sábado, 12 de julho de 2025

Quando o Natal chegou a Fafe

É triste o fim do Natal
O fim do Natal é muito triste. Terminasse o Natal em m, Natam, terminasse o Natal em x, Natax, terminasse o Natal em y, Natay, terminasse o Natal em z, Nataz, terminasse até o Natal em k, Natak, e, quer-se dizer, o fim do Natal até teria alguma piada. Agora, terminar em l, Natal, um esquelético tracinho ao alto, um pauzinho desamparado armado em guarda-redes, é realmente uma tristeza muito grande, um fim que ninguém merece.

O primeiro Natal que eu conheci em pessoa chamava-se Higino. Natal Higino. Ou por outra, chamava-se e chama-se, felizmente sobretudo para ele, mas também para nós todos que tivemos a fortuna de o herdar sem mais nem menos. O nosso Natal veio directamente de África, no tempo em que Fafe era o fim do mundo. Para quem viesse de comboio, como o Natal veio, acabar em Fafe era obrigatório, não havia mais linha, batia-se com o nariz na parede que aguenta até hoje a velha Rua do Retiro. Muito tratante desaguou assim em Fafe, para mal dos nossos pecados, mas o Gino é vinho de outra pipa.
O Natal chegou a Fafe em 1975. Tinha 19 anos de idade. O Natal chegou, Natal Higino, instalou-se nos Bombeiros, na Bomba, e tornou-se "como se fosse da família", que, tomai bem sentido, é muito mais e melhor do que ser mesmo da família. Creio não estar a dizer grande asneira quando afirmo que, na nossa terra, o mais forte laço "familiar" que nos une acaba por ser esse mesmo, o de sermos uns para os outros como se fôssemos da família, meus ricos meninos. A família sanguínea, de árvore genealógica, não passa de um que remédio, é uma fatalidade, cai de madura. A esse respeito, no entanto, devo ressalvar que a minha tia Laura e o meu irmão Nelo saberiam falar do Gino com muito mais propriedade do que eu, mas o Nelo, por recato, sei que nunca o faria, e a querida tia deixou-nos infelizmente há cinco anos, mas conto um destes dias trazê-la outra vez aqui. A tia Laura foi quem encarrilou o Gino para a vida.
O Natal chegou a Fafe, Natal Higino, e, apesar de alardear algum jeito para a bola, com passagens registadas por Antime, Vinhós e Estorãos, pelo menos, foi como espectador, isto é, como aplaudidor, que ele mais se notabilizou. Batia umas palmas que eram realmente um assombre, como se dizia em fafês, assombre, palavra inventada pelos músicos antigos da Banda de Revelhe, ou talvez não, porque um destes dias ouvi-a no Alto Minho e acertadamente encaixada, para minha surpresa e grande alegria. Um assombre! Umas palmas que, quando bem batidas, ouviam-se da Cumieira a Santo Ouvídio e da Fábrica do Ferro à Ponte do Ranha. Como se fossem duas rijas tábuas de soalho saídas da máquina da serração e lançadas violentamente uma contra a outra e ligadas aos altifalantes do Baptista, um estrondo assim tremendo, uma coisa nunca ouvida! Lembrais-vos do PA-SSA A BO-LA! do tonitruante Aníbal Carriço? Pois estas palmas andariam por lá perto. Em todo o caso, um extraordinário melhoramento sonoro para Fafe, e sem despesa para a Câmara ou para o Governo. Para além disso, Natal Higino, que veio de África, soube fazer-se fafense excelentíssimo. Que é! Acrescentai-o à lista, se fazeis o favor.
O Natal, o nosso, trouxe um apenso de alegria e bondade a Fafe. O Higino é isso, um homem alegre, bom, generoso, honrado, companheiro. Para o Gino, toda a gente tinha a categoria de Você. Era o meu tempo de seminário, e o Gino chamava-me "Sacerdote". Suponho, aliás, que ainda hoje me chama "Sacerdote". Éramos, somos, amigos. A minha mulher sabe quem é o Gino, o que o Gino representa, conhece-o, que eu apresentei-lho, e isso é o topo no meu barómetro da amizade, prenda tão rara.
Eu não sei se Fafe já se apercebeu da sorte que teve por causa do comboio acabar obrigatoriamente ali e dele ter saído por acaso o Gino. Eu tenho noção. Ao longo da vida vim a conhecer alguns Natais, não muitos, porque o nome também não é assim tão popular, mas não me lembro de outro que me tenha verdadeiramente impressionado. E acho que sei porquê. Porque, como noutras encomendas da vida, não há Natal como o primeiro. E o meu chamava-se Higino.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Capoeirista, eu?...

A sério. Não sei se posso ser considerado um verdadeiro capoeirista. A minha mãe mandava-me realmente dar de comer às galinhas e ver se havia ovos, recomendando-me sempre todo o cuidado ao entrar e ao sair do galinheiro, mas será isso suficiente?
E que se segue? O Dia do Capoeirista está aí à porta, e eu, sinceramente, não sei se deva festejar...

Mas onde é que eu já me vi?

Ex-citações
Diz o roto ao nu: - Excitas-me, pá!...

Devo andar a ficar parecido com alguém. São cada vez mais as pessoas que olham para mim na rua, e eu não estava habituado a ser visto. Sempre achei que tinha cara de ninguém, tão incógnito e invisível fui durante toda a minha vida, e não me estou a queixar, constato apenas, porque senstato ainda podia ser pior, se não me engano. Por exemplo: chovesse a cântaros e corresse eu em coiro a subir e a descer desalmada e inutilmente as escadas da Arcada, no centríssimo de Fafe, intervalando cada subida e respectiva descida com três litúrgicas cabeçadas na porta principal do Club, e a verdade é que nem o Alfredo Sapateiro me ligava nem a polícia municipal tomava conta da ocorrência. Era como se eu não existisse, como se não passasse de uma corrente de ar, mesmo com o pirilau ao léu, e lá por o Sr. Alfredo ser meu parente e a polícia municipal ainda não ter sido inventada, isso também não é justificação. De acordo com as detalhadas notas da minha agenda de 1911, que agora mesmo compulso e sentornozelo, pratiquei esta patusca habilidade duas ou três vezes, talvez quatro ou cinco, os apontamentos estão um bocado esborratados, e só abandonei a modalidade após indicação médica. O médico da caixa sempre me chamou Sr. Bonifácio porque nunca tomou razoável sentido a quem eu sou realmente. Mas as pessoas não têm culpa. Eu próprio passei por mim um ror de vezes e não me conheci de lado nenhum, tenho essa impressão, portanto que não contem comigo para atirar a primeira pedra seja a quem for. Nem a primeira nem a última. Em todo o caso, atirarei, com prazer, a pedra do meio.
Que mais posso dizer? Eu era o homem invisível, e sentia-me muito confortável dessa maneira, mas de repente desapareci e aparentemente passei a ser uma pessoa normal, à vista de toda a gente, a ocupar espaço, o que me acabrunha sobremaneira. Quer-se dizer, apareci desaparecendo. É desagradável. E um bocado estranho.

