domingo, 3 de agosto de 2025

Daniel, dos leões às causas sociais

Aliás e há leões
Homem que é homem não teme leão. Já se forem ratos...

Daniel foi mediano profeta e consta da Bíblia no, exactamente, Livro de Daniel. Também lhe chamaram Beltessazar, mas um nome assim era uma desgraça para o marketing e foi imediatamente esquecido. Daniel trabalhou na Babilónia como vidente e porventura cartomante, interpretando sonhos e visões, e tinha três amigos esquisitamente chamados Sadraque, Mesaque e Abednego. Foi também domador de leões, com um anjo como partenaire, dando início a essa lamentável e actualmente proibida tradição circense.
Daniel estabeleceu-se em Fafe, com loja de fazendas, malhas, pronto-a-vestir e moda em geral, mesmo ao lado da tipografia do Sr. Dias do Tribunal, e dedicou-se, discreta e afincadamente, às causas sociais. Se não estou em erro, foi um dos fundadores da Cercifaf e o seu primeiro presidente, e isto, creio, já é dizer muito. A fama chegara-lhe em 1972, quando entrou numa canção de Elton John.

sábado, 2 de agosto de 2025

Boxers, trusses e espermatozóides

Viva a liberdade! Abaixo as cuecas!
Christina Aguilera informou que não usa cuecas. A cantora norte-americana fez saber que gosta de se sentir livre, e as cuecas não deixam. E eu ponho-me a pensar: às tantas, quando os nossos governantes nos mandam baixar as calças, só estão a pensar no nosso bem...

Um estudo de cientistas americanos publicado na revista Human Reproduction considerava que os homens que normalmente vestem boxers têm mais espermatozóides. A ideia já tem barbas, vem quase desde o tempo dos romanos, mas a palpitosa notícia foi-me então oferecida pelo nosso jornal Público, sempre atento a estas extraordinarices. Não me vou dar ao trabalho de procurar, mas tenho a certeza de que o estudo científico em questão contradiz um outro estudo científico, também americano evidentemente, que prova que os boxers prejudicam os espermatozóides. Como se sabe, os estudos científicos, sobretudo na América, tanto podem ser patrocinados por fabricantes de boxers como por fabricantes de slips - é a lei da livre concorrência, cada um puxa a brasa à sua sardinha, pelo menos no reino das cuecas.
Fixemo-nos, porém, no âmago da notícia, nos boxers. Será abusivo concluir que, se um homem com boxers tem mais espermatozóides, um homem sem cuecas de qualquer espécie tem muitos mais? E as famigeradas trusses? Sim, as trusses, como não se cansava de dizer o grande Zé Manquinho, contando e recontando as peças dos equipamentos da AD Fafe, carregando nos erres, com tanta graça, fazendo e refazendo sucessivos montinhos de roupa até que tudo batesse certo. E a tanga, como é? E o fio dental, prejudica? E um nudista a tempo inteiro, o que é que ele há-de fazer ao mais que certo excedente de espermatozóides, que às tantas até lhe saem pelas orelhas? E mulher que use boxers, como é que fica de espermatozóides?
A ciência, é o que tem, faz-nos pensar nas coisas importantes da vida.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

O terraplanista

Desenho Nestinho

A Terra tem diversos movimentos. Os mais famosos movimentos da Terra são o movimento de rotação, que é a Terra a andar egocentricamente à volta de si mesma - tipo Jorge Jesus ou André Ventura, sem ofensa para o primeiro - , e o movimento de translação, que é a Terra, agora modesta e submissa, hipnotizada, a andar à volta do Sol, qual aborboletinha avoando em torno dos afilamentos das alâmpadas, como diria o outro, o das imitações. Ora bem. O que me espanta é que tanto safanão não desequilibre a Terra nem a faça entornar os oceanos ou despencar por aí abaixo os desgraçados habitantes do hemisfério sul, que praticam o pino durante o ano inteiro. Quer-se dizer: não desequilibra mas incomoda. E por estas e por outras é que a Terra anda ligeiramente chateada nos pólos.

Posto isto. O desenho, feito de encomenda, é obra do Nestinho, Ernesto Brochado, um verdadeiro apaixonado por Fafe, ou fafense amador, provavelmente a figura mais conhecida e respeitada do mototurismo nacional, dirigente do Moto Clube do Porto e da Federação de Motociclismo de Portugal, alma mater e organizador crónico do extraordinário Lés-a-Lés e de dezenas de outras iniciativas do género e de menor dimensão. O Nestinho, que é cicloturista e ex-ciclista, que é atletista e maratonista bissexto, que é eminente motociclista, evidentemente mototurista, raramente motorista e às vezes motosserrista, que é maquetista, cartunista, desenhista e portista, que aprendeu comigo a gostar de Fafe, e gosta muito, que é provavelmente uma das cinco melhores pessoas do mundo, e, tenho de dizer, eu nunca soube das outras quatro.

quinta-feira, 31 de julho de 2025

A Póvoa agora é em Fafe

Vá ver a neve, hoje!
A melhor altura para ir ver a neve à serra da Estrela, acho eu, é agora, no Verão, em pleno Agosto, hoje por exemplo. Não há neve, mas pode-se passar.

É extraordinário o que se passa em Fafe por estes dias. Finalmente sem precisar da Póvoa de Varzim para nada, quem havia de dizer, Fafe tem a sua própria época balnear, de papel passado, reconhecida pelo notário, anunciada em edital, com bandeira e diploma, talvez até com batata frita à inglesa, bolas de Berlim, língua da sogra e caladinhos, nadadores-salvadores, mirones, pedintes e carteiristas. Serviço completo. Que coisa tão estranha para um tipo antigo como eu! Sobral de Monte Agraço teve, à altura, o seu parque infantil, que saiu no Tide e dava na televisão, e Fafe agora também tem época balnear, como os outros brasis e algarves da concorrência, sem lhes ficar atrás. Que sainete! Foi preciso esperar pelo século XXI, aguentar pacientemente as patifarias das alterações climáticas, inclusive correntes de ar, mas valeu a pena: Fafe está realmente mais fresco.
O meu irmão Nelo bem dizia, em pequeno, que, quando fosse grande, ia mandar construir uma praia em Fafe, uma praia com mar e tudo. E a verdade é só uma. Não foi o nosso Nelo, por acaso, mas alguém a construiu, e em boa hora, ela aí está, a praia da Barragem de Queimadela, ele aí está, o nosso mar, o sexto oceano, aberto ao expediente e em glorioso funcionamento. O nome "de Queimadela", para praia, se calhar não será o mais feliz, o mais acolhedor, por assim dizer, antes pelo contrário, mas, pronto, já constava, vinha de trás e, portanto, não havia volta a dar, esqueçamos o pormenor. Qualquer dia, estamos mas é a receber camionetas de poveiros, que vêm à procura do que é bom.
Para mim, no meu tempo, antes da construção do nosso mar, Fafe tinha três esplêndidas estâncias balneares: o Poço da Moçarada, em Docim, o Comporte, na Fábrica do Ferro, e Calvelos, em Golães, pelos campos de Sá, atravessando a linha do comboio. Três oásis que eu, na minha boa fé ou ingenuidade infantil, supunha longínquos, praticamente inacessíveis e secretos. Sítios de banhos, puros e duros, sem facilidades, só para homens de barba rija. E nós, os putos, sorrateiramente desenfiados, lingrinhas de pé descalço e pila ao léu, autoprojectos assumidos de futuros ecoturistas, hippies sem sequer fazermos ideia, íamos para lá treinar para a Póvoa de que ouvíamos falar, porque algum dia havia de ser. O pior era a minha mãe, que parecia que tinha radar e, uma desgraça nunca vem só, sabia sempre por onde é que eu andava e o que fazia. E, portanto, ia-me buscar. Pelas orelhas. Eu chorava e prometia que nunca mais, pelo menos até à tarde do dia seguinte.
Eu sou, aliás, especialista em épocas e instalações balneares. Não ouso colocar Fafe no topo da lista nacional de estâncias termais, seria porventura um exagero, e eu não sou disso, mas a verdade é que conheci muito bem os balneários do Campo da Granja e ainda cheguei a entrar nos balneários do Campo de São Jorge, então já oficialmente desactivado, mas funcional para jogos escolares ou de solteiros contra casados. Eu seria miúdo de escola primária. Três ou quatro anos depois, quando o Estádio começou a ser construído, nas vésperas da década de setenta, os vestiários foram provisoriamente montados na cave do quartel dos Bombeiros e eu passei a ser freguês diário do Senhor Zé Manquinho, o roupeiro dos roupeiros, numa amizade sem fim. Como decerto sabeis, eu era neto do quarteleiro, estava sempre ali de plantão, era só descer as escadas. Nas férias do seminário, não tínhamos água quente em casa, e era no balneário da AD Fafe que eu tomava banho duas ou três vezes por semana, antes dos jogadores chegarem para os treinos e sem estorvar o despacho. Levava toalhão, sabonete e roupa interior para mudar. Por sugestão do Senhor Zé Manquinho, eu era conhecido nas catacumbas como "o homem que adormece no chuveiro", tamanho era o prazer que o duche me dava e o tempo que eu lá passava, debaixo de água, nem sei como é que nunca engelhei. Era uma espécie de Homem da Atlântida ou Aquaman, mas às pinguinhas.
Com o banho, eu tinha direito a uma bebida. Isto é, não tinha direito a bebida nenhuma, mas fazia-me e ela. Inventava um ligeiro afrontamento, queixava-me de uma pontada de azia, e o Senhor Zé já sabia. Mandava-me esperar pelo João Americano, o massagista, o único que tinha a chave da "Farmácia", palavra escrita a esferográfica azul no adesivo colado na testa do pequeno armário branco e vidrado com três prateleiras que era a própria "Farmácia" e pouco maior do que uma mesinha-de-cabeceira. O João chegava da fábrica, gozava comigo, falava muito alto, esganiçado, parecia a cantadeira de um rancho folclórico, mas também já sabia: dava-me um copo de água com uma colher de "sais de fruto", Eno, se bem me lembro, eu adorava aqueles piquinhos, bebia regalado, uma, duas goladas sem deixar cair, arrotava com toda a categoria e, boa tarde e muito obrigado, estava pronto, estava feito.
Admito que foi ali que o João Americano, o Senhor Zé Manquinho e eu inventámos o spa com champanhe, conceito hoje em dia tão coisa e tal, mas evidentemente não sabíamos.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

O verdadeiro Artista

O andar de John Wayne
O que ele queria mesmo era ter um andar como o do John Wayne. Aquele andar, estais a ver? O andar inteiro. Doze quartos, duas cozinhas, piscina com escorrega e, evidentemente, marquise.

Vem aí o Dia do Artista e eu não sei dele. Não sei do Artista, quero dizer. O Artista é de Fafe, do meu tempo, morava no Picotalho, à beira da velha casa do Sr. Armindo Bristol e do Carlos Frangueiro, andou comigo na escola, o Carlos também, o Artista é portanto rapaz da nossa idade. O Artista era Artista porque se identificava com os artistas da televisão e do cinema, e estava bem visto, porque os artistas eram os galãs, os protagonistas, os que levavam a rapariga, os que nunca morriam. Por isso, antes de começar a brincadeira, o Artista avisava logo, sem dar vez a mais ninguém: "eu é que sou o Artista". Uns diziam que eram Eusébio, outros que eram Adrião, uns diziam que eram Zorro, outros que eram Daniel Boone. O Artista era o Artista, e estava tudo dito.
Por razões talvez profissionais, o Artista gostava de frequentar a sala de bilhares do Café Império em vez do Peludo, ao contrário de nós todos, vestia sempre com grande categoria e tinha um andar estudado, foi trabalhar para o Porto há quase cinquenta anos, depois disso encontrámo-nos em meia dúzia de fortuitas ocasiões, curiosamente sempre em Fafe, ele cada vez mais impecável, parecia um lorde, invariavelmente apressado, e a seguir perdi-lhe o rasto, nunca mais o vi. Alguém me sabe dizer o que é feito do Artista?

terça-feira, 29 de julho de 2025

O heroísmo ia-me matando

A última a morrer
Era uma família convencional. Morreram, naturalmente por esta ordem, o Acúrsio, a Adelaide, o Tibério, a Catarina, a Rosa, o Celestino e finalmente a Esperança. É daí que vem.

