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sábado, 12 de julho de 2025

Quando o Natal chegou a Fafe

É triste o fim do Natal
O fim do Natal é muito triste. Terminasse o Natal em m, Natam, terminasse o Natal em x, Natax, terminasse o Natal em y, Natay, terminasse o Natal em z, Nataz, terminasse até o Natal em k, Natak, e, quer-se dizer, o fim do Natal até teria alguma piada. Agora, terminar em l, Natal, um esquelético tracinho ao alto, um pauzinho desamparado armado em guarda-redes, é realmente uma tristeza muito grande, um fim que ninguém merece.

O primeiro Natal que eu conheci em pessoa chamava-se Higino. Natal Higino. Ou por outra, chamava-se e chama-se, felizmente sobretudo para ele, mas também para nós todos que tivemos a fortuna de o herdar sem mais nem menos. O nosso Natal veio directamente de África, no tempo em que Fafe era o fim do mundo. Para quem viesse de comboio, como o Natal veio, acabar em Fafe era obrigatório, não havia mais linha, batia-se com o nariz na parede que aguenta até hoje a velha Rua do Retiro. Muito tratante desaguou assim em Fafe, para mal dos nossos pecados, mas o Gino é vinho de outra pipa.
O Natal chegou a Fafe em 1975. Tinha 19 anos de idade. O Natal chegou, Natal Higino, instalou-se nos Bombeiros, na Bomba, e tornou-se "como se fosse da família", que, tomai bem sentido, é muito mais e melhor do que ser mesmo da família. Creio não estar a dizer grande asneira quando afirmo que, na nossa terra, o mais forte laço "familiar" que nos une acaba por ser esse mesmo, o de sermos uns para os outros como se fôssemos da família, meus ricos meninos. A família sanguínea, de árvore genealógica, não passa de um que remédio, é uma fatalidade, cai de madura. A esse respeito, no entanto, devo ressalvar que a minha tia Laura e o meu irmão Nelo saberiam falar do Gino com muito mais propriedade do que eu, mas o Nelo, por recato, sei que nunca o faria, e a querida tia deixou-nos infelizmente há cinco anos, mas conto um destes dias trazê-la outra vez aqui. A tia Laura foi quem encarrilou o Gino para a vida.
O Natal chegou a Fafe, Natal Higino, e, apesar de alardear algum jeito para a bola, com passagens registadas por Antime, Vinhós e Estorãos, pelo menos, foi como espectador, isto é, como aplaudidor, que ele mais se notabilizou. Batia umas palmas que eram realmente um assombre, como se dizia em fafês, assombre, palavra inventada pelos músicos antigos da Banda de Revelhe, ou talvez não, porque um destes dias ouvi-a no Alto Minho e acertadamente encaixada, para minha surpresa e grande alegria. Um assombre! Umas palmas que, quando bem batidas, ouviam-se da Cumieira a Santo Ouvídio e da Fábrica do Ferro à Ponte do Ranha. Como se fossem duas rijas tábuas de soalho saídas da máquina da serração e lançadas violentamente uma contra a outra e ligadas aos altifalantes do Baptista, um estrondo assim tremendo, uma coisa nunca ouvida! Lembrais-vos do PA-SSA A BO-LA! do tonitruante Aníbal Carriço? Pois estas palmas andariam por lá perto. Em todo o caso, um extraordinário melhoramento sonoro para Fafe, e sem despesa para a Câmara ou para o Governo. Para além disso, Natal Higino, que veio de África, soube fazer-se fafense excelentíssimo. Que é! Acrescentai-o à lista, se fazeis o favor.
O Natal, o nosso, trouxe um apenso de alegria e bondade a Fafe. O Higino é isso, um homem alegre, bom, generoso, honrado, companheiro. Para o Gino, toda a gente tinha a categoria de Você. Era o meu tempo de seminário, e o Gino chamava-me "Sacerdote". Suponho, aliás, que ainda hoje me chama "Sacerdote". Éramos, somos, amigos. A minha mulher sabe quem é o Gino, o que o Gino representa, conhece-o, que eu apresentei-lho, e isso é o topo no meu barómetro da amizade, prenda tão rara.
Eu não sei se Fafe já se apercebeu da sorte que teve por causa do comboio acabar obrigatoriamente ali e dele ter saído por acaso o Gino. Eu tenho noção. Ao longo da vida vim a conhecer alguns Natais, não muitos, porque o nome também não é assim tão popular, mas não me lembro de outro que me tenha verdadeiramente impressionado. E acho que sei porquê. Porque, como noutras encomendas da vida, não há Natal como o primeiro. E o meu chamava-se Higino.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Os bois chamam-se pelos nomes

O porco é Ruço. A porca Vadia. A vaca Amarela. O boi Barrão. O touro Osborne. A turina Malhada. A vitela À Moda de Fafe. O cão Bobi. O elefante Dumbo. A cadela Laika. A Santa preguiça. O cachorro Kent. O gato Maltês. A gata Borralheira. A cabra Cega. A ovelha Dolly. O cabrito Montês. O cavalo Silva. O burro Velho. O rato Mique. O coelho Branco. O macaco Adriano. O leopardo Negro. O urso Teddy. O teddy Boy. A chinchila Mila. O furão Furão. A tartaruga Ninja. A cobra Dora. A mulher Alheia. O homem Erecto. O peixe Dourado. O surfista Prateado. A sardinha Biba. A pita Arisca. A periquita Alegre. A parreca Molhada. A pomba Branca. O crocodilo Dundee. A lontra Badocha. O pato Patola. O galo Badalo, a galinha Balbina, o pinto Jacinto e o peru Gluglu.
Assim se chamam os bois pelos nomes.

terça-feira, 24 de junho de 2025

Ó prima, ó rica prima!

