O estresse
"O estresse provoca o câncer!", não se cansava de repetir o clarividente defensor do acordo ortográfico.
Em Fafe, por exemplo, ninguém padecia de cancro. Ninguém morria de cancro. Porque em Fafe não existia a palavra cancro. Cancro. A palavra cancro não se dizia. O cancro era crime e castigo. Pecado e culpa. Vergonha, tabu. O cancro estava proibido. Dizia-se que Fulano ou Sicrana tinham - aqui baixando a voz ao nível do cicio, do sussurro, do segredo ao ouvido, do cochicho maledicente, da coscuvilhice beata - um pstdrss. Um pstdrss murmurado com sinal da cruz e tudo. Sim, estava no hospital, no Porto, com um pstdrss, muito malzinha ou malzinho, consoante fosse Sicrana ou Sicrano, Deus lhe perdoe. Muitos fafenses morreram, naquele tempo, com pstdrss, mas nunca ninguém morreu com cancro. E não havia Sicranes. E, aliás, nem se morria, falecia-se, que era uma situação muito mais cómoda, muito menos dolorosa, muito menos definitiva...
E mamas? Mamas, dizia-se. Havia mama e havia mamas em Fafe, embora não fosse geral, como já aqui informei com todo o rigor. Tanto quanto me lembro, predominava um certo convencimento de que as raparigas e mulheres de Fafe possuíam realmente mamas, porém nem todas queriam que isso se soubesse. Mas cancro e mamas ou mama é que nunca poderiam coincidir numa mesma frase: cancro da mama, vamos um supor, seria impossível, desde logo porque é obsceno, e a pornografia constava que era só em Guimarães, e, em todo o caso, como se viu, a palavra cancro não existia em Fafe. Pstdrss da mama, com todo o respeito, até admito que possa ter havia, mas eu nunca ouvi dizer, devo confessar.
E depois do cancro, a sida, a mesma hipocrisia, a mesma pequena hipocrisia, a mesma enorme ignorância. Ignorância e indizível maldade. Naquele tempo, o cancro esteve para a sida como João Baptista serviu para Jesus Cristo, mas não adiantou, ninguém acreditou, essa parte não vinha no catecismo de sacristia, rançoso e cruel, e bondade e compaixão eram apenas palavras da boca para fora. Como pstdrss ou, deixemo-nos de merdas, "uma coisa ruim", "uma doença má", "doença prolongada"...
Assim eram as coisas nos bons velhos tempos, e eu limito-me a contá-las tal qual as sei. Fafe está aqui como mero pretexto, mais nada. Fafe é hoje uma terra completamente diferente e absolutamente igual. Porque Fafe, sendo talvez às vezes uma terra um bocadinho hipócrita, é com certeza e sempre a melhor terra do mundo.
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