quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Eleições, futebol, tropa e alguma batota

Dão-se alvíssaras
Perdeu a cabeça e pôs anúncio no jornal. Faz-lhe muita falta.

As eleições autárquicas corriam sempre bem, chovesse ou fizesse sol. Com novas ou velhas freguesias, uniões de facto ou aldeias desavindas, o mapa oficial não interessava para nada, a logística era um pormenor, as chapeladas eram as do costume. Bebiam-se uns copos à boca das urnas e nas urnas propriamente ditas, fazia-se uma almoçarada com o pessoal de serviço de todos os partidos, que eram o PPD e o "da mãozinha", o snobe do CDS mais o comunista, que vinha de fora e era desconfiado e picuinhas. O pai votava pelo filho que, coitadinho, "é deficiente", o filho votava pelo pai que já morreu mas "fazia muito gosto de votar", pai e filho votavam pela avó que "está muito atacadinha" e não pôde vir, e depois a avó vinha, toda gaiteira, e votava também. Havia quem votasse em dois lados, havia quem votasse duas ou três vezes no mesmo lado, havia quem votasse em dois partidos, e valia, havia quem votasse em quantas freguesias fosse preciso, era só pedir, havia quem quisesse e pudesse votar mas não deixavam, havia quem se fizesse de ambulância, havia quem se fizesse de parvo, havia quem chamasse a polícia, havia quem chamasse o gregório, agarrado ao garrafão levado pelo presidente da mesa a mando do presidente da junta. Chegada a hora das contas, ia-se aos cadernos e à acta, acrescentava-se aqui, desarriscava-se ali, seguindo a lei dos vasos comunicantes, rasgavam-se uns papéis que só estorvavam, queimavam-se só para não fazer lixo, noves fora nada, o chato do PCP também assinava, e no fim batia tudo certo. Podeis crer: batia tudo certo. Eram trafulhicezinhas consensuais, amigáveis, vigaricezinhas proporcionais, comedidas, batotazinha no mais escrupuloso respeito pelo método D'Hondt. Ganhava quem tinha mesmo de ganhar. Era, ó meus amigos, a democracia a funcionar, a manifestar-se de dentro de si própria. Autêntica, transparente, normal. Participada.

As primeiras eleições livres, democráticas, com sufrágio universal, realizaram-se em Portugal no dia 25 de Abril de 1975, celebrando o primeiro aniversário da Revolução dos Cravos. Eram as eleições para a Assembleia Constituinte, para a organização da democracia nova em folha, tendo votado cerca de 92% dos eleitores, isto é, quase seis milhões de portugueses. Nunca mais houve uma participação assim.
O acto eleitoral foi vigiado urna a urna pelas Forças Armadas, que enviaram um pequeno destacamento para todos os concelhos do País sem guarnição. Em Fafe, os militares montaram posto de comando no quartel dos Bombeiros, suponho que para aproveitarem a incipiente central de comunicações já existente na corporação. E eu ali, mais uma vez no meio da História, embora correndo por fora, como sempre, rindo-me como um perdido dos velhos polícias fafenses, naquele tempo Fafe tinha PSP, batendo a pala desajeitadamente a um aspirante imberbe e com cara de copinho-de-leite, se bem que quem realmente mandava naquela tropa toda era o Dr. Parcídio Summavielle, em funções de presidente da Comissão Administrativa da Câmara de Fafe, sempre de um lado para o outro, ele é que dava as ordens que eram para levar a sério, ele é que dizia onde se ia ou não ia, o que estava bem e o que estava mal, o que se fazia ou deixava de fazer.
Os soldados traziam rações de combate para o almoço, e foi o que comeram, coitados. A minha tia Laura é que não concordou com aquilo, "não tinha jeito nenhum", teve pena dos rapazes e fez-lhes um tachinho de comidinha boa, quanto mais não fosse para os desougar. Regalam-se os magalas que por ali estavam àquela hora. Já lhes valera a pena a vinda a Fafe. A Tia Laura era uma cozinheira de mão cheia e, feitio e vocabulário à parte, tinha um enorme coração.

A tropa esteve em Fafe mais duas vezes naqueles tempos de festa e brasa, mas chamada de urgência para meter o povo na ordem. Logo em Maio de 74, com a revolução ainda no ar, o árbitro Porém Luís (1929-2010) só conseguiu sair do Estádio, escoltado por militares que vieram, creio, de Braga, três horas após o fim do jogo da AD Fafe com o Gil Vicente, que terminou 0-0. O Fafe lutava pela subida à primeira divisão e o trabalho do juiz de Leiria (nascido no Barreiro) deixou muito a desejar, principalmente junto dos adeptos fafenses, que, a verdade também é só uma, sentindo-se "roubados", e de cabeça perdida, queriam, a todo o custo, chegar-lhe a roupa ao pêlo. Pelo menos. Em todo o caso, ainda hoje estou convencido de que, se tivessem revistado Porém Luís à saída, as autoridades talvez lhe descobrissem dois penáltis nos bolsos. Um não marcado sobre o nosso Manuel Duarte e o outro não marcado sobre o nosso Valença. A AD Fafe ficou em segundo da zona, foi à liguinha nacional e não subiu.
No Verão Quente de 1975, logo em Junho, quando tudo começou, a sede do PCP de Fafe foi atacada, houve resposta, tiros, um morto, feridos, ameaças de nova investida e de destruição total. Durante a noite chegam os fuzileiros, cabeludos, barbudos, com autocolantes de esquerda nas fardas. Apartam águas, serenam os ânimos e protegem o edifício. O resto foi uma ferida que nunca mais sarou.

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