Mas ao que interessa: agora, na rua, espreitam-me de cima a baixo. Faço imediatamente o teste da braguilha, porque a braguilha não engana, mas há muito que eu retirei a braguilha de cotio, só a uso ao fim-de-semana com hífenes, e eu, confesso, ao fim-de-semana com hífenes não saio. Ando por conseguinte intrigado, diria até assaz incomodado, mas estaria a mentir se o dissesse, e eu só minto às quintas-feiras dos anos bissextos, e por isso hoje não digo. Por outro lado, a palavra assaz é particularmente parva.
Resumindo e concluindo. Fui ao espelho ver se via o que se passava. Há coisa de dez minutos, fui ao espelho. E faço questão de informar que não me via ao espelho desde 1879, mais ou menos no dia do São Francisco de Regadas, ou talvez desde 1901, por alturas da Senhora das Neves da Lagoa, não tenho bem presente a efeméride. Fui ao espelho (sei que é a terceira vez que digo que fui ao espelho, e com esta já é a quarta) e aconteceu o seguinte: encontrei-me realmente com um tipo parecido comigo e saiu-me, fatal, aquela frase batida: já vi esta cara em algum lado. Deve ser isso.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Diálogos fafenses 23

Directo ao assunto
- Então o que é que o trouxe cá?...
- Vim de carro.

O povo quer é sangue

Acusado de violência doméstica, o político esclareceu que, sim senhor, aviou dois ou três bufardos à mãe dos filhos, três ou quatro vezes, mas sempre no carro, nunca em casa. Portanto, violência rodoviária, quando muito, e exige um pedido de desculpas.

Quando eu era puto e a ambulância acudia a um desastre com a sirene em altos berros, as pessoas de Fafe corriam logo para as escadas do Hospital. Ali se plantavam, esperavam, prognosticavam, diagnosticavam, e finalmente assistiam ao espectáculo. Ao vivo. Em casos muito graves e raros, assistiam também ao morto. As escadas do Hospital eram um palco de desgraças e caldeirão de fervilhantes emoções, passerelle de horrores, cenário de reality show sem que Portugal sequer soubesse o que isso viria a ser. Eram também muito jeitosas para tirar fotografias de grupo a casamentos, bombeiros em festa e bandas de música ou ranchos folclóricos, palavra de honra. Eram, portanto, o sítio mais in da nossa terra, com a Igreja Nova à mão direita e o Tribunal em frente, e só estorvavam naquilo em que deveriam melhor servir, que era carregar macas com feridos e doentes por aqueles degraus acima ou por aqueles degraus abaixo, às vezes ia tudo de cangalhas até ao chão, doentes e feridos incluídos, e era realmente uma risota. Por outro lado: em fafês, como eu lhe chamo, "escadas" também se dizia "caleiras".
Ora bem. A ambulância saía, a sirene avisava o povo, e o povo corria, corria urgentemente, como se fosse ele próprio tratar do assunto. Mas ia à festa. Era de graça. E essa parte parecia-me bastante estranha, porque, naquele tempo, em Fafe, os espectáculos eram todos a pagar, inclusive as visitas a familiares e amigos internados no Hospital. Como é que a Santa Casa da Misericórdia nunca se lembrou de cobrar bilhete à mironagem que se ajuntava cá fora à espera do circo, como se fosse mais um número das Festas da Vila? Bilhetes avulsos, pontuais, caso a caso, evento a evento, digamos assim, mas também, porque não, assinaturas de temporada, globais, para o ano inteiro, evidentemente com desconto e eventualmente com cadeira, para os adeptos mais ferrenhos. Era o que eu então pensava, na minha indesmentível inocência.
À falta da polícia municipal, que ainda não tinha sido inventada, o bom do Senhor Ferreira via-se à rasca para manter na ordem aquela gente toda e tola que fazia guerra por um lugar na primeira fila, sobretudo mulheres afogueadas e gordas, com os socos e o coração nas mãos ou enrodilhados no avental arregaçado. Faço notar que não foi por distracção que escrevi "a" ambulância. O artigo definido singular é aqui propositado e certo, porque à época, acreditai no que vos digo, os Bombeiros de Fafe tinham apenas uma ambulância, uma velha Skoda 1200 ou 1201 da década de 1950, suponho, uma viatura com carroçaria de aço, pesada, vermelha e carrancuda que regularmente ficava sem travões no meio das descidas mais ingremes e perigosas. Depois chegou a primeira Peugeot, naturalmente de França, como os bebés, e pegou a moda das ambulâncias brancas.
Pois, como dizia, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do Hospital, esperavam às vezes horas a fio e regalavam-se de braços decepados e orelhas arrancadas e narizes esborrachados e fémures a céu aberto e pés desfeitos e tripas de fora e miolos ao léu e espinhelas partidas e... - Foi tiro?, Foi facada?, Foi sachola?, Foi o home?, Foi a amante? Foi desastre?, Foi o vinho? Ai que desgraça tão grande! E muitos Uis! e muitos Ais! e muitos Coitadinhos! e muitos Valha-nos Deus! E deixavam-se ficar, no relambório, a dar água sem caneco, num altruísmo tremendo, esquecendo-se da própria vida para falar da vida dos outros, e a benzerem-se na direcção da igreja, que estava ali mesmo a pedi-las, mas sem perder pitada. Vampiros de olhos arregalados, dentes afiados e línguas compridas, pelo menos até aos cotovelos, e os braços cruzados segurando as mamas, iam ao sangue, queriam molhanga, muita, vermelha vermelha como a ambulância que chegava enfim, esbaforida e ganinte. Era um fartote, uma comoção, talvez até desmaios. E nas cozinhas abandonadas e sombrias das casas pobres da vila antiga, os tachos esturricando ao lume pachorrento, azul e resmungão da máquina a petróleo no mínimo...

Agora as pessoas não precisam de ir a correr para as escadas do Hospital. Sentam-se em casa, ligam a televisão e vêem a CMTV. O que se perdeu em calor humano, convívio, ganha-se em Tânia Laranjo.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Diálogos fafenses 22

O peso da poesia
- Era dois poemas de trinta gramas, se faz favor!
- Os dois?
- Cada.
- Sessenta gramas de poesia, quer dizer...
- Mas em doses separadas.