Eu tenho uma prima de que não sabia. Desconheci-a durante quase toda a minha vida, foi-me apresentada talvez há quinze anos por um amigo comum, e passámos a conviver regularmente, nos últimos tempos cada vez menos. Às vezes dão-me saudades, digo que preciso de ir à prima, há logo quem leve a coisa para a malandrice, mas nada disso. A prima é a Erdinger, a excelentíssima cerveja alemã que, como o próprio nome indica, só pode ser da família. E eu estou farto de dizer à minha mulher: a família devia dar-se mais.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

O grande Fortunato

O melhor amigo
Os Sousas do sexto-direito têm um cão. O cão é o melhor amigo do homem, quero dizer, do Sousa. O melhor amigo da mulher, quero dizer, da mulher do Sousa, é o Gustavo da Tabacaria.

Encontrei ontem por acaso o Fortunato, o meu amigo Fortunato - aos séculos que não nos víamos um ao outro, eu e o velho Fortunato. Fiquei tão contente! E foi tão bom! Recordámos os tempos antigos, aqueles anos loucos na universidade, falámos das nossas vidas, da família, dos filhos, dos netos, dos amigos que já morreram, daquela inesquecível viagem à Áustria para apoiar o Benfica, grandes malucos, falámos deste mundo sem conserto, deste país que só neste país, do nosso tempo, que é que era, do tempo para o próximo fim-de-semana e de projectos para o futuro. Enfim, pusemos a conversa em dia, avivámos uma amizade que vem desde os bancos da escola, por assim dizer. Despedimo-nos calorosamente, trocámos abraços da boca para fora e números de telemóvel, apalavrando a marcação de um almoço para um dia que não chova. Cada qual seguiu para o seu lado, e só então é que eu reparei que aquele não é o Fortunato, nem sequer é parecido com o Fortunato. De resto, pensando bem, ele também não me disse que era o Fortunato e eu nunca conheci nenhum Fortunato, nunca tive um colega ou amigo chamado Fortunato, não andei na universidade, nunca fui à Áustria e, ainda por cima, quero que o Benfica se foda. Na verdade, depois de muito puxar pela cabeça, cheguei à irrefutável conclusão de que não conheço este indivíduo de lado nenhum. Em todo o caso, gostei muito de falar com o Fortunato, e é sempre bom ter amigos assim.

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Epístola aos Travassolenses

A desobra de Deus
Deus criou o homem. E o homem inventou a religião. E talvez não houvesse necessidade...

Paulo de Tarso, ou Saulo de Tarso, também conhecido como Apóstolo Paulo, São Paulo Apóstolo, Apóstolo dos Gentios ou simplesmente São Paulo, nem sempre foi o santo que hoje se pinta. Tem atrás de si um passado, como todos nós, mas um passado mais negro do que o da maioria de nós. Saulo era um fariseu radical, impiedoso, feroz, um zelota que se dedicava sem descanso à perseguição dos seguidores de Jesus. Era portanto do piorio, mau como as cobras, o diabo em pessoa, e só amansou e ganhou juízo quando Deus Ele mesmo lhe saiu ao caminho, dando-lhe um valente safanão e cegando-o temporariamente, a ver se ele aprendia. E ele aprendeu.
Assim miraculosamente convertido, Paulo resolveu pôr a correspondência em ordem e desatou a escrever missivas. Para além da algumas cartas com destinatário individual, sempre para homens, que fique devidamente registado, epistolou aos Romanos, aos Coríntios, aos Gálatas, aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, aos Tessalonicenses e eventualmente aos Hebreus. Catequizou também os Gentios, e quando eu descobri a parte nova da Bíblia, em pequenino, contada pelo senhor abade, julgava que os Gentios eram um povo assim como os Helvéticos ou os Teutónicos, naturais e residentes num país de que era proibido ou eventualmente pecado dizer o nome, por indecente e má figura.
Aprendi muito, depois, no seminário. Tive bons mestres. Agora ao caso, tive até um famoso especialista em "St Paul'ssss Cathedraaaal", o cónego Azevedo, ou "Ticha", por ser professor de Inglês, realmente um pândego, excêntrico e musical, bailarino de sobrepeliz e crónico mestre de cerimónias da Sé de Braga, figura que a minha memória tola às vezes confunde injustamente com o cónego Rodrigo, ou "Pipa", derivado à própria forma, outro cromo mas menos dado, também antiquíssimo e, no que me diz respeito, ineficaz professor de Latim. Já agora: o cónego Azevedo era o cónego Manuel Rodrigues de Azevedo (1915-1988) e o cónego Rodrigo era o cónego Rodrigo Guilhermino Ernesto de Carvalho. Cá está, eu e os cónegos...
Os nomes na Bíblia sempre me fascinaram. Tanto que eu pensava (e ainda penso) que se São Paulo fosse hoje e se por acaso resolvesse escrever aos portugueses só se dirigiria, arrisco dizer, aos Albicastrenses, aos Egitanienses, aos Escalabitanos aos Brigantinos, aos Freixenistas ou Freixienses ou Freixonistas ou Freixonitas, gente assim de nome fidalgo, ainda que indeciso, e nunca abaixo disso. Aliás, creio que os fafenses, padecendo de tão simples onomástica, ficariam de fora. Os fafenses assim entendidos de um modo geral, mas já não diria o mesmo, deixa-me cá ver, em relação, por exemplo e em concreto, aos Serafonenses ou aos Travassolenses que também podem ser Travassoenses, que se apresentam com gentílicos realmente de categoria, com gabarito bastante para merecerem a atenção do apóstolo e bem capazes de integraram a sua lista de contactos favoritos. E eu parece que estou a ouvir nas capelas e igrejas por esse mundo fora, palavra de honra, "Leitura da Segunda Epístola de São Paulo aos Travassolenses. Meus irmãos..."
E Melquisedeque? Ai o que eu gostava do nome Melquisedeque! E Ponto e Bitínia e Capadócia e Antioquia, nomes assim de perlimpimpim, de números de circo de Natal. Antioquia que me fazia sonhar aventuras das mil e uma noites, lamentando embora que São Paulo, que por estas bandas terá pregado o seu primeiro sermão, nunca tenha mandado uma epístola na volta do correio, uma sequer para amostra, aos simpáticos e desamparados Antioquenses.
Já no que respeita aos sodomitas, habitantes de Sodoma, continuo a achar que ficaram com a pior parte da fama. Os gomorritas, que eram outros que tais, safaram-se, vá-se lá saber porquê, e nem constam nos dicionários, quanto mais! A História nem sempre é justa, e parece-me que a Bíblia, às vezes realmente tão atrevida, devia ter aqui uma palavra a dizer.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Campos de férias

