terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Poesia imperfeita e geralmente pretérita 17

Aguçando

A necessidade aguça o engenho.
A afiadeira aguça o lápis.

O Secónego

Medieval, mas pouco
É extraordinário o que se consegue comprar numa feira medieval. Artigos tão antigos e tão avançados para aquele tempo, tão modernos, tão actuais - mas qual idade das trevas, qual quê! Se um destes dias, na próxima feira medieval, encontrar à venda telemóveis, carros eléctricos ou camisolas do Ronaldo, não fico nada admirado...

O Secónego era uma sumidade arqueológica. Um sábio. Sabia das lendas, da História, das pedras, das palavras, dos nomes e dos sítios, dos livros. Sabia de celtas, lusitanos e fenícios, gregos e cartagineses, romanos, visigodos e muçulmanos. Sabia das origens todas, e da verdadeira origem das origens. Sabia. Estais a ver o professor José Hermano Saraiva na televisão? Pronto, o Secónego era a mesma coisa, mas sem televisão e a sério, sem supores mais ou menos floreados e, pelo contrário, com base científica. Ainda por cima, tinha piada fina. O Secónego comprazia-se em explicar aos seus alunos porque é que a terra de cada um se chamava como se chamava e porque é que uns eram Silva e outros eram Lopes. Explicou-me porque é que Fafe é Fafe e eu expliquei-lhe que não tenho culpa de ser Von Doellinger, puseram-me assim desde pequenino.
O Secónego tinha uma maneira de falar muito cómica. Falava como quem não abre a boca, ventríloquo da sua própria pessoa, às vezes com a mão à frente, com medo talvez de que se lhe evadisse a placa. Chamava-nos a todos "Ó menino!", embora já fôssemos uns respeitáveis gandulos, e ria-se satisfatoriamente mas aos solavancos.
Quando me chegou às mãos, o Secónego já era um sábio intermitente, com apagões. Era um homem precocemente envelhecido e debilitado. De vez em quando desligava e isso fazia-me uma enorme impressão. Lembro-me que nessas alturas me apetecia chorar. Que injustiça para uma cabeça assim. Filhadaputice que ele não merecia, era o que eu achava e depois ia confessar-me, porque achar filhadaputice, fosse de que espécie fosse, era pecado no seminário.
Por falar em filhadaputice (e vão três), havia umas "brincadeiras" institucionalizadas para as aulas do Secónego, e até fora delas, por gozo, maldade pura, só para moer o juízo ao velhote. E os coninhas, que, borrados de medo, até respiravam pelas orelhas frente aos outros professores, que eram de gancho, pintavam a manta com o Secónego, numa risota sem fim nem compaixão, numa coragem cobarde que ainda hoje, quando me lembro, me mete nojo. Eu também não era nenhum santo - e certamente por isso (e por achar filhadaputices a torto e a direito) é que me mandaram dar uma volta -, mas, para mim, as aulas do Secónego eram sagradas. Eram as únicas em que eu não mijava fora do penico. Por pena. Quem me dera que tivesse sido por respeito.
Um dia o Secónego desligou-se o interruptor em plena aula. De repente ficou ali, sentado à secretária, olhando o nada, obviamente esquecido de nós e dele, e dizia apenas "Leia, menino", mecanicamente, apontando para ninguém, para o vazio. E nós lemos, mandei eu, e mandei também chamar quem tirasse dali o homem, com gentileza e dignidade. Porque eu mandava (e por isso me fizeram a folha). Lemos: três ou quatro de nós, uns atrás dos outros, passando a Selecta de mão em mão, Vaiamos, irmana, vaiamos dormir nas ribas do lago, u eu andar vi a las aves meu amigo. E lemos a cantiga até ao fim e voltámos ao princípio, uma e outra vez, numa lengalenga interminável, e tanto fazia quem lesse, eram as minhas ordens, mas que lesse bem, com expressão, porque eu sentia que o som das nossas vozes aprumadas apaziguava a alma cansada e ausente do velho professor. E ele merecia.
Depois levaram-no.