A vida era uma fotonovela

Pimenta na língua 
Cuidado com a comida picante! Isto é, comida para maiores de 18 anos, servida apenas em restaurantes com bolinha vermelha, de preferência à ceia, após a meia-noite.

Recuemos. À década de oitenta do século passado e ao cimo da mui portuense Rua de 31 de Janeiro, onde havia uma casa de jogos de máquinas de flippers e afins que tinha uma cave com um altifalante fanhoso que, de uns quantos em quantos minutos, gritava cá para fora a curiosa frase "Mudança de modelo". Lá em baixo parece que havia umas raparigas muito jeitosas e nuas a fazerem não sei o quê e umas cabinas individuais e sebentas com ranhura para a clientela meter a moeda como nas velhas jukeboxes de feira e espreitar por um vidro e fazer também não sei o quê. Sei muito pouco do assunto porque, palavra de honra, nunca lá pus os pés. Ou se calhar pus, lembro-me vagamente da situação, não juraria em tribunal, mas isso também não vem ao caso.

Informei-me. "Mudança de modelo", logo a seguir ao ding-dong de uma campainha de aeroporto, queria dizer, por exemplo, que a morena mamuda passava a pasta à loura pernalta e ia para os bastidores ler a Corín Tellado, e assim sucessivamente e vice-versa, mas decerto queria dizer também que os clientes tinham de fechar a braguilha e limpar as mãos o mais rapidamente possível e dar a vez a outros, que eram mais que as mães, sobretudo no intervalo de almoço. O speaker de serviço dizia "Mudaaaança de modeloooo" com um garbo só comparável ao do mestre-de-cerimónias do Circo Merito quando anunciava na Feira Velha de Fafe a sensacional "Maribelaaaa no seu rrrrrola-rolaaaa". Eu gostava: "Mudaaaança de modeloooo"! Parava em frente para ouvir, uma e outra vez, até à hora de voltar ao trabalho. E ria-me. Quase quarenta anos depois, leio e ouço a moderna lengalenga da "mudança de paradigma". "Mudança de paradigma" acima, "mudança de paradigma" abaixo. "Mudança de paradigma" para aqui, "mudança de paradigma" para ali. Para quê? Para digma! E também me faz rir, confesso, mas não me arrebita. Falta-lhe sustância, ao paradigma...

Já agora, sobre Corín Tellado, espanhola que se chamava Maria del Socorro Tellado Lopez e morreu no dia 11 de Abril de 2009, aos 82 anos. Escritora, autora mais lida na língua de Cervantes logo atrás do próprio, publicou mais de quatro mil romances cor-de-rosa ao longo de uma carreira de quase 56 anos, vendendo acima de 400 milhões de exemplares, o que lhe valeu a entrada no Guiness em 1994. Em Portugal, e pelo menos em Fafe, antes do 25 de Abril, a senhora Corín Tellado ficou famosa pela melosíssima revista de fotonovelas a que emprestava o nome. As revistas eram disputadas, partilhadas, emprestadas, trocadas, rompiam-se de mão em mão, iam de casa em casa como a Sagrada Família mas com outros interesses. A televisão era a RTP e o mais parecido com uma telenovela era o TV Rural do engenheiro Sousa Veloso (1926-2014), que eu conheci muito bem. Ambos frequentávamos o velho café Peludo. Ele dentro do televisor pendurado logo à entrada, do lado esquerdo, por cima dos bolos-reis previamente encomendados pelos clientes, com peso certo, e comprados em Guimarães para o Natal, e eu sentado no canto contrário, atento à TV e aos bolos, que também só conhecia de vista, ouvindo uma e desejando os outros, nem que fosse só um bocadinho, uma tona. No final, o Senhor Engenheiro dizia, num largo sorriso, já em cima da música toda folclórica: "Despeço-me com amizade, até ao próximo programa". E era para mim. Noutras ondas, o "Simplesmente Maria", folhetim radiofónico, chegou à Renascença apenas em Março de 1973, e o país desfez-se em lágrimas, como se houvera inundações. Já disse: era assim em Portugal e pelo menos em Fafe. A parte de Fafe do rés-do-chão, da esfregona e da costura. A parte de Fafe de que sou. Era triste mas era isto: a vida era uma fotonovela.
E depois chegou a Gina.

terça-feira, 8 de julho de 2025

Ele e os cigarros

Ele não fumava os cigarros. Ele comi-os, três a quatro maços por dia, um desastre para a saúde! Eram de chocolate e vinham embrulhados em pratinhas de cores variadas e apetitosas.

Sobre Artur Jorge, duas ou três "coisas bonitas"

O carregador de piano
Era uma equipa tecnicamente evoluída, formada por jogadores habilidosos e repentistas, mágicos, predestinados, futebolistas de eleição. Mas precisava evidentemente de alguém que vestisse o fato-macaco, de um carregador de piano. Aproveitando a janela de Inverno do mercado de transferências, foi contratado o Sr. Saraiva, precário da Casa da Música que costumava alombar nas deslocações da Orquestra Sinfónica do Porto.

Antigamente não havia Liga Revelação nem equipas B, tínhamos, era, às quartas-feiras à tarde, o campeonato de reservas. Nas reservas jogavam os mais fraquinhos da equipa principal, que raramente entravam em campo ao domingo, duvidosas aquisições à experiência, ex-lesionados em fase final de recuperação e jovens promessas recrutadas aos juniores para fazerem número. Não existia treinador das reservas. A equipa era, por assim dizer, orientada pelo treinador do primeiro time, que geralmente delegava num dos seus adjuntos. Lembro-me vagamente de jogos de reservas em Fafe, ainda no tempo do Campo da Granja, mas sobretudo do FC Porto, quase duas décadas mais tarde, no campo de treinos n.º 1 do Estádio das Antas, entalado entre as costas da "Maratona" e a zona de pavilhões e piscina, onde passei tardadas a ensinar portismo ao meu filho recém-nascido. Muitos dos grandes craques azuis e brancos, futuras estrelas mundiais, vi-os ali em início de carreira, ou, em todo o caso, antes da afirmação definitiva, medindo forças desiguais com as poderosíssimas equipas do Senhora da Hora, do Candal, do Infesta ou, vá lá, do Salgueiros, do Leixões ou do Boavista.
Uma vez, Artur Jorge (1946-2024) era treinador do FC Porto e foi para o banco num desses jogos de reservas. A certa altura do encontro, resolveu fazer uma substituição e deu ordens a um jogador para aquecer. O jogador, e nem lhe recordo o nome, tirou o blusão para vestir a camisola, colocou as caneleiras com adesivo e tudo, puxou as meias para os joelhos, calçou-se e estava a começar a atar os cordões das chuteiras quando o treinador olhou para trás, estendeu o dedo apontando dali para fora e mandou-o tomar banho, isto é, recolher aos balneários, assim a frio. Alteração táctica na substituição? Nada disso. Apenas castigo. Artur Jorge, que não raras vezes fazia substituições logo nos primeiros minutos de jogo, se pressentia alguém em dia não ou a dormir na forma, queria os seus homens sempre prontos para o que desse e viesse. Preparados e alerta, permanentemente disponíveis para o imediatamente. Mesmo os que ficavam no banco, que era local de trabalho. Isso. O banco de suplentes, com Artur Jorge, não era beira de piscina.

