sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

O boleto e a merenda

Nos grandes concertos sinfónicos, o maestro sai sempre no final de cada peça para ir à casinha mudar a água às azeitonas. Depois volta para as palmas, para as vénias e para as flores, sorridente e aliviado. E os músicos? Os músicos protestam batendo nas estantes e continuam em palco de perninhas apertadas e, quem sabe, a urinarem-se por elas abaixo...

O boleto é uma ordem oficial escrita que requisita alojamento para militares numa casa particular ou o próprio alojamento assim conseguido. É também salvo-conduto, a parte superior do carril sobre o qual rolam comboios e eléctricos, um género de cogumelos comestíveis e a articulação da perna do cavalo acima da ranilha, dizem uns, ou acima da quartela, dizem outros. No Brasil, boleto é ainda papelinho de aposta nas corridas de cavalos, registo de dados de uma operação bolsista, bilhete de acesso a espectáculos e similares ou impresso de factura-recibo.
Posto isto, que não interessa para nada, mudemos de assunto. Falemos de uma coisa completamente diferente. Falemos do boleto.
O boleto, que, pelo menos aqui há uns anos e em Fafe, era praticado pelas bandas de música e consistia numa módica quantia em dinheiro vivo que o contramestre da filarmónica distribuía pelos músicos provavelmente a título de ajuda de custo ou, talvez melhor dizendo, como subsídio de alimentação - o que salvava o dia sobretudo aos jovens aprendizes, que passeavam muito bem a farda e faziam número nas procissões e outras arruadas, mas "ainda não ganhavam". Funcionava, em todo o caso, como um prémio, um extra. Uma espécie de consoada recebida a prestações.
De uma certa maneira, o boleto era também uma das peças do concerto. Enfim, uma bagatela, como lhe chamariam os românticos. Peça curta e despretensiosa mas de sucesso garantido, faço questão de acrescentar, para contar tudo como deve ser contado. Beethoven, por exemplo, muito dado a repentinas modificações de humor, compôs algumas dezenas dessas miniaturas para piano, verdadeiras jóias, autênticas obras-primas, a mais famosa das quais será certamente "Für Elise", que toda a gente conhece. Tornando, porém, ao boleto: se não parecesse um rematado disparate, suponho até que seriam os próprios músicos a pedir bis. O dinheiro saía em notas puídas e renitentes de um gordo envelope cada vez mais magro e era entregue em mão, uma mão atrás da outra, no dia mesmo da "festa", em pleno coreto, com o povo ao redor, durante um intervalo que desse jeito, na vez da outra banda tocar.
Posso ter inventado esta memória, mas cuido que o mais das vezes o bodo era repartido já da parte da tarde do "serviço". E que se segue? Não sei porquê, mas desconfio, a minha cabeça começou então a associar boleto a merenda, como se fossem palavras sinónimas, e até hoje. Boleto igual a merenda. Exactamente. Merenda ao "balcão" de uma barraca beduína, periclitante e malcheirosa, espécie de estendal armado às três pancadas entre varas de choupo e toldos de pano, com bacalhau frito, orelheira salgada, frango abusivamente churrascado, moscas e sardinhas assadas que eram uma desgraça. Uma desgraça bem bebida, afogada em vinho até ao nariz.

Vinho, como quem diz. Bastas ocasiões bebia-se "receita", isto é, juntava-se cerveja e açúcar ao alegado vinho para disfarçar o pique a vinagre. Mas bebia-se. Porque beber fazia parte da arte, tinha o seu próprio solfejo. Como eu costumo dizer, e não me canso de repetir, a diferença entre uma colcheia e uma colmeia está na medida. Isto é: uma colmeia corresponde exactamente a uma semicolcheia. E deve servir-se de preferência numa seminfusa. Bem fresca...

Torna! Torna! Torna!

Dizia o povo antigo, na sua proverbial sabedoria, que os de Guimarães esfolam gatos e matam cães. Eu parece-me que devia ser proibido...

Torna! Torna! Torna! - gritava-se quando o gado fugia, implorando o socorro de quem por ali andasse e ouvisse e, de braços abertos balançantes e palavras mansas, pudesse suster, sossegar e encarreirar de volta os animais. Tornar era mandar para trás. Era como quem dizia "Cerca! Cerca! Cerca!", versão mais em uso pela moçarada para animar as hostes, convocar reforços e impedir a fuga dos da outra rua, em plena emboscada à coiada por causa do golo que não valeu, e mais ainda nem havia VAR. "Torna! Torna! Torna!" era também grito de guerra dos equívocos caça-cães fafenses, armados de redes, laços de contenção e palavrões de diversos calibres, levando a eito para o matadouro canídeos ostensivamente vadios ou, por azar, apenas sem dono à vista.
Para apanhar perigosos fujões, isto é, crianças com medo da pancada em casa ou bandidos sem medo nenhum, berrava-se igualmente "Torna! Torna! Torna!", como aconteceu daquela vez com o desgraçado oficial de justiça a correr atrás do preso que se lhe escapuliu à porta do Tribunal, de mãos algemadas mas pé ligeiro, e só foi agarrado já no nosso Santo, à força da ajuda do povo, quase em frente às Ferreira Leite e à Milinha Vaqueiro, que também saltaram para a molhada. "Torna! Torna! Torna!" era, em Fafe, o clamor de recaptura pelos tresmalhados em geral. Claro que também havia o "Toma! Toma! Toma!", que eu sabia dos robertos na televisão e uma maré, pelas feiras ou festas, vi ao vivo num biombo montado em Baixo da Arcada. E o "Tora! Tora! Tora!", mas isso, evidentemente, já é outro filme.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Emes para que vos quero?

Tomemos, por exemplo, o Dia de Nossa Senhora do Ó, assinalado a 18 de Dezembro. Um dia que causa grande inveja em todo o restante abecedário e sobremaneira entre as vogais.

É impressionante a quantidade de palavras da língua portuguesa que usam escusadamente um eme final. Isso, um mê no fim. O eme que se escreve mas não se lê. Podia passar aqui o dia inteiro a dar exemplos uns atrás dos outros - abrevio, porém, dando seis, como os dedos de uma mão mais um, e sem sair da rima: rodage, vantage, viage, sabotage, calibrage, portage, arage, garage. E afinal são oito, os dedos de uma mão mais três da outra. Para que é que estas palavras precisam do eme no fim se o eme no fim não se diz? Alguém diz Base das Lajens? É só despesa! E logo a letra eme, a das três perninhas, tantas perninhas, menos duas apenas do que as cinco patas do cavalo.
O eme, faço notar, que, ainda por cima, é a letra minúscula mais obesa do nosso abecedário. Um escândalo! Uma evidente desnecessidade e um tremendo desperdício de espaço num país com somente noventa e dois mil quilómetros quadrados. Os fiscais das palavras não andam de metro e muito menos de camioneta. Decerto nem saem à rua. Não falam com pessoas, nunca vieram ao Minho, nunca estiveram em Fafe. Ou, se calhar, faltou-lhes corage para cortar a direito. Hão-de ir longem...

Eu tive um sapo

Engolidores, há-os. Como por exemplo engolidores de sapos, metaforicamente falando, engolidores de fogo, que na verdade não engolem mas borrifam, e engolidores de espadas. Engolidores de copas e engolidores de ouros não sei, mas engolidores de paus também há-os.

Tive uma infância feliz, em Fafe, rodeado de animais de estimação, ditos agora de companhia. Tínhamos um cão chamado Rin Tin Tin, tínhamos uma cadela chamada Lassie, tínhamos um canguru chamado Skippy e até tínhamos um cavalo chamado Mister Ed ao qual nem faltava falar. Eu ia vê-los ao café, porque em casa não tínhamos televisão.
Tínhamos também um sapo. Isto é, uma vez à noite tivemos um sapo, mesmo nosso, nem foi preciso ir ao café ver televisão, se o Sr. Avelino estivesse bem disposto e por acaso a ligasse, mas não lhe pusemos nome. Ao sapo. Ao Sr. Avelino pusemos, era o "Hoss", por causa do gordo do Bonanza. Mas eu conto a história do sapo.
A porta da nossa casa no Santo Velho tinha, em baixo, junto ao chão, um bocadinho de folheta levantada, e era ali que se deixava a chave, de uns para outros, éramos pelo menos seis, como, por exemplo, à noite, quando a nossa mãe já nos dava licença de saída até às 22 horas, ao Nelo e a mim, e depois no regresso a gente metia a mão no buraco, tirava a chave, que era enorme, digna de São Pedro, há que dizê-lo, abria a porta em câmara lenta, a monumental chave de bico calado, bem oleada, e entrávamos em casa com os pés debaixo dos braços para não fazermos barulho, a nossa mãe fazia de conta que estava a dormir e portanto só de manhã é que nos acertava o passo por termos chegado às 22h01.
Acontece que. Uma noite, findo o serão, estamos à porta, e o Nelo, que é mais velho, manda-me apanhar a chave. Eu meto a mão no vazio da folheta e, em vez da chave, agarro um enorme sapo que lá se tinha metido, filho da puta, e apanhei um susto que me ia mijando todo, estremeci-me até hoje, argh!, enchi-me de nojo, arranquei a mão como se a tirasse do fogo e rasguei-me na chapa ferrugenta, gani, vomitei, cocei-me antecipando verrugas para toda a vida, palavra de honra, e o caralho do sapo, como se não fosse nada com ele, saiu nas calmas felizmente para o lado da rua, caso contrário eu nunca mais entraria em casa. Entrámos, a nossa mãe a pé, à nossa espera, e a hora de picar o ponto já não interessava para nada. Levámos logo ali, por causa do sapo, da ferida, do vomitado, do barulho, quer-se dizer, do "espectáculo", que a nossa mãe não tolerava, fosse em que circunstância fosse. Tudo por minha culpa. Ainda por cima eu tinha dito "argh!" e em nossa casa, que era muito pobre, estavam terminantemente proibidas as onomatopeias, sobremaneira as derivadas dos livros aos quadradinhos, um luxo...

Os sapos à porta realmente incomodam-me. E metem-me nojo sobretudo os sapos à porta dos restaurantes ou de outros estabelecimentos comerciais. É. Como sou um bocado cigano, recuso-me também a entrar.
Os sapos às vezes são de engolir, como aconteceu com Álvaro Cunhal e o PCP na segunda volta das eleições presidenciais de 1986, para derrotar Freitas do Amaral, candidato da direita, e, só por isso, eleger Mário Soares. "Vamos ter de engolir um sapo. Se for preciso, tapem a cara [de Soares] com uma mão e votem com a outra", recomendou Cunhal aos comunistas. Para se distinguirem dos faquires, que engolem facas, os engolidores de sapos chamam-se sapires.

No velho tasco do Toninho Nacor, em Fafe, havia um sapo que era um jogo, na zona cimentada do quintal logo depois da cozinha, por baixo do sombroso caramanchão, ao lado das famosas gaiolas dos pássaros e do forno de cozer vitela e bolo. O sapo era um jogo tradicional e de taberna, um jogo de mesa em forma de armário aberto com inúmeras ranhuras correspondentes a outras tantas gavetas. Jogava-se com pequenas patelas, que se lançavam para o "armário" e cada entrada correspondia a uma certa pontuação. A boca do sapo era o máximo, se não me engano. Servia para matar o tempo enquanto se esperava pela hora da merenda e dali poderia sair também "multa" aos perdedores para próximas quartilhadas.
Sobre este interessante assunto, os sapos, apraz-me finalmente registar que o Sapo, primeiro motor de busca português, foi criado por cinco estudantes da Universidade de Aveiro, em 1995. Antes disso, mas em Penafiel, o Sapo já era um famoso restaurante de enfarta-brutos e conceituado estabelecimento de compra e venda de árbitros de futebol. Outros tempos!

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Apois, se não for antes

No português do Brasil, a palavra apois quer dizer pois, já que, pois que, visto que, como se fosse, me conte. No português de Fafe, isto é, no fafês, apois era corruptela, sinónimo e substituto popular de depois, portanto querendo também dizer após, mais tarde, posteriormente, a seguir. "Vai indo, que eu vou apois". E era assim que se contavam as histórias antigamente: - Apois, disse o rei à sua princesa...

Fafe já não tem piononos

O senhor do monte
Era uma alma sensível e só. Comovia-se com a natureza. Gostava de subir ao monte para ver as vistas. E cheirar os olfactos. E ouvir as audições...