Vamos supor que era o Grand Central Terminal de Nova Iorque, ou talvez a Escadaria Richelieu em Odessa, e estávamos no quentinho do cinema. Víamos "Os Intocáveis", de 1987, de Brian De Palma e David Mamet, com Kevin Costner, Robert De Niro e Sean Connery, ou talvez "O Couraçado Potemkine", de 1925, obra maior de Sergei Eisenstein. Mas na verdade estávamos em Vila do Conde à chuva e era um tanque público no quarteirão da Santa Casa da Misericórdia. Eu passando. A pé, como me é comum. Houve um tempo em que fiz aquele caminho todos os dias da semana, durante meses. Gostava do sítio, lembrava-me Fafe, a minha mãe, as lavadeiras caralheiras da minha infância. Mas então: eu passando. Um carrinho de bebé sem condutor sai de súbito do lavadouro, primeiro em câmara lenta, como nos filmes, e depois, rapidamente embalado pela força da realidade, ultrapassa o passeio e desembesta para o meio da estrada a ferver de trânsito.
Naquele preciso momento sinto o primeiro e único impulso de heroísmo de toda a minha vida, largo atabalhoadamente o guarda-chuva aberto, que nunca mais vi, voo para o carrinho a pensar na CMTV, na TVI, na CNN, no YouTube, no TikTok, no tuk-tuk, em Marcelo Rebelo de Sousa, na medalha do 10 de Junho, na reforma vitalícia (pensa-se em muita merda numa fracção de segundos), rezo a Nosso Senhor Jesus Cristo, a São Cristóvão e a Santiago de Compostela, meu padrinho e protector, peço tapas e mais uma caña, faço promessa à Senhora de Antime, falta-me o ar de repente, é o coração que me entope cobardemente a garganta, as pernas tremem-me como varas verdes mas desta vez não falham, voo para o carrinho, dizia, e agarro-o e arranco-o já no milagroso resvés com um Toyota Yaris que passa nas horas e me enche de nomes, inclusive "Ó voi!", mas é o menos. Estamos salvos, graças a Deus. Tornamos ao passeio, respiro de alívio, doem-me os músculos todos, os ossos, manco dos dois pés, e por isso não se nota. A mãe grita, finalmente, de mãos espetadas na cabeça desgrenhada, "Ai o carrinho!", e o pai berra, "Olha o carrinho!", e dá mais uma puxa no paivante.
"O carrinho?", interpelo eu e repito, mais fodido do que outra coisa, "O carrinho? E a criança, caralho!?...", "A criança!?...", as palavras saem-me aos soluços e eu preciso urgentemente de uma cadeira para me sentar uma última vez antes de morrer. "Mas qual criança?", dizem-me os dois, com caras combinadas de quem me manda à merda com a senha número um e portanto sem direito a cadeira, e desconfio que me ficaram com o guarda-chuva. "Qual criança?", e riem-se afinadíssimos da minha agonia. Tinham praticamente razão: olhei para o carrinho que mantinha nas minhas mãos cerradas e aflitas, roxas e brancas, o bebé eram quatro passadeiras lavadas, enroladas e ainda pingantes - as quatro filhas da puta pelas quais eu só não faleci prematuramente e por engano porque sou um gajo cheio de sorte.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

A sagrada liturgia das sardinhas

Estamos fritos
Comprou três quarteirões de sardinha miúda. Passou a manhã na sertã. E a tarde em Figueiró dos Vinhos.

Eu costumava ter pena das pessoas que comem sardinhas assadas pelos santos populares, tão cedo, em pleno mês de Junho. Deixei-me disso, porque, depois dos meus sucessivos avisos, só cai nessa quem quer. Por aquela maré do ano, as sardinhas geralmente ainda não prestam, são secas, estupidamente caras e amiúde do dia anterior, pelo menos, quando não (mal) descongeladas. Mas as pessoas gostam, dizem que é tradição, e eu realmente não tenho nada com isso. Seja! Posso é informar que elas andam razoáveis agora, com Agosto à porta, já maduras, e em Setembro, se Deus quiser, é que hão-de estar perfeitas. A seguir, se correr bem, ainda lhes dou mais dois meses de vida, aqui fica o lamiré para quem estiver interessado.
Aquilo dos antigos de que as melhores sardinhas são as dos meses sem "r" e que pelo São João pinga a sardinha no pão, não ligueis: os antigos, a verdade também é só uma, fartavam-se de dizer asneiras e mandar encaixilhar. Não. A melhor época para comer sardinhas assadas, sardinhas inequivocamente saborosas, se quereis saber, insisto, ainda ides a tempo, estamos a um mês dela, Setembro e Outubro e às vezes até Novembro. As sardinhas são analfabetas, não diferenciam vogais de consoantes nem lês de rês. E até metem raiva de boas, como diria o meu sogro quando era vivo e elas também. Sardinhas "do nosso mar", cá de cima, mais torneirinhas, que quer dizer pequenas e cheias, batoques, de olho esperto, limpo, e, chegadas à brasa, a esvaírem-se no seu próprio "azeite".
Trago de Fafe a sagrada liturgia das sardinhas. Assadas e, normalmente, comidas no quintal, ao finzinho da tarde, partilhadas com os vizinhos em cima de um bom naco de broa, que se passava para o outro lado da rede, e isto assim dito até parece ténis, coisa de ricos, mas não, era apenas a pobreza a ser honrada. No Assento, à roda do fogareiro, a família inteira reunida, noras e genros incluídos, primos e primas, ninguém faltava à chamada, porque eram sardinhas, tinha saído edital, e a minha mãe, que não era para brincadeiras, marcava faltas. As crianças não gostavam de sardinhas e portavam-se mal - comiam uns calduços e ficava o assunto resolvido.
Na segunda metade do ano, cá em casa, todas as sextas-feiras são dia de sardinhada para a Mi e para mim, dia santo. Vantagem de morar em Matosinhos, a dois passos do porto de pesca, vou buscar as sardinhas praticamente ao barco, acabadas de chegar, trago-as vivinhas da silva, como se ainda rabiassem, e acomodo-as debaixo de um pano molhado, à espera da hora para serem assadas por quem sabe, isto é, eu próprio, passe a imodéstia. Sardinhas de prata e com mar dentro, salada de pimento assado, vermelho e carnudo, azeitonas pretas e azedas, broa fresca e vinho tinto, mais nada. Em memória do tempo antigo.

domingo, 27 de julho de 2025

Grândola é na Galiza

Os do 28 de Maio
Há os do 25 de Abril. E há os do 25 de Novembro. Uns são donos do 25 de Abril, os outros são donos do 25 de Novembro. E todos apresentam argumentos de propriedade sobre a data respectiva, alguns por herança, outros por usucapião, uns tantos por revelação divina, certos e determinados por puro e simples assalto, sendo curioso notar que abundam, enfim, os que por acaso até dão para os dois lados. É a vida. Os do 25 de Abril cantam bonitas cantigas. Os do 25 de Novembro, regra geral, são do 28 de Maio. E estão de volta.

Houve quem ficasse muito admirado, mas sem razão. Aqui atrasado, em Vigo, na Galiza, num jogo de futebol da primeira divisão espanhola, adeptos do Bétis, de Sevilha, entoaram cânticos fascistas e fizeram a saudação nazi. À saída, para além da derrota por 3-2 com o Celta, levaram também com "Grândola, Vila Morena" e a voz de Zeca Afonso ecoando no Estádio de Balaídos.
Não foi por acaso. Para começar, é tido como certo que a canção "Grândola, Vila Morena" foi estreada por Zeca Afonso, isto é, cantada em público pela primeira vez, exactamente na Galiza, em Santiago de Compostela, no Burgo das Naçons, no dia 10 de Maio de 1972. O Zeca, é também assim que ele é conhecido e referido pelos galegos de média cultura, passou largas temporadas na Galiza, deu por lá inúmeros concertos, andou e cantou por Lugo, Ourense, Pontevedra, Vigo e outros adiantes, fez imensos amigos, tinha e tem uma legião de fiéis admiradores, as comemorações e homenagens sucedem-se ainda hoje. Em Compostela há o Parque José Afonso e mantém-se em actividade a AJA Galiza - Associaçom José Afonso. Nos bares e ruas de Compostela canta-se e festeja-se "Grândola" como quem canta e festeja a "A Rianxeira". Não sei como é agora, mas ainda há meia dúzia de anos havia um pub lá para as traseiras da famosa catedral, a Casa das Crechas, que passava constantemente a música de Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Francisco Fanhais, Luís Cília, Fausto, Vitorino e por aí fora, mas Zeca Afonso sempre! Porque na Galiza pensa-se e sente-se que o 25 de Abril também lhes pertence. E fazem os galegos muito bem!

sábado, 26 de julho de 2025

A vida é bela e amiúde nem por isso

O dedo que adivinhava tudo
Se eu, em pequeno, acreditava no dedinho da minha mãe que sabia tudo? Acreditava, e acreditava piamente. Aquele dedo mantinha-me na linha. E ainda hoje.

A minha mãe teve uma infância muito difícil, era desta maneira que eu ia começar a escrever. Mas não. A minha mãe não teve uma infância difícil. Nem uma infância fácil, nem uma infância assim assim. A minha mãe não teve infância, ponto final.
A minha mãe não foi sequer à escola. Mandaram-na para criada de servir aos sete anos de idade. Serviu famílias importantes em Fafe, mas ninguém se lembra ou faz caso, a minha mãe era um criança e os tempos eram outros.
A minha mãe casou aos 18 e ficou viúva aos 33. Viúva e com quatro filhos evidentemente menores. Uma tragédia. Era tempo do fascismo - sim, do fascismo!, escusais de fazer de conta -, da pobreza sufocante e do opróbrio, da reprovação pública, porque a má-língua sobre vizinhos ou conhecidos era o passatempo que havia antes dos reality shows da TVI e das notícias de faca e alguidar da CMTV. Naquele tempo de cinza, ser-se nova e viúva era uma desgraça, mas também, socialmente, um defeito, uma marca na testa para toda a vida. A minha mãe passou a ser, oficialmente, a Viúva da Bomba, para que não lhe viessem ideias. Vida difícil. E no entanto, sozinha, fez de nós quatro as pessoas que somos, à sua imagem e semelhança, vertebrados e moralmente limpos, gente digna e séria, respeitadora e respeitada, menos eu, que dei no que dei e, com esta idade, já não tenho remédio.
Como é que a minha mãe conseguiu? Com muita canseira, com roupa lavada para fora em tanques de ricos, na poça do Santo ou no "rio" do Matadouro, com camisolinhas e casaquinhos de lã feitos por encomenda, primeiro à mão e depois à máquina, com lágrimas, tantas, que eu bem as via, por mais escondidas que fossem, com os tostões contados sete vezes ao dia, com os meus irmãos mais velhos - a Nanda e o Nelo - a terem de ir trabalhar ainda crianças para que eu e o Lando, os mais novos, pudéssemos "estudar e ser alguém na vida". E sermos alguém na vida por eles, em nome deles, de todos, porque nós os cinco éramos apenas um, assim é que a nossa mãe nos queria, como os mosqueteiros, ainda nem fazíamos ideia do Intermarché, embora eu já soubesse do Alexandre Dumas e do d'Artagnan.
Resultado: os meus irmãos são umas jóias, foram e são sempre os melhores naquilo que fizeram e fazem ao longo da vida, que era o mínimo que a nossa mãe nos exigia, o Nelo e a Nanda afinal também são "alguém", mesmo sem "estudos" e, quer-se dizer, só eu dei para o torto, porque nestas coisas de família, para que o todo funcione, é sempre necessária a excepção que confirme a regra, e portanto resolvi sacrificar-me pelo bem comum.
A minha mãe fazia das tripas coração e da massa com fressura um pitéu. O dinheiro não chegava, e então passou a tomar conta de crianças. Isso, a minha mãe tomava conta dos meninos dos outros, era "ama" disputada, havia lista de espera, metiam-se cunhas, empenhos para que ela aceitasse esta ou aquela criança. Lembro-me do Miguel, da Guidinha, do André, da Xaninha, da Susana, do Ginho, do Miguelinho, e esqueço-me indesculpavelmente de outros, e os meninos chamavam à minha mãe, cada qual à sua maneira, "mãe Xandrina", "mãe minha" (haverá forma mais bonita de chamar alguém?) ou simplesmente "bozinha", porque os netos também lhe passaram pelas mãos, e as crianças copiam-se umas às outras. A querida Guidinha, agora casada e também mãe de um rapaz já adulto, ainda hoje chama "mãe Xandrina" à minha mãe e a mim chama-me "tio Nane". E eu gosto muito destes chamamentos assim.
Na Rua do Assento, na casinha de pedra, minúscula, imensa e mágica, a minha mãe chegou a olhar por nove meninos ao mesmo tempo. Como se fossem também seus filhos. Olhava por eles para olhar por nós. Era mãe urbi et orbi, atentíssima, severa e amorosa, dava-lhes, de acordo com a rigorosa cartilha que lhe corria no sangue, o pão e a educação. Tinha ali uma espécie de infantário, restrito e de alta qualidade, muito procurado e com enorme lista de espera. Metiam-lhe empenhos, chegavam-lhe peitas, recomendações, pedidos praticamente desesperados. A minha mãe informava-se sobre os pais que se lhe abeiravam, fazia-lhes entrevistas, exigências de conduta, era picuinhas no exame, inflexível na decisão, mandona nas condições, só uns poucos conseguiram passar pelo seu crivo, e, se fosse hoje, se calhar ia presa. Por falta de licença...

