segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Até os mortos se salvaram

Os fiéis defuntos
A vantagem dos fiéis defuntos, com o devido respeito, é que não se armam em mortos-vivos. E isso, hoje em dia, já é um descanso.

Durante uma semana, um alguidar contendo um enorme galo sem cabeça e outras miudezas feiticeiras esteve em exposição no passeio junto ao portão de um dos cemitérios da cidade do Porto, zona chique. O bruxedo apareceu ali da noite para o dia, toda a gente se queixou, toda a gente se desviou e ninguém teve coragem de mexer na coisa, de a mandar para o lixo. Nem o padre da igreja ao lado nem os coveiros propriamente ditos. Trabalhar com almas e mortos está bem, desafiar maus-olhados é que não, faxavor de desculpar.
Passou-se um, passaram-se dois, três, quatro, cinco dias, e o galo ali, possivelmente já com o serviço feito e portanto sem mais poderes para gastar, mas nem assim alguém ousou sequer tocar-lhe. O pessoal da Junta de Freguesia, executivo e funcionários, reuniu extraordinariamente e foi unânime, cada um passou a encomenda para o que vinha atrás, ou abaixo, "Eu não, bruxedos comigo não", até que a vizinhança viva reclamou que já não aguentava com semelhante fedor, ciciando padres-nossos e ave-marias, de terço na mão e muitos sinais da cruz mas feitos ao contrário, não fosse o diabo tecê-las...
Ora, o fedor, como toda a gente sabe, é problemática que sobe a instância superior, à alçada camarária. Em conformidade, foram requisitados os serviços de limpeza da cidade, que chegaram ao local do sinistro tarde e a más horas e resolveram o assunto em três penadas. Isto é: não fizeram nada. "Eu também não, bruxedos comigo não", disseram os almeidas, que no Brasil são garis.
Perante o impasse, alguém tirou a mola de roupa do nariz e alvitrou que o Governo mobilizasse os Comandos da Amadora ou enviasse para o terreno o Grupo de Intervenção de Operações Especiais da GNR, outro pediu a presença da Brigada de Minas e Armadilhas da PSP, o espertalhão do costume recomendou o Putin ou o Netanyahu, se era para rebentar com aquilo tudo, um dos dois chegava e sobrava, e a Ermelindinha, catequista e sacristã derivado à escassez de mão-de-obra qualificada, ainda sugeriu que se mandasse chamar o Bruxo de Fafe para fazer a competente marcha-atrás à coisa, tornando seguro o seu manuseamento. Mas a Junta não dispunha de verba orçamentada para pagar a especialistas.
Foi quando um dos da Câmara se lembrou que o Canil Municipal tem um camião com um gancho hidráulico muito jeitoso, uma espécie de braço mandado que podia solucionar mecanicamente aquele problema bicudo, com os homens ao largo e, portanto, sem risco de contraírem agoiros, porque os agoiros, como é do conhecimento geral, têm um certo e determinado raio de acção, potente mas limitado. E assim foi. Ao sexto dia, o todo-poderoso veículo veio e levou a coisa, para sossego enfim de todos os moradores da zona, vivos e mortos, amém.

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