segunda-feira, 31 de março de 2025

Cor de burro quando foge

Os Porsche eram verdes, como o do João Ricardo Mendes Ribeiro. Os Volksporsche eram amarelos, como o do Armando das Mobílias. Os Rolls-Royce eram pretos, como o da visita do Tomás. E os Ferrari eram vermelhos, subversivamente vermelhos. Tudo ao natural, como Deus quis e criou, de Fafe para o mundo inteiro. Depois, não sei dizer quando, alguém de muito mau gosto trocou as tintas e lançou o caos. Agora vai por aí nas estradas uma babilónia de cores e carros que ninguém se entende, pelo menos eu.

O circo ao virar da esquina

Pediram-lhe que indicasse alguns dos principais números de circo. Envergonhado, lembrou-se apenas do 69.

Havia uns circos muito jeitosos, pequeninos, descapotáveis, que andavam de terra em terra. Eram circos de rua, de esquina, próprios para terras de remediada dimensão. Nada de tendas, rulotes, camiões, jaulas, luzes, altifalantes, cartazes, grandes trupes, nomes extraordinários, antes pelo contrário. Eram circos de bolso, anónimos, amiúde unifamiliares - uma velha carripana, o homem, a mulher, duas ou três crianças, todos artistas, e o cão, magro como um faquir, mas não praticava. A fome devia ser muita. E o guarda-roupa deixava demasiado a desejar. A carripana era transporte, armazém, camarim e casa.
Em Fafe, na então orgulhosa vila de Fafe, abancavam no Largo, que era onde tudo acontecia, até a feira e a Volta a Portugal. Ali no ângulo da Rua 31 de Janeiro com a Praça 25 de Abril, num pedaço de passeio mais espaçoso onde hoje encosta, se não me engano, a Fafetur, era esse o sítio. O verdadeiro salão nobre da terra, com licença do Jardim do Calvário.
Eram circos sazonais e breves, praticamente espontâneos. Precisavam apenas de um cantinho, vinham num pé e iam noutro. Chegavam numa tarde de Verão, estendiam uma lona no chão, chamavam o povo ali à volta com umas gaitadas e iniciavam a função. Sempre a toque de caixa. Umas palhaçadas, umas cabriolas, sucintos números de malabarismo, equilibrismo e contorcionismo, às vezes até uma amostra de funambulismo ainda que curta e a baixa altitude, mas sim, porque circo que é circo obviamente trabalha no arame. Meia hora, se tanto, e estava feito. No final da apresentação e dos merecidos aplausos, uma das crianças, geralmente menina, passava pela roda do excelentíssimo público com um chapéu ou um prato na mão, recolhendo o dinheiro que cada um resolvesse dar de paga, e havia quem atirasse moedas de agradecimento para a lona coçada e rota. Assim, uma ou duas matinés, três no máximo, se a plateia o justificasse ou o dinheiro em caixa ainda não chegasse para a sopa, depois as crianças desvestiam-se do circo, os pais arrumavam os tarecos, a lona era recolhida, e toca a entrar na carripana, partiam todos, ainda de dia, decerto por causa da imensidão da viagem e aparentemente em direcção a Guimarães, que, no meu ponto de vista, naquele tempo, era em direcção ao mundo. E eu ficava como a noite.
Estes circos de porta a porta, de soleira, estes extraordinários espectáculos, ando capaz de dizer que seriam os sucessores ou, pelo menos, uma derivação directa dos saltimbancos que itineravam o Portugal mais profundo durante as décadas de cinquenta e sessenta do século passado, apresentando o famoso show da cabra ou "cabrinha", outro assombro dos antigos. Uma cabra, ou cabrito, vá lá, que fazia equilibrismos em cima, por exemplo, do gargalo de uma garrafa de cerveja, ela própria, a garrafa, colocada, por sua vez, em cima de um banco de madeira, dos de cozinha. Uma coisa realmente de pasmar!
A cabra, ou cabrito, vá lá, às vezes era um cão ou um gato, mais raro um macaquito marca sagui ou, também acontecia, um burro. Mas eu não me lembro de ver, nem essa parte me interessava por aí além. Não tinha, naquela idade, qualquer posição estruturada sobre a problemática da exploração de animais domésticos em sede de circo de pé-rapado, mas sabia, sempre soube, que de burros já estava Fafe bem servido. Basta pensar na burra do Reigrilo, e não é preciso ir mais longe...

domingo, 30 de março de 2025

Kafka, só para destoar

Entro no autocarro. Sento-me num daqueles bancos frente a frente, éramos quatro, dois de cada lado e, se fosse futebol, a bola seria redonda. Ninguém conhecia ninguém. Os dois rapazes e a rapariga, os três mais para os trinta do que para os vinte, cabeças para baixo e graves, rapam dos bolsos os respectivos telemóveis como se se conhecessem de outras encarnações e estivessem combinados, e jogam, ela, e mensajam, eles, automaticamente, ignorantes uns dos outros, numa simbiose perfeita. Eu vou à mochila e tiro o livro. "Kafka à Beira-Mar", de Haruki Murakami. Pensei: é o que diz a minha mãe - sempre a destoar, eu.

Chamavam-lhes "Águias-Clok"

Mal comparando
A lampreia é um ciclóstomo. O João Almeida é um ciclístomo.

No tempo do Valença, do Castro, do Cândido, do Leitão ou do Albano, só para nomear alguns, chamavam "Águias-Clok" à equipa de reservas da AD Fafe, isto é, aos crónicos suplentes e outros supranumerários que, a meio da semana, faziam o habitual "treino de conjunto" contra os titulares. "Águias-Clok", chamavam-lhes, era no gozo, dito e repetido até à exaustão, uma espécie de praxe para deixar bem vincada, de cima para baixo, a diferença de estatuto e classe entre os jogadores de futebol, os verdadeiros jogadores de futebol, e os "ciclistas", os "jogadores de futebol" que apenas corriam, atrevidos a quem a bola eventualmente estorvava, isto lá na gramática deles, e todos se entendiam, que remédio, sobretudo do lado dos mais novos.
Na verdade, para quem não saiba ou não se lembre, Águias-Clok foi uma equipa de ciclismo que existiu mesmo, ligada ao histórico Clube Desportivo "Os Águias", de Alpiarça, com o patrocínio da cerveja Clok, Águias-Clok, portanto, um projecto desportivo meteórico que apareceu em 1977, fez a Volta a Portugal de 1978, com resultados até bastante interessantes, mas desfez-se logo no final desse mesmo ano. E não pensem que era um grupo de aleijados, nada disso, daquele plantel irrepetível faziam parte nomes tão marcantes da velocipedia nacional como Marco Chagas, Alexandre Rua, António Marçalo, Joaquim Carvalho, Joaquim Andrade ou Jacinto Paulinho, entre outros.
Pois em Fafe, no campo de futebol, "Águias-Clok" eram os mais fracos, os ciclistas da bola, os das reservas, ex-juniores e outros jovens, maioritariamente fafenses, à procura ou à espera de uma oportunidade, de um lugar ao sol. A brincar, a brincar, o rótulo fora-lhes colado pelos mais velhos, os "craques" da equipa principal, quer-se dizer, os instalados da vida, sei lá eu se com receio de que algum dos miúdos, mais capaz e afoito, se lembrasse de repente de lhes roubar o lugar e as mordomias concomitantes.
Lembro-me do Moreno e do Tintas. Lembro-me de muitos mais jovens e promissores jogadores desse tempo, na nossa AD Fafe, para prefiro passar os olhos apenas pelas histórias do Moreno e do Tintas, a título de exemplo e porque eram ambos vagamente das minhas confianças. Que injustiça chamar-lhes "ciclistas"! Eram bons de bola, os dois, ainda que completamente diferentes um do outro, o Moreno, médio levezinho, com visão, habilidade e passe, e o Tintas, defesa lateral, mais físico e irreverente, às vezes rematador. O Moreno, se não estou em erro, ainda passou pelo Vianense e voltou, e o Tintas, que chegou a prestar provas no FC Porto ou andou por lá perto, era a vítima preferida do treinador Júlio Teixeira, que também padecia de uma grande pancada, chutava descalço, falava pelos cotovelos e dava a táctica para a bancada.
Se o Tintas e o Moreno engataram depois um percurso particularmente brilhante como jogadores de futebol, coisa constada, pelo menos ao nível dos cinco nomes lá de cima? Isso parece-me que não, ou então estarei mal informado. O Moreno e o Tintas tinham todas as capacidades físicas e técnicas para o sucesso, para altos voos, mas faltava-lhes, estou em dizer, um bocadinho de vocação. Um bocadinho assim. Talvez, ao fim e ao cabo, eles não estivessem realmente para ali virados.
Se, por causa do futebol, o Moreno e o Tintas foram, em última análise, dois excelentes ciclistas que se perderam? Não creio. Atleticamente falando, o Tintas desembaraçava-se com assinalável destreza no bilhar do Café Arcada, disso recordo-me muito bem, mas também não sei se seguiu carreira de taco na mão...

sábado, 29 de março de 2025

Como se O'Neill fosse de Fafe

A senhora sentada à minha frente faz croché - que raro! Eu leio um livro. O resto do metro espreita o telemóvel, fala para o telemóvel, escreve no telemóvel, joga no telemóvel, tira selfies com o telemóvel, põe o telemóvel entre pernas, aconchegadíssimo às intimidades, em alarmante modo de vibração. O metro inteiro é um telemóvel amarelo de duas carruagens, dois refractários e razoáveis orgasmos. Como quem não quer a coisa, a senhora sentada ao lado da senhora sentada à minha frente que faz croché desvia um olho do telemóvel e procura-me a capa do livro. Chega lá. Abana a cabeça, sentenciosa, faz cara de caso, deita-me uns olhos, ambos, num misto de decepção e de censura. Percebo-a: não leio José Rodrigues dos Santos. Leio "Poesias Completas & Dispersos", de Alexandre O'Neill, calhamaço como os do outro, mas calhamaço sem culpa de autor, calhamaço que dá gosto. Folheio-o com o respeito e o cuidado de quem folheia uma bíblia. E é. Vou naquela parte em que O'Neill me diz "A estouvaca": deitada atravessada / na estrada / a malhada / vai ser atropelada / foi. Palavra do senhor.

A morte da bezerra

Pensamento do dia
Por dia, faça chuva ou faça sol, cada vaca deve comer, em média, 50 quilos, entre forragem e ração, idealmente numa percentagem de 60 para 40, respectivamente. E deve beber 150 litros de água. De acordo com especialistas, este é, mais coisa menos coisa, o pensamento do dia.