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Ah, fanecas!

O sedutor
Ele era um sedutor de mão cheia. Adorava apalpar rabos.

Bem boas que elas andam, as fanecas. Gosto delas fritas. Temperadas só com sal e passadas por farinha milha, à tasco, isto é, à Fafe, ou então mais à minha moda, tratadas também com um pouco de pimenta e bastante limão e depois envolvidas com farinha triga e ovo. Sem outros truques ou invenções. Há derivas que aceito e consumo, mas estão longe de me satisfazer. Insisto: a faneca só me enche as medidas quando na sua pureza original. Frita.
Peixe, em Fafe, era uma trilogia, uma santíssima trindade: sardinha, faneca e chicharro, que se dizia chucharro, carregando generosamente nos "ches" como se fossem tempero, azeite do bom. Era o peixe que se podia, peixinho de pobres. Às vezes lá apareciam também uns verdinhos, umas marmotinhas para enfiar o rabo na boca, e claro que ouvíamos falar de pescada, sabíamos que a pescada existia, que antes de ser já o era, mas que era só para os ricos, ou para os pobres oferecerem aos ricos, como peita, os tolos. O peixinho andadeiro, o nosso, comprava-se à Mocha e à D. Filomena, marralhando com todo o afinco, à face da estrada, no Santo Velho, sítio estratégico por onde passava o povo das fábricas. A pescada, quem lhe pudesse chegar, amiúde para acudir à aflição de uma doença e satisfazer a recomendação médica, só vinha por encomenda, de um dia para o outro. E era como se fosse à farmácia.
Uma vez há muitos anos, pela madrugada, eu já no Porto, deixei que me metessem num barco nevoento e fui à pesca da faneca com o bando do saudoso Adélio Santos, velho repórter-fotográfico com quem acamaradei no Janeiro e noutras lides mais ou menos profissionais. Quer-se dizer: eles foram à pesca, à linha, e eu fui lançar ao mar os restos de uma noitada sem passagem pela cama. Não sei se servi de engodo, mas o certo é que apanhámos peixe até dar com um pau. Seríamos uns seis ou sete naquela companha de ocasião, e toda a gente teve direito a um ou dois baldes cheios de fanecas e cavalas, até eu, que, pelos vistos, também tinha feito a minha parte e não sabia. Estava na idade da toléria e tão tolo era que desprezei então as cavalas, hoje em dia com lugar cativo, ainda que bissexto, na minha exigente lista de pitéus.
Mas voltemos às fanecas. O meu amigo Lopes, que é tão fanequeiro como eu, afirma, no seu mar de sabedoria, que "a faneca é um peixe muito honesto". E é. Em diversos sentidos e apesar de já ter andado por aí na boca da malandragem armada em carapau de corrida. A este respeito (ou a respeito da falta dele), torno a Fafe, à década de setenta do século vinte: quem é desse tempo e não se lembra dos rapazolas ou velhos tarados que, aproveitando a barafunda das quartas-feiras, passavam por elas, pelas moças, em Cima da Arcada, roçando-lhes o cotovelo pelas mamas, como quem não quer a coisa, atirando-lhes, entredentes, "Ah, faneca, comia-te toda!", broeiros, e levando de resposta um lampeiro estalo na cara, que acabava logo ali com todos os tesões? Realmente, quem não se lembra?...
Entretanto o piropo foi criminalizado em Portugal, e até poder dar cadeia. E os apalpões, já se sabe, dão artigos de jornal, o que ainda é pior. A mim, por acaso, não me faz diferença. Gosto muito de fanecas e de mamas, confesso, mas seduzo apenas por telepatia.
O Lopes tem razão: a faneca é um peixe honesto. Depois, evidentemente, como em tudo na vida, há fanecas mais honestas do que outras. Na minha cozinha, por exemplo, só entram fanecas do alvor, pescadas já dentro da manhãzinha, como daquela vez extraordinária com o Adélio, mas agora sacadas do mar por mãos que sabem. Um luxo. Mordomia matosinhense, reservada a quem mora ao pé da doca e conhece um bocadinho. São fanecas do mar que eu vejo da minha varanda, "do nosso mar". Madrugo também, compro-as vivinhas da silva, ainda sem terem passado pelo castigo do gelo e isentas de outras burocracias normalizadoras e estragativas, trago-as íntegras para casa, amanho-as eu, eu é que sei como é que as quero. Não menos importante: comemo-las no próprio dia. Exactamente. Elas andam bem boas, isso nem se discute, mas é preciso saber dar-lhes as voltas...

quinta-feira, 24 de julho de 2025

O sorriso do Zé Carlos Estantio

Com o riso não se brinca
Tomem-se todas as precauções. O riso é altamente contagioso. Recomenda-se o uso de máscara.

Consultei o catálogo. Há dezanove tipos de sorriso, dizem os entendidos, mas apenas seis são considerados sinal de felicidade ou alegria e somente um é avaliado como genuíno ou verdadeiro - o famoso sorriso de Duchenne, conhecido como "sorriso com os olhos", embora também envolva a boca. Vêm depois, por exemplo, o sorriso social, o sorriso de satisfação, o sorriso sorrateiro ou talvez malicioso, o sorriso de desprezo, o sorriso falso, o sorriso forçado, o sorriso sedutor, o sorriso triste, o sorriso de medo, o sorriso de resignação, o sorriso coquete e o sorriso amarelo. Dois sorrisos amarelos correspondem, evidentemente, a um sorriso vermelho. Junto-lhes eu, de borla, e não tendes nada que agradecer, o sorriso Pepsodent, o sorriso da Mona Lisa e, dentro do género, o sorriso do Zé Carlos Estantio. 
O nosso Zé Carlos Estantio. Em Fafe, perguntai por ele aos mais velhos, que vos contem, e descobrireis, prometo-vos, uma figura estimável e singular. Um cromo da vila antiga, um mouro de trabalho, sempre a alombar de um lado para o outro, envolto numa nuvem de farinha, uma jóia de moço, desde que não se metessem com ele, uma cara personalizada, inesquecível. Não era por acaso que o Estantio se chamava Estantio.
O adjectivo estantio é um regionalismo baixo-minhoto, portanto nosso, que quer dizer estacado, pasmado, assarapantado. E o Zé Carlos era isso permanentemente, ao natural, a cara chapada do sorriso Duchenne, o tal que envolve os olhos e a boca, quer dizer, o músculo zigomático maior e o músculo orbicular do olho, para que melhor nos entendamos.
Os especialistas assinalam que um sorriso genuíno, a sério, ou à séria, se o sorriso for em Lisboa, pode implicar a contracção de dezassete músculos faciais. Postulado não aplicável, evidentemente, ao Zé Carlos Estantio, que exibia o sorriso Duchenne em todo o seu esplendor, de manhã à noite, e suponho que também durante o sono, sem esforço nenhum, isto é, sem mexer uma palha, quanto mais um músculo. A cara do Estantio estava formatada de nascença, predeterminada num sorriso quiçá difícil de entender, mas honesto e eterno. Livre. Hoje em dia, aliás, o sorriso de Duchenne poderia chamar-se, mais propriamente, sorriso do Zé Carlos Estantio, o que seria uma honra para Fafe e para todos os fafenses, termos o nosso sorriso na cara das outras pessoas, inclusivamente estrangeiras e até americanas, para não irmos mais longe.
Para todos os efeitos, a cara do Estantio, com o seu sorriso estampado, indelével, irrevogável, podia, por outro lado, ser considerada uma cara de gozo, de desafio. Podia e era perigoso. Lembrais-vos, aqui atrasado, quando o Sr. Sérgio Conceição estava de treinador do FC Porto e foi castigado com 30 dias de suspensão e mais de dez mil euros de multa por causa do seu "sorriso jocoso". E da outra vez em que foi expulso de um jogo derivado ao seu "olhar fulminante"? Um sorriso deslocado ou mal interpretado, em quantas tragédias já descambou? Pois é: a sorte do Zé Carlos é que nunca foi treinador do FC Porto e era de Fafe, uma terra de mansos costumes e bastante respeito, pelo menos às vezes.
O Estantio partiu e foi um sorriso que se perdeu, uma estrela que se apagou no firmamento local. Fafe ficou mais pobre. E nem vou falar do Chico Cereja, porque isso já é outro assunto, mais profundo, fica para outra maré. Isto, às tantas, cheirará a conversa de velho, e será, mas eu digo que Fafe tinha mais piada antigamente, no tempo dos fafenses excelentíssimos, e o Zé Carlos, parecendo que não, fazia parte dessa extraordinária elite. Havia sorrisos.
Agora há risos, a verdade também tem de ser dita. Chovem comediantes no Teatro-Cinema, à ordem dos dois ou três por mês, e são sempre um sucesso. Porreiro, porque rir faz bem à saúde, faz bem ao fígado, faz bem à pele, faz bem ao coração, faz bem à pituitária, faz bem à próstata, faz bem à alma, faz bem na gravidez, enfim, rir é o melhor remédio. Ainda bem que Fafe ri.
No fafês de antanho havia, se não estou em erro, expressões idiomáticas, ou idiotismos, como também se diz, que pressagiavam os tempos artificialmente alegres que hoje vivemos. Usavam-se nos cumprimentos à distância, nas saudações para o outro lado da rua, ou passando de carro, ditas entredentes a acompanhar o sorriso hipócrita e o aceno de mão automático, como se fosse "bom dia!" ou "boa tarde!", "olá, viva, como é que está!?", algo do género. Lembro-me daquela, muito batida - E se te fosses rir prò caralho? Ou da outra, utilizada regularmente pelo meu tio Américo e igualmente assertiva - Vai-te rir pra quem te monta!
Era. Os antigos sabiam muito! E havia educação.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Os cinemas também se abatem

Fitas...
Não vá em fitas! Máscara de ferro é uma coisa, testa-de-ferro é outra.