No monte de São Jorge havia um pionono. E constava que havia outro no monte de Castelhão. Fui testemunha de ambos, embora o segundo possa jamais ter existido. O pionono, para mim, era uma espécie de meco que ajudava montes de pouca monta a porem-se em bicos de pés, a chegarem-se a uma certa altura, a uma altura certa, a um número redondo de que desse jeito falar. Quero dizer: era uma espécie de sapato de salto alto para caga-tacos complexados, porém ao contrário, com o tacão virado para cima e usado na cabeça em vez dos pés, bem na crucha da cabeça. Depois tomei conhecimento do Pio IX, mas nunca percebi a relação, e acho um merecido insulto chamar-lhe marco geodésico. Ao papa. Ao sumo pontífice.
Assim com maiúscula, o Pionono era exactamente em São Jorge, é justo que se diga. Pionono era nome próprio, sítio, geografia. Era topónimo com alvará. "Vou ao Pionono". Ia-se ao Pionono. E ia-se muito. Ao Pionono ia-se ver "a paisage", ia-se aos pinheiros pelo Natal, ia-se esgaçar umas pernadas de carvalho para o trono da cascata do Santo António da nossa rua, ia-se aos fentos ou ao mato para o eido ou às giestas secas para espertar a lareira do chão da cozinha, ia-se brincar aos cobóis, ia-se cagar ao monte e ia-se dar umas trancadas, e o que eu gostava da palavra trancadas, mesmo sem ainda conseguir alcançar o que ela quereria dizer. Nem de propósito, São Jorge parece que também tinha mamoas, eu confesso que não sabia, mas fiquei a saber aqui atrasado. Portanto, pionono e mamoas, para o que lhes havia de dar...
(As giestas, por falar nelas, davam umas vassouras de categoria e o Trancadas era um barbeiro mesmo ao lado do tasco do Neca do Hotel, proximidade que se revelava de uma comodidade extrema, sobretudo para os praticantes do desporto líquido, que eram naquele tempo, olimpicamente, mais de metade da população fafense. As memórias vêm umas atrás das outras, como as marias, lembro-me de descer um degrauzinho, mais cá para o centro da vila, ali entre a sombria loja da Rosindinha Catequista e a Cafelândia, mas esse era o Sr. António Grande, o segundo barbeiro do meu padrinho Américo. Eu ia lá com o meu padrinho mais o meu tio Zé da Bomba, aos sábados de manhã, que naquele tempo eram sempre de sol. Na espera lia-se "O Primeiro de Janeiro", mal eu sabia que ainda o haveria de fazer. O meu padrinho Américo e o meu tio Zé da Bomba eram irmãos do meu pai, o grande Lando Bomba, e depois foram meus pais, à falta do propriamente dito, por razão de força maior.)
São Jorge e Castelhão eram a nossa floresta, a nossa montanha, e tão ao pé da porta. Hoje os montes de São Jorge e de Castelhão são casas e é o progresso. Os montes foram capados, terraplenados, desarborizados, alcatroados, liquidados. Os montes morreram de morte matada e a culpa morreu solteira. Fafe já não tem piononos. Mas, dizem-me, tem ainda a "Garrafinha" e historiadores até dar com um pau. Um deles, quem dera que não chova, ainda há-de contar esta como deve ser.

E agora, só para que conste: pio-nono será a forma "correcta" de escrever, se nos referirmos ao meco. Mas pionono pode ser também nome de doce muito popular em Espanha, na América Latina e nas Filipinas. Por outro lado, Pio IX, que se chamava Giovanni Maria Mastai-Ferretti, teve o segundo maior pontificado da história da Igreja, logo a seguir a São Pedro. E foi o primeiro papa a ser fotografado. Foi também um sacana do piorio e o Vaticano fez dele santo. Pio IX, que tratava os judeus como "cães" e abaixo de cão, foi o responsável pelo rapto de Edgardo Mortara, um menino de seis anos baptizado em segredo e retirado à força da sua família judaica, história contada por Marco Bellocchio no filme "O Rapto".

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

O ânus da prova

Concelhos de mãe
Cátia Soraia entrou na universidade e, mal se instalou, mandou uma mensagem à mãe a pedir um concelho. A mãe, que é rica e boa alma, enviou-lhe Freixo de Espada à Cinta.

Eu, por exemplo, digo doénte em vez de doênte. Digo concelho e conselho em vez de conçalho e consalho. Digo mãe em vez de máim. Digo meio quando é meio e não maio. Digo têlha quando é telha e não talha. Digo coêlho quando é coelho e não coalho. Digo cóio em vez de côio. Digo câno em fez de cáno. Digo frónha em vez de frônha. Digo cachicha em vez de caxixa. Digo ferraménta em vez de pénis. Quer-se dizer: digo como era costume dizer-se na terrinha. Sou de Fafe, com muito gosto. Falo à Fafe como se nunca tivesse saído definitivamente de lá, e foi há mais de quarenta anos. Sempre que posso, falo a língua a que gosto de chamar fafês. Resultado: chamam-me parolo, labrego, matarruano, riem-se de mim.
Já o outro, urbanita de grande metrópole, frequentador de mundo e telejornais, ajeita delicadamente os botões de punho de dezoito quilates, afaga a gravata hermès sofisticada e cara, faz biquinho com os lábios suspeitos e diz, finíssimo porém acutilante, ânus da prova. Ânus da prova, é o que ele diz! Ânus da prova para aqui, ânus da prova para ali, enche a boca de ânus da prova! E chamam-lhe ó-doutor, jurista, comentador, especialista em molduras penais. E ninguém se ri.

Eu queria ser palhaço

Ele nunca brincava em serviço. O que, para um palhaço de circo, era talvez contraproducente.

Sonhava-me no circo, não do lado cómodo do público, mas no centro das atenções, no lado cómico, de nariz vermelho, cara pintada e sapatos de metro, a inventar alegria para os outros. E para mim. Isso, alegria para mim. Porque eu sempre quis ser palhaço. Ou por outra: quando eu era pequeno, em Fafe, primeiro queria ser grande. E quando fosse grande queria ser palhaço, maquinista de comboio, famoso, padre, polícia à paisana, pianista, advogado, jornalista, actor, bombeiro, jogador de futebol, Tarzan, presidente da república, terrorista, papa, escritor, herói, cantor, ciclista, santo, piloto de avião de guerra como o Major Alvega e pirata.
Que se segue: já há muito que sou grande e, francamente, sou Tarzan e é um pau. Sou Tarzan como a maioria dos portugueses: estamos de tanga e isso é indesmentível, somos portanto tarzões.
Mas palhaço é que era! Alguns amigos, lisonjeiros, dizem-me que eu às vezes até sou um bocado palhaço. Por outro lado - o das costas -, alguns filhos da mãe que não me gramam acusam-me de eu às vezes ser um bocado palhaço. Palavra de honra, às vezes e um bocado não me chega: eu queria ser palhaço, mas palhaço completamente.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

A receita da remessa

Uma infusa de satisfatórias dimensões. Vinho, branco ou tinto, e açúcar, de preferência amarelo, à moda de Fafe. Mexe-se com uma colher, se houver, ou com os dedos. Da mão. Junta-se-lhe cerveja ou, para coninhas, seven up. O equilíbrio das quantidades fica ao gosto do fabricante. Chama-se a isto "receita" ou "remessa" e deve beber-se bem fresco, mas sem gelo, porra! Os coninhas podem chamar-lhe cocktail...

Eram outros carnavais

Enviou mensagem à lista completa de contactos. "Um santo Carnaval, para si e toda a família, associados e simpatizantes", fez votos. E agradeceu a Deus por Deus o ter feito tão boa pessoa.

Na minha terra, naquele tempo, festividades assim familiares e praticamente religiosas como por exemplo o Entrudo tinham as suas normas, liturgia própria. Exigiam pompa e circunstância. Em Fafe, pelo Carnaval, a grande tradição eram, se me dão licença, os peidos-engarrafados lançados no Cinema. Uma lixeira de confetes e serpentinas, alguns pares de estalos, encontrões, ameaças e correrias tolas, mas sobretudo peidos-engarrafados, um fedor que não se podia, mas uma grande risota. Peidos-engarrafados e pimenta. Exactamente, pimenta culinária sacudida dos camarotes para a plateia, que se desmanchava em espirros e gritos histéricos de "filhos da puta!" apontados para cima, com manguitos, piretes e destrambelhadas ameaças de morte. Enquanto isso, o filme. De preferência uma coboiada, com muitos tiros e estrondosas cavalgadas, mas normalmente não, porque o "programador" tinha uma ideia morcona de divertimento e folia, em nome de Deus, Pátria e Família, às tantas ainda nos ferrava com o "Marcelino Pão e Vinho", a ver se aprendíamos. Anos sessenta e setenta do século passado - Portugal era assim, regra geral. Cinzentinho, cinzentinho, mais choro do que riso. Um país a bem da Nação.
Durante o resto do ano, no Cinema, só eram permitidos peidos biológicos, caseiros, que, não desfazendo, também eram uma categoria, e para além disso tínhamos o Moisés, que a esse respeito, quero dizer, quanto a bufas, então é que nem se fala! Estávamos realmente muito bem servidos. Eram peidos especulativos, subversivos, os nossos, contra o governo, que nos alimentava a couves e, se queríamos, tínhamos de as comprar, porque nem os ricos as davam - vendiam-nas como se precisassem ou preferiam deitá-las aos porcos, que infelizmente não éramos nós, os pobres, no caso em apreço.

No nosso Carnaval havia corso pelas ruas do centro da vila. E o rei momo era o Tónio da Legião, bonacheirão, afavelmente decilitrado, com coroa, manto e barbas a condizer, e só podia mesmo ser ele, no trono, lá do alto do carro alegórico, palácio ou castelo, olhando de lado para o mundo. Não me lembro se lhe deram rainha. O Tónio da Legião tinha uma queda tremenda para a amizade e para a cozinha, mas isso não vem hoje ao caso. E o Aristides Carteiro, que era um senhor e praticava humorismo nas horas vagas, abria o cortejo mascarado de ciclista, realmente um disfarce à altura do seu insuspeito porte atlético.

Pelo Entrudo, em Fafe, queimava-se o Pai das Orelheiras, velha tradição popular, de afirmação de rua. No nosso Santo Velho nós fazíamos a fogueira e queimávamos o figurão. Era o ponto alto do dia, que por acaso era à noite. As nossas mães diziam-nos para não brincarmos com o fogo, porque senão, quando fôssemos dormir, iríamos mijar na cama. Nós brincávamos na mesma, e ao entrarmos em casa, para dormir, levávamos logo o ensaio do costume, mesmo antes de se saber se mijávamos ou não, e eu achava isso muito injusto e provavelmente ilegal.
Não me vou armar em Freud, mas naquele dia elas vestiam-se deles e eles vestiam-se delas. Era uma ocasião muito esperada. Uma oportunidade. Adultos, casados e afins, saíam para a rua aos pares com as roupas ao contrário e as caras tapadas com caretas de papelão compradas no Rates, que tinha tudo mesmo antes de terem sido inventadas as lojas que têm tudo, farmácias à parte e, hoje em dia, os talhos. Assim disfarçados e de boca calada, os pares de foliões metiam-se com os vizinhos, e o grande divertimento era tentar descobrir quem seriam os tratantes, desconfiando-se sempre deste ou daquela, tu a mim nunca me enganaste...
A coisa às vezes acabava à pancada, mas quê, era Carnaval e ninguém levava a mal. Que quereis que mais vos diga? Éramos pobretes mas alegretes, inocentes, pouco nos bastava para nos sentirmos felizes. Estávamos em Fafe e, que mais faltasse, faltando quase tudo, tínhamos os peidos que nos libertavam. Os peidos-engarrafados, isto é.

domingo, 23 de fevereiro de 2025

Havia guichos e guichas

Guicho é esperto, inteligente, arguto, atento, muito vivo, buliçoso. Guicho, em Fafe, era elogio. E havia guichos e guichas. E os "ches" de guicho e guicha eram, como sempre, carregados, robustos. "O meu neto é muito guicho", dizia-se. "Era uma velhinha toda guicha", escrevi algures a propósito de determinada fafense excelentíssima. Alguém que recuperava a olhos vistos de uma doença grave ou prolongada, também estava ou ficava guicho, isto é, saudável, com energia. Assim se falava na nossa terra. Guicho ou guicha eram igualmente palavras de uso agrícola, quintaleiro, serviam, por exemplo, para qualificar uma planta recentemente transplantada e que já se apresentava viçosa, vivaz, levantada. Sim, guicho podia ser, ainda, isso: direito, erecto, teso.

O meu amigo Hugo Viana

O jornalismo e o seu fim
O que é curioso é que o jornalismo acabou, pelo menos em Portugal, quando toda a gente começou a saber de jornalismo, a ser especialista, exactamente no momento em que todos são jornalistas, menos nós os encartados, os jornalistas antigamente ditos.

