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terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

Classe pura

Foto enviada por Adelino Teixeira, ex-jogador da AD Fafe

Esta extraordinária fotografia foi-me enviada pelo ilustre fafense Adelino Teixeira. Já lhe agradeci. E a primeira coisa racional que me veio à cabeça, logo que me passou a emoção de a ter recebido, foi - "Olha-me estes tipos! Olha-me que categoria! Que classe!", assim pensei, sem me ter apercebido de que tinha falado alto, e a minha mulher acudiu aflita a ver o que era, não era nada, era só isto, e concordou logo comigo, que nem é a sua especialidade.
Este é um documento de 1966 e apresenta a comitiva da AD Fafe posando nas escadarias de Santa Luzia certamente antes de um jogo contra o Vianense que acabaríamos por perder por 5-0, mas esta última parte não interessa para nada. O Adelino, que consta no retrato, atrás do Gil Lobo e do Costa, quis que eu tivesse finalmente um registo do Nelinho, como era meu desejo antigo, fez-me a gentileza e o grande Nelinho cá está na primeira fila, com o Dr. Marques Mendes, o Barrinhos e o Zeca Barros.
No pólo oposto, lá em cima, ainda dá para reconhecer o menino Berto Dantas na galhofa com o João Americano, realmente um pândego que se ouvia a quilómetros, tanto que até foi contar liornas para o Riopele. E o Toneca. O Toneca, com quem tive a honra de acamaradar anos mais tarde numas belas saltadas à Pica para despacharmos numa fervurinha dois ou três quartilhos de tinto. O Toneca tomava conta da piscina e eu, moço de 21 ou 22, fazia a secretaria do Fafe. Fechávamos portas e lá íamos de motorizada com aqueles capacetes de plástico cómicos e irrelevantes enfiados na cabeça, o velho Toneca à frente e eu atrás, agarrado a ele. Era ir num pé e vir no outro. Mas isso já é outra história e por acaso dá-me saudades...
Tornemos à fotografia, que é o que aqui interessa. A fotografia e os jogadores de futebol. Que conjunto perfeito! Um grupo onde nem faltam o motorista da Mondinense nem, espero estar a ver bem, o bom do Silvino, todo tirone. Num tempo em que não havia "fatos oficiais", em que os jogadores corriam por gosto, num amadorismo quase perfeito, assim se apresentavam, asseados por conta própria, os formidáveis representantes da AD Fafe, da vila e do concelho de Fafe, em última instância, por esse país fora. Não me lembrava disto assim, juro. Reparem na magnífica planta destes jovens! Que aprumo! Que pinta! Todos eles, a equipa completa, sem excepção, mas permitam-me que volte ao Costa, porque sobressai. O Costa, que toda a vida foi um homem elegante, em todos os sentidos, atentem bem nele, é o primeiro da direita de quem vê na segunda fila, na mais perfeita pose de três quartos, façam o favor de notar a presença, apreciem a profundidade de olhar - parece um modelo de catálogo, um artista de cinema dos de agora. Tomaram muitos...

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Quero denunciar o meu pai

Foto Tarrenego!

