Como um camelo
Dizer-se que ele bebia como um camelo, era um abuso. Ele bebia realmente muito, mas todos os dias.
O problema do Lourenço da Arrábida era o equívoco. Ou o gozo. O inocente equívoco ou o gozo premeditado, ele ainda não chegara à verdadeira conclusão. O Lourenço tinha um tasco na Cantareira, paredes-meias com a ponte, e vai daí ficou-lhe o nome, que se propagou compreensivelmente ao estabelecimento - "Lourenço da Arrábida vinhos & petiscos", lá estava na tabuleta, como manda a sapatilha. Servia às quintas-feiras uma dobrada de razoável gabarito e preço em conta, segundo se constava. O certo é que as pessoas estavam sempre a perguntar-lhe pelo Omar Sharif, pelo Anthony Quinn, pelo Alec Guinness, ou se, de facto, ele viu Judas a cagar no deserto, como se dizia em Fafe no meu tempo do Cinema. Chamavam-no à televisão para comentar a situação no Médio Oriente, a mortandade em Gaza, as ameaças do Irão, o fundamentalismo no Afeganistão, os campeonatos da Arábia Saudita e do Catar, mas depois admiravam-se por ele estar vivo e, consequentemente, aparecer em pessoa, uma vez que, para todos os efeitos, morrera num acidente de mota. Perguntavam-lhe também, se, por falar nisso, a Guinness deve ser bebida ligeiramente fresca ou à temperatura ambiente, como há quem defenda, sem perceber nada do assunto. Outros, ainda, queriam saber se ele pintava o cabelo de louro, o que não fazia qualquer sentido, porque o Lourenço era completamente careca. Enfim, já se sabe como são as pessoas...
O bom do Lourenço, primeiro, ia aos arames, afinava, escamava-se, ficava piurso. Cego pelos nervos, num repente rapava da cimitarra e desatava a gritar "mouros!" e a matar a torto e a direito felizmente só da boca para fora. Quantas tragédias foram assim prometidas e adiadas, para enorme desconsolo da CMTV e assinalável prejuízo da indústria funerária da região. Mas com o tempo o nosso herói assentou, ganhou calo no cu, como se diz psicologicamente falando. Agora se o azucrinam com as tretas do costume, ó Lourenço isto, ó Lourenço aquilo, ele encolhe os ombros largos de desdém, pigarreia uma e outra vez, sacode duas valentes chibatadas no camelo de estimação e desaparece dali a galope, ondulando o manto branco por entre hordas descontroladas de turistas japoneses e outros infiéis que descem e sobem aos encontrões as ruas completamente escangalhadas da Baixa portuense.
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