Estou extremamente vaidoso com este acontecimento de uma pessoa que me conhece ir para director desportivo do importante clube de futebol Manchester City, de Inglaterra. Note-se, eu não conheço o Sr. Hugo Viana de lado nenhum, senão como figura pública, mas ele diz que me conhece. Ou pelo menos disse que me conhecia lá pelos primeiros anos deste século, estando ele como jovem jogador do Sporting, em Lisboa, e eu como velho jornalista do jornal 24horas, no Porto. O rapaz tinha uma questão familiar qualquer, que eu não quero trazer agora aqui ao caso, e o meu jornal mandou-me explorar a coisa. Do meu ponto de vista, o assunto era irrelevante e sobretudo particular, íntimo, tipo ninguém tem nada com isso, mas as minhas chefias, na capital, invocaram o sagrado "interesse público e jornalístico" para me encostar à parede.
Fiz alguns contactos exploratórios, falei com duas ou três pessoas mais ou menos envolvidas ou sabedoras, e de repente recebi uma chamada do próprio Hugo Viana, que tinha e tem idade para ser meu filho, e atirou-se assim: - Ouve lá, estás avisado! Eu conheço-te, pá, sei onde trabalhas e sei os teus horários, sei onde moras e sei onde comes. Se escreves alguma coisa sobre mim, estás lixado comigo, faço-te a folha, pá!...
Eu, se querem saber, ri-me. Aquilo era tão infantil, tão coisa de miúdo, que, não só não levei a sério, como nem sequer levei a mal. A verdade é que, naquela altura, nem eu sabia os meus horários e amiúde não acertava com a porta de casa. Trabalhava pelo menos treze ou catorze horas por dia, sem hora de entrar ou de sair, muitas vezes na rua, e comer era só depois do serviço arrumado e onde calhasse...
Em todo o caso, não cheguei a escrever o artigo, que, repito, realmente não interessava nem ao Menino Jesus, era essa definitivamente a minha opinião, e ainda é. Mas não foi por causa do telefonema pândego e das ameaças de Hugo Viana que a "notícia" não saiu. Não. Acontece que, por aquela maré, as camisolas do Sporting (e do Benfica e do FC Porto) eram patrocinadas pela PT - Portugal Telecom, que por acaso era também a dona do grupo de comunicação que detinha, entre outros títulos, o jornal 24horas. Quer-se dizer: era como se eu e o Hugo Viana, deixem-me exagerar um bocadinho, tivéssemos o mesmo patrão. O Sporting mexeu-se. O imbróglio foi tratado ao nível das mais altas esferas, disseram-me, os meus ilustres chefes, sempre sábios e cheios de razão, mandaram imediatamente às malvas o inefável "interesse público e jornalístico" e recebi ordens expressas para abortar um trabalho que, em bom rigor, nem sequer tinha começado. O jornalismo, quer queiram quer não, meus amigos, era e ainda é, se o houvesse, uma coisa muito bonita.

Resumindo e concluindo: se precisarem de alguma coisa do Sr. Hugo Viana, agora que ele é gentleman por geografia e está no topo do mundo, digam, que eu trato disso. Ele conhece-me.

sábado, 22 de fevereiro de 2025

Carapaus, só de corrida

Era um anúncio radiofónico a não sei quê. Mais ou menos isto: o filho com jeito para a piada chega a casa e diz ao pai que tem uma má e uma boa notícia para lhe dar - bateu com o carro do velhote e, como foi contra a porta do mercado, aproveitou para trazer os carapaus para o jantar. "Carapaus, não", corrige o sapiente progenitor, "chicharros, como se diz nos Açores". Exactamente. Como se diz nos Açores. Sobretudo naquele belíssimo naco açoriano a norte do rio Douro e Minho acima, Galiza adentro...

Em Fafe, carapaus, só de corrida. Ou por outra: em Fafe diz-se chicharros, evidentemente, e chicharros dizia-se chucharros, e até havia uma família, gente boa, com esse nome posto. Os Chucharros, do Lombo, vizinhos do eterno Armando Zegolina. Em fafense correcto, quer-se dizer, em fafês, como eu lhe chamo, os "ches" de chucharro devem ser lidos como os "ches" de cachicha. E evidentemente deve ler-se e dizer-se evidénteménte.

O araújo no olho

Apareceram-lhe uns pontos de vista um bocado esquisitos. Da noite para o dia. E ele assustou-se. Pelo sim e pelo não, foi ao oftalmologista.

Ter um araújo no olho é uma daquelas expressões pândegas que vieram comigo de Fafe, e nem vou dizer que ela seja apenas nossa, exclusiva, mas que terá sido parida cá por estas bandas, isso já sou capaz de arriscar. Araújo é sobrenome galego e português de origem nobre medieval, também possível de encontrar escrito como Araujo ou Araúxo, mas serve igualmente de topónimo e nem é preciso ir mais longe, basta dar um salto aqui ao lado, ao antigo apeadeiro de Araújo, actual estação do Metro do Porto, em Leça do Balio.
Araújo, nome de pessoa e de sítio, está visto, mas também, há quem diga, denominação de uma variante da árvore araúja. Para nós, porém, os fafenses velhos e irredutíveis, araújo é partícula que entra no olho acidentalmente, grão de pó, minúscula maravalha, bíblico argueiro, cisco, arujo. Arujo, exactamente arujo, vocábulo fidedigno e certificado de onde facilmente derivou a nossa arisca porém bem desenrascada corruptela.
Ter um araújo no olho. Outro dia, sem mais nem menos, lembrei-me da expressão antiga, e nem faço ideia de há quantos anos não lhe punha a vista em cima nem lhe dava uso. Perguntei à minha mulher se a conhecia de algum lado, à expressão, se já a teria dito ou pelo menos ouvido. E ela disse-me que não. Fiquei varado! Quer-se dizer: a minha mulher, rapariga da nossa idade, nasceu no Porto, na Foz, mas é filha de pais rústicos, o meu sogro de Baião e a minha sogra de Canelas, Gaia. Isto é, a minha mulher tinha obrigação, e, vai-se a ver, nada...
Nada, também não é bem assim. Sobre araújos, a minha mulher fez questão de explicar-me que sabia era a famosa anedota que mete marinheiros e aviadores. Aquela que pergunta: se quem trabalha no mar é marujo, porque é que quem trabalha no ar não é araújo? Isso.
Ter um araújo no olho. A expressão. Não é anedota, definitivamente não é uma anedota, mas que se põe a jeito, lá isso...

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Cachicha!

Diziam à Maria: - Tu gostas do Manel! E a Maria respondia: - Eu, do Manel? Chachicha! Exactamente, cachicha, dito com cara feia e os "ches" bem carregados, porque são "ches" de Fafe, telúricos, e não querem ser confundidos com os delicados "xes" de outros lados. Mais do que um eventual regionalismo minhoto (e transmontano, há quem o afirme), cachicha era, com efeito, um entranhado localismo fafense, com um tremendo uso ainda aqui há poucos anos. Cachicha é um designativo de repulsa, desprezo, enjeitamento, negação, asco ou repugnância e quer dizer, consoante a situação, "ui, que nojo!", "foda-se, tinha nojo!" ou, muito simplesmente, "borrava a minha cara com merda". Isso. Cachicha!

A Festa da Bomba

A sarça ardente (ou Chamem os bombeiros!)
Quando Moisés disse todo vaidoso "A minha vida dava um filme", Deus ficou bastante chateado, pegou lume ao monte e proclamou: - Agora apaga-o, que o Noé gastou-me a água toda.

Quando eu era pequeno, Fafe tinha três grandes festas e eram as maiores festas do mundo: a Senhora de Antime, a Festa da Bomba e a cascata do Santo António na minha rua. Quanto à enormeza da Senhora de Antime, sobretudo da sua incomparável e pungente procissão, suponho que estamos conversados. O nosso Santo António era também uma coisa constada, pelo menos para nós, e é preciso não esquecer que até tínhamos foguetes e altifalantes, que o Zé da SIF arranjava, e metíamos raivinha às outras ruas todas, incluindo avenidas, rampas, quelhas e largos como o nosso. O Zé da SIF é irmão do Armando Perrinha, e eles mais o Zé Maria, que foi comando no Ultramar, a Dina e a Luísa são filhos do Agostinho Cachada e da Senhora Laura, família quase minha, vizinhos do coração e gente do melhor que pode haver. Mas as festas. Falta esmiuçar a festa de anos dos Bombeiros Voluntários de Fafe - a Festa da Bomba, que se celebra regularmente por alturas de 19 de Abril -, e vamos a isso.

A Festa da Bomba, um bocadinho acima e dois meses antes do nosso Santo António, era de arrebenta. Só de altifalantes - sempre os altifalantes! - eram dois dias, quase três, e coisa profissional, a encher de som fanhoso o ar da vila e arredores: "Amplificações sonoras de João Baptista Gonçalves, de Antime, Fafe, deslocam-se a qualquer localidade, haja ou não haja corrente eléctrica", levando atrás a discografia completa do António Mafra e da Maria Albertina, com o Tom Jones e o alemão Freddy Breck a emprestarem um toque de classe aos "trabalhos". E no domingo era povo que só visto. Havia bailarico no terraço do quartel e na parada, que era nas traseiras, havia discos pedidos - "E o disco que se segue é dedicado à menina de camisola vermelha que está encostada à parede na varanda do segundo andar, por um seu admirador", e saía "O Carrapito da Dona Aurora" -, havia os tremoços da minha avó e o verde tinto do meu avô, que era quarteleiro mas não era tolo, havia capacetinhos de folheta dourada e alfinete torcido para enfiar nas lapelas dos generosos pobretes mas alegretes que davam "qualquer coisinha para a ajuda". (Se calhar foram os primeiros pins de que há memória. Os lacinhos furta-cores e os autocolantes de mão estendida ainda não tinham sido inventados.) Arranjaram-se ali namoros, casamentos. Era uma festa popular, sim. Mas a minha Festa da Bomba, a parte que me dizia particularmente respeito, era a festa dos bombeiros.
Começava uns dias mais cedo, a distribuir pelas montras o programa do aniversário e a puxar pelo corpo para pôr os carros e o quartel como brincos, que naquele tempo eram só para mulheres e piratas. Depois ia na "Carrinha", uma velha Austin da II Grande Guerra, ajudar a recolher garrafões de vinho oferecidos pelos ricos da terra e amigos da Bomba: os Summavielles, o Zé de Freitas, o João do Sal, o Senhor Fernandes do Retiro (não por acaso, um quase eterno presidente da associação), que são os que me recordo.
O meu ponto alto, porém, era o içar das bandeiras, a toque de caixa e ao som da fanfarra, logo pela manhãzinha do dia grande. Eu fazia questão, tomava conta da bandeira dos Bombeiros, bela, azul e branca, passada a ferro pela minha querida tia Laura, feita num linho que dava gosto tocar, com a águia que afinal era a fénix renascida, as chamas e os machados no meio. Içava-a a compasso, orgulhoso, solene, tremente e, confesso, a chorar por mim abaixo como um madaleno arrependido nunca soube de quê.
Tinha mais que fazer no quartel, mas ia ao Largo ver o desfile engrossado pelas corporações convidadas e amigas. Caíam-me os olhos para os carros, todos mais modernos do que os nossos, mas isso não chegava para me desmoralizar. Eu sabia que os bombeiros de Fafe eram muito melhores do que os outros, nem que tivessem de ir a pé para o fogo. E às vezes iam.
Lembro-me sobretudo dos amigos de Vizela, que eram mais do que amigos, eram irmãos (futebol à parte), e, depois da obrigação feita, decilitravam com quase tanto gabarito como os bombeiros de Fafe, campeões mundiais da decilitragem. Era: após a cerimónia das medalhas é que começava a verdadeira festa. Cada um que se amanhasse para o almoço, em casa, era o mais certo, e já voltavam todos bem bons, mas a meio da tarde havia o "beberete" no salão de festas transformado em refeitório. O "beberete" constava de uns bijus e de uns bolinhos de bacalhau feitos pela minha avó e metidos em sacos plásticos de doses individuais e sumárias, acompanhados à fartazana pelo tal vinho dado pelos beneméritos da corporação e que era bebido como se só voltasse a haver Festa da Bomba dali a um ano. O que até nem estava mal visto.
Conclusão: era beberete demais para tão pouco comerete. Passavam-se ali carraspanas iglantónicas. Os de Vizela ficavam até ao fim, num taco-a-taco que chegou a ser histórico, mas o nosso Joãozinho do Opel levava sempre a taça para casa. E levavam-no sempre a casa. De padiola. E eu pensava que não fazia mal, que os nossos bombeiros voluntários mereciam demais aquele dia sem medida e só para eles, derivado ao resto do ano em que eles eram só para os outros. Pensava que, às tantas, a Festa da Bomba era essencialmente aquilo - aquela bebedeira geral, eucarística, redentora e uniformizada, em descompassada ordem unida. E achava bem. E quero acreditar que nunca mais na vida tive pensamentos tão acertados.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

O perigo das redundâncias

As expressões "virar costas" e "mandar foder", embora não (se) pareçam, são praticamente sinónimas na língua portuguesa corrente e de uso corriqueiro em Fafe. Uma pessoa "vira costas", e isso significa retirada, abandono, desinteresse, desdém, fuga, saída. Uma pessoa "manda foder", e isso significa irritação, indiferença, descaso, desprezo, abandono, corte. Isto é, repito, praticamente a mesma coisa. Portanto, ou uma ou outra. Ou viramos costas ou mandamos foder, que vai dar ao mesmo. Usar as duas expressões simultaneamente, uma atrás da outra, como muito boa e distraída gente faz, "Virei-lhe as costas e mandei-o foder", isso é que deve evitar-se. Digo eu.

