quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

O caldo de couves puxa ao sentimento

Entre o equívoco e o paradoxo
O Natal é um paradoxo, alegra e deprime, e é também um equívoco: marcado para o dia 25, toda a gente sabe que é na noite de 24. 

O Natal comove-me. Ou por outra, comove-me, mas não é geral. As árvores com luzinhas bêbadas, indecisas, as músicas tão tlim-tlim-tlam, tão jingle bellso almoço ou jantar com os velhos amigos de uma vez por ano, o generoso pacote de meio quilo de esparguete no saco do Banco Alimentar à porta do supermercado, os sorrisos de orelha a orelha, as camisolas patetas, as bandoletes com hastes de renas, os votos de "boa continuação", os programas de televisão marca Uaitecristmas, o frio aconchegante, a serra da Estrela finalmente com neve mas fechada, o circo, tanta palhaçada, a mensagem de Sua Excelência o Senhor Presidente da República, as cerimónias religiosas, tão ricas, quase sempre tão hipócritas, a comida, a comida, a comida, tanta comida, tudo ajuda à missa da minha sazonal e imensa comoção. E o vinho também.
Vou-vos contar. No Natal de há meia dúzia de anos, mas é como se tivesse sido ontem, lembro-me de que até já estava a ficar agoniado de tanto me comover. Resolvi, para desenfastiar, fazer um caldo de couves. Isso, um caldo de couves à moda antiga, isto é, à nossa moda. Foi na noite de 25 exactamente. Uns olhinhos de couve-galega, feijão vermelho, batata mal desfeita com o garfo, uma tirinha de toucinho salgado, um cibo de vaca, azeite com fartura natalícia. A panela foi à mesa de gala, fumegante como a velha locomotiva que arrastava o comboio até Fafe nos tempos em que eu não me comovia por tudo e por nada e em que a minha memória ainda tinha futuro.
Foi o nosso jantar. O caldo estava iglantónico, poderoso, de repetir e lamber os beiços. Repeti e lambi. O calor, o sabor, o odor, o estupor, quero dizer, o estupor do caldo caiu que nem ginjas, sossegando-me o estômago mais a alma. E, como flashback de filme foleiro, tornou-me à casinha do Santo Velho, à roda da mesa com os meus irmãos, a minha mãe, talvez a Mila também, o meu pai e o Menino Jesus que ainda não tinha nascido. Tornou-me à Bomba e ao Lombo, na sacramental visita pós-jantar, para o petisco e a pinguinha da ordem. Tornou-me à minha avó de Basto, na cozinha de chão de terra da Casa do Carreiro que cheirava sempre ao meu caldo. Quem me dera lá, sem a sonsice da idade, sem o tempo a cair-me das mãos, quem me dera lá! Quem mos dera cá. E de repente topei-me de olhos humedecidos, turvos, uma vagarosa lágrima descompondo-me escandalosamente a cara. De cabeça enfiada na malga, desculpei-me da boca para fora que era do vapor, e pensei: caralho, estás a chorar por causa de um caldo de couves, não tens vergonha? Ainda por cima, este tem carne...
No ano seguinte fiz canja e não chorei. É curioso: a canja não puxa ao sentimento.

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