Artur Jorge era homem de poucas falas. Distante, dizia-se. Gostava de "coisas bonitas", isso sabia-se. Exigente, duro, mantinha realmente distância em relação aos seus jogadores, que fazia questão de só "conhecer" no emprego, isto é, no balneário e no campo. De resto, nada de convívio, nada de confianças. Cá fora, na vida real, até os cumprimentos só se fossem por telepatia. Era assim nas Antas, onde os vi chegar e sair, treinador e jogadores, tantas e tantas vezes, passando um pelos outros como se nem os visse. Tinha sido assim na sua época de Vitória de Guimarães, como adjunto ou treinador de campo de José Maria Pedroto (1928-1985), por volta de 1980, se não estou em erro. O Vitória vinha regulamente treinar a Fafe, às vezes, na preparação de jogos nocturnos, vinha ao final do dia, daqueles dias curtos e agrestes do antigo Inverno minhoto, acendia-se a iluminação que havia, fraquinha mas de boa vontade, e o Estádio ficava à média-luz, como se fosse casa de fado. Eu por acaso até gostava. Artur Jorge no meio do pelado, voz potente e rara, explicando a jogada, corrigindo posições, dando nas orelhas aos jogadores enregelados, e mestre Pedroto seguindo o treino da bancada, de pé, bem agasalhado, à civil, contando piadas finas para a corte babada à sua volta, palavra de honra. O deus Pedroto. Chamavam-lhe então manager. E eu achava que deviam ir chamar manager a outro...

Conta-se. Naquele tempo, os jogadores e treinadores de futebol eram pessoas livres, cidadãos inteiros, e falavam com os jornalistas sem pedir licença ao dono. Artur Jorge era então treinador do FC Porto, e um famoso jornalista pediu-lhe uma entrevista nas vésperas e a propósito de um grande jogo qualquer. Homem inteligente, culto, reflexivo, avesso ao circo da banalidade e com mais que fazer na vida, poeta, filósofo, melómano e coleccionador de arte, Artur Jorge terá dito ao jornalista para escrever o costume, aquilo que os treinadores de futebol costumam dizer nestas circunstâncias, que é sempre a mesma coisa e nada. A entrevista não se fez, mas saiu. E saiu muito bem. Ou por outra. Aproveitando-se do facto de tertuliar bissextamente com Artur Jorge, o jornalista famoso abusou da confiança do então treinador do FC Porto, não lhe pediu a entrevista, não lhe fez a entrevista, não o avisou sequer da entrevista, mas a entrevista saiu. E Artur Jorge não gostou. Conta-se.
Eu conheci Artur Jorge, de vista, do lado do admirador, e conheci muito bem o famoso jornalista, do lado de dentro do ofício. A respeito da tal "entrevista", sei, das duas, qual é a versão verdadeira, sei como se passaram realmente as coisas. Mas o que é que isso interessa agora?

segunda-feira, 7 de julho de 2025

Eu e os cães, desequivocando

Desfazendo um equívoco que por aí vai, eu e os cães. O cães gostam de mim, eu nunca disse o contrário. Mas gostam de mim como eu gosto de leitão ou cabrito. O que realmente me assusta, embora me pareça justo.

O quinto dos infernos

O futuro está no teletrabalho
Tem sido um sucesso o apoio domiciliário em teletrabalho a idosos sozinhos e acamados. O Governo pretende alargar a experiência aos transportes públicos e à construção civil.

Moro num terceiro andar. Direito. E, como bom fafense exilado, dou-me muito bem com todos os vizinhos do prédio, que agora se chamam condóminos, isto é, não me dou de todo com vizinho nenhum, que é a melhor maneira de nos darmos todos bem. O meu vizinho do quinto entrou em obras, ou por outra, resolveu deitar a casa abaixo da porta para dentro e fazer lá dentro uma casa nova, isso é lá com ele. Paredes, soalhos, tectos, canalizações, instalações eléctricas, louças e móveis de casa de banho e cozinha, tudo destruído sem dó nem piedade, deitado abaixo à força de camartelos pneumáticos, sonoras rebarbadoras, explosões de dinamite, buldózeres, bolas de aço e outra maquinaria pesada de demolição, que eu bem a ouço lá em cima em manobras, um chinfrim medonho, um basqueiro insuportável, incessante, eu e a minha mulher já só falamos um com o outro por SMS para nos ouvirmos, é pó por todos os lados, sufocante e cego, a porta da rua sempre escancarada, de manhã à noite, os elevadores impraticáveis, o chão um nojo, é o inferno, o fim do mundo mesmo em cima das nossas cabeças em água, ouradas, doridas, cansadas, apenas com os vizinhos do quarto-direito de permeio, esses, coitados, completamente à beira da loucura e já em tribunal, com a casa a tremer-lhes como varas verdes e episódios bidiários de histeria conjugal.
A duração da obra está estimada em quatro meses, pelos melhores cálculos, a fazer fé no aviso gentilmente afixado lá em baixo, no placar de cortiça do condomínio. E não me posso queixar, ou ainda me mandam para a minha terra. De acordo com a missiva do vizinho do quinto, a empreitada "decorre tal como permite o quadro legal em vigor", dando "cumprimento ao estipulado nos n.ºs 1 e 2 do art.º 16.º do Regulamento Geral do Ruído, aprovado pelo decreto-lei n.º 9/2007 de 17 de Janeiro". Ainda bem. Assim, estou muito mais descansado...

domingo, 6 de julho de 2025

O sonho comanda a vida?

Sonho. Bolinho muito fofo, de farinha e ovos, frito e depois geralmente passado por calda de açúcar ou polvilhado com açúcar e canela. Só isto. Agora: onde raio é que o poeta foi buscar a ideia de que "o sonho comanda a vida"? Se ainda fosse o pão-de-ló de Fornelos...