A honra dos Silvas

Para baixo, todos os Santos ajudam. Para cima, costumam ser os Antunes.

A minha família leva muito a sério o seu apelido Von Doellinger. Eu não. A minha família tem muito orgulho no seu apelido Von Doellinger. Então em Fafe, é um estremecimento. Eu tanto se me dá. Para mim, ser Von Doellinger ou ser Silva é igual ao litro, e só tenho pena de não ir ao nome do meu lado de Basto, que é Pereira, mas esqueceram-se dele quando me foram registar.
Quando assim falo, que é sempre, os meus parentes caem-me em cima, protestam a sua mais entranhada vaidade onomástica e ameaçam banir-me do clã, e eu contra isso nada. Ouço-os, isto é, faço de conta que os ouço, mas penso noutra coisa. Penso nos Silvas. Penso como seria bonito ver alguém sair a terreiro em defesa da honra dos Silvas. Exactamente: alguém de velha têmpera e honra antiga que, armado em Von Doellinger de corrida, ousasse chegar-se à frente para gritar alto e bom som, de estandarte em punho e peito inflado de altivez, vestindo talvez uma camisola com o "S" do super-homem estampado à frente:
- Eu tenho muito orgulho em ser um Silva, há algum problema?!...
Os Silvas, é preciso que se note, não são uma merda qualquer, e não estou sequer a falar do ilustre casal de ex-inquilinos do Palácio de Belém, que faz aqui tanta falta como o queijo gruyère numa caldeirada de enguias. A primeira linhagem de Silvas é de príncipes e anterior à fundação da nacionalidade portuguesa. Os Silvas de pé-rapado conquistaram Portugal e os Brasis, é só ir ver as listas telefónicas. Os Silvas são uns grandes pinantes, é só ir ver os registos dos motéis de norte a sul, mas neste departamento os Silvas são todos nomes falsos. Os Silvas, se um dia se chateiam, o País pára, porque os Silvas são o País. Chamar "Ó Silva!" num autocarro articulado da Carris é um perigo: os 145 passageiros (48 sentados, 96 de pé e um numa cadeira de rodas) olham todos para trás e o motorista também. O Silva dos Plásticos, toda a gente sabe, era mais conhecido do que o Papa. Silva I seria, aliás, um bom nome para um Papa português, e há logo quem pense no poeta José Tolentino Mendonça.
Embora de nascença ninguém escolha ser Silva, nem ser nome nenhum, está visto que os Silvas só têm motivos de orgulho. E quem diz os Silvas, diz os Barbosas, os Ferreiras, os Fernandes, os Rodrigues, os Costas, os Oliveiras, os Martins, os Sousas, os Gonçalves, os Almeidas, os Carvalhos, os Farias, os Magalhães, os Alves, os Teixeiras, os Lopes, os Ribeiros e até os Brochados. Sim, porque não os Brochados? Há algum problema?

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

A bisculeta

A bisculeta é um utensílio doméstico com quatro rodas, no mínimo: a roda da frente, a roda de trás, a roda pedaleira e o pinhão. O Chico Americano, por exemplo, tinha uma bisculeta que estacionava à porta do Nacor às vezes em contramão mas sempre de vidros fechados por causa da chuva que também podia aparecer sobretudo no tempo dela. O tempo da chuva antigamente chamava-se Inverno, pelo menos em Fafe. A bisculeta do Chico era um aparelho de categoria, parece-me que até tinha mudanças e talvez farol. À bisculeta, vulgarmente conhecida como velocípede sem motor ou bicicleta, há também quem lhe chame automóvel derivado exactamente àquilo das quatro rodas. E é o que se me oferece dizer a este respeito.

Deus falava às quartas-feiras

O pecado original
Corria tudo bem no Paraíso. Quer-se dizer: corria tudo na paz do Senhor. Poder-se-ia até afirmar, creio que sem forçar demasiado a nota, que o Paraíso era, naquele tempo, um autêntico paraíso. Estava escrito, porém, que Adão e Eva tinham de asnear. Podiam ter cometido um pecado qualquer, um pecadinho de nada, um pecado repetido, copiado, um que estivesse na moda. Mas não! - quiseram ser originais. E deu na merda que deu. Até hoje.

O sítio da Bíblia, em Fafe, era em Cima da Arcada, às quartas-feiras, entre o homem da banha de cobra e o triciclo motorizado com as mezinhas e os milagres da santa Alexandrina de Balasar, tudo muito bem documentado. Ficava-me no caminho para a escola. Em certas ocasiões também por lá constava o Rei das Limas, que usava um capacete colonial e tinha lábia de encantador de serpentes. A Bíblia apresentava-se nuns grandes desenhos muito coloridos e muito bonitos, montados num cavalete de madeira, e eu tinha-lhes muita devoção porque me pareciam cartazes de cinema, cenas de filmes de gladiadores e pirâmides, e o cinema, naquela altura, era a minha verdadeira religião. Eu creio que foi assim que despontou a minha "vocação" sacerdotal, a minha irreprimível vontade de ir para padre.
Quarta-feira era e é dia de feira semanal em Fafe. E eu perdia-me ali, naquele pedaço de passeio junto às escadas que desciam para o Largo antigo, mesmo em frente à actual praça de táxis. Adorava as lérias do cavalheiro das limas, facas e tesouras, que afinal vendia tudo e um par de botas, ajudado pela mulher, uma senhora toda jeitosa e chamativa, em cima da camioneta. Falava pelos cotovelos, o homem, embora, derivado aos perdigotos, tivesse pendurado ao pescoço, por um arame, um potente microfone envolto num lenço de assoar que era uma categoria. Dizia que tinha nascido numa freguesia de Fafe, não me lembro em qual - e Serafão vem-me agora à cabeça, mas não sei porquê -, e contava as aventuras passadas nas suas mais de mil voltas ao mundo, sobretudo a África, e daí certamente o capacete, Júlio Verne não o faria melhor. Para mim, estava tudo explicado. Com aquele capacete, o arame, o microfone e o lenço, eu via-o até, ao intrépido Rei das Limas, a ir ao centro da terra ou ao fundo do mar, à Lua ou mesmo a Marte, assim equipado de explorador. Ainda por cima, o astronauta era nosso, de Fafe, eventualmente de Serafão, não sei porquê, insisto, e quem diz Serafão pode dizer Moreira de Rei ou Pedraído...
Eu admirava os propagandistas. Profetas, apóstolos, missionários, pregadores, palavristas. Propagandistas, isso. Costumava, aliás, colaborar com o da banha da cobra, era o seu habitual ajudante naqueles números gagos de chamar povo e enganar tolos, a promessa sucessivamente adiada de exibir a gigantesca cobra jibóia guardada na velha mala de cartão colocada, sob rigorosas medidas de segurança, em cima de um banco de cozinha manco de uma perna. Competia-me alinhar em duas ou três pataqueiras habilidades de circo. Eu era o palhaço pobre, a cobaia, a vítima, e gostava de fazer parte. No término do espectáculo, ou da apresentação, digamos assim, o vendedor de banha da cobra dava-me de pagamento um pequeno sabonete que eu, de todas as vezes, entregava religiosamente à minha mãe, e a esperadíssima cobra, ia-se a ver, pouco maior era do que a bicha solitária exposta num frasco cheio de álcool e que, colocada sobre o capô do carro, como prova, ao lado das dezenas de embalagens da famosa pomada multifunções, atestava aos mais cépticos, caso os houvesse, que o assunto era científico, e de cura garantida, como estava ali à vista de toda a gente. - Não estou aqui para enganar ninguém!...
Eu deixava-me seduzir. Os da Bíblia explicavam os desenhos, um atrás do outro, qual deles o mais impactante e sugestivo, com aquelas senhoras muito vestidas e de cabelos compridos e aqueles senhores muito barbudos e grisalhos, as senhoras e os senhores em respeitosas poses colossais, e seguiam-se confortáveis paraísos terreais, e serpentes onzeneiras, e dilúvios vingativos, e cordeiros degolados, e sodomas e gomorras, e sarças ardentes, e cavalos e lanças, e baleias e leões, e pragas de gafanhotos, e mares abertos ao meio, e davides e golias, e céus escancarados, e bastante inferno, e raios e coriscos, e o fim do mundo, que por acaso em Fafe era feminino, dizia-se "a" fim do mundo. Cada conjunto de desenhos era um história inteira, completa, um filme. Pelo menos para mim. Spartacus, Maximus, Maciste, Hércules, Sansão, Demétrio, Ursus, eu via-os ali, claramente vistos. Até via o Homem Mais Forte do Mundo, que mais tarde conheceria pessoalmente, não é para me gabar, eu vi-o antes de o ver, juro, lá estava ele estampado de pleno direito nos santos desenhos, mas essa parte os da Bíblia às quartas-feiras infelizmente nunca viram, não sabiam, não faziam ideia. Eram, Deus lhes perdoe, uns circunspectos.
Era. Deus falava às quartas-feiras. Em Fafe. Entre a banha da cobra e o Rei das Limas. Na feira. A Bíblia contada aos simples, vendida a retalho, em folhetins.
No seminário, nos silenciosos dias de retiro, era mesmo desta parte que eu gostava mais. No grande salão de estudo, estores corridos, luzes apagadas, o tripé com cartazes substituído pelo projector de slides, o vozeirão do narrador saindo de um enorme gravador de bobinas com colunas como se fosse do céu, uma ou outra sacramental dessincronização e banda sonora de Vivaldi e Beethoven, o que certamente seria do particular agrado do incontornável padre Coutinho, que tinha tanto de melómano como de pide. As palestras cheias de aventuras do padre Fernando Leite, da revista Cruzada e do jornal Clarim, compunham-me a alma, é verdade, quase tanto como ler "O Meu Cristo Partido", de Ramón Cué, ou ouvir Ruy de Carvalho a dizer "Desiderata", mas, confesso, a Bíblia assim contada à moda das Testemunhas de Jeová, cataclísmica como na feira de Fafe e ainda por cima em versão eléctrica, isso é que era a minha cena. 
Ah! A Bíblia! Eu adorava a Bíblia. Eu adoro a Bíblia. E ainda estou para perceber como é que nunca cheguei atrasado à escola por causa da banha da cobra e porque é que me mandaram embora do seminário...

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

No tempo das recularias

Ia-se às compras, por exemplo. Encontrava-se uma pechincha, coisa escandalosamente barata, e dizia-se que custava uma recularia. Era-se chamado a casa de alguém para ajeitar o telhado, levava-se preço de amigo, de vizinho, só para beber um copo, o arranjo ficava, então, por uma recularia. Isso, recularia. Pouco, poucochinho, coisa de nada, sem importância, quantia ou coisa mínima, de pouco valor, insignificância, ninharia, quer-se dizer, ridicularia. Sim, ridicularia. Talvez a nossa recularia não passasse, não passe, de facto, de uma habilidosa corruptela e simplificação de ridicularia, para evitar vergonhas com acrobacias vocais. Talvez. Na Madeira, segundo julgo saber, há quem diga ricularia. Mas recularia soa-me bem. O povo pode ser linguisticamente preguiçoso, mas não é tolo: e, em Fafe e arredores, recularia ficou.

Passai a bola ao Aníbal!

Chegava ao intervalo e mudava sempre de equipamento, de L para XXL. Era um jogador que, como diziam os comentadores, costumava crescer muito na segunda parte.