O cinema foi sempre a coisa mais importante da minha vida, até deixar de ser. Creio que a última vez em que entrei numa sala de cinema convencional levava pela mão o meu filho, ou vice-versa, para vermos "O Rei Leão", portanto no Verão de 1994 e, lamentavelmente, era a versão portuguesa.
Comecei cedo, ainda de calças curtas e a dar uso nas legendas às primeiras letras que trazia aprendidas da escola. Era o tempo do cinema ao ar livre na parada das traseiras dos velhos Bombeiros, na Rua José Cardoso Vieira de Castro, entre os dois palacetes. Debaixo da escadaria do quartel foi montada uma espaçosa e saudabilíssima cabina de projecção toda ela construída em lusalite, e o terreiro enchia-se de cadeiras e bancos corridos com costas. O operador era o Porinhos, se não me engano, eu via os filmes da janela do quarto do meu padrinho e tio Américo, derivado à falta de idade, depois o cinema acabou sem mais nem menos, sem me avisarem ou explicarem, a parada lá ficou, como o próprio nome indica, e o barraco, de tão jeitoso, aproveitou-se para arrecadação das tralhas do meu avô.
Ainda em Fafe, mais tarde, tornei-me ferrinho do Teatro-Cinema, andei pelas aldeias com o Pimenta, de catrel e altifalantes, a anunciar os "ma-gní-fi-cos" filmes que, pelo Verão, passavam no campo de futebol e eram tão fraquinhos, frequentei bissextamente o salão inacabado do Martinho da Granja, se a memória não me atraiçoa, e fui uma ou duas vezes ao Estúdio Fénix. Entretanto, levado pela vida, tinha-me virado para Braga - São Geraldo e Teatro-Circo -, e para Guimarães - São Mamede e Jordão. Vi cinema, de forma avulsa e por exemplo, em Vila Real, Figueira da Foz, Amadora, Lisboa, Dublin, Roma, Manchester ou Bordéus, onde de momento estivesse e pudesse.
Instalei-me no Porto e não me escapou um: Águia D'Ouro, Batalha, Carlos Alberto, Charlot, Coliseu, Estúdio, Estúdio Foco, Estúdio 400, Júlio Dinis, Lumière, Nun'Álvares, Passos Manuel, Olímpia, Pedro Cem, Rivoli, Sá da Bandeira, Terço, Trindade, Vale Formoso, Chaplin, em Leça da Palmeira, e até o Vitória, na Circunvalação, mas tecnicamente do lado de Rio Tinto, Gondomar.
E agora, que é deles? Onde estão os velhos cinemas do Porto? Fecharam todos? A cadeado? Foram todos ao shopping e perderam-se? Eu sei que também não vou ao cinema há mais de um quarto de século, mas a culpa não é minha: é do meu filho, que cresceu, e isso realmente faz-me diferença.

terça-feira, 22 de julho de 2025

Povo que lavas no rio

Tanques para a Ucrânia
Portugal mandou tanques para a Ucrânia. Para além dos tanques, Portugal vai também mandar estendais, cestos e molas.

Vamos então falar de tanques. Dos tanques públicos e lavadouros oficiosos de Fafe, pelo menos daqueles que eu conheci e de que ainda me lembro. Havia os muito concorridos tanques da Rua de Baixo, servindo também a Granja, ali nas imediações da Esquiça e da Sacor. Para roupas de maior porte, havia os tanques do Matadouro, nos limites da Rua do Maia com a Ponte do Ranha, aproveitando a água e mesmo ao lado do "rio" onde eram lavadas as vísceras e espancadas as tripas e a sola dos animais abatidos, e era um cheiro a sangue e merda que só visto. Um pouco acima, nem meio quilómetro, creio que na mesma ribeira, havia a poça-tanque da Ponte de Pardelhas. No outro extremo da vila antiga, havia os tanquinhos do Bairro da Fábrica de Ferro, que na verdade tinha tudo. Havia o tanque de Santo Ovídio, de que eu soube apenas de passagem. Tornando ao centro, havia a poça do Santo, do Santo Velho, logo a seguir ao casarão brasonado e à capela e antes dos campos de milho onde hoje medram as traseiras da Escola Secundária. E não quero acreditar que zonas tão povoadas como o Retiro, a Cumieira ou a Recta não dispusessem também dos seus tanques ou lavadouros, mas não os sei. Não me lembro deles, pelo menos neste momento, e isto não é uma investigação, levantamento ou trabalho etnoarqueológico, antes pelo contrário.
A minha mãe frequentava diariamente a poça do Santo, ali à mão de semear, e deslocava-se amiúde ao Matadouro, "ao rio", carregada da cabeça aos pés, para as grandes barrelas sazonais. Éramos pelo menos cinco em casa, mãe e quatro filhos, às vezes também a Mila, às vezes também os meus avós, tios e primos e outros parentes ou apenas conhecidos de Basto, só a roupa de nós todos já era uma sacada, um fardo. Ainda por cima, a minha mãe tinha a mania de oferecer-se para lavar "umas pecinhas" de alguma vizinha mais velhinha, adoentada ou recém-regressada da maternidade. E houve mesmo uma altura em que, por necessidade, a minha mãe lavou oficialmente para fora, para uma ou duas famílias "ricas", mas nem por isso largou de mão a vizinhança mais aflita.
Era duro. Eu ia com a minha mãe e bem via. Era mesmo muito duro! Tão duro que eu, preguiçoso por idade e por feitio, fazia tudo para "ajudar". Mas não me deixavam. Nem a minha mãe nem as outras lavadeiras, sobretudo estas. Diziam-me, entre cantigas e caralhadas, que os meninos do sexo masculino não podiam lavar roupa. Se os meninos do sexo masculino lavassem roupa - dizia o mulherio -, quando fossem homens não lhes crescia a barba, ó terrível maldição!...
A mim, confesso, nem me aquecia nem me arrefecia, aquilo da barba. Eu já estava por tudo. Tinha 11 anos, faltavam-me duas ou três semanas para entrar no seminário, e logo que lá chegasse - também me diziam - iriam capar-me sem dó nem piedade! Então olha, perdido por um, perdido por mil...

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Lourenço da Arrábida

Como um camelo
Dizer-se que ele bebia como um camelo, era um abuso. Ele bebia realmente muito, mas todos os dias.

O problema do Lourenço da Arrábida era o equívoco. Ou o gozo. O inocente equívoco ou o gozo premeditado, ele ainda não chegara à verdadeira conclusão. O Lourenço tinha um tasco na Cantareira, paredes-meias com a ponte, e vai daí ficou-lhe o nome, que se propagou compreensivelmente ao estabelecimento - "Lourenço da Arrábida vinhos & petiscos", lá estava na tabuleta, como manda a sapatilha. Servia às quintas-feiras uma dobrada de razoável gabarito e preço em conta, segundo se constava. O certo é que as pessoas estavam sempre a perguntar-lhe pelo Omar Sharif, pelo Anthony Quinn, pelo Alec Guinness, ou se, de facto, ele viu Judas a cagar no deserto, como se dizia em Fafe no meu tempo do Cinema. Chamavam-no à televisão para comentar a situação no Médio Oriente, a mortandade em Gaza, as ameaças do Irão, o fundamentalismo no Afeganistão, os campeonatos da Arábia Saudita e do Catar, mas depois admiravam-se por ele estar vivo e, consequentemente, aparecer em pessoa, uma vez que, para todos os efeitos, morrera num acidente de mota. Perguntavam-lhe também, se, por falar nisso, a Guinness deve ser bebida ligeiramente fresca ou à temperatura ambiente, como há quem defenda, sem perceber nada do assunto. Outros, ainda, queriam saber se ele pintava o cabelo de louro, o que não fazia qualquer sentido, porque o Lourenço era completamente careca. Enfim, já se sabe como são as pessoas...
O bom do Lourenço, primeiro, ia aos arames, afinava, escamava-se, ficava piurso. Cego pelos nervos, num repente rapava da cimitarra e desatava a gritar "mouros!" e a matar a torto e a direito felizmente só da boca para fora. Quantas tragédias foram assim prometidas e adiadas, para enorme desconsolo da CMTV e assinalável prejuízo da indústria funerária da região. Mas com o tempo o nosso herói assentou, ganhou calo no cu, como se diz psicologicamente falando. Agora se o azucrinam com as tretas do costume, ó Lourenço isto, ó Lourenço aquilo, ele encolhe os ombros largos de desdém, pigarreia uma e outra vez, sacode duas valentes chibatadas no camelo de estimação e desaparece dali a galope, ondulando o manto branco por entre hordas descontroladas de turistas japoneses e outros infiéis que descem e sobem aos encontrões as ruas completamente escangalhadas da Baixa portuense.

domingo, 20 de julho de 2025

Introdução à pornografia

O canalizador
O canalizador é um indivíduo bastante importante para as donas de casa em geral e nomeadamente para o segmento pornográfico da indústria cinematográfica. Fafe nunca teve grande tradição no palpitante nicho dos filmes pornográficos, pelo menos antes da invenção dos telemóveis com vídeo e das redes sociais. No meu tempo, ia-se a Guimarães, ao Jordão. E era para adultos. Pervertidos, mas maiores de idade.

Riscado da lista de pagamentos da Capital Europeia da Cultura 2012, o Teatro Jordão ficou para ali, com todo o aspecto de abandonado e esquecido, à beira de fazer 75 anos. Era mais uma triste metáfora do desgraçado país que somos. Consoante os ciclos eleitorais, prometeram-lhe reforma, reabilitações, orquestras sinfónicas, bandas, academias, artes dramáticas e visuais, universidades, estudos, anteprojectos, projectos - e, ano após ano, nada. Tretas apenas. Houve obras marcadas logo para 2013 e assim sucessivamente, rebates falsos, até que em 2022 a ressurreição finalmente aconteceu, com resultados que, por acaso, só me apetece aplaudir. Mais vale tarde que nunca.
Não sei o que Guimarães pensa ao certo do caso, mas a mim parece-me que o azar do Jordão foi a vizinhança: o mau-olhado do Centro Cultural Vila Flor, que lhe fica resvés e comia tudo, tudo, tudo. Também não sei o que o Teatro Jordão significa realmente para os vimaranenses e se a cidade se empenhou a fundo na exigência da preservação física da velha sala de espectáculos. Sei o que o Jordão significa para mim, mas a minha memória vai para além das pedras. A casa até podia vir abaixo, que as recordações daqui não saem.
De Fafe, ia-se ao cinema a Guimarães. "Chove em Santiago", o filme de Helvio Soto sobre os últimos dias do governo de Salvador Allende e o golpe militar no Chile, vi-o pela primeira vez no Jordão de casa cheia e a explodir de repente numa enorme manifestação antifascista, comício de ignição espontânea, de raiva, o pessoal de pé em cima das cadeiras, de punhos cerrados e erguidos, com uma única e cada vez mais vociferada palavra de ordem - Filhos da puta! Filhos da puta!! Filhos da puta!!!
Andávamos ainda com o fogo do 25 de Abril no rabo e ninguém nos aturava. Bons tempos aqueles, havia sonhos.
O "Jordáohe", como se chama em "Guimaráes", tinha um excelentíssimo restaurante nos fundos, muito procurado, nos seus tempos áureos, para almoços de casamento. Era chique. Era tique. Em Fafe, para as melhores famílias, não havia dúvidas sobre a receita infalível: cerimónia religiosa numa capela ou igreja de aldeia e, depois, ala para Guimarães, banquete no Jordão. A primeira vez que lá entrei, ainda rapaz, foi precisamente para a boda do tio Zé com a tia Lena. E descobri, maravilhado, que os agriões são de comer. 
O Jordão foi também o cinema dos meus primeiros filmes pornográficos. Era a novidade. A pornografia acabara de chegar a Portugal, com a bendita liberdade, que afinal é sempre um pau de dois bicos. Devo esclarecer, por falar nisso, que os filmes pornográficos do Jordão faziam muito mal aos intestinos, pior do que garrafão de vinho doce bebido de uma assentada. Nos intervalos era um ver se te avias para ir à retrete, filas imensas de braguilhas aflitas à porta das sentinas, porque os urinóis para o caso em apreço não serviam.
Quando me internacionalizei, um ou dois anos depois, em França, pude verificar que, com os estrangeiros, muito mais batidos na matéria, a coisa funcionava de maneira diferente. Para além de cada qual poder escolher o lugar que quisesse na sala praticamente às moscas, não era preciso esperar pelo intervalo nem ir à casa de banho para esgalhar o pessegueiro - era ali mesmo, à Lagardère. Já se sabe: os castiços dos franceses, toujours en avance...