Adeus, confrade, até outro dia

A bela foda
Iam receber visitas e ela não sabia o que lhes havia de dar. "E se lhes déssemos uma boa foda?", sugeriu ele. Eram, com efeito, uma família tradicional, monçanenses dos quatro costados.

E agora, o que vai ser das nossas confrarias? Agora, quero dizer, agora que está tão próximo o dia infame da vitória de todos os veganismos e vegetarianismos, o que vai ser, repito, das nossas queridas confrarias. E penso muito especialmente, com o coração pesado e não sem um amargo de boca, na Confraria Gastronómica da Região de Lafões, na Confraria da Carne Barrosã, na Confraria Gastronómica da Raça Arouquesa, na Confraria Gastronómica do Toiro Bravo, na Confraria da Foda de Pias-Monção ou, puxando a brasa à nossa sardinha, na Confraria da Vitela Assada à Moda de Fafe, honradas e orgulhosas confrarias que destaco ao acaso entre as cento e vinte e três mil novecentas e oitenta e sete confrarias gastronómicas de Portugal. E agora as confrarias? Agora que o consumo de carne está à beira de ser crime, o que vai ser daquelas fatiotas todas janotas? E dos pins? E das fitas? E das medalhas? E dos chapéus tão pândegos? E dos sarrafos? E das tainadas quinzenais? E das passeatas? E dos desfiles? E daquele sentimento de casta superior e há uns que são sempre os mesmos? E das viagenzinhas eventualmente de geminação, de preferência ao estrangeiro, sempre que possível ao Brasil, o que vai ser, agora?
Teremos sempre, graças a Deus, a Confraria de Nossa Senhora das Neves e a Confraria da Folha de Alface Repolhuda. Mas terão estes dois oásis, digamos confreiráticos, condições para acolher, pelo menos com o conforto devido a uma galinha pedrês, os milhões de confrades e confreiras assim de repente despejados dos seus deveres e haveres por esse país fora, como se fossem bandidos, refugiados, imigrantes ilegais praticamente?
Estou bastante preocupado.

A respeito do título. A lengalenga dos antigos em Fafe lengalengava-se assim como se segue, fazendo o sinal da cruz, Deus me perdoe: "Pelo sinal, bico real, comi toucinho no teu quintal, se mais me desses, mais eu comia, adeus, compadre, até outro dia."

sábado, 5 de julho de 2025

Comer com os olhos

Eram dois homens, já na segunda metade da idade. Um deles fica à porta, enquanto o outro entra no restaurante. O proprietário, que o recebe no hall, pergunta-lhe "É para almoçar?" e o homem responde "É para dar uma vista de olhos". O dono do estabelecimento, embora lhe apeteça, não disparata: "Faça favor. Isto não é nenhum museu, portanto não paga para ver."
Um ou dois minutos depois, o homem sai. Olha para o amigo que o espera, não falam, e desandam dali no mesmo passo descomprometido com que tinham chegado. Deixo de os ver. Fico a imaginar que vão a outro restaurante, fazem a mesma cena mas trocam de papéis. Assim, à vez, vão comendo com os olhos e já ficam almoçados. Melhor do que ir mastigar o papo seco de nariz amarrotado contra a montra do talho, como vi uma vez em Fafe.
É. Comer com a boca, qualquer dia, vai ser só uma força de expressão.

Provavelmente a melhor vitela assada mundo

Assim e assado
- Há dias assim.
- E dias assado?
- Assado? Foi tempo... 

Eu às vezes temo pelo futuro da nossa vitela assada. A existência da confraria respectiva não me sossega e por acaso até já me preocupou. Isto é, não sei se a nossa vitela assada à moda de Fafe está realmente em boas mãos. O circo chegou à cozinha. Lembro-me das nossas Feiras Francas de 2013 e de uma programação toda modernaça que até meteu workshopping, showcasing e showcooking, e esta parte afligiu-me desde logo. Anunciava-se "a tradição e a inovação de mãos dadas", prometia-se a "elaboração de pratos tradicionais recriando com inovação", e eu, à rasca, só pedia aos Céus: - Com a nossa vitela, não! Senhor, fazei com que eles deixem estar tudo como está, que está tão bem, graças a Deus! São Lourenço, padroeiro dos cozinheiros, segundo uns, rogai por nós! São Benedito, padroeiro dos cozinheiros, segundo outros, rogai por nós! Minha rica Senhora de Antime, livrai-nos dos estragadores e salvai a nossa vitela assada, amém!
É. Eu sou muito religioso, embora amiúde não pareça, e levo a comida muito a sério, mas isso já se sabe. A honesta vitela assada à moda de Fafe até poderá ter os dias contados, porque os comedores de rúcula e outros tofus ainda nos vão proibir o consumo de carne, mas, enquanto não é crime, eu faço questão que a deixem em paz. Uma simples rodela de laranja a enfeitar, ainda que com a melhor das intenções, pode deitar tudo a perder.
E por isso digo e redigo: não mexam na nossa vitela assada! A vitela assada à moda de Fafe é o que é. É à moda mas não há modas. É, sem tirar nem pôr. Não tem variações, não admite inovações, dispensa recriações ou até interpretações. É vitela assada à moda de Fafe. Tal e qual como a recebemos dos nossos avós e dos avós dos nossos avós. Assim.

Sei muito bem o que fizeram à lampreia. A lampreia é, para mim, o supra-sumo da melhor gastronomia alto-minhota. Uma gastronomia apurada, robusta, variada, generosa, com personalidade, como eu gosto e como é, no geral, toda a honesta cozinha tradicional portuguesa. Há o arroz de lampreia, há a lampreia à bordalesa. E até admito mais duas ou três bondosas variantes (como a lampreia fumada, a lampreia recheada ou a lampreia assada), mas que, não desmerecendo, já não me são a mesma coisa. Eu fico-me pela arrozada a fugir do prato a todo o vapor e pela bordalesa intensa e substancial - embora, como a maioria dos portugueses, já só coma lampreia praticamente de memória.
No Alto Minho, a lampreia é justamente considerada "um prato de excelência" e de tradição. Sim, de tradição. "Para confeccionar um produto de qualidade com paixão e arte, nada melhor que as mãos de afamadas cozinheiras que receberam os testemunhos e segredos de gerações passadas, com raízes na ancestral tradição culinária do Vale do Minho", lia-se, uma vez, num opúsculo que chamava visitantes e promovia o consumo do apreciado ciclóstomo nos restaurantes da região.
E até aqui tudo bem. Só que, na capa do tal prospecto, a lampreia era apresentada num empratamento aguado e triste, desenxabido, somítico, obra certamente de um daqueles famosos jovens chefs da televisão que não cozinham nada mas têm muito jeito para as artes plásticas. Resultou assim uma coisa de snack-bar cantineiro, algures entre Nova Iorque e Bogotá, sem passar por Bouças, espécie de nouvelle cuisine pretensiosa e escusada, que envergonha a velha lampreia e a tradição gastronómica alto-minhota. Uma desgraça.
Assusta-me que venha a passar-se o mesmo com a nossa vitela. Quer-se dizer: temos provavelmente a melhor vitela assada do mundo, vamos agora inventar o quê?...