Antigamente as tragédias aconteciam com mais assiduidade, ao contrário do que se apregoa agora por aí, e nem é preciso recuarmos ao terramoto de 1755 ou ao lamentável dia, no ano de 1128, em que o jovem Afonso Henriques bateu na mãe, Dona Tarexa. Não. Basta centrarmo-nos na segunda metade do século passado, anos sessenta, setenta e pelo menos oitenta. Morria uma vaca e era uma tragédia. Ora, as vacas, naquele tempo, morriam bastante, e nem estou a falar de morte natural, coisa de matadouro e talhos, abates e choupas, facalhões e esquartejamentos. Morriam sem querer, as vacas, isto é, esturricadinhas num palheiro que se incendiou sem mais nem menos, afogadinhas ou irremediavelmente escangalhadas no fundo de um poço sem guarda, atropeladas ao atravessar a estrada sem olhar para os dois lados, ou, até arrepia, abertas ao meio por um raio, que também acontecia. E era uma tragédia.
Era uma tragédia porque a vaca, o boi ou o bezerro eram a riqueza única do pobre lavrador de microfúndio, e Portugal era sobretudo isso. As vacas, permito-me generalizar assim, davam leite, faziam estrume, lavravam e aravam o campo, puxavam a água, transportavam as colheitas, ajudavam nas obras domésticas, acartavam pedra, erguiam muros, tinham a força de trabalho de um rancho de homens e mulheres, procriavam e, como se ainda fosse pouco, emprestavam o seu próprio calor ao jugo que as dominava, para, a seguir, talhar trasorelhos, eventualmente acabando vendidas na feira ou feitas em bifes, em todo o caso transformadas em indispensáveis notas de conto, e aí tudo começava outra vez.
Era desta maneira em Fafe, terra de pequenos e remediados agricultores, nas aldeias à volta, principalmente, mas também no centro da vila mesmo, ainda rural e fértil. A única diferença era que em Fafe a vaca era baca e o boi, em raros momentos de preciosismo linguístico, era voi. Tirante essa irrefutável idiossincrasia, Fafe era como o resto do Norte rural: em cada casa, uma, duas vacas, quer-se dizer, uma junta, quando muito, para fazer parelha no carro, turinas às vezes, leiteiras em alguns casos. As vacas eram a fartura, o dinheiro em caixa ou debaixo do colchão, a garantia de vida dos nossos persistentes lavradores. As vacas eram-lhes tudo.
Agora imagine-se que lhes morria um animal, tantas vezes o único, num desastre daqueles ou por doença fulminante e desconhecida. O gado não estava no seguro, é claro, o dinheiro da CEE ainda não tinha sido inventado e era o que faltava que alguém se lembrasse de pedir uma indemnização ao Governo. Dá para imaginar, então, o rombo? Era um prejuízo que só visto, a ruína de repente, a miséria, a fome à espreita, a vida parada, como se fosse ali o fim do mundo.
Mas não era. Podia muito bem não ser. A salvação do nosso desgraçado lavrador estava agora no peditório. Isso, no peditório, que era uma instituição. O peditório que ele fazia de aldeia em aldeia, nas ruas da vila antiga, de porta em porta, apresentando o seu triste caso, a sua tragédia, suscitando simpatias, solicitando ajuda, o que pudesse ser. Não era estender a mão à caridade, não, aquilo era um mecanismo de solidariedade, automaticamente accionado. Fazia parte, em Fafe.
Notáveis lá da terra, cidadãos de honra reconhecida, dois ou três, incluindo geralmente o presidente da junta ou o regedor da freguesia, acompanhavam o lavrador nesta sua via-sacra, atestando com documentos e tudo a veracidade do infausto acontecimento e as dramáticas condições em que ficaram o azarado homem e respectiva família.
E as pessoas davam. O que podiam. E é curioso, porque as pessoas de dentro de casa eram, regra geral, ainda mais pobres do que o homem desesperado que lhes batia à porta a pedir. Davam, e não se fala mais nisso. Os modestos donativos ficavam assentes numa folha azul de 25 linhas, registados, consultáveis, até chegarem, conta certa, para comprar uma nova cabeça de gado, nem mais um tostão, mas nunca mais ninguém queria saber do assunto.
Terão acontecido umas quantas burlas, trampolinices das antigas, isso certamente, vacas que afinal eram virtuosas senhoras, lavradores que nunca puseram os pés na terra e presidentes da junta da colaça. Mas também terão sido assim criadas verdadeiras segundas oportunidades de vida para pessoas honestas, trabalhadoras, merecedoras, de repente atingidas pela tragédia a sério, e que sem a ajuda dos outros, sobretudo dos seus generosos camaradas de pobreza, nunca mais se levantariam. E Fafe era também isto.

sexta-feira, 28 de março de 2025

Diálogos fafenses 4

O mundo é pequeno (e um bocado parvo)
- Perdoar-me-á que o interpele assim sem mais nem menos, sem o conhecer de lado nenhum, mas o caro senhor é um bocado parvo, não é?
- Sou, com efeito, um bocado parvo, mas como é que o caro senhor adivinhou?
- Um pressentimento. É que eu também sou...
- O caro senhor também é um pressentimento?
- Não, não, caro senhor: também sou um bocado parvo.
- Como o mundo é pequeno! Somos então praticamente família...
- Parentes, pelo menos...
- E, mal que lhe pergunte, o caro amigo é um bocado parvo por parte da senhora sua mãe ou por parte do senhor seu pai?
- Por parte do senhor meu pai.
- Mas isso é extraordinário, caro amigo, porque eu também sou...
- O caro amigo também é um bocado parvo por parte do senhor meu pai?
- Não, não, caro amigo: sou um bocado parvo mas por parte do senhor meu pai.
- Oh, que pena! De repente, quase que éramos irmãos, não é?...

Os Sexy Rannas

Conversing
- Estás com pressing?
- Não. Por acaso até tenho timing.

Outubro de 2015. Morreu Jim Diamond, o escocês que cantou I should have known better. A notícia, apresentada desta maneira, apanha-me completamente desprevenido. Não faço ideia de quem é o falecido, e o nome da cantiga, assim em estrangeiro, também não me diz grande coisa, porque sofro de disfunção relacionada com títulos e letras de canções, sejam as canções e os títulos e as letras em que língua forem. Só conheço as melodias, e apenas de vista. A minha ignorância é, realmente, formidável.
Mas quem procura sempre alcança, como dizia o sábio ginecologista polinésio. Procurei, portanto, e cheguei lá. Ao Jim Diamond, que continua a não me dizer nada, mas agora por razão de força maior, e à cantiga em questão. À melodia. E aqui, sim, veio-me à memória um extraordinário grupo de rapazes que fizeram época em Fafe na década de oitenta do século passado e que, se não me engano, criaram no Café Chinês uma interessantíssima versão aportuguesada do tal sucesso de Diamond, versão essa injustamente ignorada pela Billboard. Paródia e paronímia, com todas as sílabas a baterem certo com o inglês original, seria, se bem me lembro, algo parecido com o que se segue a respeito do meu primo Zé, que por acaso também era da corda: "O Bomba não bebe. Não bebe, não bebe, não bebe, não bebe pouco. O Bomba não bebe. Não bebe, não bebe, não bebe pelo nariz"...
Creio que também não erro se disser que aquela rapaziada fez a mesma habilidade com a canção "Somebody", de Bryan Adams, mas a propósito do assassínio de Issam Sartawi, representante da OLP no XVI Congresso da Internacional Socialista, em Montechoro, Algarve, em 1983.
Lembrei-me dessa malta toda e deu-me vontade de rir, ri-me como um perdido e soube-me bem: eles eram - não sei se vou dizer correctamente - os Sexy Rannas, assim autoproclamados, eram a geração e o bando do meu irmão mais novo, meninos para o preciso, transgressores mansos, gente do melhor que Fafe tinha, e, se andarem por aí, o que lhes estimo é o que lhes desejo, a todos em geral e a cada um em particular, mais às respectivas e excelentíssimas famílias, se é que chegaram lá.

quinta-feira, 27 de março de 2025

Diálogos fafenses 3

O respondão
- Vai chover...
- Vai tu!

A Bó de Basto e o pãozinho do Senhor

Os mórreres
Sim, os víveres, evidentemente os víveres. E os mórreres?...

Foi num programa de televisão, daqueles que temperam o turismo com gastronomia. Vi que na Turquia, esse lamentável lapso da União Europeia, há um respeito muito grande pelo pão. Um respeito tão grande que bocado que cai ao chão não vai para o lixo. É apanhado, guardado e comido na refeição seguinte. Não sei se é bem assim, mas assim me foi contado na TV, e eu gostei do que ouvi, falou-me à memória.
Desconheço que influências culturais trocaram entre si Portugal e o Império Otomano, e se essas permutas foram tão longe que chegaram à bucólica freguesia de Passos, logo a seguir a Várzea Cova, quem desce, mas já Cabeceiras de Basto, propriamente à casa da minha querida avó materna. Sei é que foi neste fim de mundo que eu também aprendi a reverência pelo pão.
Na Casa do Carreiro comia-se na cozinha, à volta da lareira. Os adultos sentavam-se em compridos preguiceiros, apetrechados com uma conveniente tábua-mesa de levantar e baixar, e as crianças ajeitávamo-nos em pequenos bancos de três pernas, os mochos, obra de carpintaria simples e doméstica. Os cães também tomavam posição, anorécticos involuntários, à espera dos ossos que não havia. Levavam troços de couves, cascas de batatas, espinhas de bacalhau de quarto e era um pau.
O chão da cozinha era mesmo chão, rupestre, uma terra negra do fumo e da fuligem, dos anos e vidas de uso e das águas entornadas que lhe davam uma consistência de betão. Sim, as águas dos potes ferventes ou da banca de lavar louça, quando já desnecessárias, eram ali mesmo esparramadas, voltando a reunir-se, acho que me estou a lembrar bem, numa espécie de rego que as levava finalmente até lá fora, até ao carreiro que dava o nome à casa. Como bilhar viciado, o chão da cozinha descaía para o lado do carreiro, e tudo ajudava à limpeza. Depois era só esperar que secasse um pouco e varrer com uma vassoura de giestas apanhadas no monte. A banca era feita em madeira, velha, de pernas trôpegas, pacientemente calafetada pela gordura acumulada ao longo de décadas de serventia.
Era naquele chão que eu às vezes deixava cair o meu megalítico naco de pão, quase sempre um bom pedaço de côdea, que era do que eu mais gostava. A minha avó, mansamente, para que o meu avô não se zangasse comigo, dizia apenas:
- Apanha o pão. É pãozinho do Senhor. Dá-lhe um beijinho e já o podes comer...
E eu acreditava. Apanhava o pão, beijava-o e comia-o, com todo o respeito, como se estivesse na igreja a comungar. Até parecia que me sabia melhor.
Curiosamente, o meu avô nunca se zangou comigo. Ele, que tinha um zangar tão fácil com toda a gente...
Na nossa casa, em Fafe, a minha mãe insistia nestes ensinamentos. Dizia-nos, a mim e aos meus irmãos, que o chão não suja, que o beijo purifica, que não se pode estragar pão, é pecado, porque há muita gente com fome, pessoas mais pobres do que nós. E se o pão ficava intragável e tinha mesmo de ir para a estrumeira, só depois de um beijinho de adeus, porque, exactamente, era pãozinho do Senhor.
Em minha casa também não se estraga pão, não se estraga nada. E, se se estraga, estragado fico eu.
Não sei de onde veio esta ideia antiga, se estará mesmo ligada à fé, à religiosidade popular, ao pão que é o corpo de Cristo. Acredito mais que era sobretudo a pobreza a defender-se, consciente da importância do pão na mesa, o pão que, ontem como hoje, era a única fartura, a última fronteira para a fome. O respeito pelo pão era o respeito pela fome. E ninguém respeita tanto a fome como os pobres.

Por causa do pão, fui muitas vezes à merda. E gostava. Ir à merda, naquele tempo e naquelas circunstâncias, era satisfatoriamente adequado. E necessário. A Bó mandava-me com uma telha à procura de poios de bosta fresca, que depois servia para vedar a tampa do forno onde se cozia a broa. Eu passava sempre uma temporada das férias grandes na aldeia e ir à merda era o meu modesto contributo para que tivéssemos pão à mesa. Isso e, às vezes, ir à fonte buscar água, coisa de "menina", só para se rirem de mim.
Para a aldeia ia-se na carreira da "Empresa", que saía de uma grande garagem à beira da Igreja Matriz, mesmo em frente à Rua do Assento. Nessa enorme garagem também se construíram carros para a Marcha Luminosa das Festas da Vila, "um espectáculo de luz, cor e som", mas isso é assunto que não vem ao caso. Era desengonçada e cinzenta a carreira. Cheirava mal, espevitava enjoos. Ia-se com o nariz enfiado em meio biju para não gomitar e mesmo assim gomitava-se - falo por mim. Ia-se na carreira até Várzea Cova, e ali terminava a estrada, acreditem no que eu digo: o mundo acabava mesmo em Fafe, basta pensar também na antiga linha do comboio. Dali, depois do cu tremido, violentamente tremido, já só faltavam mais cerca de cinco quilómetros a pé, em monte de sobe e desce, fizesse sol ou diluviasse, certa vez até passando a vau o ribeiro que a força de um inverno estoura-vergas desencaminhara e transformara em rio violador de margens. Chegávamos então à aldeia propriamente dita, como nunca na vida lhe chamámos. Era Basto. Freguesia de Passos, concelho de Cabeceiras de Basto, mas simplesmente Basto, para nós.