Todos os meses de Julho de todos os anos, o aviso lá estava bem visível à porta de entrada, para orientação de pessoal, clientes e público em geral: "Campos de férias!", dizia o letreiro. E fazia todo o sentido, porque a verdade é só uma - o Campos era a alma daquela empresa, passava-lhe tudo pelas mãos. Na ausência do Campos, o serviço ressentia-se, era como se estivessem fechados, o próprio Campos não se cansava de o repetir.
Lembram-se daquele ilustre industrial fafense que veio de férias do Ultramar e a guerra teve de parar até que ele regressasse ao mato? O Campos também era assim, essencial e insubstituível. E um bocado mentiroso.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

O dia em que envelheci

Já não vamos para velhos
A verdade é esta: biblicamente falando, Moisés viveu até aos 120 anos, Jacob até aos 147, Abraão até aos 175, Adão até aos 930, Noé até aos 950, e Matusalém, filho de Enoque, pai de Lameque e avô de Noé, faleceu de repente aos 969 anos. Antigamente era assim. E agora? Agora andamos à rasca para chegarmos aos 60 e damos graças a Deus se alcançarmos os 70, embora a esperança média de vida na Europa ronde os 82. Regra geral, metemos os papéis para a reforma e morremos logo a seguir. O que estará por trás desta alteração tão radical? Glaciares, asteróides, falta de médicos de família ou tão-só falta de fé, não tenho a certeza, mas creio que a segurança social também já não aguentava tanto profeta...

Sei muito bem o dia em que envelheci. Foi de repente. Sei o ano, sei o mês, sei o dia e até sei a hora, mas tanta exactidão não vem aqui ao caso. Sei o local e sei as circunstâncias. Foi de manhã. Foi no Hospital de Gaia, numa consulta de medicina do sono, creio que a coisa se chamava ou chama assim. A dado passo da bateria de exames e do minucioso inquérito, a médica perguntou-me, surpreendentemente: - Quando era novo, o Sr. Américo já sentia este cansaço?..
Eu ia caindo de cu. Primeiro. Esta mania de me tratarem pelo meu primeiro nome, Américo, nas consultas e, em geral, em todos os serviços públicos ou privados que exigem a competente apresentação de credenciais. Não sei, chamam-me Américo e eu, que estou tão habituado a chamar-me Hernâni, procuro sempre outro indivíduo ao meu lado, no meu próprio lugar. Sinto-me outra pessoa, um estranho de mim mesmo. Tratar-me por Américo é um privilégio que está reservado ao meus companheiros da escola primária, em Fafe, e, mesmo com esses poucos que ainda se lembram de mim, nunca sei se é comigo que estão a falar quando falam comigo. O Bergiguinha chama-me Américo com todo o direito, mas diz que chama Américo a todos os homens da minha família. Segundo. "Quando era novo", disse ela. Quando era novo?! Porra, eu ainda sou novo, tentei corrigir gentilmente a senhora doutora, atirando ao ar duas ou três larachas e apanhando-as, a todas, sem deixar cair, disparando-me da marquesa, acto contínuo, num acrobático salto encarpado, com duas piruetas à retaguarda.
Mas não adiantou. Pelo contrário. A doutora insistia, parecia-me agora que com algum prazer, com uma certa maldade, "quando era novo" para aqui, "quando era novo" para ali, "quando era novo" acima, "quando era novo" abaixo, e quem sou eu para contrariar o veredicto da medicina, a sábia decisão da ciência?
E foi assim. Nesse dia, naquele preciso momento, fiquei velho para toda a vida, por indicação médica e sem remédio. Eu acabara de fazer 41 anos.

terça-feira, 6 de maio de 2025

O pintor que pintou Ana

"O pintor que pintou Ana
também pintou Leanor,
pintou a cara da mãe
com tinta da mesma cor."


Há outras versões da velha lengalenga, adaptações e até desenvolvimentos, mas foi assim simples que a aprendi do meu avô da Bomba. E lembrei-me dela e dele hoje outra vez, mesmo à bocadinho, no passeio à beira-mar...

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Pespontamento

Era alfaiate. Mas não era de modas. Podia ser uma ave pernalta limícola da família dos recurvirrostrídeos, de bico comprido, fino e muito curvado para cima, patas azuladas e plumagem branca e preta, mas não. Era um insecto aquático, hemíptero, da família dos hidrometrídeos, de pernas longas, que se desloca sobre as águas. Exactamente. Alfaiate. Quem for de Fafe e de rios, sabe do que eu falo...