sexta-feira, 4 de julho de 2025

A Esquiça nos anais da história

Efeméride. Quer dizer: acontecimento ou facto importante que ocorreu em determinada data. Ou por outra: celebração de um acontecimento ou de uma data importante. A agência de notícias Lusa, a maior em língua portuguesa, disponibiliza diariamente uma lista dos "principais acontecimentos registados", desde sempre, no dia em questão, em Portugal e no mundo inteiro. Acontecimentos tipo a descoberta da pólvora, a invenção da roda, o início da I Guerra Mundial, a chegada do homem à Lua, o 25 de Abril ou a queda do Muro de Berlim. Os jornais replicam mais ou menos esta lista, consoante o espaço disponível e a respectiva orientação editorial.
Ora bem. Andava eu, certa vez, à procura das "Efemérides Lusa" para o dia 2 de Abril, quando, por engano na busca, coisas da idade, dou de caras, no jornal Sol, com as "Efemérides de 2 de Março". E para esse dia, no ano de 2017, o Sol aponta, resplandecente: "A taberna do pai de Jorge Ferreira, árbitro que tinha apitado o Estoril-Benfica, foi vandalizada há 4 anos, durante a noite."
Caramba! Fafe nas "Efemérides"! Eu não fazia ideia da importância para a Humanidade da ocorrência em questão, mas talvez mereça. Merece certamente. Não, de caras, no que diz respeito à façanha pífia da claque antiportista Super Dragões, mas, por outro lado, quanto à Esquiça instituição, a taberna do pai do filho, ela, sim, um acontecimento digno de registo, sobretudo derivado às tripinhas e à vitela, que já lá não vou há que tempos, caseiras, honestas e acessíveis, merecedoras realmente de figurarem nos anais da História. E, até à próxima, daqui vai um abraço para o Armindo!

A guardar-se para a vitela

À moda de Fafe
Podem-lhe pôr rodela de laranja. Podem. Podem pôr-lhe, até, rodela de ananás ou rodela de quivi ou fatia de abacate ou, se calhar, morangos com chantili, picles, frutas cristalizadas, farofa, "ketchup" ou mostarda de Dijon, claro que podem. Ponham! Mas, se é vitela assada à moda de Fafe, melhor fariam se não pusessem. Como diziam os antigos: não é dado...

Os domingos tinham esse pequeno problema, e quem for de Fafe e antigo sabe do que falo: tripas ou vitela assada? Era a verdadeira questão, o dilema do almoço dominical. Os fafenses de antanho, gente de bom comer e satisfatório beber, resolveram facilmente o assunto: isto é, em vez de tripas "ou" vitela assada, o almocinho de domingo passou a ser tripas "e" vitela assada. Até hoje. Nem o bíblico Salomão, nos seus melhores tempos, tomaria decisão mais acertada.
A vitelinha guiava-se em casa, com vagar e carinho, com as voltinhas todas, se possível em forno ou fogão de lenha, pingadeira de barro, velhinha, bem tarimbada, e as tripas, regra geral, iam-se buscar num tachinho à Esquiça ou à Pacata, consoante a ideia que cada um tinha acerca da sua própria posição social - o que agora até dá para rir, sabendo-se da história completa e vendo-se assim a coisa à distância...
Começava-se, portanto, pelas tripas, e a seguir vinha a vitela. O apetite era gerido ao milímetro, mais ou menos um bocadinho daquelas, mais ou menos um bocadinho desta - porque, como determina o princípio da impenetrabilidade da matéria, dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, e as vacas é que têm quatro estômagos, melhor para nós. Ora bem: a malta nova, pouco dada à tripalhada, reservava-se para a chicha com batatinha de ouro e arroz seco e solto. Mas, de quando em quando, reservava-se mal. Como daquela vez em que o nosso Zé não tocou no feijão. Perguntaram-lhe se estava doente, se tinha fastio, se queria um caldinho branco, se queria meter o termómetro. Que não, que não, que não e que não, respondeu respectivamente, e explicou todo gaiteiro: - Estou a guardar-me para a vitela!
Naquele domingo não havia vitela. E as tripas já tinham saído da mesa...

Agora, muita atenção: onde escrevi "tripas" e "vitela assada", deve falar-se "tripasss" e "bitela assada". À moda de Fafe. E, repito, mais atenção ainda: a vitela assada à moda de Fafe, quando bem trabalhada, é provavelmente a melhor vitela assada do mundo.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Boas entradas!

Cem gramas de camarão da costa, duas ou três pataniscas ainda quentes, uma posta de bacalhau frito da parte da asa, fria, uma cebola da monda avinhada em verde tinto e sal grosso, duas navalheiras, quatro mexilhões em vinagreta bem puxada, meia dúzia de azeitonas pequenas, pretas, assassinas, moelas se possível de coelho, polvo em molho verde, navalhas na plancha, iscas de fígado de cebolada, petinga de escabeche, uma mancheia de percebes ainda prenhes de mar, cracas, lapas, um bom verde branco do Minho mais alto e não demasiado fresco, isto, sim, são boas entradas. O resto é treta, só para cumprir calendário. E era a continha, se faz favor.

O melhor dia do anho

É preciso ter lata
O confinamento da pandemia fez dele um verdadeiro especialista em atum, preparando-o para toda a espécie de apagões. Bom Petisco à segunda, Ramirez à terça, Tenório à quarta, Minerva à quinta, Pitéu à sexta e Inês ao sábado. Ao domingo, sardinha em tomate, evidentemente.

