![]() |
Desenho Nestinho |
Eu ia ver o Rali com o Fredinho Bastos. O Rali assim com merecida maiúscula inicial era um acontecimento emocionante pelo qual esperávamos ansiosamente durante um ano inteiro e que se dividia em três partes, como jogo e meio de futebol: a viagem até à Lagoa, sempre em modo de rali a partir de Medelo, a passagem do rali propriamente dito, que para nós os dois acabava logo após o sétimo ou oitavo carro, e a merenda que se seguia, nem que chovessem canivetes, pelo menos se os canivetes fossem pequenos e chovessem fechados. Eu, por mim, ficava ali a ver o resto dos concorrentes até ao fim, mas o Fredinho fazia questão de me ensinar a relatividade das coisas e a prioridade de umas sobre outras. "O rali já acabou, isto agora não é nada. Vamos mas é comer", dizia todos os anos, sem querer saber da minha opinião. E lá íamos atacar o farnel, preparado com todo o carinho pela sua mulher - uma Senhora a quem devo muito mais do que apenas bolinhos de bacalhau e panados, aliás de categoria. O Rali era o Rally de Portugal. E o Fredinho foi o meu professor de ralis.
Eram outros tempos. Fazíamos o caminho de regresso até ao carro pela estrada do troço de competição, encostando à berma quando se aproximava o roncar de mais um motor, mas (o Fredinho tinha razão) aquilo era só bazófia, muito roncar para tão pouco poder. Dava tempo para tudo. Até para cumprimentar pilotos e penduras da segunda metade da tabela, que estavam no largo do famoso Santuário de Nossa Senhora das Neves ainda à espera da ordem de saída. O Fredinho conhecia aquela malta toda. Ele, Alfredo Bastos, também tinha sido corredor de ralis.
Aqui que ninguém nos ouve. Fafe era uma terra de partidos, de facções, de rivalidades tolas, de antagonismos pascácios. Era uma mania, como uma doença, uns por uns e outros por outros, senão, nos tascos e nos cafés, ia-se discutir o quê? Havia que ateimar por alguma coisa. Tínhamos os dois grupos de futebol - o Sporting Clube de Fafe e o Futebol Clube de Fafe -, que já não são do meu tempo, por muito pouco, tínhamos e temos as duas bandas de música - Revelhe e Golães - e respectivos bandos de apaixonantes, tínhamos a Escola Industrial contra o Colégio, tínhamos o PS de Fafe pim e o PS de Fafe pam e o PS de Fafe pum e o PS de Fafe pim-pam-pum, tínhamos a Rua de Baixo e a Ponte de Ranha, que de vez em quando também faziam faísca e, noblesse oblige, andavam à coiada, até tínhamos o Foto Victor e o Foto Jóia e as suas clientelas rivais, portanto a coisa mais natural do mundo era que a população fafense também se dividisse em claques entre os dois fângios locais, o Fredinho e o Tangerina, como quem diz, o Motinha, embora só o Fredinho tenha feito carreira oficial, primeiro com o NSU creio que TTS e depois com o famoso Vauxhall Viva GT, marcando habitualmente presença em ralis, rampas e não me lembro se também na velocidade de Vila do Conde. Para além disso, o Fredinho dava também uma mão como motorista dos Bombeiros, e aí, meus amigos, de sirene ligada, então é que era sempre a abrir. Desse tempo e dessas lides, do que eu mais gostava era do rali chamado Rali à Lampreia, pronto, já disse, achava e acho um piadão ao nome, e ele ainda anda por aí.