A minha avó Emília, que era pequerricha e bondosa com um anjo, e era um anjo, fazia uma broa escura, muito saborosa, que se mantinha fresca durante dias e dias. Naquela maré, o pão era o principal alimento dos portugueses. O pão e o vinho, como fazia questão de frisar, de forma propositadamente ambígua, a propaganda salazarista. Por ordem expressa de Salazar, beber vinho, naquela altura, era "dar de comer a um milhão de portugueses", e o patriótico e honrado povo de Passos podia não saber o que era bife nem tinha electricidade nem água nem estradas nem sequer caminhos decentes, sem pedras, mas sempre deu o litro para que o resto do País não passasse fome. E o resto do país já então era Lisboa.
Beber era um honesto modo de vida. Podia faltar tudo na casa da Bó de Basto, e às vezes faltava muito, mas havia sempre broa com fartura e umas imensas malgas de "amaricano" às quais eu gostava de mandar umas pescoçadas até dizer ahhhhhh!...
Em Basto, as visitas eram recebidas com malgas de vinho e aparas de bacalhau salgado e falava-se como se fôssemos galegos, e a querida Tia Margarida felizmente ainda fala. E sempre broa, sem outros mimos. O almoço era o "jentar", e o jantar era a ceia. E bebiam-se, a acompanhar, umas valentes pingoletas. Também se bebia durante a merenda, que era aquela meia dúzia de horas de sol que vai desde o "jentar" até à ceia. Bebia-se, portanto, apenas às refeições - quer-se dizer, o dia inteiro. E já agora: o almoço, assim dito, era o café da manhã. E a manhã era madrugada, com música de galos tenores e carros de bois vagarentos e deslubrificados, rabugentos. O café era cevada, feita ao borralho, numa velha chocolateira de barro e tampa tamborileira e dançarina. Que saudades tenho dessa vida e dessa idade, dessas ideias que graças a Deus me ficaram, ainda no outro dia o "dixe" outra vez ao meu tio Al Pacino, o meu querido tio "Jé".

Enciclopedista fortuita e inocente, involuntária, alma fora da geografia e do tempo, a querida Bó de Basto alimentava-nos também o espírito. Lendas, contava-as que era uma categoria. Eram lendas mansas, de embalar, metiam mouras encantadas, príncipes, penedos. Penedos de morar, lembro-me bem, e eu queria um. Eram contadas à lareira, depois da ceia, com o vermelho do fogo a bailar-nos nas caras espectrais, eu de olhos arregalados e boca aberta, uma e outra vez, como se fosse sempre a primeira. Os efeitos especiais das histórias da avó - esperta, santa sem diploma, realmente anjo sem asas à vista - foram muitos anos mais tarde copiados pelo cinema americano. Até aquele famoso jogo de sombras manipulado pela irrequieta chama da candeia, coisa extraordinária e assustadora - era das histórias da minha avó, foi aqui que Hitchcock o veio buscar. E o vinhinho aquecido ao borralho com uma maçã assada lá dentro, também, mas isso parece que os filmes não aproveitaram.
Na manhã seguinte, pela fresca, íamos à lenha ao monte. Eu e e minha avó, maravilhosa guardadora de lendas e tudo. E a Bó mostrava-me o penedo, o exacto penedo da moura encantada, a frincha de entrada, não havia dúvidas. Ainda por cima, até as lendas da minha avó eram verdade. Como poderia mentir-se acerca do pão?

quarta-feira, 26 de março de 2025

Diálogos fafenses 2

Não quer dizer nada
- Este ano o Silva não vem...
- Vem, vem! Vem todos os anos!
- Mas o Silva morreu em Outubro.
- E o que é que isso tem a ver?

Serafim Lamelas, o homem do pilas

Era um atleta de mão cheia. Dele se dizia, e com razão, que dava cartas no jogo de bilhar. Passou ao lado de uma grande carreira, exactamente porque nunca percebeu que bisca lambida é uma coisa e as três tabelas são outra. As duas juntas, com efeito, não fazem modalidade.

No tempo em que Fafe era o Largo com árvores e os fafenses eram todos bons rapazes, "os" 16 de Maio e a Senhora de Antime eram festas de rebimba o malho. Havia de tudo: cestinhas, aviões, carrinhos de choque, carrossel, farturas, fome, apalpões às moças, estaladas de resposta, barracas de matraquilhos com jukebox, poço da morte, mulher-serpente, água fresca com longínquo sabor a limão e açúcar amarelo, parrecas e rebuçados, procissões, promessas, anho assado no forno, corridas de jericos e pilas. Pilas principalmente.
O bom povo de Fafe jogava ao quino, pelo Natal, no Peludo. Jogavam maus meninos bem, todo o ano, toda a noite, no Club Fafense, desperdiçando sorrateiras fortunas de berço. Jogavam os novos cavalheiros da indústria, desalinhados e ricos a estrear, toda a noite, todo o ano, no Fernando da Sede, de porta respeitosamente fechada. (Para entrar era preciso saber o santo-e-senha. Eu sabia, entrava, mas não jogava.) Jogava-se aos pinhões em casa, jogava-se ao bilhar, ao dominó, aos flippers, à sueca, à lerpa, às copas, ao sete e meio, ao montinho e à malha em todo o lado, a dinheiro, a cerveja ou a vinho, e até se jogava ao pau e à bola, mas isso já era para predestinados. Em Fafe jogava-se forte e feio. A tudo. Mas o pilas estava à frente. E nos 16 de Maio era fatal. E na Senhora de Antime também. E não tenho a certeza se no Corpo de Deus amém.

O Serafim Lamelas é que era o verdadeiro homem do pilas - a História nunca o poderá negar. O Serafim Lamelas era o nosso Stanley Ho e também um bocadinho o nosso Vito Corleone. Tinha a sua famiglia, por assim dizer. Montava casino em todas as festas, grandes feiras e romarias da região, bastavam-lhe uma esquina, uma quelha, um desvão de escada, onde calhasse e parecesse invisível. O Senhor Serafim reconhecia-me e respeitava-me, sendo eu apenas miúdo, mas sabendo ele que eu era filho da minha mãe, e isso era o meu melhor atestado.
O pilas é, para quem eventualmente o ignore, um jogo de mesa e de rua, de sorte e azar. Sorte para o banqueiro, azar para o apostador. Regra geral. É também um jogo evidentemente proibido, e por isso é que se jogava tanto. Os músicos das bandas filarmónicas eram naquele antigamente os melhores clientes do pilas, mas eu estaria capaz de jurar que muitas das vezes eles andariam por ali feitos com a casa, só para chamar patos.
O casino do Serafim consistia num resumido cavalete manufacturado com ripas de madeira ultraleve sobre o qual era estendido, a modos de tampo, um cartão, um papelão, um papel qualquer, uma toalha de mesa, sempre que possível um rectângulo em cabedal, tudo material facilmente dobrável, enrolável e sobretudo escondível.
O tampo estava dividido em quadradinhos pintados e numerados de 1 a 6 com tinta vermelha e de uma forma que parecia intencionalmente tosca ou então andaria ali a mão de Picasso. Apostava-se num número apenas, "singelo", ou dividia-se a aposta por dois números ou até por quatro, se bem me lembro, bastando para isso colocar o dinheiro da aposta em cima das setinhas que indicavam as múltiplas.
Havia depois o copo de plástico, dos de lavar os dentes, e o dado, provavelmente amestrado, que saíam como que por magia de um dos bolsos interiores do larguíssimo casaco do Serafim. O copo era agitado por mãos experimentadas, rápidas e enganadoras, virado ao contrário, suspense, saía o dado cansado, gasto, desilusão, este já está, não há nada para ninguém, só para mim, nova corrida, nova viagem. O Serafim era, por acréscimo, o nosso Luís de Matos.
O imenso casaco do Serafim Lamelas servia também para guardar o dinheiro da banca, num enchumaço que engrossava cada vez mais. E ninguém me tira da ideia: lá dentro estavam escondidas navalhas, pistolas e até metralhadoras, daquelas de carregadores redondos como nos velhos filmes dos ganguesteres de Chicago mas a cores.

Aquando da Senhora de Antime ou pelos 16 de Maio, que eram então dois dias, e daí decerto tão singular plural, o Serafim chegou a instalar-se encostadinho às escadas da Arcada, do lado mais esquerdo de quem desce, curiosamente o local onde ele e a mulher tinham lugar de feira, às quartas. Os jogadores apareciam ali num repente, como moscas não se sabe vindas donde. Amagotavam-se à volta da mesa, numa arriscada luta de cotovelos encasacados, nervosos, cheios de vício e de pressa, um olho nos números e o outro nas costas, não se desse o caso. O Serafim, que tinha mais olhos do que um razoável quintal com couves, assumia a pose de mestre de cerimónias, orientando a mêlée e reclamando espaço para a função, exibia molhos de notas dobradas no meio dos dedos lestos e, para desviar atenções, exercitava a lábia, muita lábia, debitando ladainhas encantatórias. Os seus lugares-tenentes à coca, um em cada dobrar de rua, tomando conta da polícia, que estava careca de saber daquilo tudo. Um polícia chegava a correr, dizia, num susto, "Vinte escudos no 3, rápido, rápido!", saía o 3, mas é claro que saía o 3, e o polícia desaparecia dali com os bolsos cheios e como se nunca lá tivesse estado.
Se a polícia fosse a sério, em missão, o Lamelas e seus acólitos desmontavam a banca num relâmpago e evaporavam-se com todo o dinheiro que estivesse em cima da mesa. Quando o dia estava a correr mal, faziam este número as vezes que lhes desse jeito. Fingiam que fugiam e mudavam de poiso, levando sempre a massa. E os clientes ficavam num desconsolo burgesso, sem os cinquenta paus da quase aposta, sem o prémio que agora é que era e, não vamos mais longe, porventura também sem a carteira. Era um golpe bem ensaiado. E cinquenta escudos davam realmente para muito vinho naquela altura. Uma tragédia!
Outras vezes, por malandragem, era comum ouvir-se gritar de cima da Arcada, anonimamente, "Olha a polícia!", só para se meterem com o Serafim, e o Serafim, molageiro, aproveitava a deixa ou não, consoante o enchumaço do supercasaco lhe parecesse mais ou menos atravancado e satisfatório.
Vi pilas em muito lado, quando corria atrás da Banda de Revelhe por este nosso Norte festeiro acima e abaixo. Em muito lado, e pilas de vários feitios e díspares dimensões, é preciso que se note. Mas pilas como deve ser, pilas de categoria, pilas a sério, era em Fafe e mais nada. Essa é a verdade, e a verdade é para ser dita. Lamentavelmente, não sei se hoje em dia ainda há pilas em Fafe.
Embora possa parecer o contrário, o nosso pilas era um jogo muito completo. Para além do grande Serafim Lamelas e dos seus homens de mão, do cavalete de ponta e mola e dos algarismos mal-ajambrados, do copo de plástico e do dado porém nunca arregaçado, da polícia infiltrada e dos carteiristas por conta da casa, o pilas fafense revestia-se amiúde de pancadaria, navalhadas e tiros. Mortes, não posso jurar. Mas era realmente uma coisa muito bonita, animada.

terça-feira, 25 de março de 2025

Diálogos fafenses

Quem sai aos seus
Deixe de ser parvo, disse o palerma. E você deixe de ser palerma, disse o parvo. Palerma é melhor que parvo, disse o palerma. Parvo é que é melhor que palerma, disse o parvo. Quem disse, perguntou o palerma. O meu pai, respondeu o parvo. O seu pai é parvo, disse o palerma. E o seu é palerma, disse o parvo. Mas o meu pai é mais palerma que o seu, disse o palerma. E o meu é mais parvo que o seu, disse o parvo. Mas não é palerma, disse o palerma. Nem o seu é parvo, disse o parvo. Dah!, disse o palerma. Dah!, disse o parvo.

Ia-se ao Largo ver os retratos

No tempo dos codaques
A câmara Kodak foi registada pelo americano George Eastman em 1888. E alcançou tamanho sucesso que a marca rapidamente se transformou em sinónimo do próprio produto, em substantivo comum. Codaque passou a significar máquina fotográfica. Ainda hoje, para os mais antigos como eu, um codaque é uma máquina fotográfica, seja de que marca for, e uma máquina fotográfica, seja de que marca for, é um codaque. Ou por outra, trabalho é trabalho e codaque é codaque.
Exactamente como se passou com o sumol, o panique, a gilete, a chiclete, o cotonete, o jipe, o caterpílar, o cimbalino, o jacuzi, o taparuer, a vaselina, o velcro, o quispo, a lambreta, a mobilete, a solarine, o botox, a licra, o post-it, o rímel, o sonotone e as crocas - que eram marcas e passaram a ser coisas.
Actualmente os telemóveis também são codaques, e fazem o serviço praticamente sozinhos.

