, e não paguei mais do que cinquenta e três cêntimos. Evidentemente não eram ruby roman, muitíssimo longíssimo disso. As minhas uvas eram colhão-de-galo e, se quereis que vos diga, fiquei muito bem servido...

sábado, 28 de junho de 2025

Raios e Corisco

"Raisparta isto!", disse Zeus, arreliado e meio distraído. E foi o fim do mundo.

Como se sabe, Zeus é o pai dos deuses, o deus dos céus, dos raios e dos relâmpagos, o fiscal que mantém em sentido toda a mitologia grega, e em Roma chama-se Júpiter. Os raios eram lanças muito grandes produzidas em série pelos gigantes ciclopes, criaturas de um olho só, como o Luís de Camões ou a gaita do Bitó. Estas lanças, suponho que de fogo, depois de prontas eram entregues ainda quentinhas a Zeus, que as atirava com toda a força sobre os homens pecadores e arrogantes, quanto mais longe melhor, e assim começaram os Jogos Olímpicos.
Foi aí que apareceu o Franklin. Benjamin Franklin, polímata americano que, entre outras habilidades, inventou o pára-raios, segundo aprendi na Escola da Feira Velha. E foi a nossa sorte. Assim se livrou a humanidade da fúria de Zeus, regra geral, e dos seus raios e coriscos. O Corisco, faço notar no entanto, era um cãozinho de banda desenhada no antigo jornal O Primeiro de Janeiro, que morreu sem que ninguém em Portugal se importasse. O jornal. O jornal é que morreu, como outros jornais que também morreram sem notícia na necrologia. Se fosse um cão, seria uma tragédia...

sábado, 7 de junho de 2025

António Rebordão quê?...

O livro
Chegou à última página com o coração dilacerado entre a euforia e o desalento. Que mundo extraordinário, o livro. Quinhentas e sessenta e três páginas cheias de mistério, de sonho, de imaginação, de fantasia, certamente romance, amores e desamores, aventuras e desventuras, acção, suspense, final previsto e inesperado, feliz. Por outro lado, pensou, acariciando-lhe vagarosamente a lombada macia, num gemido mal disfarçado de suspiro: - Ah, se eu soubesse ler!...

Uma vez, há catorze ou quinze anos, tive a sorte de almoçar com o escritor António Rebordão Navarro (1933-2015). Eu e mais três amigos e velhos camaradas de ofício, dos jornais, num acidental e feliz reencontro à beira-Douro, na Ribeira de Gaia. Falámos sobretudo de banalidades risíveis, como convém à mesa, mas era fatal chegarmos aos livros. Meti conversa, como quem não quer a coisa:
- Sabe que fomos praticamente vizinhos durante alguns anos? O senhor doutor ainda mora lá para a nossa Foz?...
O senhor doutor era para mim senhor doutor porque Rebordão Navarro era formado em Direito e chegou a exercer de advogado e de delegado do Ministério Público, antes de se entregar de corpo e alma à escrita, como ficcionista, poeta e editor. Já quanto à resposta, às respostas que eu, molageiro, lhe pedia, disse-me que não e que sim. Que não sabia que fôramos vizinhos, que aliás não me conhecia de lado nenhum nem isso lhe fazia falta, mas que realmente continuava pela Foz, embora já não na Praça de Liège.
Porém, era ali que eu queria chegar. Com esta minha notável capacidade para fazer figuras tristes, que já então se manifestava exuberantemente, eu estava mortinho por demonstrar mais uma vez quão sólido é o cuspo com que argamasso os meus pindéricos alicerces culturais. E acrescentei, todo vaidoso:
- Sabe, eu tenho o livro, tenho "A Praça de Liège". Se soubesse que me ia encontrar com o senhor doutor, até o tinha trazido para que me fizesse o favor de uns sarrabiscos, de um autógrafo. Tenho o livro, está lá em casa...
- Ai tem o livro? Mas eu escrevi mais livros, escrevi para aí uns catorze... - cortou Rebordão Navarro, sem disfarçar o sorriso malandro como o arrozinho de feijão e legumes que lhe acompanhava os bolinhos de bacalhau com que se deliciava.
A minha primeira reacção foi largar o meu habitual "Eu sei!" com que tento sair das enrascadas em que por mania me meto, e recitar ali mesmo, de cor e salteado, da trás para a frente e da frente para trás, por ordem alfabética e depois por ordem cronológica, os outros treze títulos do reputado autor que tinha à minha frente de faca em punho, mas a verdade é esta: eu só conhecia "A Praça de Liège". Optei, portanto, por tornar pública a minha segunda reacção, que também me saiu uma boa merda e que foi "Pois faço ideia, mas lamentavelmente não tenho acompanhado a carreira do senhor doutor"...

