terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

A burra do Reigrilo

Quadrúpedes
O burro é um quadrúpede. Meio polvo também.

Nos últimos tempos, é todos os anos mesma coisa. Chegam os 16 de Maio e não há corrida de jericos. E a corrida de jericos faz falta. Uns 16 de Maio sem corrida de jericos é como orelheira de porco sem sal ou como, não vamos mais longe, o lago do Jardim do Calvário sem crocodilos. Um desconsolo. O programa bem tenta disfarçar, anunciando, todo vaidoso, a "corrida de cavalo a passo-travado", assim chamada, com hífen e tudo. Mas é tão pouquinho. E, ainda por cima, uma prova desportiva estigmatizada por essa denominação assaz amaricada, "passo-travado" com hífen e tudo, não vai a lado nenhum, só faltava mesmo dizer-se que as cavalgaduras também correm de minissaia e salto alto. Mas burros é que nada, e logo nos tempos que correm e em Fafe. Parece impossível. Quer-se dizer: vim-me embora, e agora não há mais asnos na terra, é nisso que quereis que eu acredite?
Lembro-me muito bem como era. Havia a corrida de cavalos, sim senhor, coisa série mas amadora, com montadores e montadas cá da terra e arredores, medindo forças por entre um mar de gente cheia de entusiasmo, chapéus e vinho, na mais nobre rua da vila, o empedrado - ou pavê, como dizem agora os especialistas - onde costuma terminar a etapa da Volta a Portugal em Bicicleta. Partiam em frente ao Café Império e iam dar a volta na Cafelândia, ainda não havia rotunda nem banco, com as ferraduras novas a chisparem por todos os lados e alguns animais, de travões bloqueados, a espargatarem contra vontade para um 10 de nota artística nos Jogos Olímpicos e mandando os donos irremediavelmente de focinho ao chão. Ao Império regressavam apenas três ou quatro conjuntos completos, e o pódio era discutido já depois de cortada a meta, à força de varapau, ameaças de tiros e polícias de fraldas à mostra e agarrados aos bonés, baldeados de um lado para o outro ao sabor da maré, com a multidão a tomar diferentes partidos, de cabeça e chapéus perdidos, mortinha por também molhar a sopa. Isto eram as pessoas. Os cavalos, naturalmente mais ajuizados, não se metiam. Mesmo os cavalos que tinham terminado a prova sozinhos, apesar de um tudo-nada desorientados e talvez contrafeitos, mantinham o fair play, viravam as costas à confusão e iam procurar os donos mercurocromados para pedirem desculpa pelo mau jeito. Quanto ao júri, ponderava criteriosa e responsavelmente todos os argumentos em discussão, sobretudo os argumentos que metiam pistola, e depois entregava a taça às primeiras mãos que a agarrassem.
O melhor vinha a seguir. Era a corrida de burros, que não era bem uma corrida, porque os burros, que não eram assim tão burros, recusavam-se terminantemente a correr. Davam uns passos, nem sempre no sentido correcto, na direcção proposta, davam umas voltas, mudavam de rumo quando lhes apetecia, contrariando em flagrante o ditado de que "só os burros é que não mudam", e se calhar às vezes até nem havia vencedor. Mas o povo ria-se. É preciso que se note, porém, que os burros portavam-se assim não por serem burros mas por serem ignorantes. Na verdade, naquele tempo eles ainda não sabiam do estudo da Universidade de Londres que aqui atrasado descobriu que os burros não são animais estúpidos nem teimosos. Serão surdos ou não compreendem inglês, quando muito, mas agora já sou eu a extrapolar.
Ora bem. O Reigrilo tinha uma burra que se chamava a burra do Reigrilo. O Reigrilo era tão teimoso como a burra, portuguesa e analfabeta, mas bebia muito mais. Eu nunca na vida vi o Reigrilo sóbrio. A sorte dele, quando saía do tasco do Paredes em adiantado estado de fermentação, era exactamente a burra, que o levava a casa, submissa e em piloto automático, debaixo de um chorrilho de insultos e chibatadas absolutamente desnecessárias e imerecidas. Eu tinha medo do vinho do Reigrilo e a burra parecia que também.
Creio não cometer nenhum erro histórico se afirmar que a burra do Reigrilo só fazia frente ao dono pelos 16 de Maio, na corrida que nunca era. O Reigrilo, altamente decilitrado, aparecia sempre na horinha, nem mais cedo nem mais tarde, para incómodo da organização e gáudio da populaça. Podiam dar a partida quantas vezes quisessem: a burra do Reigrilo não saía do sítio, apesar das bordoadas impiedosas que apanhava, e se se mexia era apenas para deitar o dono de cangalhas, uma e outra vez, numa vingança anual e certamente bem amadurecida, ali mesmo à frente de todos, onde a humilhação do homem podia ser maior.

Pois agora nada, que tristeza! E nem sei se os camarários doutores da mula ruça acabaram com aquilo de propósito para enxotar dali os nossos ciganos, os bons e honrados ciganos de Fafe que também marcavam o ponto com os seus burros atletas. Não sei, palavra de honra que não sei, mas veio-me agora à cabeça essa terrível dúvida. Sei é que a corrida de jumentos era uma verdadeira e querida tradição. Era tema de conversa entre os fafenses. Chegavam os 16 de Maio e, no café ou na rua, à saída da missa, perguntavam-se uns aos outros: - Então, este ano corres? E já tens quem te monte?
Pois, era assim a vida antiga. Bonita e tão agradável. E tenho a certeza de que a malta nova havia de se divertir à brava com a corrida de asnos, se ela tornasse, toda gaiteira e revivalista. Mas quê, tirante eu, parece que mais ninguém se acusa! O que é que se há-de fazer? Sozinho também não corro...

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