Quanto ao Motinha, quer-se dizer, ao Tangerina, não fazia parte do meu círculo, dos lugares das minhas modestas frequências, embora também parasse no Peludo, ocasionalmente, e foi o mais próximo que lhe cheguei. Em rigor, confesso, eu é que não fazia parte dos seus conhecimentos, suponho até que ele nunca reparou em mim, nunca sequer soube da minha existência, e o prejuízo foi todo meu. O Tangerina, quer-se dizer, o Motinha, era um relâmpago ao volante. Por exemplo. Às vezes o Motinha estava no café em Fafe e sem mais nem menos dizia que ia tomar um café à Póvoa, que era a Póvoa de Varzim, que ia e já vinha, e realmente metia-se no carro, ia num instante à Póvoa, tomava o café, se calhar até com cheirinho, e passados, quê, nem dez minutos, já estava outra vez no café em Fafe agarrando a conversa como se nada fosse. Era extraordinário. Eu tinha muita pena do Tangerina não saber de mim como o Fredinho sabia. Boleias para a Póvoa, assim, ir num pé e vir no outro, a mil à hora e de braço de fora, duas ou três vezes por dia, sobretudo no Verão e praticamente sem sair de casa, quem mas dera naquela altura.
Portanto, o Fredinho sabia que, depois de Jean-Luc Thérier, Rafaello Pinto, Markku Alen, Hannu Mikkola (navegado por Jean Todt, o ex-chefe da Ferrari na F1 e ex-presidente da FIA), Ove Andersson, Sandro Munari, Bjorn Waldegaard, Jean Pierre Nicolas, Walter Röhrl ou Michèlle Mouton, pouco mais havia que realmente interessasse ver. As "bombas" já tinham passado: os Alpine Renault, os Fiat 124 Abarth, os belíssimos Lancia Stratos, os Fiat 131 Abarth, os Audi Quattro e até o Opel Ascona, que em Portugal, antes do 25 de Abril, se chamava Opel 1904 SR por causa da moral e dos bons costumes. Isto que não saia daqui, mas os carros que vinham a seguir a estes andavam menos em quatro rodas do que nós os dois, o Fredinho e eu, com uma perna às costas...
Nós íamos no Vauxhall verde e cinza que o Fredinho levara à Rampa da Penha, e eu fui lá a pé para ver, uns anos antes, com o Bergiga e de merendeiro, no reinado do estupendo Chevrolet Camaro de Ernesto Neves. O icónico Vauxhall, preparado pelo próprio Fredinho e pelo avinhadíssimo Valdemar Mecânico, ou "Paredes", ainda mantinha as barras de protecção e os assentos e volante de competição. Era de uma incomodidade dolorosa, porque andávamos sempre nas horas, e de lado, mas extremamente seguro. Diziam ao Fredinho que ele conduzia muito bem. Ele respondia: "Toda a gente conduz bem até bater. Eu também."
Naquele tempo, o Rali em Fafe era a Lagoa e era um mundo. Anos mais tarde foram inventadas as outras classificativas, as que agora chamam milhares de peregrinos dos quatro cantos do planeta e sobretudo de Espanha e dão nas televisões internacionais com saltos e tudo. O Fredinho, convém não esquecer, também teve a ver com isso.
Nós íamos no Vauxhall verde e cinza que o Fredinho levara à Rampa da Penha, e eu fui lá a pé para ver, uns anos antes, com o Bergiga e de merendeiro, no reinado do estupendo Chevrolet Camaro de Ernesto Neves. O icónico Vauxhall, preparado pelo próprio Fredinho e pelo avinhadíssimo Valdemar Mecânico, ou "Paredes", ainda mantinha as barras de protecção e os assentos e volante de competição. Era de uma incomodidade dolorosa, porque andávamos sempre nas horas, e de lado, mas extremamente seguro. Diziam ao Fredinho que ele conduzia muito bem. Ele respondia: "Toda a gente conduz bem até bater. Eu também."
Naquele tempo, o Rali em Fafe era a Lagoa e era um mundo. Anos mais tarde foram inventadas as outras classificativas, as que agora chamam milhares de peregrinos dos quatro cantos do planeta e sobretudo de Espanha e dão nas televisões internacionais com saltos e tudo. O Fredinho, convém não esquecer, também teve a ver com isso.
Sem comentários:
Enviar um comentário