Quatro ou cinco dias antes do domingo da Senhora de Antime, que é o segundo domingo de Julho, um pastor mailo seu rebanho davam entrada no largo do Santo Velho, mesmo em frente a nossa casa, e ali se estabeleciam, montando pasto, posto de venda e açougue, até que o último anho fosse despachado, isto é, até ao extermínio total. O pastor tinha cajado de pastor e cão de pastor, mas não era um verdadeiro pastor, era um senhor creio que da Rua de Baixo ou Santo Ovídio com faro para o negócio e habilidade para matar cabritos. Só era pastor, quer dizer, cabriteiro, naquela época do ano. E o rebanho também era um falso rebanho, os animais não se conheciam de lado nenhum, juntavam-se apenas para aquilo, naquela ocasião, mal eles sabiam com que fim, eram recrutados nos lavradores das redondezas e levados ao engano e ao altar do sacrifício, quer-se dizer, ao forno do fogão a lenha, de preferência, com batatinha dourada e arroz seco e solto, tudo muito bem comido e regado, na mesa grande e em família alargada, logo a seguir à procissão mas sem pressas. O fogão era amiúde na vizinha, por favor, bastava ir lá às horas certas para dar as devidas voltas à pingadeira.
Antes que me esqueça, para os de fora: o cabrito, generalizemos assim por bondade, era e suponho que ainda é o prato oficial das Festas de Fafe, isto é, da Senhora de Antime. O que não deixa de ser irónico, na terra da vitela assada. Naquele tempo, o cabrito entrava em nossa casa apenas uma vez por anho, e, é preciso que se note, em anhos bons...
No Santo Velho acontecia tudo, o Santo era um largo multiusos. Portanto também servia de matadouro e talho, escancarado e a céu aberto. O Santo era o centro do mundo. Os clientes vinham de toda a parte, da Feira Velha, da Fábrica do Ferro, do Retiro, da Ponte do Ranha, da Fonte da Cana, de onde calhasse. As pessoas escolhiam o animal que queriam levar para casa, maior ou mais pequeno, vivo ou morto, como os bandidos procurados no Velho Oeste americano. O peso e o preço eram combinados a olho, entre vendedor e comprador, e mais tarde eventualmente ajustados, coisa de nada, após pesagem da carcaça numa balança de mola propriedade do magarefe e viciada com toda a certeza.
Se era para seguir cadáver, o bicho morria logo ali, encostado ao muro do quintal da Senhora Carolina, avó do Naninho. O matador tinha um tenebroso conjunto de facas ou navalhas de diversos tamanhos e feitios, mas todas muito bem afiadas. E tinha também um pequeno tubo de cana que usava para, soprando-lhe do fundo da alma, com a cara a passar perigosamente pelas três cores dos semáforos, amarela, verde e vermelha, por esta ordem, inflar grotescamente a pele do animal, separando-a da carne e dobrando-lhe o tamanho, aquilo tudo quase a rebentar, o homem e o odre, cuidava eu, e era realmente uma coisa extraordinária de se ver, para depois proceder à esfola, facilmente, com uma perna às costas, como quem limpa o cu a meninos. E antes assim.
Era uma mortandade que só vista, caíam uns atrás dos outros. O chão do Santo enchia-se de vísceras e tripas e peles vazias e varejas grandes, feias e verdes. O Santo era uma poça de sangue, uma vala comum, uma estrumeira. O ar do Santo tornava-se irrespirável, cheirava a erva, a merda, a palha, a sebo, a azedo, a peste, e até as tílias se afligiam. O Santo fedia. Mas era por uma boa causa...
Por pobreza ou conveniência, havia quem comprasse o cabritinho a meias, ou até em quartos, mas quanto a isso os clientes é que se entendiam. Quem tivesse um galinheiro de vago ou um bocadinho de quintal, aproveitava para comprar o anho mais cedo, quando a possibilidade de escolha era maior, e levava o anho vivinho da silva para dois ou três dias de engorda. Na sexta-feira e não sei se ainda no sábado, o matador ia a casa e acabava de vez com a conversa.
Cá fora, o refugo aguardava pelos retardatários do costume.
Quem tinha de aparecer, por aqueles dias, era o Landinho, o Nosso Menino. E aparecia, porque o Landinho aparecia sempre. O Landinho andava de porta em porta e navalha na mão oferecendo os seus préstimos como matador de cabritos. Isso. O nosso Landinho, que era, entre outros afazeres delirantemente encartados, fiscal da câmara, polícia de trânsito, passador de multas e até padre, também matava muito bem cabritos, embora nunca o tivesse feito nem chegou a fazer, para sorte dele, dos cabritos e de nós todos.

Portanto, meus amigos fafenses, o segundo domingo de Julho, dia da Senhora de Antime, é agnus day, quer-se dizer, dia do anho. Mas também da vitela. E, se calhar, das tripas, aquele meio tachinho que sobra estrategicamente do almoço de sábado. E atenção: onde escrevi "tripas" e "vitela assada", deve falar-se "tripasss" e "bitela assada", com os ésses muito bem condimentados. Vitela e falar à moda de Fafe, sempre! Isto é, "sémpre"! A vitela assada à moda de Fafe, minhas senhoras e meus senhores, é provavelmente a melhor vitela assada do mundo. E isso nem tem discussão.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Fulanos, sopranos e beltranos

Compensações
Quem disse que o crime não compensa, decerto não sabia fazer contas...

Os sopranos têm, por definição, o tom de voz mais agudo e com mais alcance de mulher ou de rapaz muito novo. Se os sopranos forem homens, os puristas preferem chamar-lhes contratenores, que há quem confunda com contentores. Os sopranos dividem-se essencialmente em sete partes: soprano ligeiro, soprano lírico-ligeiro, soprano lírico, soprano lírico-spinto, soprano lírico-dramático, soprano dramático e soprano ultraligeiro. Também podem ser saxofones ou clarinetes. Nos Estados Unidos, os Sopranos ainda piam mais fino: falam com sotaque e gestos italianos, são mais que as mães, maus como as cobras e convictos frequentadores de meretrizes. São extremamente mafiosos e profundos conhecedores, estes sim, de contentores, blocos de cimento, peixes e rios, para além de cabeças de cavalo, que há quem confunda com cabeças de cavala. De escabeche. Quando inadvertidamente apanhados por famílias de outros naipes, liquidados e desmembrados como manda a lei, os Sopranos são chamados, por divertimento, meios-sopranos. Os Sopranos americanos fizeram uma excelente série de televisão e posteriormente derem em filme, o que se lamenta. O melhor Soprano do mundo (portanto, o pior) chamava-se Tony e padecia de ansiedade.
O meu pai era músico e tocava saxofone, tenor, na Banda de Revelhe, de Fafe. Isto antes de ir para França. O meu irmão Orlando também. Também foi músico e também tocou saxofone, alto, na Banda de Revelhe. Isto antes de se dedicar a outros consertos. O meu irmão José Manuel foi músico toda a a vida na Banda de Revelhe, mas tocava trompete ou, vá lá, fliscorne. Isto antes de se cansar. Eu cheguei a aprender música para a Banda de Revelhe, porém o máximo que sei tocar é campainhas de porta.