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Quando Fafe ia ao circo

O homem-bala
Cabisbaixo e de mala na mão, o homem-bala apresentou-se logo de manhãzinha na rulote da gerência. Deixava o circo. Ia embora para casa. Descobrira durante a noite que era objector de consciência.

Circo que é circo tem nome de circo. Ponto. Nome com pozinhos de perlimpimpim, nomes exóticos, patuscos, inventados à la minuta, nomes de fazer sonhar. Nomes à antiga: Arena, Brasil, Cardinali, Circolândia, Chen, Cristal, Dallas, Dragon, Eddy, Flic Flac, Império, Leunam, Luftman, Mariani, Mundial, Nederland, Nery Brothers, Oceanika, Soledad, Romero, Torralvo ou Twister. Ou Circo Royal, "com Pierre Ivanoff e os seus leões da Abissínia", ou o meu melhor circo do mundo, Circo Merito, que vinha a Fafe todos os anos, sem animais acima de cão, mas com um incrível número de transmissão de pensamento operado pelo senhor Merito em pessoa e sua partenaire, e sobretudo uns palhaços como nunca mais ri na minha vida e que contavam sempre a anedota de que a nossa era a única terra à face da mesma mas com maiúscula onde dormiam dezoito numa cama: o meu avô da Bomba, que era o 17, mais a minha avó. O meu avô afinava e eu achava um piadão.
O senhor Merito, que também era mestre-de-cerimónias do es-tra-or-di-ná-ri-ooo... ex-pe-ctá-cu-looo!!!..., padecia de uns óculos com lentes verdes de fundo de garrafa Carvalhelhos versão 1960 que, aos meus olhos infantis e crentes, justificavam à partida os poderes adivinhatórios de que ele estava evidentemente investido.
Coisas de outro mundo. No circo aprendi palavras sen-sa-ci-o-nais, que gostava de ouvir e de dizer e não sabia o que significavam: funambulista, malabarista, contorcionista, equilibrista, acrobata voador, faquir, trapezista, pirofagista, globista, faquista, mais engolidor de espadas, palhaço e ilusionista - estas três eu ia lá -, e que hoje percebo que todas são afinal meros adereços ou adjectivos para outra palavra do léxico circense que é a palavra... político.
Agora? Agora andam por aí circos com nomes paisanos, insossos, e a magia foi um ar que se lhe deu. Nomes de linha média em quatro-quatro-dois losango: Rúben, Cláudio, Leandro e Walter Dias. Nomes do dia-a-dia, corriqueiros, sem pés nem cabeça, como se fossem nomes de talhos ou retrosarias. Como se fossem: o Circo Ricardo, o Circo Pedro, o Circo Ferreira, o Circo Gomes, o Circo Lopes, o Circo Magalhães, o Circo Antunes. O Circo Maria das Dores. Sem o glamour de um Tony, sem o garbo de um Fredy, sem as lantejoulas de uma Nandy nem as meias de rede de uma Mirita no seu rola-rola, ainda que rotas, as meias, porque no circo é importante trabalhar com rede, posto que sem fio, portanto Wi-Fi.
E ainda haverá palhaços excêntricos musicais? E a profissão está devidamente reconhecida e enquadrada? Tem ordem? Carteira profissional? Tempo de serviço em recuperação?
O circo chegava e a vila espertava. A vila precisava. Saía do mormo, arrebitava. Fafe vivia intensamente os seus dias de circo, havia assunto, havia mundo, havia... vida. Havia emoção, havia sonho, havia alegria, riso, havia medo, havia pena, tristeza, saudade antecipada, porque depois só para o ano. Fafe ia ao circo. Toda a gente ia ao circo. Mesmo os que não iam, por miséria ou embirração, era como se fossem, só de imaginar ou ouvir contar. Não se falava de outra coisa, no café, no tasco, na feira, no campo da bola, à saída da missa, fazia-se crítica, propaganda, comparava-se com o ano anterior. Era um deslumbramento vivermos - digo bem, vivermos -, de coração aos saltos e mãos a tapar os olhos, o perigosíssimo trabalho daqueles artistas cheios de is gregos e cabelo empastado, artistas in-tarrr-na-ci-o-nais de Ermesinde e Vila Franca de Xira - Cuidado, Dany, cuidado! Res-pei-tá-vel público, silêncio, o mais completo silêncio, por favor, peço o silêncio dos senhores ex-pe-cta-do-reeesss... Vamos, Dany, cuidado, upa, ealé, bravo, bravo, Dany, bravo!...
Só a carripana com altifalantes sobressaltando as pacatas ruas da vila antiga já era uma festa, era circo ao domicílio. "Hoje grátis às damas, damas grátis!", prometia-se ambiguamente na véspera da despedida. O circo era o melhor faz-de-conta de todos os tempos! O famoso Pierre Ivanoff chamava-se Pedro Piloña Reina e era um espanhol de Valência nascido em Casablanca, Marrocos. Na jaula, com os leões, vestia de tribuno romano que eu sabia dos filmes - e ficou-me até hoje. Tinha eu se calhar sete anos quando o Pedro, aliás Pierre, desafiou o meu pai, saxofonista desembaraçado na Banda de Revelhe, a fazer-se ao mundo a bordo da orquestra do grande Circo Royal, mas o meu pai não foi. Foi para mim um desgosto muito grande, que já me via palhaço, a morar na rulote, a faltar à escola e a rasgar completamente as meias de rede da Mirita...
O sítio do circo em Fafe era na Feira Velha, encostadinho à antiga escola primária cujas defuntas pedras depois se transformaram, por milagre, em capela de casa particular. E era porreiro o circo ali, porque vós hoje em dia não fazeis ideia dos deslimites do fedor a que pode chegar a jaula de um leão velho, mas eu e os da minha escola sabemos, graças a Deus. O circo creio que frequentou outros lugares da nossa vila, e lembro-me por exemplo de uma vez em que se instalou num terreno convenientemente devoluto ali para os lados da Recta, mas a Feira Velha é que era o sítio. Gosto de dizer, a Feira Velha, gosto de me ouvir dizer. Agora mesmo, escrevo e digo, vêm-me as lágrimas aos olhos por causa de duas palavras de nada, pareço tolo. Feira Velha. A Câmara Municipal, quando se tornou mercearia para não ficar atrás das outras câmaras municipais, meteu lá carros a cobrar à hora e é o que temos.

