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terça-feira, 1 de julho de 2025

As castanhas são como o próprio nome indica

Grazie verigude!
A inglesinha abeirou-se-me sorridente e de mapa aberto na mão, meio perdida, pedindo-me que eu lhe dissesse onde é que ela estava, questão assim a modos que existencial. Indiquei-lhe, com todo o gosto: estávamos, ela e eu, em Matosinhos, exactamente no cruzamento da Rua do Godinho com a Avenida de Serpa Pinto, que, por sorte, era mesmo o sítio que ela queria. Estava lá marcado com um xis. Alargando o sorriso, bonito, a inglesinha simpática fez "Hã... hã... hã...", à procura da palavra certa, e, no seu melhor português, muito bem aprendido, bem treinado, saiu-se finalmente, toda satisfeita: - "Grazie!"...
Vá lá, podia ter sido pior. Se me tivesse atirado por exemplo "Muchas gracias!", abanando castanholas e rebolando as ancas, aí, sim, eu ficaria verdadeiramente incomodado.

As castanhas. As castanhas têm pouco que se lhes diga. Chamam-se castanhas por causa da própria cor, acho eu, e há quem afirme que são aquénios, o que simplifica logo as coisas. Ora bem. As castanhas fazem-me gases e há cinco qualidades de castanhas: castanhas cruas, que sabem a infância e a dor de barriga, castanhas cozidas, que, no meu modesto entender, precisam de saber a funcho, castanhas piladas, que são umas malandras, castanhas assadas, que são quentes e boas, e castanhas com bicho, que são realmente uma merda. No Verão, as castanhas são tremoços.
As castanhas vêm dos ouriços, que antigamente tinham a mania de cair em cima das cabeças das pessoas. Os ouriços de Fafe, então, eram do piorio. Havia um castanheiro nas traseiras do tasco do Senhor Augusto Paredes, encostado ao muro, mesmo em frente ao Palacete, e os ouriços caíam na rua como tordos. Mas não caíam à toa. Esperavam por mim, matreiros e organizados, para me desabarem aos pares ou num indecente mènage à trois mesmo em cheio no cocuruto. E eu, desprevenido, sem capacete, estais a ver como é que ficava. Era um cristo.
Para além dos filhos da puta dos ouriços e das castanhas que servem para a nossa alimentação, os castanheiros davam também uma tirinhas muito jeitosas para se fazerem grinaldas e óculos de brincar. Os castanheiros podem ter mais de mil anos, mas o do quintal do Paredes não. O quintal do Paredes era também o quintal do Senhor Jerónimo Barbeiro e do Senhor Lopes Agulheiro, três famílias grandes, sobretudo femininas e boas, e eu tenho muitas saudades daquela gente toda. O castanheiro do Paredes agora é um prédio de rés-do-chão e quatro andares. Mesmo em frente, centenário e ainda elegante e digno, agora é o Palacete que cai. Cai aos bocados, desgostoso com o abandono e a ignorância adjacente.
Derivado às castanhas, existem também as castanhadas e as castanholas. As castanhadas não devem ser confundidas com magustos, basta perguntar ao Pepe, ex-jogador de futebol, que ele explica. E as castanholas fazem um papelão nas mãos de Lucero Tena.
Eu gosto muito de castanhas. E afinal as castanhas têm bastante que se lhes diga.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

A minha abençoadora das 7h30

Foto Hernâni Von Doellinger

Gosto que me digam "Até amanhã, se Deus quiser". Gosto que me digam "O Senhor te abençoe". Gosto que me digam "Vai com Deus". Acredito em bênçãos, mas execro as benzeduras. Como acredito na oração, mas dispenso as rezas. Dispenso intermediários, agentes, representantes, vendedores e empresários - eu e Deus é assunto nosso, ligação directa. Dispenso também os novos profetas e as novas profetisas, o Facebook, o Instagram, o Twitter ou X, as e os influencers, as mensagens em cadeia e as pagelas responsórias.
Gosto de pedir a bênção, gosto que me abençoem. Eu pedia a bênção beijando a mão aos meus avós da Bomba e aos meus avós de Basto. Pedia a bênção ao meu pai, à minha mãe, ao meu padrinho, à minha madrinha, aos meus tios e às minhas tias. Até às tias chegadas à família por casamento, que no princípio achavam aquilo um bocado estranho, mas que depois se habituaram e creio que gostam. Eu até pedia a bênção ao senhor abade!
E fiquei traumatizado para toda a vida, como diria o outro que disse Foucault.
Gosto tanto de ser abençoado, que a minha mãe já sabe: as nossas despedidas diárias só estão completas quando ela me diz "O Senhor te abençoe! Fica com Deus!", e eu digo "Obrigado!", sem saber onde meter as mãos e as lágrimas. Pelo sim e pelo não, tusso.

Gosto de bênçãos, acredito nas bênçãos. Porque sim, e não por respeito ou porque me ensinaram ou obrigaram em pequenino. Sou interesseiro. Preciso de bênçãos como de pão para a boca, as bênçãos fazem-me tanta falta como o ar que respiro, como água no autoclismo. Sou abençoado por ter um amigo que há décadas me abençoa com a sua fraternidade sem juros e não acredita em bênçãos, mas para mim vai dar ao mesmo, é tudo lucro. Pelo contrário, a Senhora Dona Maria Amélia abençoava-me todos os dias cerca das sete e meia da manhã. Eu madrugava de propósito para encontrá-la na minha caminhada diária pela marginal Matosinhos-Porto.
A minha abençoadora das 7h30 vinha de Gondomar e àquela hora já estava prestes a apanhar o(s) autocarro(s) de regresso a casa. Não consigo imaginar a que horas é que ela saía da cama. Tinha as pernas vergadas pela idade, talvez 84 anos, ela não sabia bem, e pela vida, dez filhos, nem todos mansos, muito trabalho e desgostos mais do que a conta. Via-me, levantava o braço direito e dizia-me, num largo e comovente sorriso, "Bom dia, vá com Deus!"
E eu ficava pronto, melhor do que se tivesse ido à missa. Claro que a Senhora Dona Maria Amélia dizia "Bom dia, vá com Deus!" a toda a gente. A maioria não ligava, ignorava-a ou sorria-se dela, pior para eles e mais sobrava para mim.

Quando os meus, família ou amigos, saem cá de casa, digo-lhes sempre, à porta, "Vai com cuidado!", e repito quantas vezes forem precisas até obter uma resposta. Um "Sim!" ou um "Tá bem..." sossegam-me. Digo "Vai com cuidado!" porque vi muito A Balada de Hill Street e, por outro lado, sinto que ainda não tenho estatuto para dizer "Vai com Deus!" Mas eles sabem que, nas entrelinhas do meu coração, o que lhes estou realmente a dizer é "O Senhor te abençoe, vai com Deus!" e, sobretudíssimo, "Até amanhã, se Deus quiser", seja o amanhã quando for...