O Secónego tinha uma casa creio que à borda da estrada que sobe da cidade de Braga para o Bom Jesus, a cota baixa. Padres mais novos diziam-lhe, no gozo: "Ó Secónego, que pena, uma casa tão bonita, e quem por ali passa de carro só lhe vê o cume". E ele: "Pois, mas isso é à ida, menino. À vinda, nem o cume vê, hi! hi! hi!"...

(Quando acompanhava o seu próprio corpo, o que era cada vez mais raro, o Secónego sabia mesmo muito sobre os antigamentes de Fafe, que era o que mais me interessava, e eu regalava-me a ouvi-lo. O Secónego, assim chamado, era o cónego Arlindo Ribeiro da Cunha (1906-1976), autor, entre outras obras, de "A Língua e a Literatura Portuguesa" e de uma "Gramática Latina" que chegou à sétima edição, tendo participado como colaborador regular na Grande Enciclopédia Luso-Brasileira e na Enciclopédia Verbo. Vimaranense de São Torcato, é nome de rua em Braga. E já agora: o parágrafo anterior, imediatamente antes deste entre parênteses, deve ser lido em voz alta, como quem conta uma história, com todas as pausas tidas por convenientes, sobretudo o discurso directo da última frase. Fica melhor.)

Aqui chegados, como diria o nosso Luisinho Marques Mendes, que também é um latinista, devo informar e generalizar que, numa palavra, no seminário tive os melhores professores do mundo.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Acompanhamentos & companhia

Fiel amigo
O bacalhau é o melhor amigo do homem. Só lhe falta ladrar.

Comer bacalhau assado na brasa com batatas fritas é um escândalo, é um crime. Eu sou pela livre escolha - e também sou pelo FC Porto, embora essa parte não venha aqui ao caso -, mas há comidas que evidentemente não combinam, por mais voltas que lhes queiram dar. E bacalhau assado na brasa com batatas fritas, então, é uma catástrofe, uma calamidade. Mas eu já vi. História bem diferente seria, por exemplo, comer bacalhau assado na brasa com feijoada à transmontana. Isso, com a bela e robusta feijoada à transmontana. Comi uma vez esta esdrúxula combinação, em Fafe, propositadamente convidado, em casa do saudoso comandante Armindo, na Torralta, num almoço talvez de domingo, porque era prato de gala. Comi e gostei muito. Era tão bom! E estivemos tão bem! Porque uma coisa são os acompanhamentos, outra as companhias...

Diálogos fafenses 49

Divagando
- Divago?
- Mas para aluguel...

A Bó de Basto e o pãozinho do Senhor

Os mórreres
Sim, os víveres, evidentemente os víveres. E os mórreres?...