Já agora: ao contrário do que muito boa gente pensa que sabe, incluindo alguns figurões com alegadas responsabilidades literárias, "Chove em Santiago", célebre verso de abertura de um belíssimo poema de Federico García Lorca, não se refere a Santiago do Chile, mas a Santiago de Compostela. À minha querida Santiago de Compostela, pela qual o poeta e dramaturgo andaluz também se enamorou.
Lorca publicou em 1935 um pequeno livro a que deu o nome de "Seis Poemas Galegos". Em galego o escreveu e o poema mais conhecido do opúsculo é exactamente este, que aqui deixo de regalo:

Madrigal á cibdá de Santiago

Chove en Santiago,
meu doce amor.
Camelia branca do ar
brila entebrecida ô sol.

Chove en Santiago
na noite escura.
Herbas de prata e de sono
cobren a valeira lúa.
Olla a choiva po-la rúa,
laio de pedra e cristal.
Olla no vento esvaído,
soma e cinza do teu mar.

Soma e cinza do teu mar,
Santiago, lonxe do sol;
ágoa da mañán anterga
trema no meu corazón.

sábado, 19 de julho de 2025

Uma coisa ruim

O estresse
"O estresse provoca o câncer!", não se cansava de repetir o clarividente defensor do acordo ortográfico.

Fafe era uma terra um bocadinho hipócrita. Evidentemente eu não posso dizer se Fafe era uma terra mais ou menos hipócrita do que as outras terras, porque eu só conhecia Fafe, mas que Fafe era uma terra um bocadinho hipócrita, disso tenho a certeza absoluta, porque eu estava lá e não sou parvo. Provavelmente Portugal completo era um país um bocadinho hipócrita, se calhar inteiramente hipócrita, mas disso eu não sabia ainda, não fazia sequer ideia, porque, é como digo, eu estava em Fafe, e em Fafe desconhecia-se o mundo abaixo de Arões, sobretudo derivado àquilo de que Fafe era uma terra um bocadinho hipócrita. Mas, verdade seja dita, éramos razoavelmente felizes e saudáveis.
Em Fafe, por exemplo, ninguém padecia de cancro. Ninguém morria de cancro. Porque em Fafe não existia a palavra cancro. Cancro. A palavra cancro não se dizia. O cancro era crime e castigo. Pecado e culpa. Vergonha, tabu. O cancro estava proibido. Dizia-se que Fulano ou Sicrana tinham - aqui baixando a voz ao nível do cicio, do sussurro, do segredo ao ouvido, do cochicho maledicente, da coscuvilhice beata - um pstdrss. Um pstdrss murmurado com sinal da cruz e tudo. Sim, estava no hospital, no Porto, com um pstdrss, muito malzinha ou malzinho, consoante fosse Sicrana ou Sicrano, Deus lhe perdoe. Muitos fafenses morreram, naquele tempo, com pstdrss, mas nunca ninguém morreu com cancro. E não havia Sicranes. E, aliás, nem se morria, falecia-se, que era uma situação muito mais cómoda, muito menos dolorosa, muito menos definitiva...
E mamas? Mamas, dizia-se. Havia mama e havia mamas em Fafe, embora não fosse geral, como já aqui informei com todo o rigor. Tanto quanto me lembro, predominava um certo convencimento de que as raparigas e mulheres de Fafe possuíam realmente mamas, porém nem todas queriam que isso se soubesse. Mas cancro e mamas ou mama é que nunca poderiam coincidir numa mesma frase: cancro da mama, vamos um supor, seria impossível, desde logo porque é obsceno, e a pornografia constava que era só em Guimarães, e, em todo o caso, como se viu, a palavra cancro não existia em Fafe. Pstdrss da mama, com todo o respeito, até admito que possa ter havia, mas eu nunca ouvi dizer, devo confessar.
E depois do cancro, a sida, a mesma hipocrisia, a mesma pequena hipocrisia, a mesma enorme ignorância. Ignorância e indizível maldade. Naquele tempo, o cancro esteve para a sida como João Baptista serviu para Jesus Cristo, mas não adiantou, ninguém acreditou, essa parte não vinha no catecismo de sacristia, rançoso e cruel, e bondade e compaixão eram apenas palavras da boca para fora. Como pstdrss ou, deixemo-nos de merdas, "uma coisa ruim", "uma doença má", "doença prolongada"...
Assim eram as coisas nos bons velhos tempos, e eu limito-me a contá-las tal qual as sei. Fafe está aqui como mero pretexto, mais nada. Fafe é hoje uma terra completamente diferente e absolutamente igual. Porque Fafe, sendo talvez às vezes uma terra um bocadinho hipócrita, é com certeza e sempre a melhor terra do mundo.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

O rapaz dos altifalantes

Interferências
Ele tinha dois rádios muito jeitosos. Depois de um tombo na banheira, o rádio do braço esquerdo, coitadinho, agora só apanha a onda curta.

A frase era: "E ao iniciarmos os nossos trabalhos, a todos desejamos uma muito boa tarde". Mas só funcionava, a frase mágica, se fosse metida no meio de uma marcha de John Philip Sousa, que para mim era um músico português de Castelo de Paiva que tinha ido para a América em pequenino. Eu sabia que no Pejão havia, por aquela altura, uma grande banda de música, quase tão boa como a nossa, a de Revelhe, e era daí que vinha a minha inocente suposição. Se o Sousa não era de Fafe, caso contrário eu eu saberia, então só podia ser de Castelo de Paiva. Quanto à marcha propriamente dita, de preferência "Stars And Stripes Forever". Isso, sim, era serviço completo, coisa profissional.
Eu adorava os altifalantes. Altifalantes, bandas de música e bombos, zés-pereiras, que eu achava que se chamavam assim por causa do Bô de Basto, que era Pereira e tocou caixa. Longe ou perto, os altifalantes chamavam por mim e eu ia. Eram sinal de futebol no Campo da Granja, eram Festa da Bomba, eram o Santo António na minha rua, eram a Senhora de Antime que vinha à vila numa tremenda e comovente procissão e, lá no meio da multidão sem medida, os altifalantes em cima da carripana do Baptista, fanhosos, deitavam o terço e cantavam o "Queremos Deus". E eu queria era dizer aquela frase. "E ao iniciarmos os nossos trabalhos, a todos desejamos uma muito boa tarde". O meu sonho era dizê-la quando fosse grande.
E disse. Vezes sem conta, anos mais tarde, já os altifalantes tinham sido promovidos a "instalações sonoras", embora ainda não fossem "sistema de som", e a bola rolava no nosso Estádio de campo pelado. Sim, o microfone agora era meu, eu era o rapaz da "constituição das equipas" e daqueles reclames muito jeitosos que terminavam todos em "... nesta simpática lo-ca-li-da-deee". E os anúncios pelos 16 de Maio e pelas Festas da Vila, pelo Natal, nos altifalantezinhos pendurados nas árvores em Cima da Arcada, sim, também era eu. Mas estavam gravados e a frase era-me impedida. E nem imaginam o que eu sofria quando andava com o Pimenta pelas aldeias de Fafe a apregoar os filmes do cinema ao ar livre, as cornetas atadas às três pancadas no tejadilho da velha catrel emprestada à Comissão de Auxílio, e eu, aos solavancos contra o tecto, "hoje, às 21h30, na bancada do Estádio Municipal, cinema, sensacional filme, "Dominique", com Debbie Reynolds e Ricardo Montalban, a verdadeira história da freira cantora que tocava viola a andava de lambreta, a não perder, hoje, às 21h30...", e vira o disco e toca o mesmo, mas sem poder dizer a frase. Sem conseguir dizer a frase. Não encaixava de maneira nenhuma, o raio da frase. Que seca! E os filmes também.
"E ao iniciarmos os nossos trabalhos, a todos desejamos uma muito boa tarde". Era a frase da minha infância, a minha frase-talismã, e andou sempre comigo. Até na profissão. Sempre me vi como o rapaz dos altifalantes, nem mais nem menos. Quando passei pela Informação da Rádio Comercial, no tempo em que a Comercial fazia parte do universo RDP, muitas vezes a disse, à frase-maravilha, como teste, na gravação de uma notícia ou apenas por brincadeira, de microfone fechado, antes de ir para o ar com o noticiário. "E ao iniciarmos os nossos trabalhos, a todos desejamos uma muito boa tarde".
Nunca chegou cá fora, e foi o que os senhores ouvintes perderam - como certamente estão agora a perceber. Em contrapartida, uma vez, no final de um bloco noticioso particularmente bem conseguido, saiu-nos - ao colega de cabina e a mim - um "Até os comemos!", de microfone involuntariamente aberto e destinatários certos, que ainda hoje é o nosso orgulho.
E, realmente, "Até os comemos!" também é uma bela frase e resulta muito bem em rádio, sobretudo se for numa rádio séria e sustentada pelos contribuintes. Mas, verdade seja dita, não tem comparação com a outra, a gloriosa, a dos altifalantes, pois não?

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Mais rápido que uma linha recta

À velocidade da luz
De acordo com os especialistas, a velocidade da luz desloca-se praticamente à velocidade da luz. O que é extraordinário!

A menor distância entre dois pontos é uma recta? Nem sempre. Às vezes a menor distância entre dois pontos pode ser uma curva. Aqui não se trata de ciência, é mero exercício de memória. Por exemplo: lembrais-vos do Generoso? Claro que não vos lembrais do Generoso. Mas eu explico: o Generoso era um extremo brasileiro que jogou no SC Braga bem no início da década de setenta do século passado, por alturas da segunda divisão, se não me engano. O Generoso (e decerto um nome assim nunca foi tão bem empregue), o Generoso, dizia eu, era tão rápido, corria tanto, que, quando atacava e levava um adversário à ilharga, despossuído de outros e melhores argumentos técnicos, chutava a bola para a frente, saía do relvado, contornava o defesa pela pista de cinza, e - espantai-vos! - ainda chegava lá primeiro.

Para que nos entendamos, o relvado e a pista de cinza eram no Estádio 28 de Maio, em Braga. Sim, antes do 25 de Abril de 1974 e muito antes da notável Pedreira do arquitecto Souto Moura, o Estádio 1.º de Maio, na Ponte, chamava-se Estádio 28 de Maio. Por questões políticas e não de calendário litúrgico, rito bracarense: chamava-se 28 de Maio glorificando o golpe militar que naquela data, em 1926, derrubou a Primeira República e abriu caminho à ditadura do Estado Novo. O que só demonstra que, para todos os efeitos, a Outra Senhora levava 27 dias de avanço em relação a Esta Senhora e que as revoluções cometem-se sobremaneira para mudar os nomes das ruas, praças, pontes, estádios e outro imobiliário. E as moscas também.
De corte fascista, o Estádio 28 de Maio, que ainda está de pé, tentava aparentar-se e rivalizar com o Estádio Nacional, no Jamor, e foi inaugurado, em 1950, por Salazar e Carmona, que assim ditos até parecem uma alegre sociedade de costureiros. Veio a revolução dos cravos e o estádio virou a casaca, mudou de nome, passou a chamar-se Estádio 1.º de Maio, viva o Dia dos Trabalhadores, viva a classe operária!, mais ajuizado seria que se tivesse chamado sempre Campo da Quinta da Mitra.
Quereis outro exemplo? O Estádio 25 de Abril, de Penafiel. Antes da reciclagem política, aquele terreiro chamava-se Campo das Leiras, e, convenhamos, nome mais bonito não podia ter.

Mas eu também vi o Generoso executar a sua supersónica façanha no então pelado do meu Fafe, no "Estádio" que poderia ter-se chamado "Maria Cristina", onde o resvés com os pilares de cimento e com os tubos metálicos da vedação conferia um toque extra de emoção e perigo ao espectáculo. O Generoso, sempre na mecha e a passar calafriantes tanjas ao excelentíssimo público e ao desastre, trazia-me à cabeça o encantatório e fanhoso reclame altifalante das barulhentas motas do poço da morte, nos dias dos 16 de Maio e da Senhora de Antime, primeiro no Largo ou na Feira Velha e depois no sítio onde agora está o Pavilhão Municipal. Também ali, no campo da bola, havia "arrojo, coragem, audácia, cooommm-ple-to desprezo pela vida". E eu, palavra de honra, sempre achei que o Generoso, pela sua saúde, devia jogar de capacete...