Houve um tempo em que as fotografias eram tiradas por fotógrafos. Fotógrafos profissionais, competentes, conhecedores, eficazes regra geral, artistas às vezes. Por outro lado, nesse tempo ainda não havia telemóveis e portanto, quando era preciso falar com alguém que não estivesse presente, ligava-se da máquina fotográfica, nada mais simples. Os antigos sabiam tudo e antigamente é que era, estou farto de dizer. Só era pena morrerem tão cedo e sem saberem de quê. Naquele tempo tínhamos dois fotógrafos e nevava em Fafe. Não era preciso ir mais longe. Em Fafe, mesmo no centro da vila. Não era necessário alongar vistas para os cumes da Lameira ou da Lagoa e sonhar aventuras mais ou menos (hi)malaicas. Era ali nas nossas mãos, aos nossos pés, a realidade. O nosso Santo Velho pintava-se de branco, contavam-se os centímetros de altura do "nevão", faziam-se bonecos, pelo menos boneco, com nariz de cenoura e tudo, declaravam-se guerras de bolas de neve, ensaiavam-se trambolhões de criar bicho, chorar era proibido, queixinhas, nem pensar, ou ainda levávamos mais quando chegássemos a casa.
Os campos nas nossas traseiras, onde hoje está o Pavilhão Municipal, encontravam-se de vago e enchiam-se de moçarada brincalhona e apressada, porque a neve era efémera e sabia-se lá quantos anos estaríamos depois outra vez à espera que ela tornasse. Lembro-me particularmente de uma ocasião, um  verdadeiro acontecimento: o Foto Victor com os filhos a fazerem uma festa tremenda, e o Foto Victor a tirar retratos atrás de retratos, fotografias sorrateiramente alpinas que depois expôs, algumas, nas montras da loja em frente aos Correios. Foi um sucesso.
Fafe também tinha disto, nomes assim, esdrúxulos. O Sr. Victor era fotógrafo com porta aberta e o estabelecimento chamava-se Foto Victor. Portanto o Sr. Victor passou a chamar-se Foto Victor. Aliás, como o Foto Jóia, mas este no Largo, à beira do Talho, do Romeu e do Fernando da Sede, como quem olha para o Mário da Louça e para a Electra. Foto Jóia era simultaneamente o nome do "estúdio" e do seu proprietário. "Vem aí o Foto Jóia!", dizia-se, e era a coisa mais natural do mundo.
Curiosamente, nunca apanhei o Foto Jóia no meio da neve, mas lembro-me de que foi ele quem me fez as fotografias para o meu primeiro bilhete de identidade, que era preciso para irmos para França ter com o nosso pai, mas, já de malas feitas, acabámos por não ir, porque o nosso pai morreu no Natal francês, desgraçadamente na neve, um ou dois meses antes da viagem programada, e a minha vida deu então esta volta que é assim.
Fafe era uma terra compacta e tudo acontecia no Largo. A feira semanal, a feira das cebolas, os 16 de Maio, a Senhora de Antime, a Volta a Portugal, cortejos alegóricos, corsos de carnaval, batalhas de flores, circos de manga curta, robertos, gincanas automóveis, corridas de patins, corridas de jericos, corridas de São Silvestre, passagens de ano, dias dos combatentes, desfiles da Mocidade e da Legião Portuguesa, despedidas e chegadas, encontros, reencontros, partidas para a Ultramar. Era tudo ali. O Largo era o centro, o Largo era Fafe. Nas ruas e nos lugares das redondezas dizia-se "Vou a Fafe", querendo dizer que se ia ao Largo.
As lojas dos dois fotógrafos, os seus escaparates, eram locais sagrados de peregrinação na vila de antanho. Aos finais de tarde ou no fim-de-semana, era à pinha. Era famoso o átrio do Foto Jóia. Ali se ficava a saber quem casou, os padrinhos e convidados, quem baptizou, os padrinhos e convidados, quem tirou retrato novo mais ou menos atiradiço sabe-se lá com que fim, amiúde para mandar para Angola, Moçambique, Guiné. Ali se revelavam namoros a estrear, paulnewmans de trazer por casa, misses universo que nunca seriam. As bodas de ouro, as juras de amor, o fato feito por medida, o carro na rodagem, a filha recém-doutora, o soldadinho condecorado na guerra e que haveria de chegar num caixão, a vida dos outros ali escarrapachada atrás do vidro impenetrável, na arte exigente e discreta do preto e branco ou no exagero quase pornográfico da cor, novidade em folha. A vida retocada à mão, porque o photoshop ainda não tinha sido inventado. Era. Ainda faltavam muitos anos para a javardice dos reality shows e para os despudores de todos os facebooks, mas não estávamos mal servidos, não senhor...
Havia uma certa rivalidade entre o Foto Victor e o Foto Jóia, e, estranhamente, também entre as respectivas clientelas, coisa tola, sem sentido, nós em casa por acaso éramos Foto Jóia! Fazia parte, em Fafe, esta maneira de nos dividirmos por tudo e por nada, uns por uns e outros por outros, como claques de nascença e irremediáveis, por causa dos dois clubes de futebol, das duas bandas de música, da Escola Industrial e do Colégio, da Fábrica do Ferro e do Bugio, do Fredinho Bastos e do Tangerina, dos "Bombeiros Novos" e dos "Bombeiros Velhos" e do mais que se pudesse inventar e sobretudo desse para desunir, disputar, desconversar. Era a trave mestra da boa e velha idiossincrasia fafense, concordar apenas em discordar, sem dúvida um bom princípio democrático, mas muito pouco jeitoso para o lado prático da vida. Uma coisa é certa, porém: Foto Jóia e Foto Victor frequentavam ambos o tasco do Nacor, o que, já agora, só lhes abona a respeito, e não me constam notícias de confrontos ou baixas a registar.

segunda-feira, 24 de março de 2025

Filósofos à moda de Fafe

Ainda hoje guardo religiosamente a mão com que uma vez, há mais de trinta anos, cumprimentei mestre Agostinho da Silva.

Eu ouvia-os. Ouvia-os atentamente. E aprendia. O Sr. Ferreira do Hospital, o Sr. José do Santo, o Lininho Leite, o David Alves, o Zé Manel Carriço, o Mola, o Sr. Lem, o Landinho Bacalhau, o Sr. Aristeu da Loja Nova, o Aristides Carteiro, o Tónio da Legião, o Sr. Saldanha, o Cunha da Fazenda, o Zé de Castro, o Manel da Pinta, Nélson Fafe, o Guia, o Júlio Barbeiro, o Zé do Registo, o Quinzinho da Farmácia, Nelinho Barros, o professor Alberto Alves, o Carlos Alberto, o Pimenta, o Toninho da Luísa, o Varinho Dantas, Serafim d'Eiteiro. Era. Eu ouvia-os. Atenta e reverentemente. E aprendia vida. Mas ainda não sabia que eles eram filósofos.

A Milinha Modista

Em zona de construção
Perder a bola em zona de construção é uma chatice. São os taipais, os andaimes, a maquinaria, os buracos, a lama, ferros mais ou menos retorcidos, a obrigatoriedade de uso de capacete, colete de sinalização e botas de biqueira de aço, e ainda por cima é "proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço". Mais vale dizer adeus à bola...

A Milinha Modista era uma instituição no Santo Velho. Chamava-se Milinha Modista, Milinha Costureira ou Milinha Parola, e esta parte do Parola eu nunca percebi porquê, não sei de onde veio, porque a Milinha vestia elegantemente e era uma senhora cheia de classe, sobretudo se não abrisse a boca. Esta Milinha chamava-se estes nomes todos para se distinguir da outra Milinha da nossa rua, a Milinha Vaqueiro, que eu suspeitava, com fundamentadas razões, que fosse dona de uma empresa de margarinas, entre outros negócios mais ou menos secretos. Ela e o Sr. Manuel, o marido, de quem se dizia que era o sapateiro de Salazar e que realmente saía muito, de comboio, com um embrulho debaixo do braço, e voltava uns dias depois carregado de coisas, e sempre se me afigurou um homem misterioso, gentil e triste.

Durante muitos anos eu confundi Agatha Christie com Miss Marple. Quero dizer, a cara de Agatha Christie era, para mim, a cara da veterana actriz inglesa Margaret Rutherford, e só já em adulto é que desfiz o equívoco, perante o verdadeiro retrato da famosa autora de romances policiais, porventura descoberto na badana de um livro. Mais curioso ainda é que, em Fafe, eu mantinha sob apertada vigilância meia dúzia de velhas senhoras que eram Miss Marple de certeza absoluta, por mais que tentassem disfarçar. Senhoras antigas, amiúde intrometidas, vestindo com quase cinquenta anos de atraso, senhoras assim como a minha Milinha Vaqueiro ou como as manas Grilas em dias de maior asseio. Fafe era uma fartura, havia de tudo. Fafe era o mundo inteiro, e essa foi a minha sorte.

A Milinha Modista morava por baixo do Chico Varandas, o herói da nossa rua, o vizinho que uma vez, pelas Festas da Vila, desafiou para a pancada o macaco do Homem Mais Forte do Mundo em pessoa. O prédio do Chiquinho era mesmo encostado à nossa casinha amarela, do lado direito de quem olha para fora. No lado esquerdo era a Milinha Vaqueiro. Os três quintais também eram contíguos e aos olhos uns dos outros. As Milinhas não se davam e a minha mãe é que intermediava.
A Milinha era uma excelente costureira, renomada, muito procurada e disputada pelas mais finas damas da melhor sociedade fafense, que, com excepção da Nicinha, tinham de mandar recado, marcar vez e ir para a fila. A Nicinha, mãe do ilustre Eugénio Marinho, era uma jóia de pessoa e como se fosse família da Milinha.
A Milinha era mestra. E tinha aprendizas. Isto é, aceitava aprendizas, e também era imensa a lista de candidatas e pedidos metidos pelos pais, com recomendações, empenhos, peitas e tudo, mas só três ou quatro, à vez, seriam as infelizes contempladas. Infelizes, de facto. Não eram empregadas nem recebiam salário, pelo contrário, eram crianças e aprendizas para todo o serviço, mulheres a dias, cozinha incluída. E eram também senhoras da limpeza, à força de vassoura, esfregão e espanador, com especial cuidado ao pó sobre os grossos figurinos marcados com nomes, medidas, datas e amostras de tecidos, autênticos calhamaços da penúltima moda criteriosamente dispostos em cima da mesa da sala de entrada. A Milinha era uma mestra enciclopedista, exigente e severa com as suas pupilas.
Na sala de costura, as aprendizas aprendiam sentadas em banquinhos ou cadeirinhas de madeira e infantário, trabalhando em cima de uma tábua ou prancha tenteada em cima dos joelhos, uma tábua ou prancha digamos, hoje em dia, ergonómica, com recorte em meia-lua para a reentrância da barriga, e que decerto até teria nome técnico mas eu não sei qual. Na cozinha, as aprendizas cozinhavam todos os dias na máquina a petróleo e faziam pelo menos uma vez por semana fanecas fritas com batatas fritas, um oxímoro culinário, a bem dizer, cozinhavam mas não comiam, e sei disto tudo porque era visita regular talvez para recados e porque a minha irmã Nanda também por lá andou, coitadinha, antes de ir para a Fábrica do Ferro, que, por estranho que possa parecer, foi a sua salvação.
A Milinha era "dos do Santo", irmã do Sr. José e do Sr. António, lavradores filósofos e meus mestres de vida, e tia do David Alves. Tinha um feitio desgraçado, a mulher. Mal ouvia uma bola a pinchar da rua, saía como um raio de tesoura de costura em riste, a tesoura maior, de corte, e com metros e metros de caralhadas na ponta da língua, ameaçando estraçalhar o esférico à menor tangente, à mínima corrente de ar que sentisse ou adivinhasse junto aos seus vidros, pelos quais nutria uma estima que efectivamente só vista. Se por acaso me descortinava lá no meio da moçarada e do jogo, eu a tentar esconder-me, a Milinha ficava um tudo-nada constrangida, notava-se, mas o que estava dito, estava dito, virava costas e ia para dentro, não sem antes nos lançar um derradeiro e definitivo - Fodei-vos!...

A Milinha adorava-me e eu gostava muito dela. Convidei-a e ela compareceu ao meu casamento, no Porto. Quando, nos anos seguintes, a minha mulher e eu íamos a Fafe, e íamos frequentemente, não tornávamos a casa sem antes passarmos pelo Santo e visitarmos a Milinha, que nos recebia cheia de orgulho e com uma alegria imensa, sentando-nos à volta da velha mesa dos antigos figurinos. A alegria era recíproca, nós também tínhamos muito gosto em estar com a Milinha. Uma vez, nesses reencontros, estive para lhe explicar que fanecas fritas com batatas fritas não é coisa que se faça, mas contive-me e preferi falar do tempo, que estava um rico dia. Fiz bem. Às tantas, ainda era corrido à vassourada...

domingo, 23 de março de 2025

O bom ladrão

Fafe, algures pelos finais da década de sessenta do século passado. Na sala de aula da agora desaparecida Escola da Feira Velha, no meio da parede, por cima do quadro negro, um Cristo crucificado. Carmona à direita da cruz, Salazar ironicamente à esquerda. Eu, que naquela altura já tinha umas luzes bíblicas, nunca percebi qual destes dois era o bom ladrão...