Foi num programa de televisão, daqueles que temperam o turismo com gastronomia. Vi que na Turquia, esse lamentável lapso da União Europeia, há um respeito muito grande pelo pão. Um respeito tão grande que bocado que cai ao chão não vai para o lixo. É apanhado, guardado e comido na refeição seguinte. Não sei se é bem assim, mas assim me foi contado na TV, e eu gostei do que ouvi, falou-me à memória.
Desconheço que influências culturais trocaram entre si Portugal e o Império Otomano, e se essas permutas foram tão longe que chegaram à bucólica freguesia de Passos, logo a seguir a Várzea Cova, quem desce, mas já Cabeceiras de Basto, propriamente à casa da minha querida avó materna. Sei é que foi neste fim de mundo que eu também aprendi a reverência pelo pão.
Na Casa do Carreiro comia-se na cozinha, à volta da lareira. Os adultos sentavam-se em compridos preguiceiros, apetrechados com uma conveniente tábua-mesa de levantar e baixar, e as crianças ajeitávamo-nos em pequenos bancos de três pernas, os mochos, obra de carpintaria simples e doméstica. Os cães também tomavam posição, anorécticos involuntários, à espera dos ossos que não havia. Levavam troços de couves, cascas de batatas, espinhas de bacalhau de quarto e era um pau.
O chão da cozinha era mesmo chão, rupestre, uma terra negra do fumo e da fuligem, dos anos e vidas de uso e das águas entornadas que lhe davam uma consistência de betão. Sim, as águas dos potes ferventes ou da banca de lavar louça, quando já desnecessárias, eram ali mesmo esparramadas, voltando a reunir-se, acho que me estou a lembrar bem, numa espécie de rego que as levava finalmente até lá fora, até ao carreiro que dava o nome à casa. Como bilhar viciado, o chão da cozinha descaía para o lado do carreiro, e tudo ajudava à limpeza. Depois era só esperar que secasse um pouco e varrer com uma vassoura de giestas apanhadas no monte. A banca era feita em madeira, velha, de pernas trôpegas, pacientemente calafetada pela gordura acumulada ao longo de décadas de serventia.
Era naquele chão que eu às vezes deixava cair o meu megalítico naco de pão, quase sempre um bom pedaço de côdea, que era do que eu mais gostava. A minha avó, mansamente, para que o meu avô não se zangasse comigo, dizia apenas:
- Apanha o pão. É pãozinho do Senhor. Dá-lhe um beijinho e já o podes comer...
E eu acreditava. Apanhava o pão, beijava-o e comia-o, com todo o respeito, como se estivesse na igreja a comungar. Até parecia que me sabia melhor.
Curiosamente, o meu avô nunca se zangou comigo. Ele, que tinha um zangar tão fácil com toda a gente...
Na nossa casa, em Fafe, a minha mãe insistia nestes ensinamentos. Dizia-nos, a mim e aos meus irmãos, que o chão não suja, que o beijo purifica, que não se pode estragar pão, é pecado, porque há muita gente com fome, pessoas mais pobres do que nós. E se o pão ficava intragável e tinha mesmo de ir para a estrumeira, só depois de um beijinho de adeus, porque, exactamente, era pãozinho do Senhor.
Em minha casa também não se estraga pão, não se estraga nada. E, se se estraga, estragado fico eu.
Não sei de onde veio esta ideia antiga, se estará mesmo ligada à fé, à religiosidade popular, ao pão que é o corpo de Cristo. Acredito mais que era sobretudo a pobreza a defender-se, consciente da importância do pão na mesa, o pão que, ontem como hoje, era a única fartura, a última fronteira para a fome. O respeito pelo pão era o respeito pela fome. E ninguém respeita tanto a fome como os pobres.

Por causa do pão, fui muitas vezes à merda. E gostava. Ir à merda, naquele tempo e naquelas circunstâncias, era satisfatoriamente adequado. E necessário. A Bó mandava-me com uma telha à procura de poios de bosta fresca, que depois servia para vedar a tampa do forno onde se cozia a broa. Eu passava sempre uma temporada das férias grandes na aldeia e ir à merda era o meu modesto contributo para que tivéssemos pão à mesa. Isso e, às vezes, ir à fonte buscar água, coisa de "menina", só para se rirem de mim.
Para a aldeia ia-se na carreira da "Empresa", que saía de uma grande garagem à beira da Igreja Matriz, mesmo em frente à Rua do Assento. Nessa enorme garagem também se construíram carros para a Marcha Luminosa das Festas da Vila, "um espectáculo de luz, cor e som", mas isso é assunto que não vem ao caso. Era desengonçada e cinzenta a carreira. Cheirava mal, espevitava enjoos. Ia-se com o nariz enfiado em meio biju para não gomitar e mesmo assim gomitava-se - falo por mim. Ia-se na carreira até Várzea Cova, e ali terminava a estrada, acreditem no que eu digo: o mundo acabava mesmo em Fafe, basta pensar também na antiga linha do comboio. Dali, depois do cu tremido, violentamente tremido, já só faltavam mais cerca de cinco quilómetros a pé, em monte de sobe e desce, fizesse sol ou diluviasse, certa vez até passando a vau o ribeiro que a força de um inverno estoura-vergas desencaminhara e transformara em rio violador de margens. Chegávamos então à aldeia propriamente dita, como nunca na vida lhe chamámos. Era Basto. Freguesia de Passos, concelho de Cabeceiras de Basto, mas simplesmente Basto, para nós.

