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domingo, 15 de junho de 2025

Doentinhos, graças a Deus!

O Homem-Prazol
Os super-heróis. Fui apreciador, confesso. Em miúdo, à pala da televisão do Peludo, das borlas no Cinema ou dos livrinhos de cobóis levados à troca no quiosque do postigo por Baixo da Arcada. O homem-aranha, o homem-formiga, o homem elefante, o homem que é homem, o homem-rã, o homem de gelo, o homem de ferro, o homem de lata, o homem-bala, o homem-estátua, o homem invisível, o homem que veio de longe, o homem-sanduíche, o homem-crocodilo, o homem-tocha, o homem-máquina, o homem dos sete instrumentos e até o homem-bata, que quase existia. Apreciava, é verdade. Mas. Derivado a pecados velhos e por indicação médica, hoje em dia sou mais dado ao homem-prazol.

Há uma longa e honrosa tradição familiar no nosso lado Von Doellinger: somos umas pessoas muito doentes, que foi a única herança que o meu avô da Bomba nos deixou, aos de nossa casa. De resto, nem um tostão, nem um penico partido e colado com adesivo, tampouco uma corrente de ar. A minha mãe costuma dizer que, em questão de doenças, nós, os Bombas, "não damos vez uns aos outros". A minha mãe, é preciso que se note, é do lado Pereira, que lamentavelmente não me chegou ao nome, Pereira do meu avô de Basto, decilitrador pertinaz que, porém, nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria. Este meu querido avô, antigo mineiro e mestre pedreiro de primeira água, era, pelo contrário, um mãos-largas. Tudo o que tinha, dava. E se o que tinha à mão era o varapau de lódão, então era de esgaça-pessegueiro, sem olhar a quem. A mim, deu-me o meu primeiro relógio de pulso e, numa noite de Natal, ofereceu-me inesperadamente o seu próprio relógio de bolso, um magnífico e infalível Omega talvez centenário que me escangalhou em lágrimas e que há coisa de vinte anos passei ao meu filho, que bem o merece e não lhe liga nenhuma nem sequer lhe dá corda. Eu? Fiquei-me com as memórias. Do choro também.
Já agora. O meu rijo avô de Basto esteve doente uma única vez, se não me engano. E morreu. Com os pulmões vagarosamente estraçalhados pelos anos longínquos do trabalho nas minas e uma vida no aparelho da pedra.

Mas o lado Bomba. As doenças. Neste campo, como em mais um ou dois, ou três, sou a ovelha negra da família. Doentemente falando, sou uma treta, uma nódoa, um ignorante, uma vergonha para a classe dos doentes em geral e da minha família em particular. Não dou uma para a caixa. Às vezes até penso que devia ser expulso. Da classe e da família.
Os Bombas, por definição, são entusiásticos consumidores de medicamentos e canjas de galinha. Só estão bem quando estão doentes. Conhecem todas as doenças e os dois volumosos tomos da Farmacopeia Portuguesa por ordem alfabética, de cor e salteado, da frente para trás e de trás para a frente, índices e apêndices incluídos, automedicam-se e só precisavam da consulta e da assinatura do médico - "especialista!", sempre "especialista!", e "do Porto!" - para autenticar o internamento a troco de um bom quilinho da melhor vitela de Fafe, traço seleccionado e cortada pelas sábias mãos do Senhor Abreu do Talho Novo, embrulhado em imaculado papel costaneira e impecavelmente atado e laçada com fio norte de qualidade superior. Justificava-se a despesa dos unhas-de-fome: o internamento em hospital era a sorte grande, a realização de um sonho. Recorrente. Para que o povo soubesse que!
Os meus queridos avós da Bomba, ninguém me tira da ideia, não morreram da doença. Faleceram da mania. Deus os tenha.

terça-feira, 3 de junho de 2025

Diálogos fafenses 14

A tensão, muita a tensão!
- Temos tomado a nossa medicação? - pergunta-me ela.
- Temos, temos, senhora doutora - respondo eu, que sou uma pessoa educada e um exemplar tomador de medicações.
- Temos feito o nosso exerciciozinho diário?
- Todos os dias, senhora doutora.
- Temos moderado a nossa alimentação?
- Que remédio, senhora doutora. O dinheiro já só dá para cascas de batatas.
- Ora ainda bem. Vamos lá ver como que é temos a nossa tensão - diz-me ela.
- Vamos a isso, senhora doutora, nem é tarde nem é cedo - digo eu, tirando o casaco e arregaçando a manga da camisa.
Vimos a tensão.
- Temo-la um bocadinho alta - informa-me ela, sem esconder a preocupação.
- Um bocadinho pouco ou um bocadinho muito, senhora doutora? - pergunto eu, também já um bocadinho muito à rasca.
- Bastante, bastante. Vamos meter este comprimidozinho debaixo da língua e vamos deitar um bocadinho ali - diz-me ela.
- Vamos lá então, senhora doutora. A senhora doutora primeiro, que eu gosto de ficar por cima - digo eu, que, repito, sou uma pessoa educada e exemplar tomador de medicações.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

O Quinzinho da Farmácia

O grande problema do engolidor de espadas era a azia. Aliás, mudou de ofício, por indicação médica.

Antigamente, em Fafe, o Serviço Nacional de Saúde chamava-se Quinzinho da Farmácia e funcionava muito bem. O Quinzinho da Farmácia era evidentemente farmacêutico e sobremaneira autodidacta. No seu ofício de boticário, o Quinzinho era o melhor médico do mundo, o médico privativo e gratuito dos pobres da vila e arredores, o verdadeiro médico de família ainda os médicos de família nem sequer tinham sido inventados.
Em caso de fanico arrevesado ou maleita repentina, primeiro ia-se ao Quinzinho, que tratava toda a gente por tu e tinha uma voz arrastada e grossa por baixo de um bigode em forma de bigodinho e lá em cima, para o trabalho, uns óculos muito cómicos de tirar e pôr que me faziam rir. Ir ao Quinzinho era uma espécie de rastreio, uma primeira opinião, que até podia ser definitiva. O Quinzinho, que me apresentou à Pasta Medicinal Couto e mais do que uma vez salvou as minhas desgraçadas amígdalas de irem ao corte, observava cada caso minuciosamente e decidia. Se o assunto fosse da sua competência e não ultrapassasse os seus saberes, a questão ficava ali mesmo remediada sem outras alcavalas senão o preço geralmente módico dos medicamentos logo usados ou aviados para consumo doméstico, e apenas quando tal era necessário. Aos casos mais bicudos, que lhe chegavam frequentemente, às vezes em pressurosos carros de praça que se acotovelavam à porta da Farmácia Moura, impedindo o trânsito na Rua Montenegro, mesmo em frente aos Mercadinhos, o Quinzinho reencaminhava-os na hora para os médicos encartados ali das redondezas, não raramente sugerindo este ou aquele clínico, consoante as sintomatologias averiguadas, ou então despachava-os com urgência directamente para o hospital. E a engrenagem resultava. Eu estou em crer que o homem merecia um nobel! Da medicina, da química, da física, da economia, da literatura - o Quinzinho ensinava bulas a analfabetos -, da paz, da compaixão, não sei bem, mas um nobel de certeza, isso é que eu sei.
E sabeis que mais? Gosto de pensar que foi a partir do nosso Quinzinho que os ingleses inventaram, muitos anos mais tarde, em 1994, o Protocolo de Manchester. E essa é que é essa.