O grande Generoso, parece que ainda o estou a ver. José Carlos Generoso, que passou por Braga como um cometa na época 1973/74 e faleceu em Setembro de 2021, com 77 anos.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Piopardo ao saco!

Mandaram-nos proteger o garrano. E nós protegemos. Depois disseram-nos que era preciso abater o garrano. Mandaram-nos proteger o lobo. E nós protegemos. Agora dizem-nos que o lobo pode ser abatido. Mandaram-nos salvar o lince. E nós salvámos. Mas o lince, diz-se, anda a atacar galinhas. O lince que se ponha a pau...

A caça ao gambozino é uma satisfatória alternativa, por exemplo, à caça ao elefante ou, também estou em crer, à montaria ao javali. Mantém-se o lado lúdico e ecuménico, o são convívio entre caçadores e simpatizantes, o almocinho e a merenda, a sacramental troca de mentiras, mas poupa-se em matança, em perigo e em munições, dando-se uma mãozinha, por outro lado, à indústria nacional da serapilheira. Como se sabe, na caça ao gambozino os caçadores não usam armas de fogo, mas sacos e chibatas, e gritam: - Piopardo ao saco!...
É verdade, a caça ao gambozino, essa espécie amiúde cinegética também conhecida como piopardo ou vai-ver-se-estou-lá-fora. Eu sei bastante de caça ao gambozino porque sou de Fafe, e em Fafe, no meu tempo, nem se era fafense nem se era nada se não se caçasse o gambozino. Fui, aliás, um razoável caçador de gambozinos, não é para me gabar. Em Fafe, depois de se caçar muito o gambozino, assim com uma certa carreira feita, reconhecida, já se podia mandar caçar os outros. E foi o que eu fiz. E é o que eu faço.
É preciso que se note que o gambozino, ou piopardo, depois de caçado, medido, pesado, lavado, dentes incluídos, vacinado, fotografado, etiquetado e registado, era devolvido à liberdade, à natureza, com dinheiro para o táxi e direito a levar o respectivo saco de serapilheira cheio com um rico merendeiro, doces de Arões e Fornelos, vinho de Várzea Cova, galhardetes e outras lembranças municipais, até à próxima! Fafe era assim. Fafe é assim. Um povo compassivo e magnificente, mãos-largas.
Discotecas à parte, onde às vezes realmente há uns tiros, navalhadas, pancadaria de criar bicho e talvez uma morte ou outra, nada de mais natural, Fafe é uma terra pacata, livre de armas nucleares e muito amiguinha dos animais, coitadinhos. Tem concurso de beleza canina, tem chega de bois, tem corrida de cavalos a passo travado, tem largada de perdizes, tem batida à raposa, tem exposição de columbofilia, tem certamente grilos, com e sem gaiola, e até tem montaria ao javali, uma iniciativa magnificamente promovida e aparelhada pelo Município, "organização governamental", com estacionamento gratuito, almoço e tudo.
Como toda a gente sabe, javalis em Fafe são mato, tais como, para não irmos mais longe, ursos tintos e morsas desdentadas nos aprazíveis glaciares da Lameira, tubarões-berbequins nos mares da barragem de Queimadela, camarões-tigres na bacia do rio de Pardelhas e crocodilos insones no lago do Jardim do Calvário. Importante: determinado por edital camarário, todos os javalis devem apresentar-se à montaria obrigatoriamente vestindo colete reflector, não vá passarem desapercebidos aos caçadores de carregar pela boca. No caso das largadas de perdizes previamente tontas, só são admitidas à mortandade as perdizes que usem capacete e após teste do balão.

terça-feira, 15 de julho de 2025

Os sonhos são como o algodão, hidrófilos

Prioridades
O amor é muito lindo. O "jackpot" do Euromilhões é muito mais.

Ultimamente dá-me para sonhar com pessoas que já morreram. Pessoas de quem gosto - familiares e amigos, vizinhos de infância, povo do meu antigamente, gente de Fafe. Sou um simples, acho que são saudades, velhice. Mas dizem-me que não, que o assunto é muito mais complicado, especialistas em correntes de ar, astrologia e afins garantem-me que os sonhos querem dizer coisas, significam, e que não enganam. Os sonhos são como o algodão, hidrófilos. Nos sonhos está lá tudo, e tudo acaba por bater certo. Limpinho.
Sonhar com pessoas amigas que já morreram, falar com elas no sonho, explicam-me que é o melhor que me podia acontecer. É o pré-aviso de que está aí a rebentar-me nas mãos uma fartura de boas notícias, um mar de felicidade e saúde como o aço para mim e para os meus. O que é preciso é estar atento aos recados que os defuntos da corda me querem segredar, às tantas até os números do Euromilhões da próxima sexta-feira. Isto é a regra geral, científica, embora possa parecer o horóscopo da Crónica Feminina, patrocinado pelo Sonasol.
Não sei se esta tão conveniente interpretação dos sonhos com mortos também vale para Portugal e para vivos chamados Hernâni Von Doellinger, naturais de Fafe e residentes em Matosinhos-sur-Mer. Suspeito que não, pelo que me tem calhado, mas cá fico à espera de melhores dias.
Tenho alguma pressa, confesso, porque se uma coisa sei de certeza é que os sonhos padecem de prazo de validade. Um gajo deita-se uma noite moço e convencido de que os sonhos molhados até são um acontecimento, vá lá, engraçaaaaado..., e acorda de manhã ancião e alagado em mijo derivado à incontinência. A vida é tão breve, não foi?
Sonhar com algodão, dizem que é muito bom para a saúde e que traz uma vida cheia de dinheiro e de felicidade. Bem empregue. Eu por acaso pensava que era com merda que a coisa funcionava. Quer-se dizer, ensinaram-me em pequeno que pisar merda é que dava sorte, é que era sinal de dinheiro e felicidade, se calhar porque naquela maré éramos tão pobres que não tínhamos acesso ao algodão. E merda, realmente, era uma fartura...
Quando morávamos no Santo Velho, o algodão, esse símbolo branco da escravatura negra, passava quase todos os dias por mim, em fardos, em camiões transbordantes, descendo a Rua Monsenhor Vieira de Castro a caminho da Fábrica do Ferro, Companhia de Fiação e Tecidos de Fafe, onde depois havia milhares de operários a trabalhar, entre os quais o meu pai e, mais tarde, a minha irmã e o meu cunhado Álvaro, e variados chefes a roubar - e deu no que deu. Ia daqui de Matosinhos, o algodão, do Porto de Leixões, agora mesmo à beirinha de onde moro com vista para o mar se me puser de lado. Quer-se dizer: por mais voltas que a vida dê, estamos sempre no mesmo.
Agora vou dormir e passo à escuta.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

As nudezes de Marisa Cruz

O terceiro homem
O terceiro homem foi Abel. Adão foi o primeiro, como o próprio nome indica; Caim, o segundo; e Abel, o terceiro. A seguir veio Sete, que, pela ordem natural das coisas, deveria ter sido Quatro, mas a Bíblia é como é e quanto a isso nada. Caim matou Abel, numa história negra muito bem contada pelo jornalista, espião e escritor inglês Graham Greene. O livro deu filme de Carol Reed, que meteu Orson Welles e ganhou Cannes, BAFTA e um Óscar da Academia. Óscar evidentemente acúrsio.

Era uma vez Marisa Cruz, que entrou num filme e apareceu nua. Foi no ano de 2004. O filme, de António Cunha Teles, chamava-se "Kiss Me" e entravam lá também o bom Nicolau Breyner (1940-2016), Rui Unas, Marcantónio Del Carlo e até Clara Pinto Correia, entre outros e outras, certamente. Marisa Cruz estava então com o jogador de futebol João Pinto, com quem assinaria casamento em 2009 e do qual rescindiria em 2013. Tiveram tempo para dois filhos. João Pinto é hoje dirigente ou funcionário da Federação Portuguesa de Futebol, mas em 2004, época da estreia do filme, jogava no Boavista de boa memória. Eu não entrei no filme, casei com a minha mulher no século passado e ainda cá estamos, nunca joguei no Boavista nem sou assalariado da FPF. Em 2004 trabalhava no 24horas, Redacção do Porto, e as inteligências lisboetas do meu jornal mandaram-me telefonar ao Jaime Pacheco, que era o treinador dos boavisteiros, a perguntar-lhe se tinha visto o filme, o que é que achara do corpo nu da Marisa e se tinha comentado o assunto com o João Pinto, tipo "a tua mulher é boa como o milho". As inteligências lisboetas do meu jornal mandaram-me também telefonar aos colegas do João (lembro-me do Frechaut, do Diogo Valente e do Martelinho, por exemplo), a perguntar-lhes se tinham visto o filme, o que é que acharam do corpo nu da Marisa e se tinham comentado o assunto no balneário, tipo "por acaso esta noite sonhei com a tua mulher". As inteligências lisboetas do meu jornal mandaram-me ainda para a porta do cinema, no NorteShopping, se não estou em erro, a perguntar aos espectadores que saíam se tinham gostado de ver a Marisa nua, se, ao léu, ela era mesmo toda boa como parecia vestida, e se coisa e tal...
Às inteligências lisboetas do meu jornal, eu mandei-as à merda. E ao filme também. Nunca o vi e não gostei, não sei como é que era realmente a rapariga em pelote, desconheço-lhe as intimidades que afinal não são. Por outro lado, percebi aqui atrasado, vinte anos depois, que Marisa Cruz continua a querer mostrar, e mostra, nas suas redes e nas redes dos outros, e faz ela muito bem, suponho, está  absolutamente no seu direito. Eu se lhe soubesse desta mania, às tantas, em 2004, em vez de guardar respeito, por assim dizer, talvez devesse ter-me dado ao trabalho e ao gozo. Mas não. Tenho a certeza de que fiz bem em não fazer nada...
Os jornalistas e similares que eram as inteligências lisboetas do meu falecido jornal estão hoje quase todos muito bem colocados nos periódicos de referência da capital e vão assiduamente às televisões comentar as últimas da política nacional, internacional, solar e intergaláctica. Levam-nos a sério, e eles próprios parece que também. Não sei se viram a Marisa Cruz nua e, se viram, o que é que acharam. Talvez lhes perguntem um destes dias.

domingo, 13 de julho de 2025

E o Daniel era o nosso capitão

O mundo e mais nada
O mundo divide-se em duas partes: polícias e ladrões, índios e cobóis. O resto é desculpa, distracção...