Carlos Drummond de Andrade dizia: "Vou ao circo para me sentir em casa com o mundo". E Ferreira Gullar, no poema "Improviso para a moça do circo", do livro "Na Vertigem do Dia", lembrava a infância e contava: "é pouca a vida que a cidade oferece, até que aparece o circo". Por outro lado: o circo somos nós - camelos, ursos, jacarés em camisolas, asnos e leões mansos. Homens-bala de pólvora seca, malabaristas, contorcionistas, ilusionistas, equilibristas, palhaços - somos nós, porque nos mandam e porque somos o único circo a que temos direito. Vivemos na corda bamba e sem rede. Tiraram-nos a rede, esticam-nos a corda, sufocam-nos, caímos que nem tordos sem capacete.

terça-feira, 15 de abril de 2025

Conhé, Kiki e Caló...

Cinco violinos
Claudio Monteverdi, Paganini, Samvel Yervinyan, Camille Berthollet e Hilary Hanh. Ou por outra: Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travassos e Albano.

Conhé, Kiki e Caló, Faustino e Barnabé, Cláudio e Ferreira Pinto. Assim. É assim que os trago na cabeça há mais de cinquenta anos, e digo-os, aos nomes raros, antigos e melodiosos, como se fossem poema, letra de festival da canção escrita por Ary dos Santos e cantada por Simone de Oliveira. Conhé, Kiki e Caló, Faustino e Barnabé, Cláudio e Ferreira Pinto. Já lhes apreçaram o ritmo lanceiro de lengalenga, a precisão sincopada de ladainha, a musicalidade silábica de balada sustenida? E são apenas nomes, nomes de jogadores de futebol, protagonistas de uma famosa equipa do União de Tomar em tempo de primeira divisão, na passagem da década de sessenta para a década de setenta do século XX. Depois destes sete magníficos poderiam vir, mais adiantados no terreno, como hoje se diria, o Bilreiro ou o Araújo ou o Lecas ou o Leitão ou o Alberto ou o Dui ou o Totói, que era irmão gémeo do nosso Djunga, também colega de equipa, ou outro ou outros, mas de todos estes não me lembro na velha oração que sei de cor. Tive de ir à procura...
Conhé, Kiki e Caló, Faustino e Barnabé, Cláudio e Ferreira Pinto. Assim. Os meus amigos, que são também magníficos mas menos do que sete, estão fartos de me ouvir. Já se riem de mim quando eu começo. Fazem pouco. Mas eu insisto e digo, e recito, e canto: Conhé, Kiki e Caló, Faustino e Barnabé, Cláudio e Ferreira Pinto. É claro, não são os Cinco Violinos do Sporting fidalgo nem a superequipa do imparável Benfica da década de sessenta. Tampouco são o saudoso Belenenses de Vicente e Matateu ou aquela linha recuado do FC Porto afinada em érre e formada por Rui, Rodolfo, Ronaldo, Rolando e Guedes, só para destoar. Não são, realmente. Mas, palavra de honra, são os meus cromos preferidos.
Ainda por cima, o Cláudio, seguindo o bom exemplo do Djunga, viria depois a jogar no meu Fafe, parece-me que após passagem pelo Riopele. Creio que morou na "Torralta" praticamente a estrear e, se não me engano, era pai do Hélder e do Toni. Com os anos transformara-se em defesa central, um portento de técnica em souplesse, lento mas geralmente eficaz, imperial, suava em bica mesmo em pleno Inverno, evaporava-se em campo, era o primeiro construtor e líder da equipa, gostava de fintar os avançados adversários e fazia gala do passe de letra, inclusive na marcação de penáltis.
E para quem não sabe: os do União de Tomar eram e certamente são os nabantinos, por causa do rio Nabão, que atravessa a cidade. Ali chegou a jogar Eusébio, já preso por arames, abandonado pelo Benfica e, com todo o respeito, a estragar o final de carreira. O grande Eusébio, que eu ainda vi em campo também pelo Beira Mar e, segundo constou, quase pelo Lixa. Eusébio, muito Rei, muito King, muito Pantera Negra, mas, lamento, também não consta da cantilena mágica.

sexta-feira, 11 de abril de 2025

A esfera armilense

Carlota Joaquina, Teolinda Joaquina de Sousa Lança (aliás, Linda de Suza), Joaquina de Vedruna, Mariana Joaquina Apolónia da Costa Pereira de Vilhena Coutinho, Joaquina Lapinha, Joaquininha, a minha sogra, e a Quininha "Varandas", de Fafe. Sete Quinas, como dizia o outro.