Sou do tempo em que havia respeito. No meu tempo havia educação, havia tabuada, havia reguadas e havia catequese, levávamos no focinho em casa, na escola e na sacristia, mas demos todos em homens, incluindo as que, por razões de força maior, deram em mulheres. E hoje em dia?
Hoje em dia não há respeito por nada, nem pelos velhos, nem pelos novos, nem pelos entremeados, nem pelos pais, nem pelos filhos, nem pela missa, nem pelos professores, nem pelo sagrado futebol - e daqui não vamos mais longe. As pessoas pagam fortunas para entrarem no estádio e depois não vêem o jogo, espreitam-no pelo ecrã do telemóvel, "filmam", "fotografam", viram as costas ao campo, telefonam-se, vão ao YouTube, lançam tochas, fazem selfies, mandam sms umas às outras, cadeira ao lado, revelam a emoção do momento no Facebook ou no Instagram, dão facadas, mas não ligam à bola, não sabem o resultado, não sabem sequer quem são "os nossos", querem ver se aparecem na televisão, nem um palavrãozinho ao árbitro, nem um vai à merda! ao defesa-esquerdo que é uma nódoa, nem um uiiii! ao tiro a rasar poste. Como se o futebol sem caralhadas ainda fosse futebol. Que grande falta de respeito pelos intervenientes, que ausência de presença, que ignorância da tradição!
No meu tempo sabíamos como nos devíamos comportar. O futebol à antiga tinha a sua própria gramática. Da bancada (e, aqui, bancada é uma mera força de expressão), tínhamos uma palavra a dizer em campo. Havia um léxico muito concreto e rigoroso que nos era ensinado desde tenra idade, por exemplo:
- Olha a hora!...
- Está a sentar!...
- Já não chove!...
- Não jogas nada!...
- Anjinho de merda!...
- És um arrocho!...
- Abre-me esses olhos, ó cego!..
- Ó bandeirinha, estás fodido comigo!...
- Ó gatuno!...
- Vais levar poucas, vais!...
- Aperta com ele!...
- Dá-lhe!...
- Parte-lhe uma perna!...
- Ó filhadaputa, ó boi!...
- És muito corno!...
- Força prà frente, caralho, pá!...
- Chuta, que o guarda-redes é anão!...
- Chuta, caralho!...
- Corta, caralho!...
- Desce, caralho!...
- Sobe, caralho!...
- Corre, caralho!..
- Tira o gajo, caralho!...
- Mete outro, caralho!...
Pelo menos em Fafe era assim, primeiro no Campo da Granja e depois no "Estádio". A interacção era tão próxima, tão intensa, que, às vezes, mortinhos por fazerem parte, os próprios jogadores tomavam a iniciativa de mandar foder os adeptos, num eloquente gesto largo ou num simples chocalhar de testículos, como quem diz e diziam "ide para o caralho, caralho, correi vós, caralho"...

Na verdade, o vocativo caralho era sacramental. Dissesse-se o que se dissesse, nem que fosse "as horas?", e se, no final, se lhe enfiasse o caralho como se fosse um sufixo, estávamos obviamente a falar de futebol. Do futebol puro, do tempo em que havia educação e respeito pelo jogo. Sobretudo respeito e indesmentível educação. Até durante o intervalo, no bar, mandando vir "seis cervejas, caralho" ou "quatro malgas do novo, caralho"...

Destoava o Aníbal Carriço, isto também é verdade. O bom e querido amigo Aníbal Rodrigues, porém Carriço, que, tantas vezes farto da engonha de falsos habilidosos, algum brinca-na-areia de trazer por casa, gritava de cá de fora com voz pausada e grave, solenemente, de mãos na boca em altifalante: "Passa a bola! PA-SSA A BO-LA!! PA-SSA A BOO-LAA!!!..."
O grande Aníbal Carriço, meu ilustre camarada de jornais e empolgado parceiro de charlas tasqueiras, irmão do incrível Zé Manel Carriço, foi um dos mais promissores jovens jogadores da AD Fafe da sua geração, mas a Guerra Colonial e uma série de balázios no lombo impediram-lhe o futuro. Salvou-se-lhe felizmente a tonitruância.
De acordo com os dados recolhidos pela estação sísmica da Gavieira, em Viana do Castelo, o "PA-SSA A BOO-LAA!!!..." do nosso Aníbal dito no estádio do Fafe ouvia-se, consoante para onde o vento estivesse virado, de Guimarães até Felgueiras, da Póvoa de Lanhoso até Vieira do Minho e de Cabeceiras de Basto até Celorico do mesmo. Isto, se não estou em erro. E desejo que ainda se ouça.
A dialéctica e a exegese futebolísticas estão modernamente aos cuidados de especialistas televisivos, de paineleiros. Mas, palavra de honra, por mais paineleiros que os paineleiros sejam: ver a bola simplesmente, desabafar umas litúrgicas caralhadas, ouvir o concerto do Aníbal, e depois ir merendar ao tasco - ainda não descobri melhor maneira de passar uma boa tarde de domingo.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Quem vê caras não vê orações

Uma mão lava a outra. E as duas lavam os pés. E lavam as pernas e os braços e os sovacos e a barriga e as costas e as partes e o pescoço e as orelhas e a cara e o cabelo ou a careca. E a carteira. É. Uma mão lava a outra.

Um daqueles famosos restaurantes de peixe na brasa aqui ao lado, na Rua Heróis de França, Matosinhos à beira-mar, estais a ver, já vos chegou o cheiro? Ainda é cedo. Pouco passa das oito da manhã, uma velhinha varre cerimoniosamente a esplanada que por acaso é passeio ocupado com ordem municipal, os peões têm de andar pela estrada, toureando carros felizmente em sentido único. Asseada como se fosse domingo, a velhinha, corpo franzino, cabelos brancos de neve, ajeitados à moda da televisão, da telenovela, uma carinha doce, redonda como um minúsculo sol resplandecendo bondade, olhos apontados ao chão, espertos, criteriosos, os olhos, a velhinha varre varre, vagarosa e competente. Varre varre vassourinha, se varreres bem dou-te um vintém, se varreres mal dou-te um real. Se os anjos varressem e fossem velhinhas, e competentes, eram ela certamente e varreriam assim mais ou menos. Lembro-me de velhinhas tais quais no meu tempo de criança, em Fafe, as saudades doem-me na zona do fígado, estou também a ficar velho. A rua naquele sítio àquela hora éramos a velhinha e eu. Eu, que venho de mercar sardinhas madrugadoras e vivas, estremeço de comoção.
Varre varre a velhinha doce e cerimoniosa, olhos espertos e belos. Olhos que não enganam. Bondosos. Cara de sol, de anjo. E, eu a passar-lhe pelas costas, diz a velhinha, como se fosse um mantra ou, vá lá, a recitação do terço, à tardinha, na Igreja Matriz, antes da bênção do Santíssimo: - Filhos da puta! Era mas é fodê-los! Mandá-los a todos prò caralho! À puta que os pariu!...
É. Ninguém diga que está livre, amém!

Agora, chama-lhe nomes...

E a culpa é do vinho?
Dizer-se que alguém tem mau vinho é um insulto ao vinho e uma grande injustiça. Há quem seja da pior espécie mesmo em jejum e abstinência, e que culpa é que tem o vinho? Mau vinho é outra coisa, e ainda assim serve para vinagre. Oportunamente abordaremos as não menos fracturantes problemáticas do mau fígado, do mau-olhado e do mausoléu.

"És um caguinchas!", chamou-lhe. "E tu és um parrano!", levou de troco. Todos os dias a mesma toléria, aqueles dois: colegas de escola, camaradas de armas, amigos do peito (mamaram da mesma ama e até bastante tarde), parceiros de quartilhos e do falar antigo, mas assim que tal, mal se entornavam no tinto, escamavam-se por dá cá aquela palha. - Que tal a pinga? - Calar... -, isto antes do destruete, sem mais nem menos, ali à frente do arraial inteiro: o arrepio, o atraso-de-vida, o borra-botas, o cagão, o moncoso, o ranhoso, o bisnaga, o torto, o piolhoso, o chulezeiro, o lamprancho, o pinante, o larilas, o maricandeiro, o azeiteiro, o boca-rota, o boca-suja, o leva-e-traz, o lambe-conas, o chupista, o choupilo, o mal-ajambrado, o todo-tirone, o lonchanei, o pinto-calçudo, o côdeas, o broeiro, o minguches, o cachicha, o piça-fria, o caga-na-saquinha, o corno, o sacrista, o licranço, o pascácio, o colhões-dácio, o videirinho, o sebento, o gijo, o catinana, o belga, o caiçara, o desgraça, o fastio, o esticadinho, o adeus-ó-vai-te-embora, o puta-velha, o boxevista, o já-me-tinhas-dito, o escova, o morgado, o penquicite, o bastelo, o bítala, o alma-grande, o meia-foda, o chega-rebos, o gibreiro, o armante também conhecido como senhor-caguei-pra-ele, o peneirento, o doutor-da-mula-ruça, o molho-de-ossos, o pau-de-virar-tripas, o meu-rico-menino, o remelado, o aluado, o lingrinhas, o matarruano, o burgesso, o chorinhas, o bronquite, o bom-serás, o enjoado-de-merda e o ganante, que tinha artes de desaparecer na hora das contas. Os do costume, portanto, e não estavam todos. Ainda por cima, com o molageiro, calistro profissionalizado e moina residente na mesa do canto, sempre a meter o bedelho, e às vezes carvão, como quem não quer a coisa. Que se segue? Apartava-os o alemido - "Bonda!", mandava ele, guindando-se da cadeira que já se lhe formatara ao cu, e ia às carreiras botar água na fervura antes que desse para o torto, escarmentado por mor daquela vez em que o liorneiro pôs tudo aos tiros só por ter chamado cosmopolita ao lincréu...
Quem me contou foi o anzoneiro.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Os bês pelos bês

Aos de cá de riba, os que aqui bibemos resbés com o pai Minho e com a parentela galega, acusam-nos regularmente de trocarmos os bês pelos bês. Que, por exemplo, dizemos bergonha em bez de bergonha, biolência em bez de biolência, baca em bez de baca, pobo em bez de pobo, bírgula em bez de bírgula, bizinho em bez de bizinho, berde em bez de berde, ou binho em bez de binho. E que, pelo contrário, dizemos boi em bez de boi, beringela em bez de beringela e bicha em bez de bicha. Eu nunca dei fé de semelhante, a berdade é só uma! Acho que quando é bê dizemos bê e quando é bê dizemos bê, ebidentemente - de resto como toda a gente, que não somos menos do que os outros no que diz respeito ao falar e à gramática. Quanto à crítica propriamente dita, das duas, uma: má bontade ou mau oubir. Debe-se aberiguar!

Os bons hábitos ainda moram em Fafe

Sodoma e Gomorra
Os sodomitas ficaram com a pior parte da fama. Os gomorritas safaram-se, vá-se lá saber porquê, e já ninguém sequer fala deles.

Apraz-me registar que, apesar da minha prolongada ausência, Fafe lá consegue aguentar-se, preservando pelo menos duas das suas mais icónicas e respeitáveis tradições: o jogo e a prostituição. Alegram-me sobremaneira as notícias que me vão chegando, de vez em quando. Notícias animadoras, aqui atrasado logo duas de uma vez, isto é, na mesma semana, a primeira dando conta de um apartamento que era usado em Fafe "para negócio de prostituição" e a segunda a propósito da detenção de catorze indivíduos num café "em Arões Santa Cristina por jogo ilegal". Detenção "em flagrante", no caso da batota, não sei em que circunstâncias no que diz respeito ao putedo, e eu gostaria muito de saber, porque, verdade seja dita, é sempre mais interessante de se ver. Por causa do corpo de delito.
Confesso. Eu já temia que, fruto de sucessivos banhos de cosmopolitismo e cultura de croquete, dados evidentemente nas minhas costas, Fafe se tivesse aos poucos deslavado e transformado numa dessas terras virtuosas e insossas, que nem coisam nem saem de cima, talvez até esquecendo e renegando as suas mais ancestrais e emblemáticas tradições, como por exemplo as corridas de jericos ou aquela tão bonita de afogar gatos no rio. Nos nossos rios e poças, que, não desfazendo, também são uma categoria. Mas não. Felizmente, não. Fafe mantém-se fiel ao seu passado glorioso, um farol civilizacional, uma metrópole de vanguarda moral, uma inapagável Las Vegas do vale do Ave com barragem e tudo, encravada entre a Póvoa de Lanhoso e Felgueiras, a zona de Basto, Vieira do Minho e Guimarães, consoante o lado por onde se lhe entre. E fiquei contente, claro que fiquei contente!
No caso da prostituição, o nosso apartamento, quero dizer, o de Fafe, funcionaria em estreita ligação com um outro apartamento localizado na Póvoa de Varzim, o que se compreende perfeitamente, uma vez que, como toda a gente sabe, a Póvoa de Varzim é Fafe no Verão. Já a conexão a um terceiro apartamento, em Viana do Castelo, poderá de alguma forma estar relacionada com as excursões que o meu avô da Bomba organizava antigamente a Fátima e, lá está, ao Alto Minho, com pernoita obrigatória em Viana. Prometo averiguar.
Quanto ao jogo ilegal, é a cara chapada de Fafe. Do pilas do Serafim Lamelas às madrugadas no Club Fafense ou no Fernando da Sede, do bilhar aos flippers no Peludo, em Fafe jogava-se a tudo, apostava-se por tudo e por nada. E sempre a dinheiro. E por isso daqui envio a minha mais compungida solidariedade aos catorze maduros, catorze magníficos, fafenses à antiga, que foram apanhados em Arões com as calças na mão, por assim dizer.
Foi um rude golpe. Juntamente com os jogadores propriamente ditos, dos 27 aos 83 anos, a GNR deteve também duas mesas e dezanove cadeiras consideradas perigosas, para além de um baralho de cartas há muito procurado pelas autoridades. Um rombo no negócio, um tiro no porta-aviões. Mas todos juntos haveremos de reerguer-nos. Bem hajam!