No meu tempo havia respeito

À mesa
Isto devia ser ensinado desde os bancos da escola: o telemóvel não faz parte do talher. O talher é composto por faca, garfo, colher e comando de televisão. Mais nada.

As crianças hoje em dia só aprendem porcarias. É a televisão, é o computador, é o telemóvel, são os jogos, as redes sociais, tudo e mais alguma coisa. Mas só aprendem tolérias, poucas-vergonhas. Não há educação, não há respeito, não há tabuada, não há catequese nem Mocidade Portuguesa. No meu tempo, em Fafe, era outra louça, vinho de outra pipa: jogávamos à macaca, ao moche, ao espeto e ao mamã-dá-licença, brincávamos ao esconde-esconde e aos médicos, íamos às uvas, matávamos pardais, afogávamos gatos, corríamos à coiada os cães e os moços das outras ruas, íamos para a porta do hospital ver chegar a ambulância, levávamos umas reguadas, rezávamos padre-nossos, cantávamos os reis de porta em porta, os mais velhos ensinavam-nos coisas bonitas, apresentáveis, lengalengas e versinhos didácticos, alguns até com música, para ficarem no ouvido, e ficaram. Lembro-me, por exemplo:

- Preta, mulata, nariz de batata, rouba galinhas e mete prà saca.
- Ruço de mau pêlo, quer casar, não tem cabelo.
- Viva quem tem pêlos na barriga, e quem os abaixo tem que viva também.
- Enganei-te, enganei-te, com uma pinga de leite, à porta da missa, a comer uma chouriça.
- Três vezes nove, vinte e sete, quem morreu foi o valete, enterrado na retrete.
- Indo eu, indo eu, a caminho de Viseu, encontrei um burro morto a cagar e a mijar prò primeiro que falar.
- Pipa nova, pipa velha, foi ao mar, não afogou, com licença, meus senhores, aqui está quem se cagou.
- O Manel e a Maria foram ambos passear, o Manel deu um peido e mandou a Maria ao ar.
- Vinho na pipa, couves na horta, se não nos der nada, cagamos na porta.
- Cagarim, cagarou-se, há dois modos de cagar, se o cagalhoto foi grosso, fica o cu o fumegar.
- Ó Mila, o teu pai tem pila; se não fosse a pila, não havia a Mila.
- Sanica o cu, sanica a gaita; sanica o cu e a serigaita.
- Afina a guitarra, a viola toca, afina a guitarra e também a piroca.
- Quem te fosse ao cu e não te pagasse.
- Sexta-feira, sexta-feira, tararam tararam, sexta-feira da paixão, tararam tararam, foram dar com os padres todos, tararam tararam, a ir ao cu ao sacristão. Tararam tararam. Eram sete matulões, tararam tararam, com bigodes no colhões. Tararam tararam. Pontapés e bofetadas, tararam tararam, nas parrecas das criadas. Tararam tararam.
- A puta da minha amiga não tinha que pôr na mesa, cortou as beiças da cona, fez cozido à portuguesa.

Isto, sim, é cultura. É tradição. Antigamente é que era. Era tudo muito bonito. Pérolas como as supracitadas, e há mais de onde estas vieram, deviam ser aprendidas pelos novos fafenses desde pequeninos, para que não se percam. Deviam ser reunidas em opúsculo editado pelo Município e distribuído gratuitamente no Posto de Turismo, na Casa da Cultura, na Biblioteca Municipal, nos cafés e tascos e em todos os outros balcões da especialidade, mas quê, a Câmara não quer saber...
Ai que saudades, rapaziada! No meu tempo havia respeito, instrução. Brincavam-se brincadeiras educativas, respeitosas e saudáveis. Quer-se dizer: brincava-se A Bem da Nação e conforme manda a Santa Madre Igreja.

sábado, 22 de março de 2025

Igreja Nova, pecados velhos

Fafe. Na Igreja Matriz, a igreja velha, os homens ficavam à frente, junto ao altar, e as mulheres ficavam atrás, separadas dos homens por umas pequenas grades. Na Igreja Nova os homens ficavam do lado direito para quem olha para o altar e as mulheres ficavam do lado esquerdo para quem olha para o altar. É. A Igreja Nova representou um indiscutível avanço civilizacional. Um avanço para o lado, amém.

As Turicas e um par de mamas

Poema
Seios
sei-os
ceio-os.

Situemo-nos: Fafe, finais da década de sessenta do século passado. A cidade triste e ausente de hoje em dia era então uma vila buliçosa, boémia e próspera. As Turicas moravam numa enorme e decadente casa aburguesada da Rua Monsenhor Vieira de Castro, mesmo em frente ao Toninho da Luísa, do lado direito de quem desce para o Picotalho ou para a Recta, depois do cruzamento do Santo Velho e, infalivelmente, dos tascos do Paredes e do Zé Manco. Nem cinquenta metros antes, resvés com o prédio do Café Chinês em construção e a longa entrada para a casa das Jerónimas na outra berma da estrada, perigosamente sem passeio, moravam as Grilas. Irmãs, duas, se não me engano, velhas no meu critério de criança, solteironas, desgrenhadas, professoras e misteriosas. Raramente vistas na rua, espreitavam apenas à porta, defendida por um portão baixinho em ferro forjado, e quando meteram telefone em casa ligaram ao meu avô a perguntar se o telefone dos Bombeiros "também tocava em português" como o delas. Que se segue: derivado à proximidade geográfica entre as duas distintas famílias, havia e há quem, mesmo entre os especialistas e seus derivados, confunda as Turicas com as Grilas - o que é uma vergonha e de uma intolerável ignorância numa terra tão prenhe de historiadores e simpatizantes como a nossa.
Mas as Turicas, que foi ao que eu vim. As Turicas também eram irmãs e também eram duas, tanto quanto me lembro. Pequeninas e idosas, resmungonas e prendadas para os mais delicados lavores, faziam renda de bilros sentadas num banquinho junto às imponentes portadas que davam para a rua. Rendas de bilros, isso mesmo. No rés-do-chão do ancestral casarão, as Turicas entretinham-se com uma loja mais antiga do que elas e que cheirava a um mofo muito bom. Vendiam botões e tafetás, fitas de nastro, fechos, colchetes, linhas, lãs, chitas, agulhas e flanelas, sobretudo monos, tudo armazenado há que séculos numas prateleiras altas, enegrecidas e carunchosas. E davam conselhos. Sorrateiramente, vendiam também vinho ao garrafão nas traseiras do estabelecimento, com vistas para um exuberante quintal sem fundo. As boas senhoras, certamente latifundiárias não sei onde, mantinham uma "criadita" que abria a porta a quem ia comprar vinho. E a miúda tinha umas mamas. Uma vez a minha mãe mandou-me ao vinho com dinheiro certo e tempo contado, e eu pedi à rapariga se me deixava apalpar-lhe as mamas numa pressinha. Ela não deixou e eu apalpei. As mamas eram de papel e foi-me um desgosto muito grande. Até hoje.

sexta-feira, 21 de março de 2025

Bai-me à benda!

Leve 5 e pague 6!
Ele era um consumidor compulsivo, adorador de promoções. Se lhe aparecesse à frente "Leve 5 e pague 6!", aproveitava logo.

Fafe é uma grande superfície de grandes superfícies. Não sei se já cá estão todas e se cabem cá todas, porque há sempre lugar para mais uma, mas a verdade é que, tirante elas, sobra cada vez menos Fafe à vista. Atenção: eu não critico a invasão, admito até que esta fartura sem peso nem medida possa ser muito boa para Fafe e para os fafenses em geral, decerto não faltarão argumentos e talvez razões que a justifiquem ou tentem justificar. E também não sei se podia ser de outra maneira. Digo apenas o que vejo. E, chegados a Dezembro, sorrio ao ver o Município anunciar, candidamente, ou então como remedeio ou descargo de consciência, que... "Natal é no comércio local!"

Lostras, sostras e ostras

As massas
Ele gostava de uma boa massa à lavrador, de uma boa massa de marisco e sobretudo de uma boa massa de bacalhau. Também concordava com a vacinação em massa. Quanto à massa de ar quente, não é que desgostasse, mas afligia-o a flatulência.

Talvez por ter nascido em Fafe, e pobre, e nos finais da década de cinquenta do século passado, conheci primeiro as lostras e as sostras e só mais tarde é que soube das ostras. Não estou a queixar-me da minha sorte, é apenas uma confissão que eu precisava de fazer há tantos anos, e agora, dito isto, fiquei em paz. Na verdade, "as ostras", "as lostras" e "as sostras" até são expressões aparentemente parónimas - ora tentai lá pronunciá-las, uma e depois a outra e depois a outra, a ver se não soam à mesma coisa -, mas resultam muito diferentes no que significam.
Comecei naturalmente pelas lostras, ou não fosse eu filho da minha mãe, que nos chegava a roupa ao pêlo com assinalável pertinácia. Bufardos, sopapos, bofetadas, bofetões, galhetas, lamparinas, estampilhas, lostras para todos os efeitos, aprendi isso tudo à minha custa, mesmo antes de entrar para a escola, que em nossa casa era uma fartura pelo menos nesse departamento e eu era muito bom para sinónimos.
Sostras, eu também sabia. Desde pequenino, isto é, desde que tive noção. Sostras. Mulheres sujas e preguiçosas, badalhocas, regra geral o que elas se chamavam umas às outras quando disputavam homem ou coisa parecida. Putas, putéfias, vacas, vaconas, cabras, coirões, coironas. Fazia parte do léxico fafense metido a cotio, era o fafês no seu melhor. Aliás, a palavra sostra, para mim, já naquela idade, trazia com ela qualquer coisa de sexual, de lascivo, de atesoante, dito simplesmente. E, a esse respeito, é preciso que se note que eu, apesar de padreca, fui aquilo que se diz um rapaz precoce, outra palavra que por acaso também me arrebitava sobremaneira, mas eu, não desfazendo, ficava incomodado por tudo e por nada.
Já ostras, o mais parecido que eu lhes conhecia por aquela altura, sem sequer ter ideia dessa estranha ligação, eram sardinhas fritas com arroz de tomate, e que bem que me sabiam. Assim pessoalmente, as ostras foram-me apresentadas teria eu 24 anos, em Bordéus, França. Casado de fresco, cheio de vaidade, fui lá mostrar a minha bela mulher às minhas queridas tias São e Dores, que não puderam vir ao nosso casamento. Levei também a minha mãe e o meu irmão Orlando e merendeiro para um regimento, fomos de comboio, de wagons-lits, num expresso do oriente para remediados e cagarolas, isto é, no Sud Expresso, e tivemos todos um Natal bem porreiro.
Foi por aqueles gloriosos dias que eu finalmente provei as ostras, essa requintada francesice, assim achava, vinham nuns cestinhos muito jeitosos, deram-me a ferramenta para a mão, aprendi a abri-las sem desastre e a comê-las de imediato só com um esguicho de limão, coisa tão boa, coisa tão mar, em Bordéus, França, com champanhe evidentemente, o que eu andei para ali chegar, 24 anos de vida, e as ostras eram de Setúbal, Portugal, estava lá escrito, se calhar foram comigo no comboio, é preciso ser-se muito parolo, eu. E a verdade é só uma: as ostras eram realmente tão extraordinárias como sardinhas fritas com arroz de tomate, nem mais nem menos, sardinhas compradas na Mocha, com sítio à beira da estrada, em frente ao tasco do Paredes e ao lado do Zé Manco, dividindo praça com os tremoços da Marrequinha e as castanhas assadas da Maria Barraca, consoante a época. Foi logo ali, no estrangeiro, que eu percebi pela primeira vez a inegável superioridade moral das nossas sardinhas e a sorte que tenho por ter nascido em Fafe naquele tempo e, ainda por cima, no Santo Velho.

quinta-feira, 20 de março de 2025

Os capados

Houve uma maré em que a minha mãe lavava para fora. Na poça do Santo e no rio da Ponte do Ranha, à beira do Matadouro, carregava e lavava montanhas de roupa alheia. Eu às vezes ia com ela. Aquilo era um trabalho muito duro. Tão duro que eu, preguiçoso por idade e por feitio, como vim a saber mais tarde, fazia tudo para "ajudar". Mas não me deixavam. Nem a minha mãe nem as outras lavadeiras, sobretudo estas. Diziam-me, entre cantigas e caralhadas, que os meninos do sexo masculino não podiam lavar roupa. Se os meninos do sexo masculino lavassem roupa - dizia o mulherio -, quando fossem homens não lhes crescia a barba, ó terrível maldição!
A mim, confesso, nem me aquecia nem me arrefecia, aquilo da barba. Eu já estava por tudo. Tinha 11 anos, faltavam-me duas ou três semanas para entrar no seminário, e logo que lá chegasse - também me diziam - iriam capar-me sem dó nem piedade! Então olha, perdido por um, perdido por mil...