Lágrimas por Marcelo

A ignorância vem com a idade
Eu sabia tudo. Palavra de honra, eu sabia tudo de tudo. Depois cresci e deixei de ter certezas. Certeza nenhuma. Disseram-me que me fizera homem, com muito atraso, mas que sim. Não sei...

Junho de 1973. De visita a Londres, Marcelo é recebido por uma manifestação de protesto contra a presença de Portugal nas então chamadas províncias ultramarinas e, de uma forma geral, contra a, por assim dizer, política africana do Governo português. "Portugal no more massacres. Get out of Africa now!", lê-se em alguns cartazes de más-vindas. Eu nem queria acreditar. Fiquei de todo. Os meus olhos, virgens e patrióticos como eu inteiro, viam a preto-e-branco o que se passava no televisor do bar dos Bombeiros de Fafe, que eu tinha só para mim naquela clandestina hora do meio-dia, e a revolta transformava-se-me inesperadamente em choro. Chorei de raiva, dorido pelo Senhor Presidente do Conselho. Como se atreviam aqueles gajos?! Que vergonha! Que falta de respeito! Angola é nossa e ponto final, ainda que o caso fosse particularmente Moçambique.

No regresso a Lisboa, Marcelo foi, graças a Deus, surpreendido por uma manifestação espontânea muito bem organizada, uma manifestação a bem da Nação, de desagravo pessoal e de apoio às políticas africanas do Governo, uma manifestação contra as manifestações de Londres, mas com muito mais povo, muitas mais camionetas, muitos mais letreiros, muitos mais garrafões de vinho e salpicões e muitos mais Vivas!, toma lá ò camone a ver se gostas...
De certeza que foi gente de Queimadela. Queimadela estava sempre presente! "Não esperava esta manifestação, mas compreendo-a", dizia Marcelo, modestíssimo, do alto da varanda do Palácio de São Bento, rodeado pelos pândegos mandadores de Vivas!, assim à moda do nosso Velhinho, o Castro Mendes de Travassós, o trabalhista fafense, "ide por esses tascos abaixo, comei, bebei e pagai". E depois Marcelo falou de política, mas isso já não me interessava. Eu estava outra vez comovido, ranhoso, mas agora de auto-satisfação nacionalista, de respeitoso respeito a Sua Excelência. Quem me dera estar lá também com o garrafão. Ainda por cima eu nunca tinha ido a Lisboa e o vinho, certamente como a viagem, devia ser também de graça. Chorei, pois claro que chorei, e as lágrimas já me toldavam o preto-e-branco do aparelho, mas saí dali de alma lavada e, se quereis que vos diga (e ainda que não queirais), também eu algo desagravado. E então ri-me. Junho de 1973. O Marcelo era Caetano e eu, miúdo, ignorante, burro como uma porta, pensando que sabia tudo, ainda não sabia nada.

terça-feira, 1 de julho de 2025

As mulheres faziam de alto

Antigamente as mulheres urinavam de pé. Quem for de Fafe e provecto, faz uma ideia. Não vou explicar pormenores, a não ser que me peçam muito, mas urinavam de pé, as mulheres. De pé, como as falecidas árvores da Senhora Dona Palmira Bastos. De pé, como as vítimas da fome. De pé, como os homens em geral. De pé! Homens e mulheres eram iguais. Depois as mulheres resolveram amouchar para o acto e passaram a ir umas com outras, geralmente aos pares, à casa de banho. Hoje em dia as mulheres queixam-se de discriminação de género.

As castanhas são como o próprio nome indica

Grazie verigude!
A inglesinha abeirou-se-me sorridente e de mapa aberto na mão, meio perdida, pedindo-me que eu lhe dissesse onde é que ela estava, questão assim a modos que existencial. Indiquei-lhe, com todo o gosto: estávamos, ela e eu, em Matosinhos, exactamente no cruzamento da Rua do Godinho com a Avenida de Serpa Pinto, que, por sorte, era mesmo o sítio que ela queria. Estava lá marcado com um xis. Alargando o sorriso, bonito, a inglesinha simpática fez "Hã... hã... hã...", à procura da palavra certa, e, no seu melhor português, muito bem aprendido, bem treinado, saiu-se finalmente, toda satisfeita: - "Grazie!"...
Vá lá, podia ter sido pior. Se me tivesse atirado por exemplo "Muchas gracias!", abanando castanholas e rebolando as ancas, aí, sim, eu ficaria verdadeiramente incomodado.

As castanhas. As castanhas têm pouco que se lhes diga. Chamam-se castanhas por causa da própria cor, acho eu, e há quem afirme que são aquénios, o que simplifica logo as coisas. Ora bem. As castanhas fazem-me gases e há cinco qualidades de castanhas: castanhas cruas, que sabem a infância e a dor de barriga, castanhas cozidas, que, no meu modesto entender, precisam de saber a funcho, castanhas piladas, que são umas malandras, castanhas assadas, que são quentes e boas, e castanhas com bicho, que são realmente uma merda. No Verão, as castanhas são tremoços.
As castanhas vêm dos ouriços, que antigamente tinham a mania de cair em cima das cabeças das pessoas. Os ouriços de Fafe, então, eram do piorio. Havia um castanheiro nas traseiras do tasco do Senhor Augusto Paredes, encostado ao muro, mesmo em frente ao Palacete, e os ouriços caíam na rua como tordos. Mas não caíam à toa. Esperavam por mim, matreiros e organizados, para me desabarem aos pares ou num indecente mènage à trois mesmo em cheio no cocuruto. E eu, desprevenido, sem capacete, estais a ver como é que ficava. Era um cristo.
Para além dos filhos da puta dos ouriços e das castanhas que servem para a nossa alimentação, os castanheiros davam também uma tirinhas muito jeitosas para se fazerem grinaldas e óculos de brincar. Os castanheiros podem ter mais de mil anos, mas o do quintal do Paredes não. O quintal do Paredes era também o quintal do Senhor Jerónimo Barbeiro e do Senhor Lopes Agulheiro, três famílias grandes, sobretudo femininas e boas, e eu tenho muitas saudades daquela gente toda. O castanheiro do Paredes agora é um prédio de rés-do-chão e quatro andares. Mesmo em frente, centenário e ainda elegante e digno, agora é o Palacete que cai. Cai aos bocados, desgostoso com o abandono e a ignorância adjacente.
Derivado às castanhas, existem também as castanhadas e as castanholas. As castanhadas não devem ser confundidas com magustos, basta perguntar ao Pepe, ex-jogador de futebol, que ele explica. E as castanholas fazem um papelão nas mãos de Lucero Tena.
Eu gosto muito de castanhas. E afinal as castanhas têm bastante que se lhes diga.