"A Praça de Liège" foi um sucesso tremendo aquando da sua publicação, em 1988. Era o livro da moda (pois se até eu o comprei!) e ganhou o Prémio Literário Círculo de Leitores. Na altura em que me encontrei com o autor, contou-me o próprio, no Círculo de Leitores já não sabiam quem ele era, quem era o escritor António Rebordão Navarro. Alguém do Círculo contactou a irmã do escritor por uma razão qualquer, a senhora falou do irmão e do famigerado prémio e obteve como resposta um lamentável
- Quem? Rebordão quê? Não conheço...
Pois é: a memória. As empresas enxotam quem sabe da poda, despedem os funcionários pelas mãos dos quais passaram os factos e as pessoas, preferem juniores renováveis e analfabetos, verdes como os recibos, fiam-se no Google e na inteligência artificial, mas não vão lá. E depois ninguém sabe nada de nada, por manifesta estupidez natural.
Há anos que está a acontecer o mesmo nas redacções dos jornais portugueses e até se contam algumas saborosas anedotas a esse respeito. São de rir tanto, as anedotas, que às tantas até são verdade.

No que me diz respeito, e como penitência pela minha ignorância àquela data quanto à dimensão da obra literária de António Rebordão Navarro, que afinal era qualquer coisinha mais do que catorze títulos, aqui deixo o registo essencial, com sinceros votos de que faça também bom proveito à rapaziada do Círculo de Leitores: poesia - "Longínquas Romãs e Alguns Animais Humildes", 2005; "A Condição Reflexa", 1989; "27 Poemas", 1988; "Aqui e Agora", 1961; teatro - "Sonho, Paixão, Mistério do Infante D. Henrique", 1995; "O Ser Sepulto", 1972; crónica - "Estados Gerais", 1991; ensaio - "Juro Que Sou Suspeito", 2007; conto "Dante Exilado em Ravena", 1989; romance - "As Ruas Presas às Rodas", 2011; "A Cama do Gato", 2010; "Romance com o Teu Nome", 2004; "Todos os Tons da Penumbra", 2000; "Amêndoas, Doces, Venenos", 1998; "A Parábola do Passeio Alegre", 1995; "As Portas do Cerco", 1992; "Mesopotâmia", 1984; "A Praça de Liège", 1988; "O Parque dos Lagartos", 1981; "O Discurso da Desordem", 1972; "Um Infinito Silêncio", 1970; "Romagem a Creta", 1964.

quinta-feira, 5 de junho de 2025

O autógrafo do Tino

Foto Tarrenego!

O Tino, o imprescindível Tino, estava de partida para a "Quinta das Celebridades" da TVI, com a missão mais que esperada de fazer figura de urso, isto lá pelo ano de 2005, se não estou em erro. O meu jornal, que só tratava de assuntos assim importantes, mandou-me a Rans cobrir a festa de despedida do herói local, que meteu comes e bebes, família, vizinhos, amigos, os dois penetras do 24horas, isto é, eu e o repórter-fotográfico, muitos abraços e algumas lágrimas. Um exclusivo à moda antiga. O Tino, que é um cromo mas não é tolo, teve a gentileza de oferecer-me o seu livro "De Palanque em Palanque", inesperadamente prefaciado por D. Manuel Martins (1927-2017), famoso bispo de Setúbal, e acrescentou-lhe uma profética dedicatória, sarrabiscada mesmo antes de entrar para o carro rumo à capital. Escreveu: "Hernâni, espero-te quando sair da Quinta em ombros. Rans sairá em ombros também." E assinou: "Tino de Rans".
Eu não sei se o Tino saiu em ombros, decerto não, mas sei que não fez figura de urso enquanto esteve na Quinta. Fez com que outros fizessem por ele, e já não foi pouco. Repito: o Tino não é lerdo, apenas se esforça por parecer. E goza o prato...
De resto, para mim, o Tino de Rans é praticamente presidente da república. Por isso guardo com tanta vaidade o livro e o autógrafo com que ele me agraciou.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Ordem para tramar Sócrates

Até começou bem...
Sócrates começou como filósofo em Atenas e jogou na selecção brasileira de futebol. Anos mais tarde foi primeiro-ministro de Portugal. Estragou tudo. 