Sempre fui dado a amizades improváveis com velhas senhoras mais ou menos esdrúxulas. Desde pequeno, em Fafe. As Grilas, as Turicas, as duas Milinhas do Santo Velho, a Modista e a Vaqueiro, para não ir mais longe, fazem parte do melhor da minha vida.
A minha abençoadora das 7h30 era outra que tal, mas desapareceu-me sem aviso. Os nossos horários desirmanaram-se, coisas da vida, e já não nos encontramos há mais de três anos, para meu grande desgosto e prejuízo, porque as bênçãos, já disse, fazem-me falta. Sem ter perguntado, soube que a boa senhora nunca mais foi vista às horas do costume nos sítios do costume, entre Matosinhos e a Foz. Não sei dela. Primeiro fiquei preocupado, triste como a noite, mas depois resolvi pensar que a Senhora Dona Maria Amélia terá aproveitado para meter um longo período de férias, porque isto de passar a vida a desejar o bem dos outros também cansa. É isso, a minha abençoadora está de férias num sítio bem bom, reservado só para pessoas de categoria. Voltará qualquer dia como nova, mais forte do que nunca, à moda dos jogadores de futebol após lesão. Voltará para me abençoar outra vez e por todas as vezes que me tem faltado. Voltará. Se Deus quisesse...

terça-feira, 15 de abril de 2025

Com papas e bolos

Pastelaria graças a Deus
Comeu um cardeal, dois jesuítas e três seminaristas. Bebeu quatro taças de Casal Garcia, persignou-se e deu graças a Deus.

Não sei como dizer isto sem ferir susceptibilidades, mas não há como fugir à agenda: o dia 5 de Fevereiro é, desde 2007, Dia Mundial da Nutella. Também não sei a que é que sabe a nutella e até suponho que não me faz diferença não saber. Na infância tive decerto a minha pequena dose de tulicreme nalgum fortuito episódio de fartura doméstica de que não guardo grande memória, já me explicaram que nutella e tulicreme não são a mesma coisa, antes pelo contrário, mas não estou apetrechado para milimetrar a comparação nem para o debate que o assunto obviamente impõe. Por outro lado: quando a manteiga entrou em nossa casa chamava-se Planta, era bem boa e nós já achávamos que éramos ricos. Naquela altura, uma rulote muito jeitosa estacionava no nosso Santo Velho e umas senhoras muito simpáticas e de bata branca ou avental chique explicavam muito bem explicada a margarina Vaqueiro, que era outra novidade para o povo. As boas senhoras, raparigas todas jeitosas que eu achava que eram da televisão, davam a provar a quem passava, iam a casa fazer demonstrações por medida, e eu achava que a nossa Milinha de cima, a Milinha Vaqueiro, é que tinha mandado vir. Não sei se tinha...
Sei é isto, ai, margarina, se eu te desse a minha vida: ainda há pouco, na Póvoa de Varzim, icónica Rua da Junqueira, uma excelentíssima bola de Berlim com creme normal custava um euro, um euro certo, e a merda de uma bola tipo Berlim com nutella custava um euro mais vinte cêntimos. Como costumo fazer amiúde, um destes dias torno a meter-me no metro e vou lá, de propósito, ver em que param as modas, é só fazer as contas à inflação, e se as bolas com nutella forem este ano mais baratas, ou até dadas, compro na mesma das de creme normal, isto é, bolas de Berlim. 

domingo, 6 de abril de 2025

O compasso

O compasso divide a música em intervalos de tempo iguais. Muitos estilos musicais tradicionais já presumem um determinado compasso: a valsa, por exemplo, usa o compasso três por quatro (ou ternário simples), enquanto o rock se serve por norma do quatro por quatro (quaternário simples), do doze por oito (quaternário composto) ou também do velho três por quatro da valsa. O compasso faz arcos de circunferência mas não de violino, é uma modesta constelação de estrelas praticamente apagadas no hemisfério sul e, aqui que ninguém nos ouve, tem qualquer coisa de maçónico. O compasso costumava sair à rua no Domingo de Páscoa.

Em Fafe de boa memória, era na Casa do Santo Velho que se reuniam todas as cruzes no fim tardeiro do compasso, já quase noite, seguindo depois para a Igreja Nova, em galhofeira procissão de sinetas exaustas e descompassadas, nas últimas. Rebentavam foguetes com uma violência desnecessária, desproporcional, moucando-me os ouvidos e estremecendo-me as entranhas, e a mim parecia-me que a ressurreição do Senhor podia muito bem ser melhor festejada com bichas-de-rabiar, não desfazendo, mas ninguém me ligava...

Uma feira que era três, talvez quatro

O homem-crocodilo
Despedido pela Lacoste, o homem-crocodilo fez-se à vida e foi com a mulher vender nas feiras. Mas bastante contrafeito.

A feira de Fafe era três. Um três-em-uma, três feiras numa só, pague uma e leve três. A feira de Fafe era um pacote, uma pechincha. Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três! Tínhamos a Feira propriamente dita, no terreiro do Largo, actual Praça 25 de Abril. Tínhamos a Feira das Galinhas, na hoje chamada Praceta Egas Moniz. E tínhamos a Feira do Gado, na Feira Velha, agora dita Praça Mártires do Fascismo. As três eram apenas uma, coincidiam no mesmo dia, quarta-feira, como ainda hoje, a dispersão geográfica não passava de um pormenor, mas de vanguarda. Se fosse hoje, dir-se-ia que era uma feira em três pólos. Ricos tempos! Tínhamos muito, tínhamos tudo, uma fartura. De feira estávamos nós bem servidos, faltava-nos era dinheiro.
Era. A feira de Fafe era três, talvez quatro. Em bom rigor, a feira começava antes da feira, logo por Cima da Arcada, numa espécie de antecâmara dedicada às artes performativas e da propaganda, espaço semanalmente ocupado pelo vendedor de banha da cobra, pelos milagres e mezinhas da santa Alexandrina de Balasar, pelas pacientes Testemunhas de Jeová e, ocasionalmente, pelo Rei das Limas, que, no entanto, era praticamente da casa, como fazia questão de apresentar-se. E havia também um sítio especial para o pão, diversos tipos de pão regional, doméstico, de Fafe e das redondezas até Amarante, especialidades vendidas por duas ou três senhoras e por um senhor que vestia um avental de peito, comprido até aos pés, impecável de branco e de limpeza.
Descidas as escadas, no Largo, os ourives instalavam-se debaixo dos arcos da Arcada ou logo em frente, hoje sítio de esplanadas e medíocres programas de televisão de aluguer. Parecia que o ouro do mundo inteiro se juntava ali, em cima de bancas de madeira forradas a flanela negra, as nossas ourivesarias Martins e Pérola também montavam estendal, e eu ficava a imaginar aqueles ourives todos com os bolsos dos casacos cheios de pistolas e espingardas caçadeiras, e sobretudo com uns tomates muito grandes dentro das calças, porque de outro modo não podia ser. Eles andavam assim carregados de terra em terra, quer-se dizer, sem seguranças, sem carrinhas blindadas, sem telemóveis, sem ligação directa à polícia, sem satélites, sem drones, nada, só o patrão e talvez um empregado de preferência solteiro, sem filhos e eventualmente borrado de medo, os dois enfiados na velha carripana e a rezar o terço. Isto é, estavam mesmo a pedi-las...
No terreiro da feira era o costume. Hortaliças, legumes, verduras, frutas, talvez secção de louça e panelas. E muito povo. A feira instituíra-se local de encontro semanal, mais do que a missa de domingo, e aqui, zona de cozinha e mesa, eram sobretudo mulheres. Outra vez descendo, para a Feira Velha, aí eram principalmente homens, lavradores em maioria, com as carteiras a abarrotar de notas de conto. À roda da escola fascista cujas pedras deram, por milagre, em capela, vendia-se e comprava-se gado. Bois, vacas, bezerros. E alfaias agrícolas, e jugos e sogas, e pipas e dornas, e latoaria, e fatos e samarras e capotes e croças e chapéus e bonés e sapatos e botas e galochas e chancas e socos. E nos tascos das redondezas, isto é, na vila inteira, apanhavam-se pielas de caixão à cova. Lá dentro, na escola, era um cheiro a bosta que se não podia, mas o regime realmente também não se recomendava...
Gado de mais pequeno porte, digamos, frangos, galos, galinhas, garnisés, pintainhos e coelhos das mais variadas origens e díspares feitios, isso era mais cá para cima, na Feira das Galinhas, larguinho de terra virado para a Igreja Nova e onde se mercavam também ovos, farinhas, feijão e milho, saquinhos de sementes, tudo colocado no chão estreme, em carreirinhas ordenadas, honestas, sem truques para enganar o freguês. Fazia-se comércio directo. Havia quem levasse à feira galinhas de patas atadas, debaixo do braço forte ou enfiadas em cestas de vime com a crista de fora, e trouxesse para casa meia dúzia de sacos de feijão e grão, sacos de pano, sossegados no açafate muito bem tenteado na cabeça com rodilha.
A Feira das Galinhas funcionou também, transitoriamente, no Largo Ferreira de Melo, entre os sanitários do Jardim do Calvário e as traseiras com laguinho do posto da Polícia de Viação e Trânsito. E, lembro-me agora, chegou a haver um mercado de sábado, mas só pelas manhãs, parece-me, no nosso Santo Velho, outro terreiro. Era uma feirinha.
Há muito despejada do Largo, a feira de Fafe andou entretanto com a tenda às costas, deu as suas voltas, até assentar arraiais na hoje chamada Praça das Comunidades, feita de propósito para a função. E ali está de armas e bagagens, creio que bem instalada e para ficar. Mas é só uma...