Claro que às vezes também há uns tiros e umas facadas, e isso é que era escusado, isso é que é imperdoável. Em todo o caso, foi sempre assim, infelizmente. Em Fafe, em Portugal, no mundo inteiro. Crime? Violência? Insegurança? Nem mais nem menos do que antigamente, provavelmente menos, mas com mais "notícias", com mais política, isto é, com maior "percepção"...

sábado, 15 de fevereiro de 2025

O ouriço-cacheno

Perguntam-me: mas afinal o que é um ouriço-cacheno? E eu respondo, com todo o gosto: um ouriço-cacheno é um ouriço-terrestre, cientificamente chamado Erinaceus europaeus e também conhecido como porco-espinho, ouriço-cacho ou simplesmente ouriço. Quer-se dizer: um ouriço-cacheno é um ouriço-cacheiro se visto e dito em Fafe. Evidentemente.

O bruxo de Celorico

Quando o Feitiço se virou contra o Feiticeiro, o Feiticeiro resmungou: - Mal agradecido...

Sou fã de Marcelo Rebelo de Sousa, acho-lhe piada. Embora fosse mais fã e achasse mais piada no tempo em que ele era "apenas" comentador. Gostava mais dele nessa altura. Gostava daquele ar cartomante com que o Professor nos revelava tudo aquilo que nós já sabíamos. Parecia bruxo. Parecia O Astro mas sem turbante. Gostava daquele sorrisinho matreiro, sorrisinho marca já-te-fodi. Gostava da forma como o Professor ia à televisão vender pedaços de nada como se fossem o mundo inteiro. O truque estava no poder de concentração e nos embrulhos. Marcelo usava papel de embrulho do melhor: papel de lustro, manobrista e recadeiro. E os fregueses adoravam. Marcelo sabia mais que o Papa. Sabia mais que a Irmã Lúcia, que está quase a ser santa. Sabia o passado e o futuro. Marcelo era o nosso presente. E agora é o nosso Presidente.
A omnisciência sempre me seduziu. Desde miúdo, quando, ainda em Fafe, eu ia a casa do Bertinho Dantas, meu rico menino, jogar O Sabichão. Depois, ao longo da vida, tive a sorte de encontrar sábios a sério em velhos lavradores, em professores, em camaradas de profissão, em três ou quatro amigos, gente que muito respeito e continuo a admirar. Nunca acreditei nas sinas lidas pelas nossas ciganas, às quartas-feiras, em Cima da Arcada, com um olho na mão e o outro na polícia, mas dava algum valor ao cartãozinho com o horóscopo que saía na balança colocada à porta do escritório das camionetas do João Carlos Soares, em frente ao Café Avenida, quanto mais não fosse a moeda de 50 centavos que aquilo custava.

Era uma vez 2005, ano de eleições legislativas em Portugal. Luís Filipe Menezes chefiava a lista do PSD por Braga e foi em pré-campanha a Celorico de Basto. O cabeça de cartaz do jantar-comício era Marcelo Rebelo de Sousa, o figurão. O meu jornal mandou-me atrás dele. PSD à parte, eu sentia-me ali particularmente à vontade, era a minha zona, a bem dizer. Na ementa, lombo assado evidentemente.
Não sei se sabem, o lombo de porco assado, que por acaso é quase sempre apenas estufado, é a comida oficial da política em Portugal, e também é, regra geral, uma boa merda. Canja, lombo e musse de chocolate. Assim. Quem já passou por campanhas eleitorais e comeu todos os dias lombo, ao almoço e ao jantar, sabe muito bem do que é que eu estou a falar. Um suplício.
Mas adiante. Dos discursos, lembro-me apenas que Menezes "lançou" a candidatura de Marcelo à Presidência da República, oferecendo-lhe um quadro já não sei com que motivos. No final das intervenções, Marcelo andou de mesa em mesa, como noivo em dia de casamento, distribuindo bacalhauzada àquela gente toda a quem fazia questão de fazer de conta que conhecia cara a cara.
Eu aproveitei a confusão para dizer ao que ia:
- Sr. Professor, eu sou o...
- Eu sei - cortou simpaticamente Marcelo, estendendo-me a mão e um sorriso de orelha a orelha.
- ... o Hernâni Doellinger, do...
- Sei muito bem quem é - insistiu Marcelo, retirando a mão e reduzindo o sorriso.
- ... jornal 24horas - consegui informar, enfim.
- Exactamente, eu sei, sei muito bem, Hernâni, 24horas, eu sabia - concluiu Marcelo, metendo o resto de sorriso no bolso das calças e pedindo licença para continuar com os cumprimentos, que ainda havia muitas mesas para bacalhauzar no salão de cima e que falávamos no fim.
Claro que não falámos. Marcelo Rebelo de Sousa foi-se embora como quem não quer a coisa, fugiu pela porta dos fundos sem me dar uma segunda oportunidade, e se calhar até fez bem, o 24horas não se recomendava. Também não interessa. O importante é isto: o Professor não me conhecia de lado nenhum, nunca me tinha visto mais gordo nem mais magro, mas apareci-lhe à frente e ele "soube" logo quem eu era. Não é extraordinário? Agora que penso nisso, devia ter-lhe pedido que me deitasse as cartas. E que me desse os números do Euromilhões.

Ainda hoje guardo religiosamente a mão com que cumprimentei Marcelo Rebelo de Sousa naquele encontro histórico de Celorico de Basto. Os nossos contactos seguintes, tal como os anteriores, resumiram-se ao telefone. Ligava eu, por dever de ofício. E o Professor atendeu-me quase sempre. E foi sempre amável e útil. Depois mudou-se para Belém, e nunca mais falámos.

E para terminar. Sobre O Astro - "Pensar, Professor, pensar..." -, quem tiver idade para se lembrar da telenovela de Janete Clair e do desempenho do actor Francisco Cuoco percebe a história do cartomante, quem for mais novo que se informe. E reparem: em 2005, portanto há vinte anos, ainda as selfies em Portugal eram geralmente outra coisa, Luís Filipe Menezes também lia a sina, adivinhava a candidatura do Professor, exactamente em Celorico, mas não era assim tão difícil. Marcelo, estava-lhe nas linhas das mãos, trabalhava no assunto desde que nasceu. Com efeito, Marcelo Rebelo de Sousa é Presidente da República desde pequeninho. Pequeninho, que é como se diz pequenino lá para os nossos lados galegos de Fafe e Basto. Ou pequerricho. Como o nosso Luisinho, que, hão-de ver, também é homem para chegar lá.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Há palavras com piada fina

Questões entre parênteses
Quando os parênteses lhe caíram na lama, ele substituiu-os por vírgulas.

Gosto de nomes, gosto do falar antigo, gosto das palavras. Gosto de palavras com piada fina, palavras como parreca, como esbraguilhado, como caguinchas, como cachicha, como peneirento, como pinante. Palavras à moda de Fafe. Mas ainda gosto mais de palavras desalinhadas, subversivas, fora-da-lei. Palavras universais, matreiras e despudoradas. Gosto de palavras que não são o que parecem. Aprecio especialmente as palavras que violam a ordem estabelecida, provocadoras, palavras que viram a norma de pernas para o ar e a abusam, como por exemplo, sem ofensa para os presentes, solhão, cordão, pontão, estradão, picão, mosquetão, cartão ou calção.
Cá está. Cá estão: solhão, cordão, pontão, estradão, picão, mosquetão, cartão e calção, palavras rematadas com o famoso sufixo "ão", unanimemente considerado pelos mais reputados gramáticos como um dos sufixos por excelência para a formação de aumentativos. E, no entanto, para quem sabe das coisas, solhão é uma espécie de solha mais pequena, cordão é uma corda de bolso, pontão é uma pontinha sobre um ribeiro, estradão é uma estrada estreita e geralmente em terra esburacada, aliás conveniente para ralis, picão é uma picareta diminuta, ferramenta de mineiros, mosquetão é mais curto que mosquete, cartão é menor que carta e calção é cueca ou calça curta. São excepções que, como se diz, confirmam a regra? Não, pelo contrário: são palavras que querem que as regras vão dar uma volta.
Evidentemente a palavra pilão levar-nos-ia muito mais longe. Mas fica para a próxima.

Os cónegos dividem-se em três partes

O catecismo está errado
A gula é pecado. Mas a fome não. Isto anda tudo ao contrário!

Há coisa de quarenta/cinquenta anos, os cónegos não eram uma classe respeitada por aí além, mesmo ou principalmente no interior da Igreja. Naquele tempo, cónegos eram anedotas contadas por padres que não eram cónegos. Inveja? Sei lá eu. Parece que o tique vinha de trás e atiravam a culpa ao Eça. Ao de Queirós.
Os cónegos que então conheci, porque andei lá no meio deles, afiguravam-se-me criaturas patuscas, isso é certo. Geralmente baixinhos, barrigudos e corados, aspecto, fama e decerto proveito de comilões, sebentos às vezes, os cónegos eram uns cromos, caricaturas deles próprios. Também não sei se ficaram assim depois e por causa de terem ido para cónegos ou se aqueles é que eram os requisitos necessários e critérios de selecção para o canonicato.
Uma vez, no Seminário de Nossa Senhora da Conceição, em Braga, um padre recém-ordenado, mestre e amigo, ensinou-me que a classe dos cónegos se dividia em três categorias: "os cónegos de merda, a merda de cónegos e os cónegos a sério" - que seriam os da sé propriamente dita, eventualmente os cónegos com cargo no cabido. O meu mestre e amigo suponho que actualmente é cónego, mas não sei de que categoria. Tenho também ex-colegas de seminário que são cónegos, e estimo-lhes as melhoras.
Como funciona agora com os cónegos, confesso que desconheço. Mas acredito nisto: quarenta ou cinquenta anos não dão para nada na Igreja instituição, não dão sequer para meter a chave à porta - quanto mais para puxar o autoclismo.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Entre o coçamos e o coça-mos

É erro comum e de palmatória: escrever entrega-mos, devolve-mos, envia-mos ou compra-mos, quando na verdade o que se quer escrever e dizer é entregamos, devolvemos, enviamos ou compramos. Erro comum porque o vejo por aí todos os dias, ainda hoje vi, e de palmatória porque é grave e aliás frequentemente pejorativo. "(Nós) entregamos", primeira pessoa do plural do presente do indicativo da forma regular do verbo entregar, não é o mesmo que "(tu) entrega-mos (a mim)", segunda pessoa do singular do imperativo do verbo entregar conjugado pronominalmente, ocorrendo neste caso a contracção de dois pronomes - "me" + "os", resultando em "mos".
As duas flexões coexistem, mas, apesar de próximas na grafia, não se equivalem. Por outro lado, distinguem-se claramente pela pronúncia, até porque, regra geral, nestes casos a sílaba tónica é diferente.
O problema é que as pessoas não sabem escrever sobretudo porque não sabem ler. Se soubessem ler, então também saberiam que, por exemplo, dizer ou escrever agarramos, chupamos, lambemos, mordemos, arregaçamos, aquecemos ou coçamos, vá lá, é uma coisa. Outra coisa bem diferente será dizer ou escrever, como tanto se usava em Fafe, agarra-mos, chupa-mos, lambe-mos, morde-mos, arregaça-mos, aquece-mos ou coça-mos, vá lá...

Sou esbraguilhado e não sabia

Num beijo
- Num beijo! Num beijo! - gritava o homem, aflito. E realmente num bia.