Antes que lhe caia a pirângula

O perigo de ougar
Os anjos não têm sexo. Quer-se dizer: tinham, mas queriam mais, ougaram e caiu-lhes a pirângula, como se dizia em Fafe.

Em terra de pobres, a norma era desougar. Não havia fartura, faltava até o mero suficiente, mas procriava-se com prazer, abundavam evidentemente as crianças, e então dava-se-lhes apenas a provar, e por uma boa razão, essencial, para manter os futuros homens inteiros e artilheiros, como adiante se verá. Ougava-se muito, antigamente, sobremaneira cá em cima, no velho Douro, em Trás-os-Montes, no nosso Minho, em Fafe especialmente, lembro-me bem, ougava-se, noutros sítios do Portugal triste e escanzelado dir-se-ia decerto doutra maneira também pândega para disfarçar, mas a querer dizer sempre o mesmo: pobreza. Fome, quando não.
Ougar, de augar, de aguar. Ougar, isto é, salivar ao olhar para comida ou bebida de outrem, ficar com água na boca, sentir grande desejo de. Ougar era muito perigoso naquele tempo, porque, dizia o povo, que sabia tudo embora morresse cedo, quem ficasse ougado, quer-se dizer, desconsolado, contrariado, carente, invejoso, em situação de grande desprazer ou de pasmaceiro apetite ao ver, caía-lhe redondamente a pirângula, isso mesmo, a pirângula, não sei se os acessórios também, e a ideia de um futuro homem sem pirângula e quiçá também sem acessórios, hoje em dia a coisa mais natural do mundo, não era ideia que se tivesse naquela altura sem o incómodo de um penetrante arrepio pela espinha acima.
Por isso, entre os pobres, era muito importante atalhar a coisa, desougar - o gado, com um pequena porção de penso, mas não é isso que vem aqui ao assunto, e fundamentalmente as crianças, coitadinhas, mais que as mães, ruins de aturar, com mais olhos do que barriga, borradas, chorosas, moncosas e cobiçosas de tudo o que viam ou pressentiam à frente dos outros. Desougar era dar um bocadinho. Desougar era uma urgência. Desougava-se para impedir o ougamento, para poupar um par de estalos (geralmente não, acumulava), para acabar de vez com a lamúria e, em todo o caso, para preservar a integridade pelo menos física do pedinchoso. À mesa, mandava, solene, quem era de lei, o homem: - Caralho, mulher, desouga o moço, dá-lhe um cibo antes que lhe caia a pirângula!...

quarta-feira, 19 de março de 2025

Pica, 6 - Fareja, 0

Fafe tem nomes que são um mimo, uma primeirinha. Uma terra que tem um lugar chamado Pica e uma freguesia chamada Fareja só pode ser uma grande terra. E Fafe é realmente. Gosto de contar esta minúscula história: em pleno Verão de 2014, por acaso em dia de apuramento para a Liga dos Campeões, Pica e Fareja, equipas de futebol, fizeram um jogo-treino, e o resultado, sendo contundente, não significa nada por aí além, a não ser que dá para rir: Pica, 6 - Fareja, 0.
E era isto. Mas é preciso que se note: para quem é de Fafe, como eu sou, Fareja e Pica são nomes absolutamente normais, corriqueiros, que só fazem confusão ao jornalista ou ex-jornalista Nuno Azinheira, famoso comentador social, que chamou Fajães a Fareja, e a uns caralhos de fora que não conseguem passar pela tabuleta da Pica sem lhe meter a cedilha...

O Febras e o amigo da naifa

Homem que é homem
Homem que é homem, coça-os. Esse gesto tão masculino de esfregar entusiasticamente o escroto enquanto se conversa com o amigo. Amigo homem, evidentemente. Aliás, coçam os dois, cada qual coça o respectivo, porque são ambos homens, muito homens. E esse outro gesto tão masculino de, acabada a conversa e a ecuménica coçadela, darem-se uma mãozada forte e bem abanada, machos até mais não, "um destes dias temos de ir jantar".

O Febras, o Armando Febras de Fafe, guiava um velho camião geralmente cheio de areia e era a única pessoa que eu conhecia que "fez a guerra" em Timor, se não me engano. Diga-se, para princípio de conversa, que o Febras era um tipo porreiro, bom amigo, e tinha uma grande pancada naquele tempo. Uma vez falhou a gasolina em Fafe e no resto do País, segundo as notícias, e os carros faziam longas filas que davam duas ou três voltas ao Largo para abastecer. O centro mais central da vila estava armadilhado com três bombas de gasolina, duas das quais, Sonap e Mobil, encostadas uma à outra, lado a lado, como na canção de Tony de Matos. Os condutores desligavam os carros, saíam e empurravam a respectiva viatura consoante a fila ia avançando a conta-gotas. O Febras tinha o camião apontado exactamente àquele par de bombas muito bem estabelecidas ali entre o jardim do Monumento e o correr do Martins da Avenida até à Caixa e não largava o volante, até porque lhe faltava disposição para descer e levar o veículo pelas orelhas. Aquilo era preciso madrugar para garantir um bom lugar na fila, havia até quem fosse para lá de véspera, portanto é bom de ver que pelo meio da manhã já estava tudo com os nervos em frangalhos. E o que é que acontece? Assim que tal, a fila anda um bocadinho, metro, metro e meio, mas o carro imediatamente à frente do Febras nem se mexe. O Febras buzina. E o carro, nada. O Febras torna a buzinar. E o condutor do carro faz aquele sinal internacional descrito no código da estrada como "passa por cima". E o Febras arranca. Evidentemente não passa por cima do carro, isso só ocorre nos filmes americanos, mas leva-o à frente, empurra-o de zorra, um metro, metro e meio. O do automóvel, apanhado de surpresa, barafusta, gesticula destrambelhado. O Febras sai então do camião, disposto à pancadaria, a polícia, que rondava por ali, faz de conta que intervém para evitar males maiores, mas nem toma conta da ocorrência, e fica tudo em águas de bacalhau, porque, lá está, era o Febras, e o que é que se havia de fazer?

Curiosamente, anos mais tarde, o Armando Febras viria a ser agente da autoridade local e parece que ainda emigrou para a América, onde não sei se realmente chegou a passar por cima de automóveis ou não. Mas antes disso, em Abril de 1977, ele fez parte de um extravagante grupo de fafenses que foi a Lisboa de camioneta para apoiar a AD Fafe no famoso jogo com a CUF para a Taça de Portugal. Desse bando, que viveu uma noite maluca pelas ruas do Bairro Alto ou talvez Alfama, com a polícia atrás e tudo, constavam também, entre outros, o Pimenta, que certamente organizara a excursão, o Machadinho e o Manel Caixeiro maila sua inseparável pistola. Eu não podia faltar, mas era o mais novo e inocente de todos, posso porventura dizê-lo. Esta parte da história fica, porém, para outra vez.
Quero contar é do amigo do Febras que veio ter connosco ao Campo das Cebolas, que era o sítio onde as camionetas das excursões pernoitavam em Lisboa, à beira-Tejo. Amigo do peito, unha com carne, colega da tropa a matar saudades. Um velho camarada de armas do Armando e, portanto, a segunda pessoa que eu conheci que "fez a guerra" em Timor, se não estou em erro. Falava com cerrado sotaque lisboeta, alfacinha, malandro, gingão, macho até dar com um pau, "gajas" acima, "gajas" abaixo, tinha ouro ao pescoço e nos pulsos, anéis, molhos de notas, camisa havaiana, botas de cobói, navalha de ponta e mola e um suspeitíssimo Ford Capri que fazia piões de porta aberta.
Isso. Piões de porta aberta. Tantos, tão apertados e a tal velocidade, que no decurso de um deles o indivíduo saiu disparado do automóvel, caiu violentamente no chão, redondo, bateu com a cabeça, levantou-se em ricochete, num imediato e improvável pulo de kung fu, soltou um grito de guerra lá deles, apanhou os óculos de sol, sacudiu o pó da roupa, entrou no carro, que continuava a andar em círculo, fechou a porta com elegância e arrancou a todo o gás em direcção ao sol poente.
E eu passei a compreender muito melhor o nosso Armando Febras.

terça-feira, 18 de março de 2025

O Albino Carpinteiro e o Carpinteiro Albino

Havia o Carpinteiro Albino. E havia o Albino Carpinteiro. Carpinteiro Albino era de Elvas, corria em automóveis e ganhou o primeiro Rali de Portugal, assim chamado, em 1967. Albino Carpinteiro era nosso, da Ponte do Ranha, se não me engano, de Fafe e do Fafe, artista de mão cheia, guardião bricoleiro do estádio e faz-tudo municipal.

Tocavam sempre duas vezes

Marques do Correio
O Marques do Correio aposentou-se ao fim de quase 50 anos de serviço nos CTT. Figura popular e generosa, profissional de uma competência insuperável, admirado e estimado dentro e fora do serviço, em Portugal e até no estrangeiro, o velho Marques ficou conhecido sobretudo por ter inspirado uma bonita cantiga celebrizada pela voz extensa e quente de Alberto Ribeiro e intitulada, nem de propósito, "Marques do Correio", derivado exactamente ao nosso Marques propriamente dito.

Os carteiros de Fafe eram homens poderosos. Traziam dinheiro, levavam notícias e, sobretudo, sabiam tudo de toda a gente. A vida toda. A situação económica, a saúde, o casamento, os filhos, as inclinações políticas, desportivas e religiosas, sabiam de quem saltava o muro ou mijava fora do penico. Sabiam de mortos e de vivos. De virgindades, desconsolos, infidelidades e viúvas. Isso, de viúvas é que eles sabiam! E eram casamenteiros, espertos promotores de segundas núpcias. Viesse algum homem de fora à procura de uma viúva fafense ainda em uso para casar, era só perguntar ao carteiro. Ele levava o pretendente à porta certa. "Nova, jeitosa, trabalhadora e limpa", prometia, na melhor das intenções. À minha mãe foi-lhe oferecido um abastado batateiro transmontano, tinha camioneta e tudo, mas ela optou pela viuvez para o resto da vida. Foi pena. Estaríamos hoje todos muito bem...
Mas era assim. Para os nossos carteiros, não havia segredos na vila e arredores. Seriam um perigo, se por acaso não fossem também boas pessoas - e realmente eram-no.
A Polícia daquele tempo vestia uma farda de terilene cinzento, que era a cor da Autoridade e do País. Os carteiros também vestiam de cinzento, com boné e tudo, mas em cotim. A outra diferença é que os carteiros eram nossos amigos. Gente de categoria, profissionais prestáveis, pessoas decentes. Fafenses excelentíssimos, sem dúvida e sem favor.
Lembro-me do João da Quintã, irmão do Avelino do Café e casado com a Deolinda do Tónio Quim Calçada, o João que depois desistiu de ser carteiro e foi com a família para o Canadá, se não estou em erro. Lembro-me do António Cunha, também bombeiro e assíduo camarada de conversa. Lembro-me do bom Belarmino Freitas, casado com a Licinha Mota da Casa Satierf, que queria dizer Freitas ao contrário. Lembro-me evidentemente do pândego Aristides e estou em crer que ainda me lembro também do pai do Aristides, o carteiro Egídio, se a memória não me atraiçoa. Deveria decerto lembrar-me de mais ilustres carteiros da nossa terra, parece-me até que estou a vê-los, os rostos, as figuras, o modo de andar, mas infelizmente não me ocorrem os nomes que lhes correspondam. E peço desculpa pela involuntária omissão.
Para além de poderosos, eram intrépidos os nossos carteiros. Valentes. A calcantes, de bicicleta chocolateira ou numa velha motorizada de serviço, saca de couro a tiracolo, enfrentavam as mais violentas intempéries e até cães. E eram persistentes. Tocavam sempre duas vezes, como no cinema, e três e quatro e cinco e seis, tantas vezes quantas fossem necessárias para serem atendidos, se sabiam - e sabiam sempre - se havia gente em casa. Eles é que decidiam o que era urgente e o que podia esperar para o dia seguinte. Se fosse preciso, tratando-se de dinheiro ou de documentação importante com prazos a respeitar, diligências melindrosas que não podiam nem deviam ficar ao cuidado de vizinhos, então eles próprios, os carteiros, extrapolando obrigações e abandonando a rota determinada, iam à procura dos destinatários aos sítios alternativos do costume, aos locais mais extraordinários mas já conhecidos, habituais, na feira, na poça, no tanque público, no rio, nos campos, no café, no tasco, no campo da bola, à porta da igreja, palavra de honra, era mesmo assim que as coisas se passavam.
"Que nós bem, graças a Deus", dizíamos nas cartas que mandávamos aos nossos entes queridos, e estava certo, quero acreditar. Graças a Deus, que tudo sabe e por todos olha. Mas também graças aos carteiros. Pelo menos os de Fafe não Lhe ficavam muito atrás. E por eles esperávamos, ansiosos mas confiantes, "até à volta do correio"...