Quero fazer uma denúncia: o meu pai era benfiquista e morreu quando eu tinha dez anos. Isso faz-se? Tem algum jeito? Não sei se a CMTV e a TVI vão pegar no caso, mas justificava-se. Porque desgraça tamanha é para dar na televisão. Há que tempos que eu sou mais velho do que o meu pai, e acho isso muito mal. E o meu pai ainda me faz falta, e tenho essa grande razão de queixa. E às vezes sinto-me órfão, como por exemplo hoje, e já não tenho idade para estas coisas. Na minha ideia, minhas senhoras e meus senhores, a Procuradoria-Geral da República, o SIS e a Polícia Judiciária também deviam andar da perna enquanto a têm. E o Chega tem obrigação de exigir e berrar e espernear e patear por uma comissão parlamentar de inquérito, dê por onde der, contra tudo e contra todos. Comissão Parlamentar de Inquérito à Morte do Pai Que Era Benfiquista e Morreu Quando o Filho Tinha Dez Anos. Gosto do nome, assim simples, parece-me bem.
O meu pai era portanto benfiquista e penso que só isso é mais do que suficiente para abrir um processo. Era benfiquista e, ao fim do dia de trabalho, levava-me a ver os treinos do Fafe no Campo da Granja, que também já não existe. O meu pai, apesar de breve, ensinou-me o futebol e outras coisas boas da vida, como, por exemplo, os pastéis. Uma vez levou-me às Festas Gualterianas a Guimarães, fomos a um tasco e eu pedi-lhe para comer feijão com tripas, que vi e nunca tinha provado, e gostei que eu sei lá. Se calhar por isso é que ainda hoje gosto tanto e faço tão bem. Outra vez trouxe-me de presente uma pistola Luger P08 de brincar, pesada e igualzinha às dos nazis dos filmes, e gostei que eu sei lá. Não sei o que me deu na cabeça, mas cresci e não gosto de armas. Continuo a gostar do meu pai.
Para além de benfiquista - repito, benfiquista -, o meu pai era também novo, malandro, bonito e bom, mas suponho que isso não interesse para os autos, e era excelente operário tecelão, músico, bombeiro e jogador de dominó. De bombeiro, levava-me ao cinema e ao circo à borliú, debaixo do braço, porque a pagantes seria impossível. E contava-se que no dominó, jogado na mesa do canto direito para quem entrava na sala das traseiras do café Peludo, o meu pai até escondia pedras na boca para enganar parceiros e ganhar mais uns tostões para casa. Eu ia chamá-lo, bem ensaiado pela minha mãe para que ele não ficasse malvisto perante os amigos. "A mãe manda dizer que a comida está pronta", era o que eu dizia, uma e só uma vez, baixinho, e ficava ao lado dele todo contente, à espera.
É preciso que se note: o meu pai, também conhecido como Lando Bomba ou Lando da Bomba, não era só dominó. Nas festas onde a Banda de Revelhe ia tocar, o meu pai, que tocava saxofone, tinha também sociedade com o homem da roleta de feira, artesanal e viciada. Nos intervalos dos concertos, fartava-se de ganhar canivetes, cintos, saca-rolhas, tesouras, baralhos de cartas e gaitas de beiços. O meu pai era o engodo. "Mais uma para o senhor músico. Está em dia de sorte, o raisparta o músico!", gritava o homem da roleta, feitos um com o outro, a chamar o povo. E povo caía, ontem como hoje. No final, o meu pai devolvia tudo a troco de umas coroas ou de mais uma navalha para oferecer.
Calhava-me, de vez em quando, levar o almoço do meu pai à fábrica. Estando sol, o meu pai e outros operários da Fábrica do Ferro comiam num terreno muito jeitoso para o efeito, a caminho do rio. Do Comporte, e por favor não confundir com Comporta. Sentávamo-nos numas pedras à sombra de pinheiros geralmente mansos e eu adorava estar ali com o meu pai aquela meia hora. Era como se fosse um piquenique, mas eu ainda não conhecia a palavra.
O meu pai dizia "Lá estara?". "Lá estara?" era cumprimento, saudação tirada de ouvido entre amigos e compinchas, da rua, da fábrica, dos bombeiros, da bola e da banda. "Lá estara?" queria dizer mais ou menos "Olá, tudo bem?" ou "Viva, como é que vai isso?". O meu pai fazia também questão (que se dizia "questã") de reinventar os nomes das pessoas, e por isso o nosso bom Berto Dantas era o Berteira, o monossilábico Augusto da esquina era o Gustaveira, e assim sucessivamente.
O meu pai gostava muito de fazer rir a minha mãe e, de malandrice, lia-lhe o jornal metendo as expressões "pelo cu acima" e "pelo cu abaixo" entre as palavras das notícias. Se fosse hoje, ficaria, por exemplo, assim: "A atriz pornográfica, pelo cu acima, Stormy Daniels, pelo cu abaixo, descreveu, pelo cu acima, o pénis, pelo cu abaixo, do presidente, pelo cu acima, dos Estados Unidos, pelo cu abaixo, Donald Trump, pelo cu acima, comparando-o, pelo cu abaixo, a um cogumelo, pelo cu acima." Eu e os meus irmãos, que arranjávamos sempre maneira de ouvirmos aquela comédia, escangalhávamo-nos a rir. A minha mãe repreendia o meu pai, tentava tirar-lhe o jornal das mãos, pareciam o Charlot mas a cores, e nós ainda nos ríamos mais. Éramos pobres, mas tínhamos o riso. E o riso é muito bom, é uma riqueza alternativa. Éramos então remediadamente felizes.
O meu pai foi para França, Belfort, resvés com a Suíça, e escrevia-nos cartas numa letra muito perfeitinha em papel quadriculado que nós líamos à nossa mãe. Cartas bonitas, cheias de "espero que ao receberes esta", "que eu bem graças a Deus", cartas contidas, subentendidas, cartas tristes. Nós também íamos para França, estávamos já de malas feitas, mas acabámos por não ir, porque entretanto o nosso pai morreu à última da hora, meia dúzia de dias antes da viagem programada, e a minha vida deu então esta volta que só vista. O meu pai morreu, acredito que de saudades, numa gelada véspera de Natal. Em França. Sozinho. No dia seguinte nasceu o Menino Jesus, disseram-me que de propósito para tomar conta na minha mãe, de mim e dos meus três irmãos. Que Deus me perdoe, mas o velhote, que nunca pôde ser, ter-nos-ia dado muito mais jeito...