A esfera armilar só pode ter sido inventada em Armil, talvez no tempo dos romanos, que é um tempo do mais antigo que pode haver. Mais antigo do que o tempo dos romanos, só o tempo dos dinossauros, que, no entanto, não eram um povo assim tão evoluído. Mas quanto à invenção da esfera, que não haja dúvidas: em Armil, como o próprio nome indica, armilar, para não dizer armilense, e nem é de admirar, tendo em conta que a História de Portugal e até de outros países mais ou menos estrangeiros passou-se bastante aqui em Fafe, basta ver as batalhas de São Mamede e de Castillon, para não irmos mais longe.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Armado em Bond

Ele tinha realmente a mania. Fosse aonde fosse, entrasse aonde entrasse, chegava ao balcão e pedia um "martini seco, agitado, não mexido". Nem que estivesse na Chapelaria Antunes, para comprar um guarda-chuva. E acrescentava, cheio de classe e charme: - O meu nome é Quim, Joa Quim.

quarta-feira, 19 de março de 2025

Pica, 6 - Fareja, 0

Fafe tem nomes que são um mimo, uma primeirinha. Uma terra que tem um lugar chamado Pica e uma freguesia chamada Fareja só pode ser uma grande terra. E Fafe é realmente. Gosto de contar esta minúscula história: em pleno Verão de 2014, por acaso em dia de apuramento para a Liga dos Campeões, Pica e Fareja, equipas de futebol, fizeram um jogo-treino, e o resultado, sendo contundente, não significa nada por aí além, a não ser que dá para rir: Pica, 6 - Fareja, 0.
E era isto. Mas é preciso que se note: para quem é de Fafe, como eu sou, Fareja e Pica são nomes absolutamente normais, corriqueiros, que só fazem confusão ao jornalista ou ex-jornalista Nuno Azinheira, famoso comentador social, que chamou Fajães a Fareja, e a uns caralhos de fora que não conseguem passar pela tabuleta da Pica sem lhe meter a cedilha...

sábado, 22 de fevereiro de 2025

O araújo no olho

Apareceram-lhe uns pontos de vista um bocado esquisitos. Da noite para o dia. E ele assustou-se. Pelo sim e pelo não, foi ao oftalmologista.

Ter um araújo no olho é uma daquelas expressões pândegas que vieram comigo de Fafe, e nem vou dizer que ela seja apenas nossa, exclusiva, mas que terá sido parida cá por estas bandas, isso já sou capaz de arriscar. Araújo é sobrenome galego e português de origem nobre medieval, também possível de encontrar escrito como Araujo ou Araúxo, mas serve igualmente de topónimo e nem é preciso ir mais longe, basta dar um salto aqui ao lado, ao antigo apeadeiro de Araújo, actual estação do Metro do Porto, em Leça do Balio.
Araújo, nome de pessoa e de sítio, está visto, mas também, há quem diga, denominação de uma variante da árvore araúja. Para nós, porém, os fafenses velhos e irredutíveis, araújo é partícula que entra no olho acidentalmente, grão de pó, minúscula maravalha, bíblico argueiro, cisco, arujo. Arujo, exactamente arujo, vocábulo fidedigno e certificado de onde facilmente derivou a nossa arisca porém bem desenrascada corruptela.
Ter um araújo no olho. Outro dia, sem mais nem menos, lembrei-me da expressão antiga, e nem faço ideia de há quantos anos não lhe punha a vista em cima nem lhe dava uso. Perguntei à minha mulher se a conhecia de algum lado, à expressão, se já a teria dito ou pelo menos ouvido. E ela disse-me que não. Fiquei varado! Quer-se dizer: a minha mulher, rapariga da nossa idade, nasceu no Porto, na Foz, mas é filha de pais rústicos, o meu sogro de Baião e a minha sogra de Canelas, Gaia. Isto é, a minha mulher tinha obrigação, e, vai-se a ver, nada...
Nada, também não é bem assim. Sobre araújos, a minha mulher fez questão de explicar-me que sabia era a famosa anedota que mete marinheiros e aviadores. Aquela que pergunta: se quem trabalha no mar é marujo, porque é que quem trabalha no ar não é araújo? Isso.
Ter um araújo no olho. A expressão. Não é anedota, definitivamente não é uma anedota, mas que se põe a jeito, lá isso...

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

A honra dos Silvas

O Oliveira
O Oliveira foi chamado de urgência à gerência. Ordens: mudança de secção e de funções. Isto é: mobilidade, sinergias. Deram-lhe portanto um martelo. - Um martelo!? - protestou -, mas toda a gente sabe que eu sou o Oliveira da serra...

A minha família leva muito a sério o seu apelido Von Doellinger. Eu não. A minha família tem muito orgulho no seu apelido Von Doellinger. Então em Fafe, é um estremecimento. Eu tanto se me dá. Para mim, ser Von Doellinger ou ser Silva é igual ao litro, e só tenho pena de não ir ao nome do meu lado de Basto, que é Pereira, mas esqueceram-se dele quando me foram registar.
Quando assim falo, que é sempre, os meus parentes caem-me em cima, protestam a sua mais entranhada vaidade onomástica e ameaçam banir-me do clã, e eu contra isso nada. Ouço-os, isto é, faço de conta que os ouço, mas penso noutra coisa. Penso nos Silvas. Penso como seria bonito ver alguém sair a terreiro em defesa da honra dos Silvas. Exactamente: alguém de velha têmpera e honra antiga que, armado em Von Doellinger de corrida, ousasse chegar-se à frente para gritar alto e bom som, de estandarte em punho e peito inflado de altivez, vestindo talvez uma camisola com o "S" do super-homem estampado à frente:
- Eu tenho muito orgulho em ser um Silva, há algum problema?!...
Os Silvas, é preciso que se note, não são uma merda qualquer, e não estou sequer a falar do ilustre casal de ex-inquilinos do Palácio de Belém, que faz aqui tanta falta como o queijo gruyère numa caldeirada de enguias. A primeira linhagem de Silvas é de príncipes e anterior à fundação da nacionalidade portuguesa. Os Silvas de pé-rapado conquistaram Portugal e os Brasis, é só ir ver as listas telefónicas. Os Silvas são uns grandes pinantes, é só ir ver os registos dos motéis de norte a sul, mas neste departamento os Silvas são todos nomes falsos. Os Silvas, se um dia se chateiam, o País pára, porque os Silvas são o País. Chamar "Ó Silva!" num autocarro articulado da Carris é um perigo: os 145 passageiros (48 sentados, 96 de pé e um numa cadeira de rodas) olham todos para trás e o motorista também. O Silva dos Plásticos, toda a gente sabe, era mais conhecido do que o Papa. Silva I seria, aliás, um bom nome para um Papa português, e há logo quem pense no poeta José Tolentino Mendonça.
Embora de nascença ninguém escolha ser Silva, nem ser nome nenhum, está visto que os Silvas só têm motivos de orgulho. E quem diz os Silvas, diz os Barbosas, os Ferreiras, os Fernandes, os Rodrigues, os Costas, os Oliveiras, os Martins, os Sousas, os Gonçalves, os Almeidas, os Carvalhos, os Farias, os Magalhães, os Alves, os Teixeiras, os Lopes, os Ribeiros e até os Brochados. Sim, porque não os Brochados? Há algum problema?

