Sou uma pessoa muito antiga. Eu sou do tempo em que padaria era uma loja que fabricava e vendia pão.
Há uma senhora que mora na minha padaria. Digo que mora na minha padaria porque, seja qual for a hora a que eu lá vá - oito, onze, meio-dia, quatro ou seis da tarde -, a senhora está lá, na mesa do canto, ao lado do balcão, quem vai para os lavabos. É exactamente para esse endereço que as Finanças lhe mandam as contas dos impostos: Dona Fulana de Tal, Mesa do Canto Ao Lado Do Balcão Quem Vai Para Os Lavabos, 4450-275 Matosinhos.
A nossa padaria em Fafe era na Rua Monsenhor Vieira de Castro, lado direito, com o Largo pelas costas e o cruzamento do Santo Velho mesmo à frente do nariz. Ficava por baixo da casa dos pais do Paulinho, que eram os donos do estabelecimento, entre as lojinhas da Dona Vitória capelista, que era uma santa, e da Aurorinha Maia, que era um vulcão, não desfazendo. Era a padaria do Sr. Rodrigues, mas, para todos os efeitos, chamava-se apenas Padaria. Depois tivemos de mudar para o Assento e a Padaria Moura ficou-nos mais à mão, mas nesse tempo já eu andava por fora a dar água sem caneco. Lembro-me, ainda assim, que as padarias vendiam bijus, bicas e pães-de-leite para os ricos, broa grossa, broa fina, às vezes sêmeas e regueifas ou roscas principalmente pela Páscoa. Enfim, vendiam pão. Isso eram as padarias.
Mas hoje em dia as padarias são tudo: café, salão de chá, pastelaria, cervejaria, restaurante, casa de pasto, tasco, pensão, centro de convívio, sociedade recreativa, quiosque, tabacaria, meeting point, posto de turismo, guiché de informações variadas. E vendem de tudo, até pão, o que é curioso. São os tempos que correm: o meu talho também vende ovos, azeite, queijo, vinho, peixe congelado, feijão, ananás e pêssego enlatados. E a minha frutaria apareceu ontem com o aviso - "Temos ostras".
Sendo tudo e muito concorrida, a minha padaria tem televisão e, portanto, milhões de opiniões. A campeã do palpite é a cliente residente, cuja, para mal dos meus pecados, padece de uma voz deveras agreste e guinchada uma oitava acima como se fosse comentadora desportiva na CMTV. Nunca a apanhei calada.
"Não. O meu filho não gosta de andar!...", anunciava um destes dias a senhora que mora na minha padaria. "Parabéns à prima!", disse eu cá para mim. "Um marmanjo com mais de trinta anos e não gosta de andar. Está bem, Alfreda! Se calhar quer colo, o menino...", continuei com os meus botões.
Mas ela insistia, repetia até à exaustão, cheia de orgulho no calaceiro: - O meu filho não gosta de andar. Não. Não gosta de andar...
Eu ia falar. Palavra de honra, eu ia dizer qualquer coisa a respeito do assunto e ia ser ali o fim mundo, uma epifania em cuecas. Porque, na minha padaria, eu passo por mudo. Há anos que está assim assente. Um velho mudo sorridente que sabe dizer "Bom dia!" e "Obrigado!", de resto peço por sinais e pago com dinheiro certo, que a minha mulher me dá. Eu ia destoar, estender-me ao comprido, dar cabo do meu tão precioso disfarce, quando a senhora que mora na minha padaria fez questão de rematar, mesmo em cima da hora: - Não gosta de andar. Uma casa, nem que fosse pequenina, mas com tudo, o meu filho preferia. Uma casinha. Andar, não!
Ai era isso! Ufa, safei-me por pouco...
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