A vila de Fafe fervilhava de tascos na segunda metade do século passado. Eram porta sim, porta não, provavelmente caso único a nível mundial, coisa talvez digna do Guinness: casinos e hotéis em Las Vegas, tascos e afins em Fafe. Tascos, tabernas, casas de pasto e quatro ou cinco pensões-restaurantes do melhor que existia em Portugal para quem percebesse realmente do assunto, porque em Fafe comia-se e come-se bem e bom. E quanto a beber, então nem se fala. À mesa, portanto, nada a apontar - antes pelo contrário. Já no que diz respeito à cama, isto é, a locais para pernoita, naquele tempo estávamos muito mal servidos. Se aparecesse algum acontecimento pensado em grande, fora do ramerrame quotidiano, um evento que trouxesse gente de fora com intenção ou obrigação de ficar por cá de um dia para o outro, não havia onde meter o povo todo, a não ser que se inventasse. E inventava-se.
Com a Volta a Portugal em Bicicleta tinha mesmo de ser. Antigamente as etapas da Volta costumavam começar na mesma terra onde tinha terminado a etapa do dia anterior, e Fafe fazia habitualmente parte do roteiro. Os fafenses recebiam muito bem os ciclistas e toda a caravana de uma forma geral. Os prémios eram muitos e oferecidos pelo comércio e pela indústria locais. Taças, medalhas, electrodomésticos, bicicletas, cortes de tecido, cortes de cabelo, peças de roupa e de louça, chapéus de palha, guarda-chuvas, produtos de higiene e limpeza, canetas, envelopes com dinheiro e múltiplas inutilidades, que passavam para aí uma semana em exibição na montra da Electra, se não estou em erro. Em Fafe, se um ciclista da Volta não chegasse, vamos lá, nos dez primeiros lugares, então mais valia cortar a meta em último. O último ciclista a chegar a Fafe ganhava uma magnífica candeia novinha em folha com uma certa quantia metida lá dentro. E os meus olhos ficavam-se todos os anos na candeia tão brilhante e propícia a sonhos. Se eu fosse ciclista, palavra de honra, havia de dar sempre o máximo para ser o último!...
Os prémios eram entregues aos responsáveis das equipas numa aprazível sessão nocturna, no Jardim do Calvário, porventura com um ou outro "apontamento musical" e decerto garbosamente apresentada pelo Landinho Bacalhau ou pelo Zé Fala-Barato, ou se calhar por ambos, com umas larachas pelo meio, não devo estar a dizer asneira nenhuma.
E onde ficavam a dormir os ciclistas? Algumas equipas, mais exigentes e endinheiradas, desciam até Guimarães, gabo-lhes o gosto. Em Fafe, esgotadas as poucas camas da hotelaria convencional, e aqui é que entra a invenção, instalações mais ou menos públicas eram requisitadas e, se necessário, transformadas em dormitórios para acolher atletas e acompanhantes. Por exemplo, a camarata dos Bombeiros, na Rua José Cardoso Vieira de Castro, serviu de pouso, em anos diferentes, às equipas do Baixo da Banheira e do Académico do Porto, do nosso Chico Marinho. E eu andando por lá.
Em 1967, os belgas da Flandria vieram à Volta a Portugal e Fafe instalou-os no palacete ao lado dos Bombeiros, em frente aos Medons, e que já serviu de museu da imprensa mas na altura não servia para nada. O Palacete com maiúscula era o outro, o dos Dantas, do outro lado dos Bombeiros, este era apenas um palacete. Era um casarão abandonado, uma espécie de casa assombrada, decadente inclusive em sentido literal, com o espaço exterior, dentro dos portões e do alto gradeamento, entusiasticamente entregue ao capim descontrolado, à folhagem podre e fedorenta e às silvas amazónicas que assustavam. Não era normal os estrangeiros virem correr à nossa Volta, e decerto por isso a mordomia. O interior do edifício terá sido sacudido e arejado, despejado de ratos e limpo das teias de aranha, só foi preciso meter camas, trigo limpo, farinha amparo.
A Volta a Portugal acabou e nós tínhamos de ir lá dentro, ao palacete, ver como é que aquilo era. Nós, quero dizer, o nosso grupo de miúdos, ali do Santo Velho e das redondezas, comandados pelo intrépido Daniel Carcereiro, que era apenas um pouco mais velho mas tinha um enorme carisma e sentido de liderança, embora eu na altura não soubesse o que isso queria dizer e nem sequer conhecesse estas palavras.

O Daniel, é preciso que que note, chamava-se Carcereiro por causa do pai, que era o responsável pela cadeia de Fafe. A cadeia mesmo, o velho edifício granítico com grossas grades de ferro quase ao nível do chão através das quais os presos conversavam com familiares, amigos ou simples passantes, com espaço até para enfiarem as pernas cá para fora, para a rua, as pernas em liberdade, balançando-se, eventualmente também as mãos e o nariz, às vezes as orelhas, uma de cada vez, mas o resto do corpo não. Senão, nem era cadeia nem era nada.
O sítio é exactamente o mesmo onde está hoje o Palácio da Justiça, inaugurado a 13 de Outubro de 1963, dia em que também abriu portas a nova cadeia comarcã, com entrada pela actual Rua Prof. Manuel José da Costa, nas traseiras do estádio e junto à piscina municipal. E a família do Daniel mudou-se para lá também. O edifício já serviu entretanto como posto da GNR e agora não sei para que serve, mas essa parte sabeis vós muito melhor do que eu.

Portanto, deixámos passar uns dias, para disfarçar, e invadimos o palacete. O Daniel tomava conta de nós, nunca permitiria que algo de mal nos acontecesse. O Daniel tinha isto, tão singular: apesar de aventureiro, brigão e valente, desafiando sem medo os maiores do que ele, fossem quantos fossem, era de uma inesperada e desarmante bondade em relação aos miúdos mais novos. Ele era o nosso capitão e o nosso protector. Sempre atento e cuidadoso. E a invasão foi um sucesso.
Fizemos trinta por uma linha, deixámos tudo em pantanas, corremos todas as divisões de todos os andares até à mansarda, subindo e descendo escadas que faziam lembrar castelos, destruímos almofadas em guerras sem quartel, desengonçámos irremediavelmente camas e divãs, inutilizámos lençóis para fazermos de fantasmas, tudo a uma velocidade alucinante, com milhares de trambolhões à mistura, mas felizmente sem vítimas a lamentar. Na verdade, não foi tanto assim, mas assim contado tem muito mais piada. E a invasão foi mesmo um sucesso.
Ainda por cima encontrámos espalhados pelo chão imundo restos da alimentação dos ciclistas. Cubos de açúcar, quadradinhos de marmelada e outros doces e geleias, muito bem cobertos por milhões de formigas, que desbaratámos organicamente, isto é, ao pontapé e chibatada, seguindo as rigorosas orientações higiossanitárias do Daniel, que cheirou aquilo e decidiu, dando o exemplo: - Ainda está bom. Bora lá comer, que o que não mata, engorda! - E não podia ser mais sábio. Quase tão sábio como Nietzsche, o Friedrich, que dizia "O que não nos mata torna-nos mais fortes", isto certamente depois de ter passado por Fafe.

O Daniel foi um razoável jogador de futebol, dos de barba rija, porém fez carreira como oficial de justiça, estou em dizer. Não convivemos há mais de trinta ou talvez quarenta anos, mas nunca me desapontou, isso é garantido. Estou-lhe grato, tenho por ele uma admiração antiga, e nunca lho disse. Confidenciam-me que o Daniel Carcereiro continua como era, um ser humano especial, com o seu feitio, cuidado!, mas disponível e leal, fiável, generoso, atento às injustiças e presente aos amigos, ainda e sempre sportinguista, o seu ponto de imperfeição, e possivelmente um pouco mais manso. Enfim, um comandante na reforma. E diz que o palacete também está muito bem: foi recuperado, tem dono e parece que é actualmente um lugar requintado e belo. Antes assim.

Moral da história: Tony Houbrechts, o belga da Flandria, ganhou a Volta a Portugal em Bicicleta de 1967. E eu comi-lhe o almoço.

sábado, 12 de julho de 2025

Diálogos fafenses 24

Cataminha, catatua, catadela
- É uma catatua, esse pássaro que trazes ao ombro?...
- É, é! É uma cataminha.

Quando o Natal chegou a Fafe

É triste o fim do Natal
O fim do Natal é muito triste. Terminasse o Natal em m, Natam, terminasse o Natal em x, Natax, terminasse o Natal em y, Natay, terminasse o Natal em z, Nataz, terminasse até o Natal em k, Natak, e, quer-se dizer, o fim do Natal até teria alguma piada. Agora, terminar em l, Natal, um esquelético tracinho ao alto, um pauzinho desamparado armado em guarda-redes, é realmente uma tristeza muito grande, um fim que ninguém merece.

O primeiro Natal que eu conheci em pessoa chamava-se Higino. Natal Higino. Ou por outra, chamava-se e chama-se, felizmente sobretudo para ele, mas também para nós todos que tivemos a fortuna de o herdar sem mais nem menos. O nosso Natal veio directamente de África, no tempo em que Fafe era o fim do mundo. Para quem viesse de comboio, como o Natal veio, acabar em Fafe era obrigatório, não havia mais linha, batia-se com o nariz na parede que aguenta até hoje a velha Rua do Retiro. Muito tratante desaguou assim em Fafe, para mal dos nossos pecados, mas o Gino é vinho de outra pipa.
O Natal chegou a Fafe em 1975. Tinha 19 anos de idade. O Natal chegou, Natal Higino, instalou-se nos Bombeiros, na Bomba, e tornou-se "como se fosse da família", que, tomai bem sentido, é muito mais e melhor do que ser mesmo da família. Creio não estar a dizer grande asneira quando afirmo que, na nossa terra, o mais forte laço "familiar" que nos une acaba por ser esse mesmo, o de sermos uns para os outros como se fôssemos da família, meus ricos meninos. A família sanguínea, de árvore genealógica, não passa de um que remédio, é uma fatalidade, cai de madura. A esse respeito, no entanto, devo ressalvar que a minha tia Laura e o meu irmão Nelo saberiam falar do Gino com muito mais propriedade do que eu, mas o Nelo, por recato, sei que nunca o faria, e a querida tia deixou-nos infelizmente há cinco anos, mas conto um destes dias trazê-la outra vez aqui. A tia Laura foi quem encarrilou o Gino para a vida.
O Natal chegou a Fafe, Natal Higino, e, apesar de alardear algum jeito para a bola, com passagens registadas por Antime, Vinhós e Estorãos, pelo menos, foi como espectador, isto é, como aplaudidor, que ele mais se notabilizou. Batia umas palmas que eram realmente um assombre, como se dizia em fafês, assombre, palavra inventada pelos músicos antigos da Banda de Revelhe, ou talvez não, porque um destes dias ouvi-a no Alto Minho e acertadamente encaixada, para minha surpresa e grande alegria. Um assombre! Umas palmas que, quando bem batidas, ouviam-se da Cumieira a Santo Ouvídio e da Fábrica do Ferro à Ponte do Ranha. Como se fossem duas rijas tábuas de soalho saídas da máquina da serração e lançadas violentamente uma contra a outra e ligadas aos altifalantes do Baptista, um estrondo assim tremendo, uma coisa nunca ouvida! Lembrais-vos do PA-SSA A BO-LA! do tonitruante Aníbal Carriço? Pois estas palmas andariam por lá perto. Em todo o caso, um extraordinário melhoramento sonoro para Fafe, e sem despesa para a Câmara ou para o Governo. Para além disso, Natal Higino, que veio de África, soube fazer-se fafense excelentíssimo. Que é! Acrescentai-o à lista, se fazeis o favor.
O Natal, o nosso, trouxe um apenso de alegria e bondade a Fafe. O Higino é isso, um homem alegre, bom, generoso, honrado, companheiro. Para o Gino, toda a gente tinha a categoria de Você. Era o meu tempo de seminário, e o Gino chamava-me "Sacerdote". Suponho, aliás, que ainda hoje me chama "Sacerdote". Éramos, somos, amigos. A minha mulher sabe quem é o Gino, o que o Gino representa, conhece-o, que eu apresentei-lho, e isso é o topo no meu barómetro da amizade, prenda tão rara.
Eu não sei se Fafe já se apercebeu da sorte que teve por causa do comboio acabar obrigatoriamente ali e dele ter saído por acaso o Gino. Eu tenho noção. Ao longo da vida vim a conhecer alguns Natais, não muitos, porque o nome também não é assim tão popular, mas não me lembro de outro que me tenha verdadeiramente impressionado. E acho que sei porquê. Porque, como noutras encomendas da vida, não há Natal como o primeiro. E o meu chamava-se Higino.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Capoeirista, eu?...

A sério. Não sei se posso ser considerado um verdadeiro capoeirista. A minha mãe mandava-me realmente dar de comer às galinhas e ver se havia ovos, recomendando-me sempre todo o cuidado ao entrar e ao sair do galinheiro, mas será isso suficiente?
E que se segue? O Dia do Capoeirista está aí à porta, e eu, sinceramente, não sei se deva festejar...

Mas onde é que eu já me vi?

Ex-citações
Diz o roto ao nu: - Excitas-me, pá!...