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

O borra-botas e o cagão

O borra-botas e o cagão. Cuidado, estamos em terreno escorregadio. Muito cuidado! Elaboramos aqui a respeito de dois conceitos aparentemente correlativos - quero dizer, o borra-botas, antes de o ser, é cagão, e o cagão, após sê-lo, é borra-botas, há quem pense -, mas não é necessariamente assim. Vejamos:
Borra-botas, o substantivo, posto que começou por significar, inocentemente, engraxador, ou, sejamos compreensivos, engraxador desastrado, espécie de expressionista abstracto do rez-de-chaussée, é nome que hoje em dia define indivíduo sem valor, pessoa insignificante, reles, desprezível, safardana, bisbórria, biltre, patife, salafrário, bigorrilha, pulha, bandalho, pobre diabo, trapalhão, troca-tintas, zé-ninguém, zé-dos-anzóis, zero-à-esquerda. O que evidentemente propicia que, em não raros casos, o borra-botas seja também lambe-botas, o que, convenhamos, mete um bocado de nojo.
Debrucemo-nos agora sobre o cagão. O cagão é, para início de conversa, o indivíduo que defeca com entusiástica frequência e notoriedade, ou, se for em Fafe, a criatura que se peida regularmente e por uma questão de princípio, mas o termo passou também a servir para identificar o homem medroso, caguinchas, medricas, cagarola, ou, por outro lado, o vaidoso, o presunçoso, o arrogante, o snobe, o pedante, o gabarola, o armante, o enfatuado, o figurão, o cabeçudo, o tem-a-mania. E este é que é o ponto...

domingo, 9 de fevereiro de 2025

O moncoso, o ranhoso... e o piolhoso

Moncoso e ranhoso. Conceitos sinónimos, porém idiossincráticos. O moncoso é o tipo dos moncos ao dependuro, sujo, imundo, badalhoco, ranhoso - cá está -, asqueroso, desprezível, desprezável, baixo, sórdido, vil. Um bandalho, um pulha, um bardamerda.
Por outro lado, o ranhoso é o tipo que tem ranho, ranhento, ranhenta, moncoso - cá está -, teimoso, astuto, foleiro, reles. O verdadeiro filhodaputa.
Moncoso e ranhoso são nomes que se chamavam antigamente. Em Fafe chamavam-se muito. Eram nomes feios, ofensivíssimos, do piorio, ao nível, por exemplo, de... piolhoso. Mas isso já é outro assunto.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Gosto da palavra parreca

"Tudo o que é pequenino é bonito", disse ela, caridosa, quando ele baixou as calças. Isto é: há coisas, valha-me Deus, que não se dizem.

Gosto de nomes, gosto de palavras. Gosto do falar antigo, gosto de palavras que me fazem rir. Gosto de dizer que está tudo na ponta da unha, gosto de dizer que é daqui, detrás da orelha, gosto do nosso conversar arraçado de galego e tão único, gosto do fafês, a minha língua, e gosto de a falar tal e qual como a aprendi da minha mãe e dos meus avós, cheia de éntes, de ches, de inhos e de éssssesss... Gosto, pronto!
Gosto da palavra parreca. Está dito. Pachacha, não. Nem crica. Pito, cona, buceta, siririca, vulva, rata, pássara, passarinha ou perereca, apesar de legalmente registadas, então é que nem admito. Pior, só mesmo vagina, uma obscenidade que me tira do sério e absolutamente comparável à alarvidade de chamarem pénis à ferramenta, que deve ler-se e dizer-se ferraménta. Ou encomenda, que deve ler-se e diz-se encoménda. Pénis e Vagina (neste caso leia-se vajaina, se não for incómodo) até parecem nomes de um casal da Mattel, e se calhar ambos de virilhas vazias, como os outros dois, o Ken e a Barbie. Pila está muito bem. Pirilau, vá que não vá. Mas...
Da parreca é que eu gosto. Para além de uns rebuçados de açúcar suponho que amarelo, formatados em pequenos ladrilhos e embrulhados em papéis de cores diversas e garridas, vendia-se antigamente nas barracas das feiras e festas de Fafe uma espécie de doce alegadamente em forma de pato, ou de pata, vá lá - e esse doce era a parreca. Pata, marreca, portanto parreca - o povo sabe muito, até de gramática, etimologia, formação de palavras...
Diga-se em abono da verdade, o doce, isto é, a parreca, resumia-se a uma somítica camada exterior de açúcar, agora branco, se não me engano, e o resto era um pedaço de massa castanha, azeda e dura como cornos, para lamber, lamber, lamber, lamber, até se desfazer à força de dentes, se a gente não desistisse antes por falta de vagar ou paciência. Comer ou lamber uma parreca era empreitada para umas boas horas, se levada até às últimas consequências.
Quando nos vinha visitar, às quartas-feiras, pelos 16 de Maio e na Senhora de Antime, a querida Bó de Basto trazia-me sempre uma mancheia dos tais rebuçados e, infalível, uma parreca que me entretinha a tarde inteira. Foi decerto daí que eu fiquei freguês.

sábado, 25 de janeiro de 2025

O Secónego

O orador
- Profissão?
- Orador.
- Faz discursos?
- Rezo pai-nossos.