segunda-feira, 24 de março de 2025

A Milinha Modista

Em zona de construção
Perder a bola em zona de construção é uma chatice. São os taipais, os andaimes, a maquinaria, os buracos, a lama, ferros mais ou menos retorcidos, a obrigatoriedade de uso de capacete, colete de sinalização e botas de biqueira de aço, e ainda por cima é "proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço". Mais vale dizer adeus à bola...

A Milinha Modista era uma instituição no Santo Velho. Chamava-se Milinha Modista, Milinha Costureira ou Milinha Parola, e esta parte do Parola eu nunca percebi porquê, não sei de onde veio, porque a Milinha vestia elegantemente e era uma senhora cheia de classe, sobretudo se não abrisse a boca. Esta Milinha chamava-se estes nomes todos para se distinguir da outra Milinha da nossa rua, a Milinha Vaqueiro, que eu suspeitava, com fundamentadas razões, que fosse dona de uma empresa de margarinas, entre outros negócios mais ou menos secretos. Ela e o Sr. Manuel, o marido, de quem se dizia que era o sapateiro de Salazar e que realmente saía muito, de comboio, com um embrulho debaixo do braço, e voltava uns dias depois carregado de coisas, e sempre se me afigurou um homem misterioso, gentil e triste.

Durante muitos anos eu confundi Agatha Christie com Miss Marple. Quero dizer, a cara de Agatha Christie era, para mim, a cara da veterana actriz inglesa Margaret Rutherford, e só já em adulto é que desfiz o equívoco, perante o verdadeiro retrato da famosa autora de romances policiais, porventura descoberto na badana de um livro. Mais curioso ainda é que, em Fafe, eu mantinha sob apertada vigilância meia dúzia de velhas senhoras que eram Miss Marple de certeza absoluta, por mais que tentassem disfarçar. Senhoras antigas, amiúde intrometidas, vestindo com quase cinquenta anos de atraso, senhoras assim como a minha Milinha Vaqueiro ou como as manas Grilas em dias de maior asseio. Fafe era uma fartura, havia de tudo. Fafe era o mundo inteiro, e essa foi a minha sorte.

A Milinha Modista morava por baixo do Chico Varandas, o herói da nossa rua, o vizinho que uma vez, pelas Festas da Vila, desafiou para a pancada o macaco do Homem Mais Forte do Mundo em pessoa. O prédio do Chiquinho era mesmo encostado à nossa casinha amarela, do lado direito de quem olha para fora. No lado esquerdo era a Milinha Vaqueiro. Os três quintais também eram contíguos e aos olhos uns dos outros. As Milinhas não se davam e a minha mãe é que intermediava.
A Milinha era uma excelente costureira, renomada, muito procurada e disputada pelas mais finas damas da melhor sociedade fafense, que, com excepção da Nicinha, tinham de mandar recado, marcar vez e ir para a fila. A Nicinha, mãe do ilustre Eugénio Marinho, era uma jóia de pessoa e como se fosse família da Milinha.
A Milinha era mestra. E tinha aprendizas. Isto é, aceitava aprendizas, e também era imensa a lista de candidatas e pedidos metidos pelos pais, com recomendações, empenhos, peitas e tudo, mas só três ou quatro, à vez, seriam as infelizes contempladas. Infelizes, de facto. Não eram empregadas nem recebiam salário, pelo contrário, eram crianças e aprendizas para todo o serviço, mulheres a dias, cozinha incluída. E eram também senhoras da limpeza, à força de vassoura, esfregão e espanador, com especial cuidado ao pó sobre os grossos figurinos marcados com nomes, medidas, datas e amostras de tecidos, autênticos calhamaços da penúltima moda criteriosamente dispostos em cima da mesa da sala de entrada. A Milinha era uma mestra enciclopedista, exigente e severa com as suas pupilas.
Na sala de costura, as aprendizas aprendiam sentadas em banquinhos ou cadeirinhas de madeira e infantário, trabalhando em cima de uma tábua ou prancha tenteada em cima dos joelhos, uma tábua ou prancha digamos, hoje em dia, ergonómica, com recorte em meia-lua para a reentrância da barriga, e que decerto até teria nome técnico mas eu não sei qual. Na cozinha, as aprendizas cozinhavam todos os dias na máquina a petróleo e faziam pelo menos uma vez por semana fanecas fritas com batatas fritas, um oxímoro culinário, a bem dizer, cozinhavam mas não comiam, e sei disto tudo porque era visita regular talvez para recados e porque a minha irmã Nanda também por lá andou, coitadinha, antes de ir para a Fábrica do Ferro, que, por estranho que possa parecer, foi a sua salvação.
A Milinha era "dos do Santo", irmã do Sr. José e do Sr. António, lavradores filósofos e meus mestres de vida, e tia do David Alves. Tinha um feitio desgraçado, a mulher. Mal ouvia uma bola a pinchar da rua, saía como um raio de tesoura de costura em riste, a tesoura maior, de corte, e com metros e metros de caralhadas na ponta da língua, ameaçando estraçalhar o esférico à menor tangente, à mínima corrente de ar que sentisse ou adivinhasse junto aos seus vidros, pelos quais nutria uma estima que efectivamente só vista. Se por acaso me descortinava lá no meio da moçarada e do jogo, eu a tentar esconder-me, a Milinha ficava um tudo-nada constrangida, notava-se, mas o que estava dito, estava dito, virava costas e ia para dentro, não sem antes nos lançar um derradeiro e definitivo - Fodei-vos!...

