Banho ao cão
Mandaram-no dar banho ao cão, e ele deu. Aproveitou para limpar e lubrificar as estrias, o ferrolho e o gatilho.
Cleto, que não é alto, chegou, empoleirou-se no pequeno muro do Passeio, pigarreou e disse: - Recomendo que liguem [a tal app]. Não demora mais do que dois segundos e é "gratuíto"...
"Gratuíto", valha-me Deus, foi o que o historiador disse. "Gratuíto" com acento no "í"! Havia necessidade?...
Eu, passando casualmente, arrepiaram-se-me os pêlos das pernas perante semelhante, e não resisti. Virei-me para trás e gritei: - É gratuito! Gratuito! A palavra gratuito não tem acento!...
Dois casais do grupo ouviram-me. Ficaram a rir-se de mim, do velho barbudo em calções e de mochila, que seguiu em frente e certamente é tolinho. A minha mãe continua a ter razão: estou sempre a destoar.
Agora. Gratuito é uma palavra grave e não leva acento gráfico. A sílaba tónica é constituída pelo ditongo ui. A pronúncia da palavra gratuito é, portanto, "gratúito" e não "gratuíto". Assim como se diz "fortúito" e não "fortuíto", "circúito" e não "circuíto", "intúito" e não "intuíto".
O bom Joel Cleto, que eu estimo, não está sozinho na gafe, infelizmente. Telejornais e noticiários radiofónicos abundam e redundam no erro, neste e noutros da mesma raça. A palavra rubrica, por exemplo, nunca se escreve com acento, mas lê-se sempre como palavra grave. A sílaba tónica é a penúltima, "bri". Isto é, e passo a fazer o desenho, diz-se sempre "rubríca", como se tivesse acento no i, e nunca "rúbrica", como se tivesse acento no u. Quer signifique assunto específico ou título de capítulo determinado, quer se refira a assinatura abreviada. É sempre rubrica, rubrica, rubrica. Dizendo-se sempre "rubríca", "rubríca", "rubríca".
E, já agora, é período que se diz e não "periúdo". Período, sempre, em todos os múltiplos significados da palavra, inclusive os mais íntimos. E diz-se medíocre, tal qual se escreve, e não "mediúcre". É medíocre.
O mesmo se aplica à palavra escrita "proíbido", mas ao contrário. "Proíbido" não existe, é proibido.
Felizmente há instrução. "Instrução" é uma palavra antiga que significava saber ler e escrever e por aí acima ou adiante. Educação era outra coisa. "Instrução" era também o conjunto de aulas teóricas ou práticas para tirar a carta de condução ou para se aprender a ser bombeiro, em Fafe, mas não é isso que vem aqui ao caso. Havia quem tivesse mais ou menos instrução, havia quem não tivesse instrução nenhuma, era muita gente assim naquele Portugal ressesso, povo que nunca pôde ir à escola, os analfabetos, mais de 25 por cento da população, sobretudo mulheres, no tempo de Salazar, começavam a trabalhar aos sete/oito anos de idade, as meninas postas "a servir" pelos pais pobres e ignorantes, e assinavam de cruz. "O vinho é que induca, o fado é que instrói", dizia-se, mas os sábios do fascismo diziam muitas outras parvoíces do género e mandavam encaixilhar, como, por exemplo, "quem não é do Benfica não é bom chefe família".
A bitola da "instrução" era a Escola Primária, o Exame da Quarta e ponto final. Aprendia-se o essencial, incluindo os acentos nas palavras, os acentos faziam parte. Coisa simples, escrever e dizer as palavras como elas devem ser escritas e ditas. As novas gerações são hoje, felizmente, muito mais instruídas, tituladas, abundantes em licenciaturas, mestrados, doutoramentos e pós-doutoramentos, mas amiúde não sabem de acentos, desprezam as concordâncias, ensarilham-se nas vírgulas, confundem palavras, escrevem "exitou" quando a ideia era escrever hesitou, ainda ontem vi isso num jornal, e fartam-se de conjugar o verbo "tar".
Um bom banho de acento é o que lhes recomendo. Do fundo do coração. Se fosse herpes genital, hemorróidas, ardências, dores ou comichões nas partes, então recomendaria o outro, o velho banho de assento. De caras.
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