E se o Natal for mentira?
Era uma vez a notícia: "Idoso morreu sozinho em casa com hipotermia. Morreu Fulano de Tal, 68 anos, deficiente motor, residente em Pombal, Alfândega da Fé, que há vários meses vinha pedindo a institucionalização num lar de idosos. Perdeu a vida, na sexta-feira, após ter dado entrada no hospital em situação de hipotermia."
O Menino Jesus morreu. Tinha 84 anos e era o mês de Maio de 2012. O corpo do indivíduo do sexo masculino foi encontrado por acaso, rodeado de solidão e lixo, na casa onde resolvera fechar-se ninguém soube dizer-me há quanto tempo. As autoridades sanitárias, que não têm culpa do nome que lhes puseram nem do vocabulário e da gramática que lhes deram, suspeitam que o óbito terá ocorrido pelo menos cinco dias antes da macabra descoberta. Azar do caraças: dois dias a mais. Ao terceiro safou-se o Outro.
Estais a ver? Estais a ver aquele senhor esquisito e careca que vestia sempre um casaco de cabedal preto quase até aos pés, tipo Gestapo, Deus lhe perdoe, pasta na mão e calças zangadas com os sapatos como agora se usam, mas eram à boca-de-sino? O senhor que apanhava o autocarro que vai do Castelo do Queijo até à Baixa do Porto? Estais a ver? Exactamente: era esse o Menino Jesus, que também ninguém sabe dizer-me porque se chamava assim, só se fosse por ser um bocado extraordinário como o Outro.O Menino Jesus foi engenheiro e solteiro. Parecia-me uma figura de Fafe, um dos meus cromos antigos. Viveu sempre com a mãe, mas a mãe morreu antes dele e isso fez-lhe diferença. São tragédias a que raramente ligamos, porque, adultos como somos, achamos que as mães só fazem falta às criancinhas pequeninas, erro crasso. Quando passou a viver sozinho, durante mais de vinte anos, o Menino Jesus preferiu desviver até ao fim. Ali mesmo, em Nevogilde, num dos largos mais ruralmente nobres da cidade do Porto, zona de ricos.
Sou pobre, mas passava lá quase todos os dias, por deveres ou opções que não vêm aqui ao caso. Vi uma vez uma equipa da polícia a bater-lhe à porta. A PSP e a GNR andam a fazer um trabalho inestimável de identificação e encaminhamento dos idosos que moram sós e em risco. Acredito que têm salvo e melhorado muitas vidas e só peço que se lembrem de mim se chegar a minha vez. Mas sei que a porta do Menino Jesus nunca se abriu.
O Menino Jesus morreu no mês de Maio de 2012 e continua a morrer por aí. O Menino Jesus morreu sozinho. E não devia. Não por ser Menino Jesus e "rico", mas porque ninguém deve morrer sozinho, sem uma mão dada, uma palavra mansa ao ouvido, um céu com estrelas para olhar. Já basta o que basta: morrer, ainda que de velho, já deve ser fodido que chegue, regra geral. E confesso que não sei se o Menino Jesus tinha precisamente 84 anos, foi o que me constou. Os jornais do dia seguinte talvez tivessem dado a idade certa do homem, porque às vezes falam verdade nas notícias pequenas, breves. Ou então morreu apenas mais um octogenário, em contramão com a vida.
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