A Milinha adorava-me e eu gostava muito dela. Convidei-a e ela compareceu ao meu casamento, no Porto. Quando, nos anos seguintes, a minha mulher e eu íamos a Fafe, e íamos frequentemente, não tornávamos a casa sem antes passarmos pelo Santo e visitarmos a Milinha, que nos recebia cheia de orgulho e com uma alegria imensa, sentando-nos à volta da velha mesa dos antigos figurinos. A alegria era recíproca, nós também tínhamos muito gosto em estar com a Milinha. Uma vez, nesses reencontros, estive para lhe explicar que fanecas fritas com batatas fritas não é coisa que se faça, mas contive-me e preferi falar do tempo, que estava um rico dia. Fiz bem. Às tantas, ainda era corrido à vassourada...

sábado, 22 de março de 2025

As Turicas e um par de mamas

Poema
Seios
sei-os
ceio-os.

Situemo-nos: Fafe, finais da década de sessenta do século passado. A cidade triste e ausente de hoje em dia era então uma vila buliçosa, boémia e próspera. As Turicas moravam numa enorme e decadente casa aburguesada da Rua Monsenhor Vieira de Castro, mesmo em frente ao Toninho da Luísa, do lado direito de quem desce para o Picotalho ou para a Recta, depois do cruzamento do Santo Velho e, infalivelmente, dos tascos do Paredes e do Zé Manco. Nem cinquenta metros antes, resvés com o prédio do Café Chinês em construção e a longa entrada para a casa das Jerónimas na outra berma da estrada, perigosamente sem passeio, moravam as Grilas. Irmãs, duas, se não me engano, velhas no meu critério de criança, solteironas, desgrenhadas, professoras e misteriosas. Raramente vistas na rua, espreitavam apenas à porta, defendida por um portão baixinho em ferro forjado, e quando meteram telefone em casa ligaram ao meu avô a perguntar se o telefone dos Bombeiros "também tocava em português" como o delas. Que se segue: derivado à proximidade geográfica entre as duas distintas famílias, havia e há quem, mesmo entre os especialistas e seus derivados, confunda as Turicas com as Grilas - o que é uma vergonha e de uma intolerável ignorância numa terra tão prenhe de historiadores e simpatizantes como a nossa.
Mas as Turicas, que foi ao que eu vim. As Turicas também eram irmãs e também eram duas, tanto quanto me lembro. Pequeninas e idosas, resmungonas e prendadas para os mais delicados lavores, faziam renda de bilros sentadas num banquinho junto às imponentes portadas que davam para a rua. Rendas de bilros, isso mesmo. No rés-do-chão do ancestral casarão, as Turicas entretinham-se com uma loja mais antiga do que elas e que cheirava a um mofo muito bom. Vendiam botões e tafetás, fitas de nastro, fechos, colchetes, linhas, lãs, chitas, agulhas e flanelas, sobretudo monos, tudo armazenado há que séculos numas prateleiras altas, enegrecidas e carunchosas. E davam conselhos. Sorrateiramente, vendiam também vinho ao garrafão nas traseiras do estabelecimento, com vistas para um exuberante quintal sem fundo. As boas senhoras, certamente latifundiárias não sei onde, mantinham uma "criadita" que abria a porta a quem ia comprar vinho. E a miúda tinha umas mamas. Uma vez a minha mãe mandou-me ao vinho com dinheiro certo e tempo contado, e eu pedi à rapariga se me deixava apalpar-lhe as mamas numa pressinha. Ela não deixou e eu apalpei. As mamas eram de papel e foi-me um desgosto muito grande. Até hoje.

sexta-feira, 21 de março de 2025

Lostras, sostras e ostras

As massas
Ele gostava de uma boa massa à lavrador, de uma boa massa de marisco e sobretudo de uma boa massa de bacalhau. Também concordava com a vacinação em massa. Quanto à massa de ar quente, não é que desgostasse, mas afligia-o a flatulência.

Talvez por ter nascido em Fafe, e pobre, e nos finais da década de cinquenta do século passado, conheci primeiro as lostras e as sostras e só mais tarde é que soube das ostras. Não estou a queixar-me da minha sorte, é apenas uma confissão que eu precisava de fazer há tantos anos, e agora, dito isto, fiquei em paz. Na verdade, "as ostras", "as lostras" e "as sostras" até são expressões aparentemente parónimas - ora tentai lá pronunciá-las, uma e depois a outra e depois a outra, a ver se não soam à mesma coisa -, mas resultam muito diferentes no que significam.
Comecei naturalmente pelas lostras, ou não fosse eu filho da minha mãe, que nos chegava a roupa ao pêlo com assinalável pertinácia. Bufardos, sopapos, bofetadas, bofetões, galhetas, lamparinas, estampilhas, lostras para todos os efeitos, aprendi isso tudo à minha custa, mesmo antes de entrar para a escola, que em nossa casa era uma fartura pelo menos nesse departamento e eu era muito bom para sinónimos.
Sostras, eu também sabia. Desde pequenino, isto é, desde que tive noção. Sostras. Mulheres sujas e preguiçosas, badalhocas, regra geral o que elas se chamavam umas às outras quando disputavam homem ou coisa parecida. Putas, putéfias, vacas, vaconas, cabras, coirões, coironas. Fazia parte do léxico fafense metido a cotio, era o fafês no seu melhor. Aliás, a palavra sostra, para mim, já naquela idade, trazia com ela qualquer coisa de sexual, de lascivo, de atesoante, dito simplesmente. E, a esse respeito, é preciso que se note que eu, apesar de padreca, fui aquilo que se diz um rapaz precoce, outra palavra que por acaso também me arrebitava sobremaneira, mas eu, não desfazendo, ficava incomodado por tudo e por nada.
Já ostras, o mais parecido que eu lhes conhecia por aquela altura, sem sequer ter ideia dessa estranha ligação, eram sardinhas fritas com arroz de tomate, e que bem que me sabiam. Assim pessoalmente, as ostras foram-me apresentadas teria eu 24 anos, em Bordéus, França. Casado de fresco, cheio de vaidade, fui lá mostrar a minha bela mulher às minhas queridas tias São e Dores, que não puderam vir ao nosso casamento. Levei também a minha mãe e o meu irmão Orlando e merendeiro para um regimento, fomos de comboio, de wagons-lits, num expresso do oriente para remediados e cagarolas, isto é, no Sud Expresso, e tivemos todos um Natal bem porreiro.
Foi por aqueles gloriosos dias que eu finalmente provei as ostras, essa requintada francesice, assim achava, vinham nuns cestinhos muito jeitosos, deram-me a ferramenta para a mão, aprendi a abri-las sem desastre e a comê-las de imediato só com um esguicho de limão, coisa tão boa, coisa tão mar, em Bordéus, França, com champanhe evidentemente, o que eu andei para ali chegar, 24 anos de vida, e as ostras eram de Setúbal, Portugal, estava lá escrito, se calhar foram comigo no comboio, é preciso ser-se muito parolo, eu. E a verdade é só uma: as ostras eram realmente tão extraordinárias como sardinhas fritas com arroz de tomate, nem mais nem menos, sardinhas compradas na Mocha, com sítio à beira da estrada, em frente ao tasco do Paredes e ao lado do Zé Manco, dividindo praça com os tremoços da Marrequinha e as castanhas assadas da Maria Barraca, consoante a época. Foi logo ali, no estrangeiro, que eu percebi pela primeira vez a inegável superioridade moral das nossas sardinhas e a sorte que tenho por ter nascido em Fafe naquele tempo e, ainda por cima, no Santo Velho.

domingo, 16 de março de 2025

Tramado pelas Grilas

Como as cobras
Ele era mau como as cobras. E como as moscas tsé-tsé e como os cães e como os escorpiões e como os crocodilos e como os hipopótamos e como os elefantes e como os tigres e como os leões. Era realmente do piorio.

