terça-feira, 27 de maio de 2025

Corino de Andrade, o génio imperfeito

O princípio da sabedoria
O princípio da sabedoria é a letra esse. Essa é que é essa.

Uma vez saiu-me a sorte grande e pude falar com o Dr. Corino de Andrade. Mário Corino da Costa Andrade (1906-2005) foi médico, investigador e humanista, uma das figuras de proa da neurologia portuguesa do século XX. Um génio. Foi o cientista que descobriu a paramiloidose, ou doença dos pezinhos, identificada nos meios académicos e clínicos, a nível mundial, como doença de Andrade ou Corino-Andrade. E achava pouco. Fundou, com Nuno Grande, o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, da Universidade do Porto.
Corino de Andrade tinha então uns belíssimos 87 anos, em impecável estado de conservação e conversação. Recebeu-me em sua casa, depois de eu lhe ter andado a chagar a cabeça, via telefone, durante mais de quinze dias. Ele não queria nada com jornalistas, recusava-se a "aparecer", estava farto de "chatices". Incomodavam-no a paráfrase, a elaboração escusada, as repetições. "A gente deve reduzir ao mínimo o que tem para dizer, e dizer só as coisas fundamentais, ou que assim nos pareçam, e que possam ajuntar qualquer coisa ao já dito", explicou-me.
Contou-me: aliciaram-no para que escrevesse as suas memórias - recusou, era "uma chatice". A lisonja, a ele, batia-lhe com o nariz na porta. Pretenderam homenageá-lo. Disse-me: "Não quero homenagem nenhuma, Deus me livre! Eu tenho horror, uma espécie de alergia urticária contra as homenagens. É uma chatice. O excesso de homenagens em Portugal é um mau sintoma".
Entusiasmado pelo singularidade daquele encontro, não segurei em mim que não fizesse uma das perguntas mais estúpidas de toda a minha vida profissional: - Mas o senhor doutor deve estar orgulhoso por ter descoberto uma doença, por ver o seu nome ligado a essa doença, não é?...
"Não, meu caro senhor, não é", atalhou mansamente o Dr. Corino de Andrade, com a paciência dos sábios e a astúcia dos malandros, para imediatamente me martelar pelo chão abaixo, com toda a veemência: "Seria um orgulho muito grande ter o meu nome ligado a uma cura, isso é que era genial, mas tê-lo ligado a uma doença, essa é a maior das chatices"...
O Dr. Corino morreu seis dias depois de ter completado 99 anos. E era diferente, não era?

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