Ano de 2004. O Presidente da República Jorge Sampaio despede o primeiro-ministro Pedro Santana Lopes, por indecente e má figura. Eleições legislativas são antecipadas e marcadas para 20 de Fevereiro de 2005. José Sócrates é o novo líder do PS e da oposição. Vai a votos. Durante a pré-campanha e campanha eleitoral, critica Santana Lopes, que se recandidata pelo PSD e promete não aumentar impostos. Como se não aumentar imposto fosse defeito.
O meu jornal manda-me "tramar" Sócrates. "Vamos entalar o gajo". É preciso ligar-lhe imediatamente e perguntar-lhe então se, caso ganhe as eleições, vai subir os impostos. Mas que pergunta inteligente! Que armadilha bem montada! Pincéis desta marca sobravam sempre para mim. Como já deveis saber, porque eu estou farto de o contar, as pessoas de bem, ou as pessoas de mal que faziam questão de aparentar uma fachada de bem, recusavam-se a falar com o 24horas: tinham consciência de que, se abrissem a boca, tudo o que dissessem poderia ser usado contra elas. E geralmente era. Nem que lhes telefonássemos apenas para saber as horas, haveria de sair dali cagada da grossa. Nós depois ligávamos a ventoinha e espalhávamos a merda toda. Dito de outra forma: as pessoas minimamente informadas fugiam de conversar connosco como o diabo foge da cruz. Umas tinham vergonha na cara ou medo e outras desprezavam-nos simplesmente. Umas e outras sabiam que as nossas perguntas tinham quase sempre volta de foda. Se desse jeito, pedíamos a A para falar de B, para a seguir metermos A e B no mesmo saco e malharmos nos dois como se fossem um só. Por outro lado, havia quem fizesse tudo para aparecer, mesmo no 24horas, ou principalmente no 24horas.
Portanto, o meu jornal manda-me "tramar" José Sócrates. É só ligar-lhe, a ele que nunca atende o 24horas e que escorna os jornalistas em geral por uma questão de princípio. Ligo, ligo, ligo, o dia inteiro. E nada e nada e nada, o dia inteiro. Ao pôr-do-sol tento o inimaginável truque, o long shot, como Lisboa gosta de me dizer e eu parto-me a rir: marco o número de Pedro Silva Pereira, o braço-direito de Sócrates, e sai-me do outro lado o Sócrates inteiro e desconfiado, num por acaso que me enche de adrenalina. Identifico-me, ele vai desligar de seguida, peço-lhe que não e faço-lhe a pergunta de um milhão de dólares: - Se vencer as eleições, se for para primeiro-ministro, vai subir os impostos?
José Sócrates não me manda àquela parte, mas podia, que eu não lhe levaria a mal. Ainda assim, empertiga-se, serigaita-se, despeita-se, esganiça-se e responde-me agressivamente: - Mas quem é que você é? E quem é que pensa que eu sou? Isso é uma pergunta ridícula. Acha mesmo que eu lhe vou responder? Sei muito bem o que quer, mas daqui não leva nada. Não lhe respondo. Acha que eu sou um principiante? E o senhor não tem nada de útil para fazer?...
Tenho. E faço. "Reformulo" e ponho pó de talco na pergunta: - Se o Senhor Engenheiro for o próximo primeiro-ministro, posto que ganhe as eleições, vai subir os impostos?
Sócrates quase que rebenta. Discutimos mais uns três minutos, tempo de um assalto no boxe, um a bater no ceguinho, o outro a agredir o invisual, eu não sabia que sabia discutir assim com cabeçudos, e ele desliga.
Saio dali exausto, nervoso e contente com a discussão. É ainda a adrenalina a mexer comigo. Geralmente, o que (não) consegui é mais do que suficiente para ser a capa inteira do meu jornal no dia seguinte, em letras garrafais: "Sócrates entalado pelo 24horas" ou "24horas entala Sócrates" ou "Sócrates não responde ao 24horas" ou "Sócrates tem medo do 24horas" ou "24horas assusta Sócrates" ou.
Apresso-me a ligar para Lisboa. Conto a minha façanha, espero pelos parabéns. O chefe de turno, jovem turco, critica-me, irritado, "A resposta do gajo é inaceitável!", engulo em seco e explico ao chefe, "Olha, foi o que eu disse ao gajo, que até ia da tua parte e que tu nunca na vida irias aceitar uma resposta assim, e que portanto ele que me dissesse mas é o que tu queres que ele diga, que até já tens o título feito e tudo, mas não adiantou..."
O meu textinho saiu a uma coluna numa página interior, provavelmente par. Do assunto da manchete desse dia não me lembro. Quanto a José Sócrates, por aí anda. E o jovem chefe, velho e ainda tolo, também...