Eu também fui preso antes do 25 de Abril. No meu tempo de estudante, em pleno turbilhão da crise académica de 1969, andava na quinta classe e ia para a Escola da Feira Velha quando fui detido pelo polícia, preso pelo cachaço. Fiz a quinta classe com o professor Fernando, "Conhé" para os alunos, e não há engano, houve realmente um tempo, se bem que breve, em que a quinta e a sexta classes existiram e eram, por assim dizer, o liceu dos pobres. E fui preso porquê? Porque achei um bocado de giz no chão e escrevi "Senhoras Donas Grilas" na parede da casa das Grilas propriamente ditas. Há horas do diabo e o cívico estava lá, pontual e flagrante, mesmo atrás das minhas costas. Apanhei um susto que ainda hoje tremo e, digo isto sem peneiras, ia-me borrando todo.
As Grilas eram mesmo ao lado do prédio do Café Chinês, que então se construía na Rua Monsenhor Vieira de Castro. Irmãs, creio que duas, velhas, na minha ideia de miúdo, solteiras e desgrenhadas, professoras, dizia-se, e misteriosas. Raramente vistas na rua, espreitavam apenas à porta, defendida por um portão baixinho em ferro forjado. Eu morava ali à beira, ao dobrar da esquina, no Santo Velho, e as senhoras até gostavam de mim. Mesmo depois da tratantada que lhes perpetrei e que, graças a Deus, nunca lhes chegou aos ouvidos. Sabiam que eu era filho da "viúva da Bomba" e isso valia muito em Fafe. Quando eu passava, as Grilas diziam-me sempre qualquer coisa simpática, só com a guedelha grisalha e o nariz de fora, e uma vez deram-me um santinho. Obviamente não mereciam a traição que lhes cometi.
Mas que se segue: o prédio do Café Chinês estava a ser construído e as Grilas, que já lá moravam resvés, queixavam-se das obras e dos operários. Queixavam-se do barulho e da insegurança, de tudo e de nada, barafustavam que a casa ia abaixo, era berraria o dia inteiro, guinchos de um lado e palavrões do outro, que até foi preciso chamar a Polícia. A Polícia veio e ficou. Dias e dias. Um agente sempre a rondar e a deitar os olhos ao conflito durante as horas de expediente, não fosse a coisa passar a vias de facto.
Ora, foi exactamente o desprezo por este pequeno pormenor que me tramou. Quando o toco de giz me apareceu aos pés a tentar-me e eu não resisti a apanhá-lo e a sarrabiscar "Senhoras Donas Grilas" na parede das ditas, palavras não eram escritas e já estava a ser levantado por um potente garibalde que me agarrou em tenaz pelo cachaço e perguntou: - O que é que o senhor está a fazer?
Olhei para trás e o garibalde era um polícia. O senhor era eu mais os meus onze anos, o que me fez imediatamente desconfiar que estava metido em caso sério. Com o giz na mão e a última perninha do "s" final ainda a fumegar, respondi: - Nada... - e ainda hoje acho que respondi com grande categoria.
E o polícia: - Onde é que o senhor mora? E eu, que não queria a minha mãe metida na ocorrência, até porque era melhor para mim: - Moro longe. E ele: - Então, vamos para a esquadra. E eu, sabendo que já naquele tempo os móveis das esquadras eram extremamente perigosos: - Enganei-me, senhor polícia, desculpe, moro já aqui no Santo...
O polícia deixou-me finalmente aterrar, empurrou-me para casa, ainda com a tenaz no meu cachaço, o João do Zé Manco viu, veio a correr acudir por mim e foi à frente prevenir a minha mãe, repetindo sem cessar: - Sinha Alexandrina, ele não fez mal nenhum! Ele não fez mal nenhum! Fiquei a dever uma ao João, até hoje, e já não sei dele há mais de quatrocentos anos. Dessa vez a minha mãe não me bateu. E ainda agora me diz que, para além da cunha do João, levou em devida conta, como atenuante, o facto de eu ter escrito "Senhoras Donas Grilas" e não "Grilas" simplesmente. "Senhoras", com toda a consideração. Para a minha mãe, respeito e educação acima de tudo, mesmo em plena patifaria.
Fui condenado a limpar a parede das Grilas com um pano molhado, cumpri pena e segui para a escola, de coração a mil e tremente como varas verdes. Curiosamente, as varas verdes eram também uma vigorosa especialidade da minha querida mãe. Percebeis então do que me livrei e os perigos que corri?

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

A Festa da Bomba

A sarça ardente (ou Chamem os bombeiros!)
Quando Moisés disse todo vaidoso "A minha vida dava um filme", Deus ficou bastante chateado, pegou lume ao monte e proclamou: - Agora apaga-o, que o Noé gastou-me a água toda.

Quando eu era pequeno, Fafe tinha três grandes festas e eram as maiores festas do mundo: a Senhora de Antime, a Festa da Bomba e a cascata do Santo António na minha rua. Quanto à enormeza da Senhora de Antime, sobretudo da sua incomparável e pungente procissão, suponho que estamos conversados. O nosso Santo António era também uma coisa constada, pelo menos para nós, e é preciso não esquecer que até tínhamos foguetes e altifalantes, que o Zé da SIF arranjava, e metíamos raivinha às outras ruas todas, incluindo avenidas, rampas, quelhas e largos como o nosso. O Zé da SIF é irmão do Armando Perrinha, e eles mais o Zé Maria, que foi comando no Ultramar, a Dina e a Luísa são filhos do Agostinho Cachada e da Senhora Laura, família quase minha, vizinhos do coração e gente do melhor que pode haver. Mas as festas. Falta esmiuçar a festa de anos dos Bombeiros Voluntários de Fafe - a Festa da Bomba, que se celebra regularmente por alturas de 19 de Abril -, e vamos a isso.

