terça-feira, 7 de outubro de 2025

As rosas do coveiro Gusto Sardão

O caminho da Felicidade
É fácil, facilíssimo. Sempre em frente até ao largo da igreja, vira à direita pela rua com árvores, passa pelo campo da bola e pela sede, torna à esquerda e logo na esquina, encostada ao café e depois do funileiro, há uma casa pequenina com porta vermelha e vasinhos floridos na janela: é aí que ela mora. Ela e os dois filhos. Cuidado com o cão!

No jardim dos meus sogros havia meia dúzia de roseiras razoavelmente produtivas e formiguentas. As flores vinham sempre cá para casa, as formigas às vezes também. Cinco das seis roseiras do jardim dos meus sogros davam rosas vermelhas, mas daquele vermelho sanguíneo, belíssimo, rosas de livro, de cartaz e de filme, e cheiravam a nada, coisa nenhuma, como se fossem de supermercado, de plástico. A outra roseira, exemplar único, logo à entrada, dava umas rosas cor-das-mesmas, numa corzinha envergonhada e pálida, quase pedindo desculpa, e porém manda-me cá para fora um perfume que inebriava a léguas.
Era um cheiro bom que eu já conhecia e me tornava a Fafe, aos meus aromas de infância, enchia-me de saudades. Havia umas rosas assim, selvagens e vibrantes, ao fundo do esmerado quintal da Dona Maria Margarida, na espécie de alameda que descia a propriedade desde a Rua Monsenhor Vieira de Castro, partilhando muro com os terrenos do casarão do Zé de Freitas, que agora é o Aldi, e ia desembocar à Quelha, evidentemente com portão no fim, sempre fechado, quase em frente à velha nora de alcatruzes às vezes movida por boi ou vaca, por inexplicável falta de burros. Que bem que cheiravam aquelas rosas! E logo ali ao lado, na senhorial entrada da Casa do Santo, no pátio empedrado após o portal com brasão, eram as glicínias que emprestavam o seu perfume doce ao ambiente. Que bem que cheirava geralmente a Quelha, sítio de prazeres, amor, pecado e outras necessidades! Que tempos! A casa da Dona Maria Margarida, com vista, foi depois casa do Chiquinho Gonçalves, sem vista, e consta por lá hoje em dia o McDonald's, se não me engano. São outros cheiros...
Mas a nossa roseira. A roseira perfumosa, extraordinária, fora oferecida ao meu sogro, há muitos muitos anos, pelo Gusto Sardão, então coveiro titular do cemitério da então freguesia de Nevogilde, Foz rica, concelho do Porto. Para os registos: Augusto Francisco da Costa Almeida, enterrador de categoria e decilitrador condecorado, creio que uma coisa tem a ver com a outra. O Senhor Augusto - Senhor, para mim, com todo o respeito - era um homem pequeno, queimado, irrequieto, malandro, tinha a voz mais bagaceira que Deus ao mundo botou, muito mais completa do que a do incompreendido disc jockey Bruno de Carvalho ou a do incompreensível actor Joaquim de Almeida, parece que ainda o estou a ouvir, ao coveiro, o que é tecnicamente impossível. Com efeito, um dia o Senhor Augusto resolveu seguir as pisadas da clientela, faleceu ele próprio para não empecilhar o negócio, e actualmente confraterniza com os seus antigos ossos do ofício. Isto é: continua ao serviço, mas agora do lado de dentro. Não sei como nem quem lhe paga a féria. O bom Gusto Sardão era, ou por outra, podia ter sido, penso-o agora, uma figura típica de Fafe, dos nossos tascos, do Peludo, parece impossível como é que só vim a conhecê-lo no Porto.
Quando o nosso Kiko nasceu, o Senhor Augusto ofereceu logo mil escudos para a conta que a Mi e eu haveríamos de abrir para o menino, e abrimos. O Gusto foi o primeiro dador, no dia 1 de Maio de 1984, antes ainda da Dona Senhorinha Bastos e do abono, está tudo registado no livrinho. Eu não sabia deste uso pós-natal, e, confesso, aquilo, na altura, comoveu-me bastante.
Mas a roseira. A roseira extraordinária, delicada e odorosa, veio exactamente do cemitério, e isso é que eu ainda não tinha contado, e isso é que a torna realmente extraordinária. Do cemitério de Nevogilde, lugar do "santo" Menino Quim, de bruxedos ao portão e de outros espantos. As rosas, por exemplo. Rosas que não alcançavam a exuberância cardiofálica e escandalosa dos antúrios de ficção do fotógrafo Jorge Tadeu, na telenovela brasileira Pedra Sobre Pedra, mas que, na sua modéstia, se ofereciam abertas e feminis, reais, a quem as quisesse e soubesse desfrutar.
Abençoado cemitério que semelhantes rosas deu. Abençoado. Um cemitério assim é uma provocação, um desafio lançado a quem não acredita em nada para além do óbito. Um cemitério como o do coveiro Gusto Sardão dá sentido e utilidade ao serviço pós-morte, mesmo ao pós-vida dos incréus. Deve ser um conforto morrer sabendo que ao menos seremos estrume. E de rosas. Rosas subtis e perfumadas, rosas extraordinárias.

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