Esbraguilhado, de acordo com a definição dicionária, é o tipo que "tem a braguilha desabotoada". As braguilhas há que anos não são de botões, mas não posso negar que umas quantas vezes já saí de casa com a ferramenta a arejar, esquecido completamente de puxar o fecho-éclair para cima, por pressa ou por idade - ainda não consegui chegar a uma conclusão que me convença. No entanto, foram acasos, excepções, eu morra aqui se não é verdade. Nesse sentido, portanto, não me vejo como um genuíno esbraguilhado. Em todo o caso, e pelo sim e pelo não, hoje em dia, antes de ir à rua, vou primeiro à revista, à minha mulher. Porém. Esbraguilhado também quer dizer o tipo que anda "com fralda da camisa saída". E aqui sou eu, todo e completo: esbraguilhado de corpo inteiro, que não meto as fraldas para dentro há quase 50 anos, nem nos dias raros e cerimoniosos de uso de casaco. Jamais.

Bela palavra, esbraguilhado. Nunca lhe tinha posto a vista em cima até há coisa de uma década e por acaso, apesar de a língua portuguesa ser uma paixão e o meu ofício. Envergonhei-me, pela rematada ignorância. O amor e o respeito pela nossa língua foram-me ensinados primeiro pela minha mãe - analfabeta por culpa da vida, e sábia graças a Deus. A minha mãe corrigia-me a leitura, emendava-me as palavras, eu de cabeça enfiada nos livrinhos fascistas da primária, na mesa da nossa sala que era também o quarto dos meus pais logo à entrada da casinha do Santo Velho, e a minha mãe a ensinar-me Português. Ela não sabia ler nem escrever, e eu achava aquilo extraordinário. Ainda hoje acho aquilo extraordinário. Um milagre.
Depois tive a sorte de me calhar o professor Correia (Toninho da Cafelândia, se não me engano), que me levou da segunda à quarta classe na Escola Conde Ferreira, tive os extraordinários mestres do seminário, o professor Alberto Alves, que me ensinava livros na Biblioteca Gulbenkian de Fafe, o velho professor Horácio, meu chefe e amigo na revisão do Janeiro. Todos me ensinaram. A tabuada dos nove, a Linha da Beira Alta, os reis da 1.ª Dinastia, semânticas e hermenêuticas, mas sobretudo ensinaram-me a pedir licença e a tratar com carinho a língua portuguesa. Puxaram pelo melhor de mim, sem estragarem o que a minha mãe tinha feito. Aprendi.

Aprendi, por exemplo, a ter dúvidas quando escrevo. Quem não tem dúvidas, tende a escrever asneiras. Hoje em dia escreve-se muito de ouvido. E escrever de ouvido não tem nada a ver com literatura oral, é mas é sinónimo de preguiça, ignorância. As palavras nem sempre se escrevem como soam, e muitas vezes são mal ditas. Mal ditas, mal escritas, mal interpretadas, e assim normalizadas. O erro passa a ser a norma, a patacoada alcança dignidade gramatical. Pela parte que me toca, eu, confesso, não sei escrever sem o dicionário, o livro, ao lado; não sei escrever sem a enciclopédia, os livros, ao lado. Molho o dedo na língua, gesto antigo, vou lá ver se é com ésse ou com zê, se a palavra que escolhi quer dizer exactamente aquilo que eu quero dizer - e ainda assim asneio.
Foi num destes exercícios que descobri a palavra esbraguilhado e gostei dela. Assumi-a. E, à falta de melhor assunto, veio-me a memória. Ou então sou só eu a dar uso às palavras. Estimo-as, protejo-as, mas, sei muito bem, elas precisam de arejar, de vida. E cá estão!

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Um cibo de pão, uma pinga de vinho

Cibo é comida, alimento, especialmente das aves, aqueles bocadinhos que os pássaros dão às suas crias de biquinhos famintos e abertos. Isso. Cibo é pequena porção. Pequena porção de comida ou de qualquer outra coisa, mas sobretudo de comida, como era uso dizer no falar antigo de Fafe e Basto e certamente de todo o Norte ao redor, de uma maneira geral. Mas atenção: cibo não era um vocábulo arrevesado e anacrónico, jurássico, pelo contrário, era palavra corriqueira do dia-a-dia, metida a cotio por necessidade. Era a medida da vida. Cibo é menos que pedaço, é menos que naco, é, dito de outra forma, um nico. Cibo era pobreza.
Pedia-se, oferecia-se, dava-se, partilhava-se, comia-se um cibo de pão, um cibo de carne, bebia-se uma pinga de vinho. Galegos do sul que somos, adoçávamos a penúria, enchíamo-la de mimos, dizíamos cibito, cibinho, cibico, com mil carinhos, como quem faz festas aos seus e diz pequenito, pequenino, pequeninho, pequerricho, de coração cheio e mãos abertas, talvez enganando mansamente a fome, como se afinal lhe quiséssemos bem.

Moelas de coelho só no Peixoto!

O requinte e o requente
A diferença entre requintado e requentado passa quase despercebida. No arroz de marisco é que se nota mais. E na sanita, consequentemente.

Embora notoriamente os coelhos não tenham moelas, devo informar que ninguém as cozinhava tão bem como o meu amigo Peixoto, em Fafe. Uma verdadeira especialidade! O Peixoto tinha mãozinha amestrada para a plancha e para a cozinha em geral. Eram famosos os seus pregos, em pão ou aos trambolhões, as suas francesinhas chamavam pessoas de fora, o seu marisco, ou "meterial", estava sempre muito bem trabalhado, uma categoria, mas as moelas de coelho suplantavam tudo o que é possível imaginar. Eram incomparáveis, exclusivas, únicas, um pitéu digno de deuses, indesmentível ambrosia do ramo dos salgados e afins. As moelas de coelho e os ovos cozidos, ovos de galo, às vezes, mas que na semana da Páscoa eram evidentemente ovos de coelha, e lá estavam expostos em cima do balcão, ao lado da terrina das moelas prontas a aquecer, com o cu enfiado em sal grosso como manda a tradição.
Eu ia a Fafe e ia ao Peixoto, como se fosse uma religião. A minha mulher também ia e era muito bem tratada. E o meu filho foi ensinado a ir ao Peixoto desde pequenino. Quando eu ia lá com amigos, tantas e tantas vezes, geralmente a horas escusadas, o Peixoto perguntava-me sempre pela família e mandava-me trazer "cumprimentos para a esposa e para o menino". E eu trazia.
(E é curioso. Porque, pensando bem, o Sr. Peixoto dispensava-nos, a mim e à minha família, um certo tratamento de excepção, uma gentileza indubitavelmente sincera mas que, na verdade, não era lá muito do seu feitio...)
Pois aqui há coisa de três ou quatro anos, talvez mais ou talvez menos, eu e o tempo agora não andamos certos, fui a Fafe e fui ao Peixoto, de fugida, para lhe dar um abraço e duas de letra, mas Peixoto de grilo. Foi um choque muito grande, uma tristeza que ainda me dói. Porque o Peixoto faz-me falta. O malandro passou o negócio, e decerto encheu-se de massa, mas não me avisou. Na verdade, ninguém me avisou. E devia ter saído em edital camarário, com voto de louvor e medalha: afinal, o Peixoto era uma instituição, dizia eu.
Mas lá está, o que eu digo não se escreve, e muito menos em Fafe, a não ser que seja eu próprio a fazê-lo. E portanto cá está.

Por outro lado. A ciência ainda não encontrou uma resposta plausível e, pelo menos, isenta de misoginia acerca de porque é que os ovos de galo são maiores do que os ovos de galinha, mas não é isso que interessa aqui agora. Lembrei-me foi do seguinte: se existe o Dia Internacional do Coelho, que se assinala anualmente no último sábado de Setembro, eu acho que Fafe, pelo menos Fafe, devia festejar o Dia Mundial das Moelas de Coelho, já que as inventámos. E a criação de uma, digamos assim, Confraria Gastronómica das Moelas de Coelho à Moda de Fafe, o seu a seu dono, também não estaria mal vista. A minha terra, diga-se em abono da verdade, é muito dada a isto das confrarias e dos dias internacionais ou mundiais. Lembro-me, por exemplo, que o Dia Internacional do Tigre, que não sei se já tinha sido descoberto para o dia 29 de Julho, era celebrado quando calhava, exactamente no Peixoto, pela madrugada dentro e já com as portas encerradas e vidros tapados. Íamos do Porto, de propósito, eu e a minha equipa, depois do fecho do jornal, e não podia ser de outra forma. O "meterial" era um bom "meterial", mas o molho secreto do Peixoto fazia-o ainda melhor. É claro que estou a falar de camarões, dos enormes, tigres, abertos em dois, grelhados na chapa, e o Peixoto, que me avisava quando os recebia, era realmente um desembaraçado domador. Na hora de pagar, por minha conta e com todo o gosto, lá se ia praticamente a entrada para a compra de uma casa, mas éramos novos e tolos, e o que é que se havia de fazer?...

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Os melhores anos da minha vida

Foto Fotografia Aliança

Naquela altura eu não sabia que aqueles eram os melhores anos da minha vida. Dito com mais rigor, os primeiros melhores anos da minha vida. E que ninguém se iluda com o aspecto formal, cinzento, tão manhã submersa. Rapazinhos vestidos de homens, tão coninhas. Não éramos nada disso, pelo menos não éramos todos. Éramos, pelo menos alguns, rapazes espertos e gandulos, mas tínhamos mestres. Sorte a nossa. Sorte minha. Devo-lhes tudo. E mandaram-me embora...
Alguns destes inesquecíveis cromos deram mesmo em padres, consta-me que até já vão em cónegos, mas não sei de que categoria. Os cónegos, como me ensinaram e eu gosto de explicar, dividem-se em três partes. Lá iremos...

A burra do Reigrilo

Quadrúpedes
O burro é um quadrúpede. Meio polvo também.

Nos últimos tempos, é todos os anos mesma coisa. Chegam os 16 de Maio e não há corrida de jericos. E a corrida de jericos faz falta. Uns 16 de Maio sem corrida de jericos é como orelheira de porco sem sal ou como, não vamos mais longe, o lago do Jardim do Calvário sem crocodilos. Um desconsolo. O programa bem tenta disfarçar, anunciando, todo vaidoso, a "corrida de cavalo a passo-travado", assim chamada, com hífen e tudo. Mas é tão pouquinho. E, ainda por cima, uma prova desportiva estigmatizada por essa denominação assaz amaricada, "passo-travado" com hífen e tudo, não vai a lado nenhum, só faltava mesmo dizer-se que as cavalgaduras também correm de minissaia e salto alto. Mas burros é que nada, e logo nos tempos que correm e em Fafe. Parece impossível. Quer-se dizer: vim-me embora, e agora não há mais asnos na terra, é nisso que quereis que eu acredite?
Lembro-me muito bem como era. Havia a corrida de cavalos, sim senhor, coisa série mas amadora, com montadores e montadas cá da terra e arredores, medindo forças por entre um mar de gente cheia de entusiasmo, chapéus e vinho, na mais nobre rua da vila, o empedrado - ou pavê, como dizem agora os especialistas - onde costuma terminar a etapa da Volta a Portugal em Bicicleta. Partiam em frente ao Café Império e iam dar a volta na Cafelândia, ainda não havia rotunda nem banco, com as ferraduras novas a chisparem por todos os lados e alguns animais, de travões bloqueados, a espargatarem contra vontade para um 10 de nota artística nos Jogos Olímpicos e mandando os donos irremediavelmente de focinho ao chão. Ao Império regressavam apenas três ou quatro conjuntos completos, e o pódio era discutido já depois de cortada a meta, à força de varapau, ameaças de tiros e polícias de fraldas à mostra e agarrados aos bonés, baldeados de um lado para o outro ao sabor da maré, com a multidão a tomar diferentes partidos, de cabeça e chapéus perdidos, mortinha por também molhar a sopa. Isto eram as pessoas. Os cavalos, naturalmente mais ajuizados, não se metiam. Mesmo os cavalos que tinham terminado a prova sozinhos, apesar de um tudo-nada desorientados e talvez contrafeitos, mantinham o fair play, viravam as costas à confusão e iam procurar os donos mercurocromados para pedirem desculpa pelo mau jeito. Quanto ao júri, ponderava criteriosa e responsavelmente todos os argumentos em discussão, sobretudo os argumentos que metiam pistola, e depois entregava a taça às primeiras mãos que a agarrassem.
O melhor vinha a seguir. Era a corrida de burros, que não era bem uma corrida, porque os burros, que não eram assim tão burros, recusavam-se terminantemente a correr. Davam uns passos, nem sempre no sentido correcto, na direcção proposta, davam umas voltas, mudavam de rumo quando lhes apetecia, contrariando em flagrante o ditado de que "só os burros é que não mudam", e se calhar às vezes até nem havia vencedor. Mas o povo ria-se. É preciso que se note, porém, que os burros portavam-se assim não por serem burros mas por serem ignorantes. Na verdade, naquele tempo eles ainda não sabiam do estudo da Universidade de Londres que aqui atrasado descobriu que os burros não são animais estúpidos nem teimosos. Serão surdos ou não compreendem inglês, quando muito, mas agora já sou eu a extrapolar.
Ora bem. O Reigrilo tinha uma burra que se chamava a burra do Reigrilo. O Reigrilo era tão teimoso como a burra, portuguesa e analfabeta, mas bebia muito mais. Eu nunca na vida vi o Reigrilo sóbrio. A sorte dele, quando saía do tasco do Paredes em adiantado estado de fermentação, era exactamente a burra, que o levava a casa, submissa e em piloto automático, debaixo de um chorrilho de insultos e chibatadas absolutamente desnecessárias e imerecidas. Eu tinha medo do vinho do Reigrilo e a burra parecia que também.
Creio não cometer nenhum erro histórico se afirmar que a burra do Reigrilo só fazia frente ao dono pelos 16 de Maio, na corrida que nunca era. O Reigrilo, altamente decilitrado, aparecia sempre na horinha, nem mais cedo nem mais tarde, para incómodo da organização e gáudio da populaça. Podiam dar a partida quantas vezes quisessem: a burra do Reigrilo não saía do sítio, apesar das bordoadas impiedosas que apanhava, e se se mexia era apenas para deitar o dono de cangalhas, uma e outra vez, numa vingança anual e certamente bem amadurecida, ali mesmo à frente de todos, onde a humilhação do homem podia ser maior.