A Festa da Bomba, um bocadinho acima e dois meses antes do nosso Santo António, era de arrebenta. Só de altifalantes - sempre os altifalantes! - eram dois dias, quase três, e coisa profissional, a encher de som fanhoso o ar da vila e arredores: "Amplificações sonoras de João Baptista Gonçalves, de Antime, Fafe, deslocam-se a qualquer localidade, haja ou não haja corrente eléctrica", levando atrás a discografia completa do António Mafra e da Maria Albertina, com o Tom Jones e o alemão Freddy Breck a emprestarem um toque de classe aos "trabalhos". E no domingo era povo que só visto. Havia bailarico no terraço do quartel e na parada, que era nas traseiras, havia discos pedidos - "E o disco que se segue é dedicado à menina de camisola vermelha que está encostada à parede na varanda do segundo andar, por um seu admirador", e saía "O Carrapito da Dona Aurora" -, havia os tremoços da minha avó e o verde tinto do meu avô, que era quarteleiro mas não era tolo, havia capacetinhos de folheta dourada e alfinete torcido para enfiar nas lapelas dos generosos pobretes mas alegretes que davam "qualquer coisinha para a ajuda". (Se calhar foram os primeiros pins de que há memória. Os lacinhos furta-cores e os autocolantes de mão estendida ainda não tinham sido inventados.) Arranjaram-se ali namoros, casamentos. Era uma festa popular, sim. Mas a minha Festa da Bomba, a parte que me dizia particularmente respeito, era a festa dos bombeiros.
Começava uns dias mais cedo, a distribuir pelas montras o programa do aniversário e a puxar pelo corpo para pôr os carros e o quartel como brincos, que naquele tempo eram só para mulheres e piratas. Depois ia na "Carrinha", uma velha Austin da II Grande Guerra, ajudar a recolher garrafões de vinho oferecidos pelos ricos da terra e amigos da Bomba: os Summavielles, o Zé de Freitas, o João do Sal, o Senhor Fernandes do Retiro (não por acaso, um quase eterno presidente da associação), que são os que me recordo.
O meu ponto alto, porém, era o içar das bandeiras, a toque de caixa e ao som da fanfarra, logo pela manhãzinha do dia grande. Eu fazia questão, tomava conta da bandeira dos Bombeiros, bela, azul e branca, passada a ferro pela minha querida tia Laura, feita num linho que dava gosto tocar, com a águia que afinal era a fénix renascida, as chamas e os machados no meio. Içava-a a compasso, orgulhoso, solene, tremente e, confesso, a chorar por mim abaixo como um madaleno arrependido nunca soube de quê.
Tinha mais que fazer no quartel, mas ia ao Largo ver o desfile engrossado pelas corporações convidadas e amigas. Caíam-me os olhos para os carros, todos mais modernos do que os nossos, mas isso não chegava para me desmoralizar. Eu sabia que os bombeiros de Fafe eram muito melhores do que os outros, nem que tivessem de ir a pé para o fogo. E às vezes iam.
Lembro-me sobretudo dos amigos de Vizela, que eram mais do que amigos, eram irmãos (futebol à parte), e, depois da obrigação feita, decilitravam com quase tanto gabarito como os bombeiros de Fafe, campeões mundiais da decilitragem. Era: após a cerimónia das medalhas é que começava a verdadeira festa. Cada um que se amanhasse para o almoço, em casa, era o mais certo, e já voltavam todos bem bons, mas a meio da tarde havia o "beberete" no salão de festas transformado em refeitório. O "beberete" constava de uns bijus e de uns bolinhos de bacalhau feitos pela minha avó e metidos em sacos plásticos de doses individuais e sumárias, acompanhados à fartazana pelo tal vinho dado pelos beneméritos da corporação e que era bebido como se só voltasse a haver Festa da Bomba dali a um ano. O que até nem estava mal visto.
Conclusão: era beberete demais para tão pouco comerete. Passavam-se ali carraspanas iglantónicas. Os de Vizela ficavam até ao fim, num taco-a-taco que chegou a ser histórico, mas o nosso Joãozinho do Opel levava sempre a taça para casa. E levavam-no sempre a casa. De padiola. E eu pensava que não fazia mal, que os nossos bombeiros voluntários mereciam de mão cheia aquele dia sem medida e só para eles, derivado ao resto do ano em que eles eram só para os outros. Pensava que, às tantas, a Festa da Bomba era essencialmente aquilo - aquela bebedeira geral, eucarística, redentora e uniformizada, em descompassada ordem unida. E achava bem. E quero acreditar que nunca mais na vida tive pensamentos tão acertados.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Levados, levados sim!

Pai só há um
"Pai só há um", lamentou-se o professor-ensaiador, espreitando pela cortina a plateia esgotada do teatrinho escolar. "O resto é tudo mães. Galinhas"...

A Mocidade Portuguesa era uma organização juvenil do Estado Novo e, em certo sentido-descansar-à vontade, complementava ou concorria na paz do Senhor com os escuteiros de que a Igreja Católica resolvera tomar conta, pelo sim e pelo não. Para os devidos efeitos, e a bem da Nação, a Mocidade Portuguesa era fascista, embora a rapaziada, regra geral. não fizesse ideia, e os escuteiros eram, nas desbragadas palavras do humorista brasileiro Juca Chaves (1938-2023), "um bando de garotos vestidos de idiotas, comandados por um idiota vestido de garoto". Consta que Juca Chaves teve de pedir desculpas pelo abuso. A Igreja é que não há meio.
Mas vamos ao que interessa: Fafe. Fafe dos anos sessenta do século passado, no vestíbulo da Revolução. Naquele tempo Fafe era uma terra tão fascista como todas as outras terras de Portugal, mas, convém não esquecer, muito mais antifascista do que a maioria. Fafe tinha evidentemente Legião Portuguesa, Mocidade, Concordata, União Nacional, grémios, casas do povo, chapéu na mão, fascistas desde pequeninos, salazaristas mais que o próprio, bufos da Pide, falsos bufos da Pide, simples filhos da puta e regedores de pistola à cinta, mas tinha também a Fábrica do Ferro, o Bugio, operários informados, comunistas, associações culturais, grupos de teatro, jornais, o Senhor Teixeira e Castro, gente a querer saber, o Senhor Maciel, o Teatro-Cinema, a Dona Laura Summavielle, o Major Miguel Ferreira, dezenas de presos políticos, o Café Avenida, o Senhor Saldanha, o Senhor Ferreira do Hospital, outros senhores saldanhas e ferreiras do hospital de quem não sei ou não me lembro agora. Fafe teve mártires do fascismo. Procurem-nos na antiga Feira Velha: estão lá dois nomes importantes - Joaquim Lemos de Oliveira, o Repas, e Gervásio da Costa, fafenses que deram a vida pela Liberdade. Foram levados, torturados e assassinados pela Pide.

O nomes continuam lá, não continuam? A praça foi baptizada por causa deles, dos nossos, fafenses, Mártires do Fascismo. O Repas e o Gervásio. Não era uma homenagem urbi et orbi a todos os mártires de todos os fascismos, de todos os sítios e de todos os tempos. Os nomes dos nossos continuam lá na nossa praça, não continuam? Digam-me que sim, por favor, nem que seja mentira.

