InterferênciasEle tinha dois rádios muito jeitosos. Depois de um tombo na banheira, o rádio do braço esquerdo, coitadinho, agora só apanha a onda curta.
Eu adorava os altifalantes. Altifalantes, bandas de música e bombos, zés-pereiras, que eu achava que se chamavam assim por causa do Bô de Basto, que era Pereira e tocou caixa. Longe ou perto, os altifalantes chamavam por mim e eu ia. Eram sinal de futebol no Campo da Granja, eram Festa da Bomba, eram o Santo António na minha rua, eram a Senhora de Antime que vinha à vila numa tremenda e comovente procissão e, lá no meio da multidão sem medida, os altifalantes em cima da carripana do Baptista, fanhosos, deitavam o terço e cantavam o "Queremos Deus". E eu queria era dizer aquela frase. "E ao iniciarmos os nossos trabalhos, a todos desejamos uma muito boa tarde". O meu sonho era dizê-la quando fosse grande.
E disse. Vezes sem conta, anos mais tarde, já os altifalantes tinham sido promovidos a "instalações sonoras", embora ainda não fossem "sistema de som", e a bola rolava no nosso Estádio de campo pelado. Sim, o microfone agora era meu, eu era o rapaz da "constituição das equipas" e daqueles reclames muito jeitosos que terminavam todos em "... nesta simpática lo-ca-li-da-deee". E os anúncios pelos 16 de Maio e pelas Festas da Vila, pelo Natal, nos altifalantezinhos pendurados nas árvores em Cima da Arcada, sim, também era eu. Mas estavam gravados e a frase era-me impedida. E nem imaginam o que eu sofria quando andava com o Pimenta pelas aldeias de Fafe a apregoar os filmes do cinema ao ar livre, as cornetas atadas às três pancadas no tejadilho da velha catrel emprestada à Comissão de Auxílio, e eu, aos solavancos contra o tecto, "hoje, às 21h30, na bancada do Estádio Municipal, cinema, sensacional filme, "Dominique", com Debbie Reynolds e Ricardo Montalban, a verdadeira história da freira cantora que tocava viola a andava de lambreta, a não perder, hoje, às 21h30...", e vira o disco e toca o mesmo, mas sem poder dizer a frase. Sem conseguir dizer a frase. Não encaixava de maneira nenhuma, o raio da frase. Que seca! E os filmes também.
E disse. Vezes sem conta, anos mais tarde, já os altifalantes tinham sido promovidos a "instalações sonoras", embora ainda não fossem "sistema de som", e a bola rolava no nosso Estádio de campo pelado. Sim, o microfone agora era meu, eu era o rapaz da "constituição das equipas" e daqueles reclames muito jeitosos que terminavam todos em "... nesta simpática lo-ca-li-da-deee". E os anúncios pelos 16 de Maio e pelas Festas da Vila, pelo Natal, nos altifalantezinhos pendurados nas árvores em Cima da Arcada, sim, também era eu. Mas estavam gravados e a frase era-me impedida. E nem imaginam o que eu sofria quando andava com o Pimenta pelas aldeias de Fafe a apregoar os filmes do cinema ao ar livre, as cornetas atadas às três pancadas no tejadilho da velha catrel emprestada à Comissão de Auxílio, e eu, aos solavancos contra o tecto, "hoje, às 21h30, na bancada do Estádio Municipal, cinema, sensacional filme, "Dominique", com Debbie Reynolds e Ricardo Montalban, a verdadeira história da freira cantora que tocava viola a andava de lambreta, a não perder, hoje, às 21h30...", e vira o disco e toca o mesmo, mas sem poder dizer a frase. Sem conseguir dizer a frase. Não encaixava de maneira nenhuma, o raio da frase. Que seca! E os filmes também.
"E ao iniciarmos os nossos trabalhos, a todos desejamos uma muito boa tarde". Era a frase da minha infância, a minha frase-talismã, e andou sempre comigo. Até na profissão. Sempre me vi como o rapaz dos altifalantes, nem mais nem menos. Quando passei pela Informação da Rádio Comercial, no tempo em que a Comercial fazia parte do universo RDP, muitas vezes a disse, à frase-maravilha, como teste, na gravação de uma notícia ou apenas por brincadeira, de microfone fechado, antes de ir para o ar com o noticiário. "E ao iniciarmos os nossos trabalhos, a todos desejamos uma muito boa tarde".
Nunca chegou cá fora, e foi o que os senhores ouvintes perderam - como certamente estão agora a perceber. Em contrapartida, uma vez, no final de um bloco noticioso particularmente bem conseguido, saiu-nos - ao colega de cabina e a mim - um "Até os comemos!", de microfone involuntariamente aberto e destinatários certos, que ainda hoje é o nosso orgulho.
E, realmente, "Até os comemos!" também é uma bela frase e resulta muito bem em rádio, sobretudo se for numa rádio séria e sustentada pelos contribuintes. Mas, verdade seja dita, não tem comparação com a outra, a gloriosa, a dos altifalantes, pois não?
E, realmente, "Até os comemos!" também é uma bela frase e resulta muito bem em rádio, sobretudo se for numa rádio séria e sustentada pelos contribuintes. Mas, verdade seja dita, não tem comparação com a outra, a gloriosa, a dos altifalantes, pois não?
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