Pois agora nada, que tristeza! E nem sei se os camarários doutores da mula ruça acabaram com aquilo de propósito para enxotar dali os nossos ciganos, os bons e honrados ciganos de Fafe que também marcavam o ponto com os seus burros atletas. Não sei, palavra de honra que não sei, mas veio-me agora à cabeça essa terrível dúvida. Sei é que a corrida de jumentos era uma verdadeira e querida tradição. Era tema de conversa entre os fafenses. Chegavam os 16 de Maio e, no café ou na rua, à saída da missa, perguntavam-se uns aos outros: - Então, este ano corres? E já tens quem te monte?
Pois, era assim a vida antiga. Bonita e tão agradável. E tenho a certeza de que a malta nova havia de se divertir à brava com a corrida de asnos, se ela tornasse, toda gaiteira e revivalista. Mas quê, tirante eu, parece que mais ninguém se acusa! O que é que se há-de fazer? Sozinho também não corro...

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

O borra-botas e o cagão

O borra-botas e o cagão. Cuidado, estamos em terreno escorregadio. Muito cuidado! Elaboramos aqui a respeito de dois conceitos aparentemente correlativos - quero dizer, o borra-botas, antes de o ser, é cagão, e o cagão, após sê-lo, é borra-botas, há quem pense -, mas não é necessariamente assim. Vejamos:
Borra-botas, o substantivo, posto que começou por significar, inocentemente, engraxador, ou, sejamos compreensivos, engraxador desastrado, espécie de expressionista abstracto do rez-de-chaussée, é nome que hoje em dia define indivíduo sem valor, pessoa insignificante, reles, desprezível, safardana, bisbórria, biltre, patife, salafrário, bigorrilha, pulha, bandalho, pobre diabo, trapalhão, troca-tintas, zé-ninguém, zé-dos-anzóis, zero-à-esquerda. O que evidentemente propicia que, em não raros casos, o borra-botas seja também lambe-botas, o que, convenhamos, mete um bocado de nojo.
Debrucemo-nos agora sobre o cagão. O cagão é, para início de conversa, o indivíduo que defeca com entusiástica frequência e notoriedade, ou, se for em Fafe, a criatura que se peida regularmente e por uma questão de princípio, mas o termo passou também a servir para identificar o homem medroso, caguinchas, medricas, cagarola, ou, por outro lado, o vaidoso, o presunçoso, o arrogante, o snobe, o pedante, o gabarola, o armante, o enfatuado, o figurão, o cabeçudo, o tem-a-mania. E este é que é o ponto...

Vinho para Saddam Hussein

Foto Hernâni Von Doellinger

Isto foi para aí em 2002, portanto um ano antes da invasão do Iraque, e aconteceu quando chegou a Portugal a inesperada porém impactante notícia de que Saddam Hussein se perdia de amores pelo nosso Mateus Rosé. O meu jornal mandou-me logo escrever uma artigalhada sobre o momentoso assunto e comprar uma caixa do mais famoso vinho português para oferecer, "com um cartãozinho simpático", ao ditador de Bagdade. Era só telefonar à junta de freguesia local para saber o endereço certo e expedir de avião desarmado lá para o palácio das mil e uma noites. Perante a minha perplexidade telefónica a propósito da segunda parte do serviço, Lisboa explicou-me o jornalístico intuito da genial ideia, sufocando-me à nascença todas as minhas potenciais reticências: "Se o gajo nos responder depois a agradecer, é o máximo, dá uma capa fantástica. Mas se não disser nada, também dá uma coisa gira. Então vá!"
E eu fui. Comprei o vinho e escrevi o texto. Não o cartão. Um texto pequeno que andava à volta disto: o Saddam gosta de Mateus Rosé. Era capaz de ter também alguma graça, já não me lembro, mas quando digo andar à volta é mesmo andar à volta, fazer chouriço, meter palha, usar e abusar da técnica de composição musical da variação (e fuga), porque a "notícia" não tinha mais nada para dizer, era oca por dentro. E foi manchete no dia seguinte.

(Permitam-me abrir aqui um parêntese pedagógico, para proteger os caros leitores da tentação de tirarem conclusões precipitadas e injustas acerca do meu jornal. Deixem-me esclarecer o seguinte: num certo sentido, o 24horas foi o precursor do jornalismo que hoje se faz em Portugal - um jornalismo de títulos, colorido e imaginativo, a que, para ser perfeito, só falta o pequeno pormenor da informação, isto é, as noticiazinhas propriamente ditas, a substância. Hoje os jornais portugueses são todos iguais ao 24horas. Uma diferença apenas os separa: o 24horas era, nos seus bons tempos, o melhor pior jornal do País, era um mau jornal muito bem feito. E ficava barato ao dono. Depois veio a rapaziada, tomou conta e fodeu tudo.)

Meti a caixa de vinho num armário da redacção. Eu já tinha aprendido que as geniais ideias vindas de Lisboa padeciam de tesão breve e alzheimer. Eu também era da chefia, mas no Porto, sabia muito bem como é que a coisa funcionava. Regra geral, no dia seguinte os nossos criativos e bem-intencionados chefes já não se lembravam das figuras tristes que nos tinham mandado fazer no dia anterior. E mandavam-nos fazer outras. Assim foi. Nunca mais se falou no assunto.
Em Dezembro de 2003 apanharam Saddam e eu pensei: "Agora é que era de lhe mandar o Rosé, para lhe animar o Natal na prisão". Pensei, e deixei-me estar. O ex-presidente iraquiano foi executado três anos depois, como se viu abjectamente no YouTube, e as garrafas lá continuaram no armário, até ao dia em que Lisboa veio ao Porto anunciar que o Porto ia fechar para salvar o jornal. Isto é, para salvar Lisboa. Começava o ano de 2009 e desfizeram-se de nós. Eu trouxe para casa duas garrafas do Mateus Rosé de Saddam Hussein.

(Se fosse hoje, os gostos líquidos de Saddam andariam talvez mais pelo vinho azul da Casal Mendes, mas também não se poderia esperar melhor critério de quem certamente nunca pôs os pés no Nacor e às tantas nem estaria informado a respeito da rota dos tascos de Fafe.)

Enofilias e folclore à parte, o 24horas acabou por não se safar, mas "Lisboa" sim, e é o que eu lhes estimo. Os alegados responsáveis do ex-jornal estão agora a enganar noutro lugar. As duas garrafas de Mateus Rosé ainda cá estão em casa, a fazerem de pai e mãe a uma outra, de aguardente do Salazar, parece que engarrafada pelo próprio, como me garantiu, no acto da oferta em Santa Comba Dão, o sobrinho-neto do nosso estimado ditador. Estão bem umas para as outras, as garrafas. E os outros também.

domingo, 9 de fevereiro de 2025

O moncoso, o ranhoso... e o piolhoso

Moncoso e ranhoso. Conceitos sinónimos, porém idiossincráticos. O moncoso é o tipo dos moncos ao dependuro, sujo, imundo, badalhoco, ranhoso - cá está -, asqueroso, desprezível, desprezável, baixo, sórdido, vil. Um bandalho, um pulha, um bardamerda.
Por outro lado, o ranhoso é o tipo que tem ranho, ranhento, ranhenta, moncoso - cá está -, teimoso, astuto, foleiro, reles. O verdadeiro filhodaputa.
Moncoso e ranhoso são nomes que se chamavam antigamente. Em Fafe chamavam-se muito. Eram nomes feios, ofensivíssimos, do piorio, ao nível, por exemplo, de... piolhoso. Mas isso já é outro assunto.

Os apaixonantes

O São Carlos rebentando pelas costuras, o público, conhecedor, finíssimo, profundamente lisboeta, num delírio de palmas compassadas e gritos comedidos, gritinhos: - Bravo!, bravo!, bravo! O touro, um Miura rondando os 650 quilos, assomou à boca de cena e agradeceu, composto e patriótico: - Gracias, muchas gracias!...

Encostados ao coreto, de mão em concha na orelha, seguem a música com gestos semibreves de deleite e aprovação, procurando com um sorriso de conhecedor e olhos piscos a cumplicidade do povo todo ali à roda. E pedem chiu!, semiconfusos e comovidos até às lágrimas, à espera dos ribombos do grand finale, para então se desfazerem em aplausos e em sinsenhores! Eles estão a ouvir a melhor banda do mundo, a sua banda, e pouco importa que, na verdade, até nem tenham bom ouvido. Não precisam dos ouvidos sequer. Eles ouvem a música com o coração. Eles são os apaixonantes.
Regra geral, são homens, reformados e musicalmente analfabetos. Mas também são sábios, quando conseguem reduzir a sublime arte que tanto os apaixona à sua simplicidade essencial. "Perceber de música é gostar do que se ouve", dizem. Eles, sim, são os verdadeiros filarmónicos, fazendo jus à explicação da origem grega da palavra: phílos = amigo + harmonikós = de harmonia. Exactamente: eles são os amigos da música.
Eles vão ouvir os ensaios, da parte de fora, na rua, por respeito, não querem incomodar, distrair. Trazem na carteira o calendário das "festas" e concertos para o Verão inteiro. Seguem a banda para todo o lado, se possível de boleia na camioneta que transporta o material e os músicos. É verdade, como eles apreciam a proximidade e o convívio com os seus artistas! Acompanham-nos ao tasco, à barraca, oferecem mais um copo a troco de dois dedos de paleio, discutindo clarinetes e bombardinos, marchas e fantasias, com demonstrativos e desafinados terululi-fá-dó-mi-rol-fé-poropopó-trró-pum! pelo meio. Pedem "mais peso", querem "peças pesadas" para afogar sem misericórdia a banda do outro coreto no emocionante despique que apenas intervala. Entusiasmados, metem na conversa o Tchaikovsky e o Giménez, num tu cá, tu lá mais próprio de quem evoca uma famosa dupla de defesas centrais. Se eles sabem do que falam? Talvez não. E isso interessa?
Na terra onde eu nasci há duas bandas de música. E dois grupos rivais de apaixonantes, simetricamente filarmónicos e copofónicos. Qualquer observador independente dirá que, objectivamente, uma banda é melhor do que a outra. Mas isso aqui também não interessa para nada. Para os apaixonantes, a qualidade absoluta é um valor irrelevante. A nossa banda é que é sempre a melhor. O ouvido dos apaixonantes, para além de geralmente duro, é um ouvido selectivo, faccioso: surdo às fífias da casa e inventor de desafinações na concorrência. "Eles estão fraquinhos este ano"...
Portugal deve ser o único país do mundo que tem apaixonantes. E os apaixonantes são uma raça em vias de extinção. Há-os em Fafe. Alguns dos poucos sobreviventes podem ainda ser avistados numa festa ou romaria perto de si, em grupos de dois ou três, encostados ao coreto, de mão em concha na orelha, como lhe contei. Se por caso os vir, respeite-os, admire-os, mime-os, ajude à preservação da espécie.
Porque os apaixonantes e as bandas de música são como aqueles casais antigos, fiéis e mansos, doces, em que um não vive sem o outro. Ela morre e ele vai logo atrás. Ele morre e ela vai logo atrás. É. No dia em que desaparecer o último apaixonante, enterrem-se também as filarmónicas. E que permaneçam juntos, para toda a eternidade.