A Mocidade Portuguesa (Organização Nacional Mocidade Portuguesa) tinha bandeiras dos Heróis do Mar e as bandeiras chamavam-se pendões ou estandartes, tinha fardas catitas, camisas verdes, toques de clarim e toque de caixa, cintos com S de Salazar na fivela, comandantes-de-castelo, saudação nazi-fascista e hino privativo, "Lá vamos, cantando e rindo, levados, levados, sim". Tinha também umas mochilas de lona verde-acastanhada muito jeitosas e tinha tendas, pás, picaretas, cantis e acampamentos, e eu invejava o mundo de aventuras daquela moçarada distraída. E tinha a Chama, assim com capitular.
A Chama era um sarau realizado ao ar livre e os meninos à volta de uma fogueira com as achas obsessivocompulsivamente organizadas num círculo mais que perfeito: diziam-se poemas, cantava-se, representava-se teatrinho, ensinavam-se urbanidades, exaltava-se o amor à Pátria. Sabia-se quem mandava. "Salazar! Salazar! Salazar!" Uma vez houve uma Chama nas traseiras da Escola Industrial, aquele pequeno terreiro hoje esmagado pelo anfiteatro exterior da Biblioteca Municipal de Fafe, o que demonstra mais uma vez que, como dizia o saudoso Eduardo Guerra Carneiro, "isto anda tudo ligado". Era do lado da frente da escola, actualmente jardim da Casa da Cultura, que a Mocidade montava formatura ao fim-de-semana, para depois arruar vila adiante, e eu atrás mas à paisana, de passo trocado, a fazer pouco, levado, levado não. "Sai daí, moço!", enxotavam-me, geralmente pelas orelhas e com um ou dois carolos à mistura, até parecia que eu estava ali, perigosíssimo, a estragar o regime...
Mas a tal Chama. Eu fui ver. Do meu Santo Velho ao Santo Novo, onde ficava a Escola Industrial, eram campos de milho e quintais com árvores de fruta, para além de uma ou duas ramadas de uvas de onde, na época, gaipelávamos a bom gaipelar até nos desfazermos em tremendas caganeiras, com licença de vosselências. Por aí ia. A meio do caminho havia uma nora desactivada, mais à frente uma mina já com motor, creio que do Sr. Mijão, e o que eu gostava de carregar no botão verde e pôr a geringonça a aguar, sufocando-a logo a seguir com o botão vermelho, para fugir dali a cem à hora, antes que quem de direito desse pelo basqueiro e corresse a sacudir-me o pó.

Queria também confessar o que se segue, porque a culpa desta memória não me larga: o casarão de lavrador anexo ao velho edifício onde funcionava a Escola Industrial tinha uma espécie de túnel, obra em arco, baixinho, esconso, escuro, por onde se passava de um lado para o outro, das traseiras para a frente ou vice-versa, e ali se faziam umas belas emboscadas para apalpar moças, infelizmente com mais vontade do que jeito, sobretudo pela parte que me tocava. Hoje chamam àquilo tudo Avenida das Forças Armadas e é muito bem feito.

A Chama foi uma merda. Os miúdos (mais velhos do que eu, é preciso que se note) representavam muito mal, os poeminhas eram lengalengas sonsas e patrioteiras, as cantigas desafinadas, e pela primeira vez na minha vida a começar assisti a uma branca, isso, uma branca: uma menina ou um menino tinha decorado qualquer coisa para dizer mas não se lembrava de quê - e, depois de várias tentativas a seco, encharcou definitivamente e desatou a chorar. Fiquei triste com ele (ou ela), mas não fiquei freguês. E não sei se alguém foi preso por causa daquele desastre para a Nação

(Especialistas em fivelas de cintos garantem que o S nas fivelas dos cintos da Mocidade Portuguesa não tinha nada a ver com Salazar, posto que quereria dizer, isso sim, "Servir no Sacrifício" ou somente "Servir". Ou Sabrina. Pois. E as SS eram a Segurança Social do Terceiro Reich, Hitler chamava-se assim para não se confundir com Hernâni e o Z não é de Zorro mas de Zeferino. A mim faz-me uma certa diferença: o Zorro sou eu, desde os livrinhos do Marreca, e Zeferino realmente não me dá jeito nenhum.)

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Sabença, senhor abade!

O pregador
O pregador subiu ao púlpito, e os seus passos seguros, pesados, degrau a degrau, ecoaram em "stereo" litúrgico na igreja confortavelmente vazia. Estranhamente vazia. Constava que ele era o melhor pregador da região...

O pregador não iria, porém, deixar os seus créditos por mãos alheias. Compenetrado mas decidido, agarrou nas três tachas que levava na ponta da língua, sacou do martelo que trazia à cintura, e em menos de um padre-nosso já tinha consertado a estante que o sacristão escangalhara sem querer nas arrumações da missa das sete.

No tempo em que havia padres em Portugal, Fafe tinha um senhor abade. Uma vez por semana, o nosso senhor abade descia a minha rua de terra e tílias para ir dizer missa na capela de ricos da Casa do Santo Velho, e a minha mãe mandava-me ir ter com ele para lhe pedir sabença. Eu interrompia os deveres da escola primária e ia a correr, todo contente. Fazia fila atrás dos outros miúdos todos e, quando chegava a minha vez, lá dizia, com o respeito que me fora ensinado, "Sabença, senhor abade!", beijando a mão branca que me era estendida. O senhor abade fazia-me uma pequena festa na cabeça, com a mão que tinha de vago, e respondia-me "Deus te abençoe, meu filho", que era o que eu queria ouvir. O senhor abade seguia o seu caminho e eu tornava a casa num sino. Acreditais que aquilo é das recordações mais felizes que guardo da minha infância? Podeis acreditar, porque é verdade!
O senhor abade cheirava bem, a tabaco e perfume. Andava sempre de batina e, no Inverno, usava uma capa negra revoante que parecia de filme de espadachins. Com o correr dos anos, o senhor abade subiu a senhor arcipreste, pendurou a sotaina e começou a sair à rua de fato preto e cabeção de gola alta, passou a cumprimentar-me de mãozada e fizeram-no senhor cónego, uma desfeita, no meu modesto ponto de vista. Cónego Leite de Araújo. Era um homem elegante, distinto, culto, bom e pobre. Dava. E tinha um sorriso. Era um ser humano certamente com defeitos e extraordinário. Eu admirava-o: ele era sobretudo um tipo decente. E foi meu amigo. Não sei se Fafe tem a contabilidade em dia com a sua memória.
No tempo em que havia padres em Portugal, o senhor abade de Fafe tinha consigo ao serviço da paróquia, para além do padre Adélio, que tocava órgão, ensaiava o orfeão e era professor de Música, o nosso senhor abade, dizia, contava com o apoio de dois jovens coadjutores, palavra que eu então não sabia pronunciar mas que me fazia rir, porque imaginava que, com um título assim, aqueles dois eram padres de acender e apagar. Tanto quanto sei agora, apagaram-se quase todos os que por lá passaram. Apagaram-se como padres, quer-se dizer. Tiveram muitos filhos, foram muito felizes e casaram, geralmente por esta ordem. Em todo o caso, a esses já eu não beijava a mão, mas pedia sabença. Tínhamos isso combinado. E eu ganhava o "Deus te abençoe" que me dava tanto jeito.

No tempo em que havia padres em Portugal, não havia Paula Bobone. Por isso o beija-mão era uma coisa empírica, efectiva e, haverá quem diga, pouco higiénica. Porque o beijo era mesmo beijo e não a mariquice do beijo de faz de conta, a "simulação de beijo" recomendada pela etiqueta da treta. Eu pedia sabença com beija-mão integral também ao meu avô e à minha avó da Bomba e ao meu avô e à minha avó de Basto, gente de trabalho que tinha as mãos como calhava quando eu lá esparramava o reverencial ósculo. Sim, seria talvez pouco higiénico, mas era verdadeiro e sentido. E ainda cá estou.
Durante toda a minha vida pedi sabença. Ao meu pai, à minha mãe, ao meu padrinho, à minha madrinha, aos meus tios e às minhas tias. Até às tias chegadas à família por casamento, que no princípio achavam aquilo um bocado estranho, mas que depois se habituaram e creio que gostam. Aos poucos fui desfazendo a corruptela, passei pela "sabênção" até chegar ao que peço há anos: "a sua bênção". É verdade, continuo a pedir a bênção à minha mãe e aos meus tios e tias, alguns apenas um pouco mais velhos do que eu. E não é só por respeito ou porque me ensinaram em pequenino. Eu acredito nas bênçãos. E por falar nisso: sabença, senhor abade!

