O fim do Inferno é mau para o negócio
Evidentemente o Inferno não existe. O Papa Francisco tinha razão quando o declarou, em Março de 2018, e se calhar ouviu-me ou leu-me antes, não sei quando nem onde. Mas a Igreja - que se apressou a desmentir o chefe, dizendo que ele não disse o que disse - não pode admitir semelhante franqueza: porque o Inferno é a bomba atómica do catolicismo. Sem Inferno, o que é que a Igreja em sotaina tem para ameaçar ou dissuadir os seus fiéis? "Olhai, amai-vos uns aos outros", algo assim? Seria de rir, se não fosse obsceno. Para além disso, o fim do Inferno é mau para o negócio.
Era o baptizado de uma querida sobrinha, bebé, na Igreja Nova, em Fafe, já lá irão três décadas. Era dia de festa. Dia de sol, generoso, aquele sol de Fafe, aberto, puro, claríssimo, a cheirar a vitela assada e, evidentemente, a sabão amarelo. Mas. Não sei porquê, talvez só para estragar o ambiente, o padre estava particularmente endiabrado, embora ainda fosse manhã, e à beira da pia, logo quem entrava, no lado esquerdo, rodeado por nós todos, padrinhos e família, resolveu embirrar com a criança de meses, coitadinha, acusando-a de ser uma perigosa pecadora derivado ao princípio da Bíblia, mas que ali, com uma pouca de água, ficaria de folha limpa, graças a ele e sorte a dela, e inferno acima e inferno abaixo e pecado original acima e pecado original abaixo. Isso, no pecado original é que o raio do padre batia e tornava a bater, como se batesse no ceguinho.
Zanguei-me. Olhei fixamente para o padre, varei-o com os olhos, fiz-lhe cara feia, abanei que não e que não com a cabeça, ele percebeu que eu lhe estava a dizer "com pecado esta criancinha, este anjinho recém-nascido?, mas alguém nasce já com pecado?, estamos na Idade Média ou quê?", percebeu e mudou de assunto.
Anselmo Borges, padre e professor de Filosofia, escreveu um interessante artigo de opinião no DN, em Dezembro de 2023. Para mim, as opiniões de Anselmo Borges são sempre interessantes e amiúde inspiradoras, e o artigo em questão, cuja leitura na íntegra recomendo, chamava-se "A Imaculada Conceição, o pecado original e o sexo".
Deixemos a virgindade de Maria, o casamento e o sexo para segundas núpcias e centremo-nos no meu ponto. Ora bem. Eu não lhe encomendei o sermão, mas o mestre da Universidade de Coimbra ensina, a dado passo do seu texto: "Hoje, o pecado original é inconcebível, concretamente, por causa da evolução: o ser humano aparece no quadro da evolução, o que implica então a seguinte pergunta: quem foram os "primeiros pais", colocados no mundo sem pecado e que depois pecaram, transmitindo esse pecado a todos, de tal modo que todos nascem em pecado de que só o baptismo os pode libertar? Ainda conheci mães que viveram verdadeiros dramas interiores porque os seus bebés tinham morrido sem o baptismo. Mas não. Todo o ser humano é concebido sem pecado".
O baptismo, afirma Anselmo Borges, "não é para apagar o pecado original, que não há; os pais baptizam os seus filhos, porque, desejando o melhor para eles, querem que eles entrem na Igreja, comprometendo-se a educá-los na fé como discípulos de Jesus."
É fácil de perceber, parece-me. Porque, se "toda a criatura recém-nascida vem de Deus", ainda seguindo o raciocínio do padre-filósofo, e eu acredito que vem, como pode alguém nascer com pecado, com defeito? E pronto, já somos pelo menos dois a pensar assim.
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