segunda-feira, 17 de março de 2025

Aldrabons e aldramaus

Por que razão medram tanto os aldrabões em Portugal? Por que razão vamos a votos e mandamos para o poleiro os aldrabões, de variada cor, como se por acaso acreditássemos neles, regra geral? Os aldrabões que antes e/ou depois estão nos bancos, nas edepês, nas caixas, nas renes, nas cepês, nas referes, nas misericórdias, nos metros, nos centímetros, nas construtoras, nas destrutoras, nos superescritórios de advogados, nos supermercados de escravos, nas fundações, nas afundações, nas jotas, nas motas, nas assessorias, nas tias, nas televisões e nos jornais, no parlamento, no barlavento e no sotavento, e têm do povo uma vaga ideia. Por que razão, se nos queixamos tanto deles?
Andava com esta dúvida fisgada nem sei há que tempos, mas no outro dia tive a inesperada revelação, quase sem querer, ao ouvir um minhoto retinto a falar. Um minhoto de Fafe, evidentemente, dos nossos. O homem antigo falava de não sei quem e chamava-lhe aldrabom. Isso, aldrabom. Os minhotos de cá de baixo agarramo-nos ao pouco que já nos resta do galego purinho e falamos assim, trocamos o excêntrico ão pelo ancestral om, daí a confusom, e se calhar acreditamo-nos: ora aí está um aldra que é bom, pensamos na melhor das nossas intenções e caímos na esparrela. Porque "eles" não são aldrabons. São aldramaus.

Os amigos do Gaspar

De costas para a baliza
A crítica dizia que Anselmo jogava muito bem de costas para a baliza. E não admira. Anselmo era guarda-redes.

Gaspar, que defendeu as cores da AD Fafe na época de 1976/77, é o mais jovem guarda-redes de sempre a estrear-se na primeira divisão do futebol português. Fê-lo aos 16 anos, na baliza do Atlético, na temporada de 1966/67. E o recorde não se me afigura fácil de bater.
Internacional júnior por Portugal, Gabriel Gaspar estava já no SC de Braga quando, na recta final do campeonato de 76/77, veio emprestado para Fafe, para substituir o velho Antenor, que se lesionara. E foi a nossa sorte. Recebemos um grande guarda-redes para o lugar de um guarda-redes grande.
Gaspar, no treino e em jogo, era impressionante. A par de Quim, terá sido certamente o melhor guarda-redes que eu vi defender as balizas da AD Fafe. No final da temporada foi embora, evidentemente, mas antes ainda teve tempo de luzir a grande altura na nossa primeira meia-final da Taça de Portugal, contra o FC Porto, no Estádio das Antas, numa quarta-feira à noite de todas as memórias, os jogadores em campo a estrearem um equipamento futurista, de encher o olho, tipo "Espaço: 1999", e nós ali em peso no Superior Norte, orgulhosos, barulhentos e com uma pontinha de fé.
Perdemos brilhantemente por 3-0, com 1-0 ao intervalo. Para nós, os das bancadas, foi praticamente um empate, pelo menos um empate, e viemos para casa todos contentes, com a honra intacta, ainda orgulhosos, ainda barulhentos e ainda com uma pontinha de fé, ai se não fosse aquele penálti...
Gaspar fez um jogaço, só não defendeu o impossível. No jornal A Bola, o jornalista Alfredo Barbosa fazia título de página inteira, a duas linhas: "Uma exibição memorável do guarda-redes Gaspar".
O FC Porto, treinado por José Maria Pedroto, alinhou com Torres, Rodolfo (Gabriel), Teixeira, Freitas e Murça; Octávio, Celso e Oliveira (Ailton); Seninho, Duda e Gomes. Uma equipa de champions, como hoje se diria.
O Fafe, orientado por Nelo Barros, apresentou-se com Gaspar, Lopes, Teixeira, Castro e Leitão; Manuel Duarte, Romão e Valença; Cartucho, Edvaldo e Jorge. Eram Gaspar e os amigos. Tomaram muitos, hoje em dia, uma equipa assim na primeira liga. E foi bonito de ver o Leitão todo o jogo à procura de acertar o passo ao supersónico Seninho, que passava por ele como uma bala, mas só lhe acertava de vista. E o Leitão era um portista ferrenho...
No ano seguinte, já sem Gaspar, haveríamos de repetir a façanha, a meia-final da Taça, contra o Sporting, em nossa casa, e outra vez a maldição do penálti, aqui definitivo. Mas isso é outra história.

domingo, 16 de março de 2025

Os pegantes ao andor

- Atenção, muita atenção! Pede-se a comparação dos pegantes ao andor da Senhora do Alípio junto ao clipe onde estão os antifalantes.
Aos anos que isto vai, ali para os lados de Amares, ainda as romarias não eram abrilhantadas com Fernando Rocha e rulotes de fast-food, mas por lá andaria a nossa Banda de Revelhe. E que saudades que eu tenho desse tempo visionário e vanguardeiro em que o acordo ortofónico não havia sido inventado mas já era galhardamente roufenhado por altifalantes elevados às mais eucaliptais cruchas, para que a coisa cá em baixo não passasse despercebida lá em cima a Deus Nosso Senhor, que é praticamente tão brasileiro como português.
Decerto que a procissão saiu e o andor da Senhora do Alívio também. Já não sei como é que correu a "comparação". Nem me lembro em que estado terá chegado ao "clipe" o grupo de "pegantes" retardatários. Mas devia ser líquido.

Tramado pelas Grilas

Como aprendi no cinema, o mundo divide-se em duas partes: polícias e ladrões, índios e cobóis. O resto é desculpa, distracção...

Eu também fui preso antes do 25 de Abril. No meu tempo de estudante, em pleno turbilhão da crise académica de 1969, andava na quinta classe e ia para a Escola da Feira Velha quando fui detido pelo polícia, preso pelo cachaço. Fiz a quinta classe com o professor Fernando, "Conhé" para os alunos, e não há engano, houve realmente um tempo, se bem que breve, em que a quinta e a sexta classes existiram e eram, por assim dizer, o liceu dos pobres. E fui preso porquê? Porque achei um bocado de giz no chão e escrevi "Senhoras Donas Grilas" na parede da casa das Grilas propriamente ditas. Há horas do diabo e o cívico estava lá, pontual e flagrante, mesmo atrás das minhas costas. Apanhei um susto que ainda hoje tremo e, digo isto sem peneiras, ia-me borrando todo.
As Grilas eram mesmo ao lado do prédio do Café Chinês, que então se construía na Rua Monsenhor Vieira de Castro. Irmãs, creio que duas, velhas, na minha ideia de miúdo, solteiras e desgrenhadas, professoras, dizia-se, e misteriosas. Raramente vistas na rua, espreitavam apenas à porta, defendida por um portão baixinho em ferro forjado. Eu morava ali à beira, ao dobrar da esquina, no Santo Velho, e as senhoras até gostavam de mim. Mesmo depois da tratantada que lhes perpetrei e que, graças a Deus, nunca lhes chegou aos ouvidos. Sabiam que eu era filho da "viúva da Bomba" e isso valia muito em Fafe. Quando eu passava, as Grilas diziam-me sempre qualquer coisa simpática, só com a guedelha grisalha e o nariz de fora, e uma vez deram-me um santinho. Obviamente não mereciam a traição que lhes cometi.
Mas que se segue: o prédio do Café Chinês estava a ser construído e as Grilas, que já lá moravam resvés, queixavam-se das obras e dos operários. Queixavam-se do barulho e da insegurança, de tudo e de nada, barafustavam que a casa ia abaixo, era berraria o dia inteiro, guinchos de um lado e palavrões do outro, que até foi preciso chamar a Polícia. A Polícia veio e ficou. Dias e dias. Um agente sempre a rondar e a deitar os olhos ao conflito durante as horas de expediente, não fosse a coisa passar a vias de facto.
Ora, foi exactamente o desprezo por este pequeno pormenor que me tramou. Quando o toco de giz me apareceu aos pés a tentar-me e eu não resisti a apanhá-lo e a sarrabiscar "Senhoras Donas Grilas" na parede das ditas, palavras não eram escritas e já estava a ser levantado por um potente garibalde que me agarrou em tenaz pelo cachaço e perguntou: - O que é que o senhor está a fazer?
Olhei para trás e o garibalde era um polícia. O senhor era eu mais os meus onze anos, o que me fez imediatamente desconfiar que estava metido em caso sério. Com o giz na mão e a última perninha do "s" final ainda a fumegar, respondi: - Nada... - e ainda hoje acho que respondi com grande categoria.
E o polícia: - Onde é que o senhor mora? E eu, que não queria a minha mãe metida na ocorrência, até porque era melhor para mim: - Moro longe. E ele: - Então, vamos para a esquadra. E eu, sabendo que já naquele tempo os móveis das esquadras eram extremamente perigosos: - Enganei-me, senhor polícia, desculpe, moro já aqui no Santo...
O polícia deixou-me finalmente aterrar, empurrou-me para casa, ainda com a tenaz no meu cachaço, o João do Zé Manco viu, veio a correr acudir por mim e foi à frente prevenir a minha mãe, repetindo sem cessar: - Sinha Alexandrina, ele não fez mal nenhum! Ele não fez mal nenhum! Fiquei a dever uma ao João, até hoje, e já não sei dele há mais de quatrocentos anos. Dessa vez a minha mãe não me bateu. E ainda agora me diz que, para além da cunha do João, levou em devida conta, como atenuante, o facto de eu ter escrito "Senhoras Donas Grilas" e não "Grilas" simplesmente. "Senhoras", com toda a consideração. Para a minha mãe, respeito e educação acima de tudo, mesmo em plena patifaria.
Fui condenado a limpar a parede das Grilas com um pano molhado, cumpri pena e segui para a escola, de coração a mil e tremente como varas verdes. Curiosamente, as varas verdes eram também uma vigorosa especialidade da minha querida mãe. Percebeis então do que me livrei e os perigos que corri?

sábado, 15 de março de 2025

Coisas do carvalho

A landre
A landre, é preciso que se note, já serviu para a nossa alimentação. O povo - isto é, o pobo - chamava-lhe também bolota ou glande. E há quem agarre na glande e dela faça carvalho.

Há quem diga que Fafe tem a maior mancha contínua de carvalhal da Península Ibérica, e até quem, achando pouco, acrescente que é a maior mancha contínua de carvalhal de toda a Europa. O fenómeno será ali por aquela corda de Aboim e Várzea Cova, realmente carvalhal até dar com um pau - muito ainda para arder, como costuma dizer o meu amigo Lopes.
Na vila antiga também tínhamos o nosso Carvalhal, assim com maiúscula inicial porque era nome de sítio, entre a Fábrica do Papelão e o Picotalho, ladeando o rio Ferro e estendendo-se aos pés do extinto monte de Castelhão até Cavadas, onde agora vicejam campos de futebol, rotundas e supermercados. Chamávamos-lhe Carvalhal porque tinha carvalhas, bem jeitosas para fazer baloiços de pneu e outras brincadeiras, chão ervado e limpo, sombreado, um mimo para passar tardes de sábados e domingos à roda de um bom merendeiro, famílias, grupos de amigos ou bandos de moços aos cobóis, com todo o respeito pelos campos cultivados ali à beira. Era o verdadeiro "parque da cidade", mas nem fazíamos ideia. E em São Gemil havia outro. E mais dois ou três sítios assim, bouças e carvalhais, conforme vieram ao mundo e de usufruto universal. Vivíamos no paraíso, inocentes e despreocupados, sem fazer caso, sem dar valor. Até que um dia.