segunda-feira, 21 de abril de 2025

No tempo em que os animais falavam

Foto Gaspar de Jesus

Houve um tempo em que os presidentes dos maiores clubes de futebol falavam com os jornalistas e até convidavam os directores dos jornais para jantar. Os jornalistas, todos eram tratados por igual e quem tivesse unhas que tocasse viola. Mas isso foi muito, muito antigamente, no tempo em que os animais falavam e não havia telemóveis. Depois, conta-se que os presidentes dos maiores clubes resolveram dividir os jornalistas em dois grandes grupos: os que levavam recados e os que levavam no focinho - e deixaram de falar aos restantes. Mais tarde, os presidentes dos maiores clubes criaram as suas próprias televisões e passaram a ser "entrevistados" pelos seus próprios assalariados. E agora, quando se dignam descer até ao ecrã das televisões ditas generalistas, falam directamente de casa e exigem tratamento de primeiro-ministro, pelo menos. São outros tempos!
E, entretanto, já não sobramos todos daquela mesa...

terça-feira, 1 de abril de 2025

Zé do Boné morava em Fafe


O Zé do Boné andou mais de meio século pelas páginas de O Primeiro de Janeiro e hoje seria um herói impossível, cancelado. Porque politicamente incorrecto. Porque as caricaturas, as representações, parece que agora incomodam mais do que a própria realidade. Criado pelo cartunista britânico Reg Smithe, o malandro Andy Capp, assim se chamava de origem, foi visto pela primeira vez no dia 5 de Agosto de 1957 no jornal Daily Mirror. Internacionalizou-se em 1963, quando passou a ser editado também nos Estados Unidos, e chegou a ser publicado em mais de mil jornais, cinquenta países e treze línguas.
Por cá, O Primeiro de Janeiro tomou conta de Andy Capp, pô-lo à beira das palavras cruzadas e rebaptizou-o, numa adaptação feliz, como Zé do Boné. E é com esse nome que o conhecemos até hoje. Zé, para ser "português" e porque sim. Do boné, como a própria imagem indica. Zé do Boné. Conheci-o em Fafe, na barbearia do Sr. António Grande, à beira da loja da Rosindinha Catequista e da Cafelândia, o Janeiro era o jornal da casa, e mais tarde, já no Porto, viria a conviver com ele todos os dias, digamos, profissionalmente, nas vetustas instalações de Santa Catarina.
O Zé era o típico elemento da classe trabalhadora que na verdade nunca trabalhou. Cidadão imprestável, machista, engatatão sem sucesso, copofónico de gabarito, mentiroso, preguiçoso, implicativo, conflituoso e, numa só palavra, arruaceiro, passava a vida entre o sofá de casa e o balcão do café da esquina, reservando algumas horas para andar à pancada nos jogos de futebol. Apostador inveterado, as suas modalidades desportivas favoritas eram, para além do pontapé na bola, a columbofilia, o bilhar e as corridas de cavalos. Para além disso, batia na mulher, Flo, trabalhadora esforçada que também gostava do seu copinho e que, quando não, lhe devolvia alguns sopapos.
Enfim, todo um compêndio de malandrice, indecência e má figura. Ou por outra - e isto incomodava-me sobremaneira -, podia ser em Fafe, naquele tempo. E não eram poucos.