A minha avó Emília, que era pequerricha e bondosa com um anjo, e era um anjo, fazia uma broa escura, muito saborosa, que se mantinha fresca durante dias e dias. Naquela maré, o pão era o principal alimento dos portugueses. O pão e o vinho, como fazia questão de frisar, de forma propositadamente ambígua, a propaganda salazarista. Por ordem expressa de Salazar, beber vinho, naquela altura, era "dar de comer a um milhão de portugueses", e o patriótico e honrado povo de Passos podia não saber o que era bife nem tinha electricidade nem água nem estradas nem sequer caminhos decentes, sem pedras, mas sempre deu o litro para que o resto do País não passasse fome. E o resto do país já então era Lisboa.
Beber era um honesto modo de vida. Podia faltar tudo na casa da Bó de Basto, e às vezes faltava muito, mas havia sempre broa com fartura e umas imensas malgas de "amaricano" às quais eu gostava de mandar umas pescoçadas até dizer ahhhhhh!...
Em Basto, as visitas eram recebidas com malgas de vinho e aparas de bacalhau salgado e falava-se como se fôssemos galegos, e a querida Tia Margarida felizmente ainda fala. E sempre broa, sem outros mimos. O almoço era o "jentar", e o jantar era a ceia. E bebiam-se, a acompanhar, umas valentes pingoletas. Também se bebia durante a merenda, que era aquela meia dúzia de horas de sol que vai desde o "jentar" até à ceia. Bebia-se, portanto, apenas às refeições - quer-se dizer, o dia inteiro. E já agora: o almoço, assim dito, era o café da manhã. E a manhã era madrugada, com música de galos tenores e carros de bois vagarentos e deslubrificados, rabugentos. O café era cevada, feita ao borralho, numa velha chocolateira de barro e tampa tamborileira e dançarina. Que saudades tenho dessa vida e dessa idade, dessas ideias que graças a Deus me ficaram, ainda no outro dia o "dixe" outra vez ao meu tio Al Pacino, o meu querido tio "Jé".

Enciclopedista fortuita e inocente, involuntária, alma fora da geografia e do tempo, a querida Bó de Basto alimentava-nos também o espírito. Lendas, contava-as que era uma categoria. Eram lendas mansas, de embalar, metiam mouras encantadas, príncipes, penedos. Penedos de morar, lembro-me bem, e eu queria um. Eram contadas à lareira, depois da ceia, com o vermelho do fogo a bailar-nos nas caras espectrais, eu de olhos arregalados e boca aberta, uma e outra vez, como se fosse sempre a primeira. Os efeitos especiais das histórias da avó - esperta, santa sem diploma, realmente anjo sem asas à vista - foram muitos anos mais tarde copiados pelo cinema americano. Até aquele famoso jogo de sombras manipulado pela irrequieta chama da candeia, coisa extraordinária e assustadora - era das histórias da minha avó, foi aqui que Hitchcock o veio buscar. E o vinhinho aquecido ao borralho com uma maçã assada lá dentro, também, mas isso parece que os filmes não aproveitaram.
Na manhã seguinte, pela fresca, íamos à lenha ao monte. Eu e e minha avó, maravilhosa guardadora de lendas e tudo. E a Bó mostrava-me o penedo, o exacto penedo da moura encantada, a frincha de entrada, não havia dúvidas. Ainda por cima, até as lendas da minha avó eram verdade. Como poderia mentir-se acerca do pão?

domingo, 14 de dezembro de 2025

Um padre aí para as curvas

Fez todas as despesas da corrida. Quando, no fim, chegou à meta e lhe apresentaram a conta, ia morrendo do coração...