A hora de Serafim d'Eiteiro

O despertar do filósofo
- A vida é uma imensa linha recta cheia de curvas, e cada subida concomita-se numa irrefutável descida, vice-versando - disse o filósofo, ao pequeno-almoço.
- Chega-me o açúcar - disse a mulher do filósofo.

Serafim d'Eiteiro tinha uma sombria loja de fazendas em Cima da Arcada, por baixo do Club, e era homem de voz grave e piada fina, um figurão com o seu quê de filósofo. O apelido "d'Eiteiro" suponho que fosse natural corruptela de "do Outeiro". Lugar do Outeiro, Antime, donde creio que era este ilustríssimo fafense, ou seriam pelo menos os seus ancestrais. Serafim do Outeiro igual a Serafim d'Eiteiro, assim terá decidido o povo, na sua provecta e indesmentível sabedoria - mas estou apenas a deitar-me a adivinhar.
Alto, magricela, de fato todos os dias, Serafim d'Eiteiro frequentava a sala das traseiras do Peludo, onde, naquela horinha após almoço, se jogavam umas bilharadas iglantónicas. Aquilo era coisa constada, só para artistas diplomados e (aqui que ninguém nos ouve) até metia apostas a dinheiro, reunindo sempre uma pequena multidão de espectadores dados ao palpite e a gozar o parceiro. Era ali o fim do mundo, havíeis de ver! Em Fafe, naquele tempo, era tudo de arrebenta.
E uma vez foi demais. Eu era puto e estava lá. Um dos jogadores, desgraçadamente em dia não e alvo único e reiterado da chacota geral, perdeu de repente as estribeiras e, varando com os olhos a plateia ali à roda, atirou, cheio de raiva e perdigotos: - Ide todos para o caralho! Todos!
Mas nisto encarou o respeitável comerciante, pessoa de outra idade e estatuto, teve um rebate de consciência e resolveu abrir uma honrosa excepção: - Todos, não. Faz favor de desculpar, senhor Serafim, não é para si -, corrigiu o bilharista azarado e despeitado porém atencioso, botando giz no taco.
Sentado logo à entrada depois do degrau, lado esquerdo, no canto por baixo do velho rádio Philips dos relatos domingueiros, Serafim d'Eiteiro disfarçou um sorriso maroto atrás do fumo do ininterrupto cigarro sem filtro e respondeu naquela maneira vagarenta de falar que dava ares de sabedoria: - Muito obrigado pela deferência, mas aqui sozinho é que eu não fico. Se é para ir, eu também vou...
E era assim a vida.

Os melhores anos da minha vida 2

Foto Tarrenego!

Claro que crescíamos e éramos cada vez menos. As calças à boca de sino não ajudam muito à seriedade do acto e as guedelhas anticanónicas colocam-nos nos arredores do 25 de Abril. Por aí estávamos, de facto - o que me foi fatal. Já não éramos meninos. Alguns destes cromos deram em padres, consta-me que já vão em cónegos, mas não sei de que categoria. Os cónegos, como já aqui expliquei, dividem-se em três partes.

Há três dias que olho para esta fotografia, e o que me vai realmente na alma não é para aqui chamado. Olho para a fotografia e parece-me (nunca me tinha apercebido) que, por um aviso qualquer, nos juntámos todos à volta do Miguel Carlos. Miguel Carlos Lobo Pinto de Oliveira, se não me engano. E nunca o esqueci.

sexta-feira, 14 de março de 2025

À espanhola, mas sem castanholas

As barbas de molho
Até que um dia, de tanto ouvir falar naquilo, ele pôs as barbas de molho. Mas nunca soube para quê. Se ainda fosse bacalhau! Ou, vá lá, pelo menos uns tremoços...

Antes que o mundo acabe, faço questão de esclarecer o seguinte: bacalhau à espanhola não é caldeirada de bacalhau, tampouco ensopado de bacalhau. Ide a Fafe a aprendei: bacalhau à espanhola é um prato que pede azeite e não água. Perguntai aos antigos. É quase um guisado, de molho grosso e aveludado, e com o tempero apurado até aos limites legais de sal, pimenta, alho, louro e salsa. Por mim, também malagueta. Colorau, um nada só para dar cor, mais dourada do que vermelha. E, tomai nota, o pimento e o tomate são duas desnecessidades usadas apenas por quem pensa, mas não sabe, que só assim é que é "à espanhola". Erro crasso. O bacalhau à espanhola é à portuguesa! É à moda de Fafe, como era feito em todos os lares, ricos, pobres ou entremeados, pensões, tascos e saudosas casas de pasto da minha terra. Depois chegaram os restaurantes. E os snack-bars. E as tascas. E escangalharam tudo...

(Falo em fim do mundo e falo a sério, e não em cuecas, porque isto aqui não está para brincadeiras, um destes dias acordamos e está tudo morto, peço desculpa por ser tão cru. Entre solstícios e eclipses, luas de sangue, meteoros, asteróides, cometas e sextas-feiras 13, terramotos e terroristas, Elon Musk, Donald Trump e Vladimir Putin, claques de futebol, Montenegro e rusgas policiais, basta uma corrente de ar, coisinha de nada, um arzinho que lhe deu, e a casa vem abaixo, quer-se dizer, já não há mais bacalhau para ninguém. O que é pena, porque, sejamos honestos e reconhecidos, o bacalhau é o melhor amigo do homem, só lhe falta ladrar, e, se tivéssemos mais um bocadinho de tempo, de mundo, vamos dizer assim, se calhar o bacalhau... au... au ainda lá ia.)

De volta ao tacho, ao nosso bacalhau à espanhola. O bacalhau até pode ser de quarto, daquele que, inteiro, não mede mais do que um palmo, e pode ser pouco, praticamente espinhas. Não faz diferença nenhuma. O importante é o gosto que o bacalhau empresta, o equilíbrio do tempero geral, a consistência da molhanga. Quando eu era pequeno e os tempos eram de mais pobreza do que agora, a minha mãe fazia um bacalhau à espanhola a que, honestamente, chamava batatas à espanhola. E vós não fazeis ideia do que perdestes por nunca terdes provado as batatas à espanhola da minha mãe...
E pronto, era isto. O mundo já pode acabar. Estou preparado, enfim de consciência tranquila. Andava com esta espinha atravessada na garganta, mas está o assunto resolvido. E agora, se me dais licença, vou à cozinha salgar uns ossinhos da suã para o almoço de domingo.

O último comunicador

Os Sá Morais
Os Sá Morais são uma família muito antiga. Remontam, pelo menos, ao século X, no Japão.

A minha missinha das oito era ouvir o Prof. José Hermano Saraiva (1919-2012) a contar histórias na RTP Memória. Já o sabia de cor como ao padre-nosso, mas gostava de o ter ali, exactamente ali, a servir de música de fundo ao meu jantar. E a minha mulher também apreciava. Aqui que ninguém nos ouve, o homem tinha tanto de historiador como eu de monge tibetano, o que lhe dava ainda mais valor: porque não há quem invente História tão bem como ele inventava, não há quem estraçalhe com tanto panache tudo o que os verdadeiros especialistas escreveram com rigor, substituindo-o, num estalar de dedos, pelos seus próprios supores, e não há quem depois diga tudo o que acha com tanta graça, com tanta clareza, com um português tão perfeito e tão acessível e com tanta convicção como ele dizia. José Hermano Saraiva era único. Ele era o comunicador.
O professor sabia compor os "factos" como ninguém, sabia pintar a "realidade", conseguia fazer com que a sua História fosse sempre melhor e mais bonita do que aquilo que efectivamente se passou. E era cativante a contar. Vendia bem. Muitas vezes não era verdade o que ele dizia, mas podia ter sido, e a sua versão era sempre muito mais interessante do que a verdade ela mesma. Quase que se poderia dizer que, inadvertidamente, José Hermano Saraiva foi o inventor do moderno jornalismo português.

Ministro da Educação de Salazar, José Hermano Saraiva esteve no centro do vulcão que foi a crise académica de 1969. Figura polémica, criticado nos meios intelectuais e políticos, o professor ganhou o coração de sucessivas gerações de portugueses através dos programas que fazia para a RTP. Penso, porém, que o fantasma do seu passado fascista às vezes ainda o incomodava. Num episódio onde revisitava os retratos dos vários presidentes da República, no Palácio de Belém, o professor deixou cair um curioso comentário sobre Canto e Castro, creio, que era monárquico convicto e assumido, que foi mesmo deputado no tempo da monarquia (eu percebi "ministro"), mas que ocupou depois, ainda que por pouco tempo, o cargo de chefe de Estado no novo Portugal republicano. "Fez a transição com elegância...", concluiu José Hermano Saraiva, e foi óbvio para mim que ele estava era a falar de si próprio, aproveitando para meter a ficha, como quem não quer a coisa, em mais um pouco de Omo.

José Hermano Saraiva foi considerado, sem favor, uma das "dez caras mais emblemáticas da RTP", num ranking que há década e meia elaborei para a revista de fim-de-semana do jornal 24horas, entretanto liquidado. O humorista Nilton dizia-me então que "nem o Google sabia tanto de História" como o velho professor. Saraiva era um fenómeno de popularidade em Portugal e em todo o mundo onde se falasse e ouvisse português. Os seus programas na RTP - O Tempo e a Alma, A Alma e a Gente e Horizontes da Memória - foram anos a fio o menos e o mais que muito e bom povo aprendeu da História de Portugal.
Jurista de formação e historiador por vocação, antigo embaixador de Portugal no Brasil, José Hermano Saraiva era personalidade sem consenso sobretudo ao nível das chamadas elites pensantes. Os que não gostavam dele criticavam-lhe uma certa visão fantasista da História e o facto de não possuir qualquer grau académico superior nesta área do saber. Os seus defensores preferiam enfatizar as suas inegáveis capacidades de comunicador e de divulgador cultural junto das camadas menos instruídas da população. Alheio a estas guerras do alecrim e da manjerona, Saraiva continuava a ser uma presença assídua, entusiasta e apreciada na TV.

Comecei por dizer que gostava de ouvir o professor na RTP Memória. Ali, nas repetições, nas repetições das repetições, onde ele era ainda um jovem de 80 anos cheio de genica. Mas incomodava-me ver os seus novos episódios na RTP 2. Não conseguia, mudava de canal, perdia a missinha, Deus me perdoe. Não lhe deviam ter feito aquilo. Não o deviam ter deixado fazer aquilo.
José Hermano Saraiva tinha 92 anos e continuava na TV. Era uma boa notícia em absoluto, apesar dos meus incómodos, que para o caso são irrelevantes. Então como antes, novas gerações poderiam continuar a aprender com ele, se não História a sério, pelo menos a falar bom português e a respeitar e a amar o nosso património. Mas era preciso que se percebesse o que o pobre homem dizia naqueles monólogos já infelizmente inenarráveis.
Sempre gostei de ouvir quem me contasse. Aprendi isso em Fafe. Ao longo dos anos fui frequentador assíduo e prazenteiro das palestras televisivas de figuras culturalmente incontornáveis como António Pedro, Vitorino Nemésio, Pedro Homem de Mello, David Mourão-Ferreira, Natália Correia, António Victorino d'Almeida ou, numa outra dimensão, das charlas poéticas de João Villaret ou Mário Viegas, sem esquecer os inspirados desempenhos do Landinho Bacalhau, o antigo, e do Zé Fala-Barato, microfónicos fafenses que, mesmo sem honras televisivas e não desfazendo, nunca deixaram os seus créditos por mãos alheias, é preciso que se note.
E acreditai no que eu digo: estes, sim, eram comunicadores. O resto que por aí anda são habilidosos, meros entertainers. Copiam os gestos, imitam os tiques, mas falta-lhes a substância. José Hermano Saraiva saiu de vez dos ecrãs e acabou-se o que era bom. Como ele, já não há mais. Era o último.

quinta-feira, 13 de março de 2025

Todos à sacristia!

Do alto do campanário, os altifalantes falaram como se fossem Deus. Estavam zangados e só lhes faltava a sarça ardente: "Atenção, muita atenção! No final da procissão há reunião da comissão deste ano para ver se se arranja comissão para o ano. Todos à sacristia! Se não se arranjar comissão, para o ano não há procissão". E mais nada.
Eu ainda não tinha sido apresentado à palavra pragmatismo. Quando, bastante mais tarde, tomei conhecimento, percebi logo que pragmatismo era aquilo da comissão e da procissão.