E que mais? Zé do Boné foi também o nome por que ficou conhecido mestre José Maria Pedroto (1928-1985), filósofo e treinador de futebol, co-autor, com Pinto da Costa, do FC Porto moderno. Zé do Boné, por ser Zé e por usar boné em serviço. E eventualmente também por causa do Zé do Boné dos desenhos propriamente dito.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Vinho para Saddam Hussein

Foto Hernâni Von Doellinger

Isto foi para aí em 2002, portanto um ano antes da invasão do Iraque, e aconteceu quando chegou a Portugal a inesperada porém impactante notícia de que Saddam Hussein se perdia de amores pelo nosso Mateus Rosé. O meu jornal mandou-me logo escrever uma artigalhada sobre o momentoso assunto e comprar uma caixa do mais famoso vinho português para oferecer, "com um cartãozinho simpático", ao ditador de Bagdade. Era só telefonar à junta de freguesia local para saber o endereço certo e expedir de avião desarmado lá para o palácio das mil e uma noites. Perante a minha perplexidade telefónica a propósito da segunda parte do serviço, Lisboa explicou-me o jornalístico intuito da genial ideia, sufocando-me à nascença todas as minhas potenciais reticências: "Se o gajo nos responder depois a agradecer, é o máximo, dá uma capa fantástica. Mas se não disser nada, também dá uma coisa gira. Então vá!"
E eu fui. Comprei o vinho e escrevi o texto. Não o cartão. Um texto pequeno que andava à volta disto: o Saddam gosta de Mateus Rosé. Era capaz de ter também alguma graça, já não me lembro, mas quando digo andar à volta é mesmo andar à volta, fazer chouriço, meter palha, usar e abusar da técnica de composição musical da variação (e fuga), porque a "notícia" não tinha mais nada para dizer, era oca por dentro. E foi manchete no dia seguinte.

(Permitam-me abrir aqui um parêntese pedagógico, para proteger os caros leitores da tentação de tirarem conclusões precipitadas e injustas acerca do meu jornal. Deixem-me esclarecer o seguinte: num certo sentido, o 24horas foi o precursor do jornalismo que hoje se faz em Portugal - um jornalismo de títulos, colorido e imaginativo, a que, para ser perfeito, só falta o pequeno pormenor da informação, isto é, as noticiazinhas propriamente ditas, a substância. Hoje os jornais portugueses são todos iguais ao 24horas. Uma diferença apenas os separa: o 24horas era, nos seus bons tempos, o melhor pior jornal do País, era um mau jornal muito bem feito. E ficava barato ao dono. Depois veio a rapaziada, tomou conta e fodeu tudo.)

Meti a caixa de vinho num armário da redacção. Eu já tinha aprendido que as geniais ideias vindas de Lisboa padeciam de tesão breve e alzheimer. Eu também era da chefia, mas no Porto, sabia muito bem como é que a coisa funcionava. Regra geral, no dia seguinte os nossos criativos e bem-intencionados chefes já não se lembravam das figuras tristes que nos tinham mandado fazer no dia anterior. E mandavam-nos fazer outras. Assim foi. Nunca mais se falou no assunto.
Em Dezembro de 2003 apanharam Saddam e eu pensei: "Agora é que era de lhe mandar o Rosé, para lhe animar o Natal na prisão". Pensei, e deixei-me estar. O ex-presidente iraquiano foi executado três anos depois, como se viu abjectamente no YouTube, e as garrafas lá continuaram no armário, até ao dia em que Lisboa veio ao Porto anunciar que o Porto ia fechar para salvar o jornal. Isto é, para salvar Lisboa. Começava o ano de 2009 e desfizeram-se de nós. Eu trouxe para casa duas garrafas do Mateus Rosé de Saddam Hussein.

(Se fosse hoje, os gostos líquidos de Saddam andariam talvez mais pelo vinho azul da Casal Mendes, mas também não se poderia esperar melhor critério de quem certamente nunca pôs os pés no Nacor e às tantas nem estaria informado a respeito da rota dos tascos de Fafe.)

Enofilias e folclore à parte, o 24horas acabou por não se safar, mas "Lisboa" sim, e é o que eu lhes estimo. Os alegados responsáveis do ex-jornal estão agora a enganar noutro lugar. As duas garrafas de Mateus Rosé ainda cá estão em casa, a fazerem de pai e mãe a uma outra, de aguardente do Salazar, parece que engarrafada pelo próprio, como me garantiu, no acto da oferta em Santa Comba Dão, o sobrinho-neto do nosso estimado ditador. Estão bem umas para as outras, as garrafas. E os outros também.