O Padre Clementino morava no seminário. Não porque fosse prefeito ou professor ou tivesse outras responsabilidades administrativas ou religiosas na instituição, mas apenas porque naquele tempo ainda não havia lares para padres velhinhos e desconsertados. O Padre Clementino não era velhinho, ainda não, avariara apenas, ninguém o reclamou e ficou por ali. Mas era uma figuraça, um ser fabuloso, um mito vivo e vivaço. Um cromo. Baixote, redondo, anafado, bonacheirão, vermelhusco de cara e sorriso gaiato, batina coçada, sebenta, amiúde carregada de nódoas, isto é, o Padre Clementino tinha tudo para ser cónego, mas, que eu saiba, felizmente nunca lhe fizeram essa desfeita.
O Padre Clementino era muito cuidadoso com a fruta, sobretudo com as maçãs. Punha-as a madurar na beira da janela do quarto minúsculo que lhe fora distribuído como reforma e só as comia quando elas estivessem satisfatoriamente podres, cheias de bolor, para aproveitar a penicilina. Por estas e por outras, o Padre Clementino tinha uma saúde que até metia impressão, havíeis de ver.
Contava-se, com o seu quê de lenda. Nas férias, pela calada da noite ou durante o horário lectivo, com a rapaziada nas salas de aula, o Padre Clementino andava de bicicleta pelos compridos e desérticos corredores do seminário. Apesar da ausência de tráfego, da via desafogada, apesar de ter os corredores só para ele, corredores largos, longas rectas sem sequer chicanas, a verdade é que às vezes o homem caía, sei lá se por falta de jeito ou apenas porque o raio da sotaina se lhe enrodilhava na corrente, não faço ideia. Caía e pronto. E pronto, não! Rectifico. Caía, levantava-se logo que conseguisse, não sei se estais e ver a tartaruga de pernas para o ar, verificava os estragos no material, que eram quase sempre nada, marcava o local do tombo com um grande sinal que ele já tinha preparado e que dizia, regra geral, "CURVA PERIGOSA!!!", nem mais nem menos, e saía dali todo lampeiro, novamente bicicletando como eminente ás do pedal. Com o Padre Clementino era mesmo assim, de categoria, tudo nos conformes. Fossem chamar tolo a outro...

Diálogos fafenses 48

Contraditório
- Mas há ou não há contraditório?
- Há, sim senhor.
- Bem. É que eu acho que...
- Calou!

Há mulheres assim, insatisfeitas

Apaixonados pelo telemóvel
Eu não percebo porque é que ele leva a namorada a almoçar. Ele também leva o telemóvel. Eu não percebo porque é que ela leva o namorado a almoçar. Ela também leva o telemóvel. Ele e ela, à mesa, ignorantes um do outro, calados um contra o outro, passam o almoço de mãos dadas. Mãos dadas ao telemóvel, ele ao dele, ela ao dela. E nem sequer ligam um ao outro.