Devo andar a ficar parecido com alguém. São cada vez mais as pessoas que olham para mim na rua, e eu não estava habituado a ser visto. Sempre achei que tinha cara de ninguém, tão incógnito e invisível fui durante toda a minha vida, e não me estou a queixar, constato apenas, porque senstato ainda podia ser pior, se não me engano. Por exemplo: chovesse a cântaros e corresse eu em coiro a subir e a descer desalmada e inutilmente as escadas da Arcada, no centríssimo de Fafe, intervalando cada subida e respectiva descida com três litúrgicas cabeçadas na porta principal do Club, e a verdade é que nem o Alfredo Sapateiro me ligava nem a polícia municipal tomava conta da ocorrência. Era como se eu não existisse, como se não passasse de uma corrente de ar, mesmo com o pirilau ao léu, e lá por o Sr. Alfredo ser meu parente e a polícia municipal ainda não ter sido inventada, isso também não é justificação. De acordo com as detalhadas notas da minha agenda de 1911, que agora mesmo compulso e sentornozelo, pratiquei esta patusca habilidade duas ou três vezes, talvez quatro ou cinco, os apontamentos estão um bocado esborratados, e só abandonei a modalidade após indicação médica. O médico da caixa sempre me chamou Sr. Bonifácio porque nunca tomou razoável sentido a quem eu sou realmente. Mas as pessoas não têm culpa. Eu próprio passei por mim um ror de vezes e não me conheci de lado nenhum, tenho essa impressão, portanto que não contem comigo para atirar a primeira pedra seja a quem for. Nem a primeira nem a última. Em todo o caso, atirarei, com prazer, a pedra do meio.
Que mais posso dizer? Eu era o homem invisível, e sentia-me muito confortável dessa maneira, mas de repente desapareci e aparentemente passei a ser uma pessoa normal, à vista de toda a gente, a ocupar espaço, o que me acabrunha sobremaneira. Quer-se dizer, apareci desaparecendo. É desagradável. E um bocado estranho.

Mas ao que interessa: agora, na rua, espreitam-me de cima a baixo. Faço imediatamente o teste da braguilha, porque a braguilha não engana, mas há muito que eu retirei a braguilha de cotio, só a uso ao fim-de-semana com hífenes, e eu, confesso, ao fim-de-semana com hífenes não saio. Ando por conseguinte intrigado, diria até assaz incomodado, mas estaria a mentir se o dissesse, e eu só minto às quintas-feiras dos anos bissextos, e por isso hoje não digo. Por outro lado, a palavra assaz é particularmente parva.
Resumindo e concluindo. Fui ao espelho ver se via o que se passava. Há coisa de dez minutos, fui ao espelho. E faço questão de informar que não me via ao espelho desde 1879, mais ou menos no dia do São Francisco de Regadas, ou talvez desde 1901, por alturas da Senhora das Neves da Lagoa, não tenho bem presente a efeméride. Fui ao espelho (sei que é a terceira vez que digo que fui ao espelho, e com esta já é a quarta) e aconteceu o seguinte: encontrei-me realmente com um tipo parecido comigo e saiu-me, fatal, aquela frase batida: já vi esta cara em algum lado. Deve ser isso.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Diálogos fafenses 23

Directo ao assunto
- Então o que é que o trouxe cá?...
- Vim de carro.

O povo quer é sangue

Acusado de violência doméstica, o político esclareceu que, sim senhor, aviou dois ou três bufardos à mãe dos filhos, três ou quatro vezes, mas sempre no carro, nunca em casa. Portanto, violência rodoviária, quando muito, e exige um pedido de desculpas.

Quando eu era puto e a ambulância acudia a um desastre com a sirene em altos berros, as pessoas de Fafe corriam logo para as escadas do Hospital. Ali se plantavam, esperavam, prognosticavam, diagnosticavam, e finalmente assistiam ao espectáculo. Ao vivo. Em casos muito graves e raros, assistiam também ao morto. As escadas do Hospital eram um palco de desgraças e caldeirão de fervilhantes emoções, passerelle de horrores, cenário de reality show sem que Portugal sequer soubesse o que isso viria a ser. Eram também muito jeitosas para tirar fotografias de grupo a casamentos, bombeiros em festa e bandas de música ou ranchos folclóricos, palavra de honra. Eram, portanto, o sítio mais in da nossa terra, com a Igreja Nova à mão direita e o Tribunal em frente, e só estorvavam naquilo em que deveriam melhor servir, que era carregar macas com feridos e doentes por aqueles degraus acima ou por aqueles degraus abaixo, às vezes ia tudo de cangalhas até ao chão, doentes e feridos incluídos, e era realmente uma risota. Por outro lado: em fafês, como eu lhe chamo, "escadas" também se dizia "caleiras".
Ora bem. A ambulância saía, a sirene avisava o povo, e o povo corria, corria urgentemente, como se fosse ele próprio tratar do assunto. Mas ia à festa. Era de graça. E essa parte parecia-me bastante estranha, porque, naquele tempo, em Fafe, os espectáculos eram todos a pagar, inclusive as visitas a familiares e amigos internados no Hospital. Como é que a Santa Casa da Misericórdia nunca se lembrou de cobrar bilhete à mironagem que se ajuntava cá fora à espera do circo, como se fosse mais um número das Festas da Vila? Bilhetes avulsos, pontuais, caso a caso, evento a evento, digamos assim, mas também, porque não, assinaturas de temporada, globais, para o ano inteiro, evidentemente com desconto e eventualmente com cadeira, para os adeptos mais ferrenhos. Era o que eu então pensava, na minha indesmentível inocência.
À falta da polícia municipal, que ainda não tinha sido inventada, o bom do Senhor Ferreira via-se à rasca para manter na ordem aquela gente toda e tola que fazia guerra por um lugar na primeira fila, sobretudo mulheres afogueadas e gordas, com os socos e o coração nas mãos ou enrodilhados no avental arregaçado. Faço notar que não foi por distracção que escrevi "a" ambulância. O artigo definido singular é aqui propositado e certo, porque à época, acreditai no que vos digo, os Bombeiros de Fafe tinham apenas uma ambulância, uma velha Skoda 1200 ou 1201 da década de 1950, suponho, uma viatura com carroçaria de aço, pesada, vermelha e carrancuda que regularmente ficava sem travões no meio das descidas mais ingremes e perigosas. Depois chegou a primeira Peugeot, naturalmente de França, como os bebés, e pegou a moda das ambulâncias brancas.
Pois, como dizia, as pessoas de Fafe corriam para as escadas do Hospital, esperavam às vezes horas a fio e regalavam-se de braços decepados e orelhas arrancadas e narizes esborrachados e fémures a céu aberto e pés desfeitos e tripas de fora e miolos ao léu e espinhelas partidas e... - Foi tiro?, Foi facada?, Foi sachola?, Foi o home?, Foi a amante? Foi desastre?, Foi o vinho? Ai que desgraça tão grande! E muitos Uis! e muitos Ais! e muitos Coitadinhos! e muitos Valha-nos Deus! E deixavam-se ficar, no relambório, a dar água sem caneco, num altruísmo tremendo, esquecendo-se da própria vida para falar da vida dos outros, e a benzerem-se na direcção da igreja, que estava ali mesmo a pedi-las, mas sem perder pitada. Vampiros de olhos arregalados, dentes afiados e línguas compridas, pelo menos até aos cotovelos, e os braços cruzados segurando as mamas, iam ao sangue, queriam molhanga, muita, vermelha vermelha como a ambulância que chegava enfim, esbaforida e ganinte. Era um fartote, uma comoção, talvez até desmaios. E nas cozinhas abandonadas e sombrias das casas pobres da vila antiga, os tachos esturricando ao lume pachorrento, azul e resmungão da máquina a petróleo no mínimo...

Agora as pessoas não precisam de ir a correr para as escadas do Hospital. Sentam-se em casa, ligam a televisão e vêem a CMTV. O que se perdeu em calor humano, convívio, ganha-se em Tânia Laranjo.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Diálogos fafenses 22

O peso da poesia
- Era dois poemas de trinta gramas, se faz favor!
- Os dois?
- Cada.
- Sessenta gramas de poesia, quer dizer...
- Mas em doses separadas.

A vida era uma fotonovela

Pimenta na língua 
Cuidado com a comida picante! Isto é, comida para maiores de 18 anos, servida apenas em restaurantes com bolinha vermelha, de preferência à ceia, após a meia-noite.

Recuemos. À década de oitenta do século passado e ao cimo da mui portuense Rua de 31 de Janeiro, onde havia uma casa de jogos de máquinas de flippers e afins que tinha uma cave com um altifalante fanhoso que, de uns quantos em quantos minutos, gritava cá para fora a curiosa frase "Mudança de modelo". Lá em baixo parece que havia umas raparigas muito jeitosas e nuas a fazerem não sei o quê e umas cabinas individuais e sebentas com ranhura para a clientela meter a moeda como nas velhas jukeboxes de feira e espreitar por um vidro e fazer também não sei o quê. Sei muito pouco do assunto porque, palavra de honra, nunca lá pus os pés. Ou se calhar pus, lembro-me vagamente da situação, não juraria em tribunal, mas isso também não vem ao caso.

Informei-me. "Mudança de modelo", logo a seguir ao ding-dong de uma campainha de aeroporto, queria dizer, por exemplo, que a morena mamuda passava a pasta à loura pernalta e ia para os bastidores ler a Corín Tellado, e assim sucessivamente e vice-versa, mas decerto queria dizer também que os clientes tinham de fechar a braguilha e limpar as mãos o mais rapidamente possível e dar a vez a outros, que eram mais que as mães, sobretudo no intervalo de almoço. O speaker de serviço dizia "Mudaaaança de modeloooo" com um garbo só comparável ao do mestre-de-cerimónias do Circo Merito quando anunciava na Feira Velha de Fafe a sensacional "Maribelaaaa no seu rrrrrola-rolaaaa". Eu gostava: "Mudaaaança de modeloooo"! Parava em frente para ouvir, uma e outra vez, até à hora de voltar ao trabalho. E ria-me. Quase quarenta anos depois, leio e ouço a moderna lengalenga da "mudança de paradigma". "Mudança de paradigma" acima, "mudança de paradigma" abaixo. "Mudança de paradigma" para aqui, "mudança de paradigma" para ali. Para quê? Para digma! E também me faz rir, confesso, mas não me arrebita. Falta-lhe sustância, ao paradigma...

Já agora, sobre Corín Tellado, espanhola que se chamava Maria del Socorro Tellado Lopez e morreu no dia 11 de Abril de 2009, aos 82 anos. Escritora, autora mais lida na língua de Cervantes logo atrás do próprio, publicou mais de quatro mil romances cor-de-rosa ao longo de uma carreira de quase 56 anos, vendendo acima de 400 milhões de exemplares, o que lhe valeu a entrada no Guiness em 1994. Em Portugal, e pelo menos em Fafe, antes do 25 de Abril, a senhora Corín Tellado ficou famosa pela melosíssima revista de fotonovelas a que emprestava o nome. As revistas eram disputadas, partilhadas, emprestadas, trocadas, rompiam-se de mão em mão, iam de casa em casa como a Sagrada Família mas com outros interesses. A televisão era a RTP e o mais parecido com uma telenovela era o TV Rural do engenheiro Sousa Veloso (1926-2014), que eu conheci muito bem. Ambos frequentávamos o velho café Peludo. Ele dentro do televisor pendurado logo à entrada, do lado esquerdo, por cima dos bolos-reis previamente encomendados pelos clientes, com peso certo, e comprados em Guimarães para o Natal, e eu sentado no canto contrário, atento à TV e aos bolos, que também só conhecia de vista, ouvindo uma e desejando os outros, nem que fosse só um bocadinho, uma tona. No final, o Senhor Engenheiro dizia, num largo sorriso, já em cima da música toda folclórica: "Despeço-me com amizade, até ao próximo programa". E era para mim. Noutras ondas, o "Simplesmente Maria", folhetim radiofónico, chegou à Renascença apenas em Março de 1973, e o país desfez-se em lágrimas, como se houvera inundações. Já disse: era assim em Portugal e pelo menos em Fafe. A parte de Fafe do rés-do-chão, da esfregona e da costura. A parte de Fafe de que sou. Era triste mas era isto: a vida era uma fotonovela.
E depois chegou a Gina.