O Secónego era uma sumidade arqueológica. Um sábio. Sabia das lendas, da História, das pedras, das palavras, dos nomes e dos sítios, dos livros. Sabia de celtas, lusitanos e fenícios, gregos e cartagineses, romanos, visigodos e muçulmanos. Sabia das origens todas, e da verdadeira origem das origens. Sabia. Estais a ver o professor José Hermano Saraiva na televisão? Pronto, o Secónego era a mesma coisa, mas sem televisão e a sério, sem supores mais ou menos floreados e, pelo contrário, com base científica. Ainda por cima, tinha piada fina. O Secónego comprazia-se em explicar aos seus alunos porque é que a terra de cada um se chamava como se chamava e porque é que uns eram Silva e outros eram Lopes. Explicou-me porque é que Fafe é Fafe e eu expliquei-lhe que não tenho culpa de ser Von Doellinger, puseram-me assim desde pequenino.
O Secónego tinha uma maneira de falar muito cómica. Falava como quem não abre a boca, ventríloquo da sua própria pessoa, às vezes com a mão à frente, com medo talvez de que se lhe evadisse a placa. Chamava-nos a todos "Ó menino!", embora já fôssemos uns respeitáveis gandulos, e ria-se satisfatoriamente mas aos solavancos.
Quando me chegou às mãos, o Secónego já era um sábio intermitente, com apagões. Era um homem precocemente envelhecido e debilitado. De vez em quando desligava e isso fazia-me uma enorme impressão. Lembro-me que nessas alturas me apetecia chorar. Que injustiça para uma cabeça assim. Filhadaputice que ele não merecia, era o que eu achava e depois ia confessar-me, porque achar filhadaputice, fosse de que espécie fosse, era pecado no seminário.
Por falar em filhadaputice (e vão três), havia umas "brincadeiras" institucionalizadas para as aulas do Secónego, e até fora delas, por gozo, maldade pura, só para moer o juízo ao velhote. E os coninhas, que, borrados de medo, até respiravam pelas orelhas frente aos outros professores, que eram de gancho, pintavam a manta com o Secónego, numa risota sem fim nem compaixão, numa coragem cobarde que ainda hoje, quando me lembro, me mete nojo. Eu também não era nenhum santo - e certamente por isso (e por achar filhadaputices a torto e a direito) é que me mandaram dar uma volta -, mas, para mim, as aulas do Secónego eram sagradas. Eram as únicas em que eu não mijava fora do penico. Por pena. Quem me dera que tivesse sido por respeito.
Um dia o Secónego desligou-se o interruptor em plena aula. De repente ficou ali, sentado à secretária, olhando o nada, obviamente esquecido de nós e dele, e dizia apenas "Leia, menino", mecanicamente, apontando para ninguém, para o vazio. E nós lemos, mandei eu, e mandei também chamar quem tirasse dali o homem, com gentileza e dignidade. Porque eu mandava (e por isso me fizeram a folha). Lemos: três ou quatro de nós, uns atrás dos outros, passando a Selecta de mão em mão, Vaiamos, irmana, vaiamos dormir nas ribas do lago, u eu andar vi a las aves meu amigo. E lemos a cantiga até ao fim e voltámos ao princípio, uma e outra vez, numa lengalenga interminável, e tanto fazia quem lesse, eram as minhas ordens, mas que lesse bem, com expressão, porque eu sentia que o som das nossas vozes aprumadas apaziguava a alma cansada e ausente do velho professor. E ele merecia.
Depois levaram-no.

O Secónego tinha uma casa creio que à borda da estrada que sobe da cidade de Braga para o Bom Jesus, a cota baixa. Padres mais novos diziam-lhe, no gozo: "Ó Secónego, que pena, uma casa tão bonita, e quem por ali passa de carro só lhe vê o cume". E ele: "Pois, mas isso é à ida, menino. À vinda, nem o cume vê, hi! hi! hi!"...

(Quando acompanhava o seu próprio corpo, o que era cada vez mais raro, o Secónego sabia mesmo muito sobre os antigamentes de Fafe, que era o que mais me interessava, e eu regalava-me a ouvi-lo. O Secónego, assim chamado, era o cónego Arlindo Ribeiro da Cunha (1906-1976), autor, entre outras obras, de "A Língua e a Literatura Portuguesa" e de uma "Gramática Latina" que chegou à sétima edição, tendo participado como colaborador regular na Grande Enciclopédia Luso-Brasileira e na Enciclopédia Verbo. Vimaranense de São Torcato, é nome de rua em Braga. E já agora: o parágrafo anterior, imediatamente antes deste entre parênteses, deve ser lido em voz alta, como quem conta uma história, com todas as pausas tidas por convenientes, sobretudo o discurso directo da última frase. Fica melhor.)

Aqui chegados, como diria o nosso Luisinho Marques Mendes, que também é um latinista, devo informar e generalizar que, numa palavra, no seminário tive os melhores professores do mundo.