O Dias fazia anos. E foi celebrar ao famoso restaurante. O Dias mais a namorada, e digo que era namorada porque a senhora fartava-se de chamar "ó mor" ao Dias e se lhe fosse nomeadamente esposa chamar-lhe-ia outra coisa, isso tirava-se pela pinta. O Dias mais a namorada, portanto, apadrinhados por outros dois casais amigos e cúmplices, percebia-se, de velhas aventuras pelo menos gastronómicas. Um belo grupo: seis convivas praticamente vetustos mas, é preciso que se note, em razoável estado de conservação. O Dias fazia certamente 75 anos porque não se cansava de repetir que fazia 57 e bastava olhar para ele para se catrapiscar logo a pilhéria. Imagino o forrobodó que não terá sido quando ele fez 69! O Dias vestia um impecável casaco vermelho amaranto sobremaneira alusivo à efeméride e absolutamente adequado, caso, nunca se sabe, fosse necessário, por exemplo, dar uma mãozinha ao serviço.
O Dias é que mandava, e mandava muito alto, porque ele, avisou, é que ia pagar. Mandou vir Alvarinho, "para começar", e encomendou três doses de bacalhau assado. Fez muito bem. Aquele restaurante prepara, de facto, o melhor bacalhau assado do mundo. Vieram duas travessas, esplendidamente servidas: uma, enorme, com duas doses, e outra, normal, com a outra dose, tudo ao mesmo tempo. Informa-se, a propósito, que uma dose de bacalhau dá para duas pessoas que comam muito e ainda cresce. Que se segue? Comeu-se e bebeu-se ali com considerável galhardia, que apetite não faltava àqueles seis, Deus os abençoe. A travessa grande ficou vazia, na travessa normal sobrou uma lasca mínima de bacalhau, da parte mais fina.
Passou o proprietário do estabelecimento, o Sr. A., na sua sacramental ronda por todas as mesas, e, à vista de tamanha limpeza, perguntou, como sempre faz questão de perguntar, satisfeito e simpático: - O bacalhauzinho estava bom?...
Que sim. "Excelente!", "Uma maravilha!", "Não podia estar melhor!", "Fantástico!", "Divinal!" - disseram todos à uma mas cada um à sua. Todos, menos a namorada do Dias, que se batera ferozmente com a dose singela e pediu licença para falar à parte, perante o evidente embaraço e os maldisfarçados safanões dos outros cinco, inclusive o Dias, que a mandava calar, mas sem efeito.
- Sou muito franca! - começou ela. - Eu não digo o que não é, só para agradar, e o meu bacalhau estava deslavado, desenxabido... - sentenciou.
O Sr. A. encaixou, pediu desculpa, explicou, que isto, com as toneladas de bacalhau que ali se demolham semanalmente, às vezes pode acontecer, porque o bacalhau é um material muito ingrato de trabalhar, só na mesa é que se lhe pode tirar a prova dos noves, mas tudo se resolve e ia mandar servir uma nova posta, oferta da casa, e não se fala mais nisso.
Que não. Que não era preciso, que estava tudo muito bem, ela é que tem a mania, atiraram os outros, manifestamente envergonhados. Mas o Sr. A. insistia. E eles, que não. E o Sr. A., que sim. E eles, que não. Que sim. Que não. Que sim. Até que o Dias, reassumindo corajosamente o controlo da mesa e da situação, sugeriu, como quem faz um favor à casa, que só se fosse uma dose de costelinha, em vez da posta de bacalhau...
E sugeriu muito bem. Porque aquele restaurante também prepara, de facto, as melhores costelas assadas do mundo. E de borla, então nem se fala. Pois vieram as costelinhas, desapareceram num lampo, as batatas fritas também, e toda a gente acabou lambendo os beiços. Toda a gente menos a namorada do Dias, que continuava inconsolada, lamentosa, protestando agora derivado aos ossos. Isso, as costelas tinham osso, eram ossos praticamente, ossos rodeados por um pouco de carne, como, por definição, devem ser as costelas, gastronomicamente falando, mas a senhora decerto confundiu costelas com costeletas, sei lá eu, e ainda bem que Deus não se enganou no tempo de Adão e Eva. Em todo o caso: as coisas são como são, e a verdade acima de tudo, as costelas tinham osso, doa a quem doer. E sendo a namorada do Dias a pessoa franca que é, não podia realmente deixar passar em claro um escândalo de semelhante dimensão.

sábado, 13 de dezembro de 2025

Like an angel

Canta como um anjo. Toca como um anjo. Dança como um anjo. Dorme como um anjo. Dizem. E eu digo: felizes os que já viram um anjo a cantar, a tocar, a dançar ou a dormir. Eu nunca vi, e por isso ainda hoje não percebo a comparação.

As bages

O escalador
Diziam que era o melhor escalador do Tour. Mas a verdade é só uma: passaram-lhe para as mãos um robalo, e ele nada, entregaram-lhe um rodovalho, e ele nicles, deram-lhe até para experimentar um chicharro - aliás chucharro, se dito em Fafe -, e ele sem saber que volta dar-lhe. A montanha parira um rato. Escalador? Ele era mais douradinhos com cubinhos de queijo...