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

A minha rua era um largo

Foto Hernâni Von Doellinger

A minha rua era um largo. Santo Velho, como lhe chamavam os antigos, ou apenas Santo, o Santo, como lhe chamávamos nós os íntimos, os da rua propriamente ditos, ali nados e criados, os que já sabíamos do britânico Roger Moore, que fazia de Simon Templar na televisão do Peludo, a preto e branco, isto antes de atravessar a rua e fazer de 007 no nosso Teatro-Cinema, já a cores. Evidentemente que, para os devidos e legais efeitos, a minha rua tinha nome de data: Largo 9 de Abril, curiosamente à moda do Porto, onde 9 de Abril costuma dizer-se Arca d'Água. Eu, que até sabia da Batalha de La Lys, nunca consegui perceber o que é que a guerra de catorze a dezoito tinha a ver tão especialmente com a minha rua, e pelos vistos os doutores da Câmara também não, uma vez que de repente, não sei precisar quando, resolveram mudar-lhe o nome para Rua dos Bombeiros Voluntários. E fará um pouco mais de sentido chamar-lhe assim, embora não tenha sido por isso: na minha rua havia realmente bombeiros em quase todas as portas, e nalgumas casas eram a família inteira.

O Santo Velho era Velho por causa do Santo Novo, uns campos de milho ao lado, onde se estabeleciam o Colégio dos ricos e a Escola Industrial dos remediados, que é hoje a Casa da Cultura. Os pobres, que aguentavam a pirâmide, iam trabalhar para a Fábrica se tivessem sorte. Em Fafe, a Fábrica assim com maiúscula, fábrica por antonomásia, era a Fábrica do Ferro, que por acaso era de fiação e tecidos.

A minha rua era um terreiro onde jogávamos ao espeto, ao pião e à bola, o que, neste último caso, arreliava sobremaneira a Milinha Parola, que ameaçava estraçalhar-nos o esférico à tesourada bastava que lhe fizéssemos alguma tangente aos vidros sempre limpos. A Milinha era Parola (ou Modista, como eu gostava mais) para se distinguir da Milinha Vaqueiro, quatro números acima. As Milinhas não se davam e a minha mãe é que intermediava. Porque o Santo, ou não se chamasse assim, era sobretudo um território de paz, de famílias, de família. Os miúdos éramos todos uma irmandade, os pais e principalmente as mães às vezes é que não, mas muito raramente. Na minha rua éramos vizinhos. Éramos comunidade.

A minha rua era um largo com vista para o mundo. O mundo era então cientificamente plano, a descair para o Picotalho e para a Granja e delimitado em cima pelos tascos do Paredes e do Zé Manco, com as Grilas de um lado e as Turicas do outro, e em baixo pela Quelha, pela Poça e pela casa brasonada com capela do Senhor Doutor, onde o Senhor Abade ia dizer missa com esmolas. Pela Páscoa, era na Casa do Santo Velho que se reuniam todas as cruzes no fim tardeiro do compasso, seguindo depois para a Igreja Nova, em galhofeira procissão de sinetas exaustas e descompassadas, nas últimas. Tínhamos o poeta Zé de Castro, duas tílias e um cilindro. Tínhamos velhotas excêntricas. Tínhamos bebedolas residentes e bêbados de visita. Tínhamos casas de lavradores, desfolhadas nocturnas e matança do porco. O Santo cheirava a eido, a estrume, a engaço, a vinho purinho e a pão. A minha rua cheirava a vida. Tínhamos o Maló cantando Frei Hermano da Câmara na esquina do velho Lermas, tínhamos o ceguinho das quartas-feiras e a Mocha e a Senhora Filomena com sardinhas, fanecas e chucharros, indesmentíveis chucharros.
Tínhamos as castanhas assadas da Maria Barraca e os tremoços na Marrequinha da Recta. Tínhamos o funileiro Barnabé que era músico mas não tocava tangos, um sapateiro, um carpinteiro que foi para França, duas ou três loucas mansas e o Professor Luís, que, esse sim, tocava na guitarra eléctrica o "Apache" dos Shadows muito melhor do que os próprios, e no entanto já era careca o bom Professor, o que me confundia um bocadinho. Eu plantava-me no meio da rua a ouvi-lo, deliciado. Eu era a terceira tília, cresciam-me raízes nos pés. Tínhamos carros de bois gemendo pelas manhãs e rebanhos de cabritos nas vésperas da Senhora de Antime e da morte. Tínhamos o Chiquinho Varandas, que uma ocasião andou à luta com o macaco do Homem Mais Forte do Mundo. Tínhamos padeira, azeiteiro e mendigos ao domicílio. Os mendigos chamavam-se pobrezinhos. Tínhamos tojo estalando ao sol no passeio. Corríamos à coiada os moços das outras ruas, queimávamos o Pai das Orelheiras pelo Entrudo, cantávamos as Janeiras e os Reis, celebrávamos o Dia dos Enganos, desajudávamos nas vindimas do Sr. José e do Sr. António e nas lavras do Tónio Quim Calçada, os três bombeiros e mestres de vida, íamos de borla ao cinema, que era praticamente nas traseiras da rua, festejávamos o Santo António de Lisboa e de Pádua, vejam lá o cosmopolitismo, encostando a cascata ao cilindro abandonado, se calhar por empreiteiro falido, do lado de lá das casas do Sr. Agostinho Cachada e do Sr. José Sacristão, gente também de primeira e bombeiros obviamente. A procissão da Senhora passava-nos à porta e tocava a sirene da Bomba. O nosso Santo António era de arromba. Botávamos altifalantes a sério, "Tango dos Barbudos", "Fado das Trincheiras", o "Je T'Aime Moi Non Plus", que me incomodava o andar e eu ainda não sabia porquê. Fogueteávamos a bom foguetear: eram foguetes de três-croas, foguetes envergonhados, quase peidos, se me dão licença, géu, géu, trás, trás, adeus e até ao próximo. E tínhamos girândolas e diabos-encaixados. Tudo comprado no Rates, que era mais ou menos no local onde esteve escondido o monumento à Justiça de Fafe, anos a fio, e que agora é uma praça como muito uso e sítio de peregrinação. Quase tudo comprado no Rates, devo corrigir-me, em abono da verdade. O Rates era o proprietário mas também o sítio, lojinha de uma porta só, minúscula, escura, esconsa, tipo vão de escada, e nós íamos em bando para nos aproveitarmos das distracções do homem, a antipatia enfiada numa larga bata de sarja cinzenta e com manguitos negros, e metíamos ao bolso tudo o que lá coubesse. Levávamos muitos bolsos e o mais certo é que o Senhor Rates até fosse boa pessoa.

Estávamos portanto no Santo Velho, quando a minha rua era um largo de terra e tílias e nem desconfiava que um dia havia de ser uma estrada com dois cruzamentos, semáforos e tudo. Hoje a nossa cascata seria multada por estacionamento proibido. E nós morremos ignorantes e breves, desmemoriados pedra a pedra.