Passou-se assim. Empratei o jantar da minha sogra: uma posta de bacalhau cozido com três dedos de altura por um palmo de comprimento, um ovo aberto ao meio, cinco batatas médias partidas em quartos, um dilúvio de azeite e duas pingas de vinagre branco, como ela gosta. A Mi colocou-lhe à frente aquela reprodução dos Himalaias em tamanho natural, e a minha sogra, naquela altura ainda nos seus resplandecentes 88 anos, mas mal-humorada por princípio e por inegável prazer, como sempre, resmungou: - Hoje não há umas vagenzitas?...
Não havia. Era segunda-feira e à segunda-feira cá em casa é assim, bacalhau, batata e ovo, sem outros matadores, uma tradição que eu quero crer que trouxe de Fafe, da casa da minha mãe. A minha sogra limpou o prato em menos de cinco minutos, mas sob protesto, que ficou devidamente registado.

Vagem, neste caso, é feijão-verde. Ou, melhor dito, vage, palavra reconhecida nos dicionários. Ou, melhor dito ainda, bage, à nossa moda. O vocábulo bage, pronunciado em fafês correcto, isto é, "baija", também queria dizer mentiroso ou mentirosa, aldrabão ou aldrabona - "és muito baija". As bages, posso esclarecer, eram ao almoço de quarta-feira para uma pessoa, isto é, para a minha sogra, com pescada regularmente fresca, que eu ia buscar à saída do mar, quase de madrugada. E outra coisa: com bacalhau, a minha sogra, que vai agora nos 93 e continua em forma, bebia um fundinho de vinho. Diz que é dado: bacalhau, portanto vinho. Mas dessa tradição eu não sabia. Para mim, vinho ia com tudo.

Sabença, senhor abade!

Salomão
Salomão era muito rico e muito sábio. Ordenou a construção do Templo de Jerusalém e mandou cortar um bebé ao meio. Depois fugiu para o Brasil e entrou na telenovela "O Astro".

No tempo em que havia padres em Portugal, Fafe tinha um senhor abade. Uma vez por semana, o nosso senhor abade descia a minha rua de terra e tílias para ir dizer missa na capela de ricos da Casa do Santo Velho, e a minha mãe mandava-me ir ter com ele para lhe pedir sabença. Eu interrompia os deveres da escola primária e ia a correr, todo contente. Fazia fila atrás dos outros miúdos todos e, quando chegava a minha vez, lá dizia, com o respeito que me fora ensinado, "Sabença, senhor abade!", beijando a mão branca que me era estendida. O senhor abade fazia-me uma pequena festa na cabeça, com a mão que tinha de vago, e respondia-me "Deus te abençoe, meu filho", que era o que eu queria ouvir. O senhor abade seguia o seu caminho e eu tornava a casa num sino. Acreditais que aquilo é das recordações mais felizes que guardo da minha infância? Podeis acreditar, porque é verdade!
O senhor abade cheirava bem, a tabaco e perfume. Andava sempre de batina e, no Inverno, usava uma capa negra revoante que parecia de filme de espadachins. Com o correr dos anos, o senhor abade subiu a senhor arcipreste, pendurou a sotaina e começou a sair à rua de fato preto e cabeção de gola alta, passou a cumprimentar-me de mãozada e fizeram-no senhor cónego, uma desfeita, no meu modesto ponto de vista. Cónego Leite de Araújo. Era um homem elegante, distinto, culto, bom e pobre. Dava. E tinha um sorriso. Era um ser humano certamente com defeitos e extraordinário. Eu admirava-o, queria ser como ele quando fosse grande, e por isso fui para o seminário, contando, aliás, com a seu empenho pessoal. Dei em nada, mas exclusivamente por minha culpa, minha tão grande culpa. Ele era sobretudo um tipo decente. E foi meu amigo. Não sei se Fafe tem a contabilidade em dia com a sua memória.
No tempo em que havia padres em Portugal, o senhor abade de Fafe tinha consigo ao serviço da paróquia, para além do padre Adélio, que tocava órgão, ensaiava o orfeão e era professor de Música, o nosso senhor abade, dizia, contava com o apoio de dois jovens coadjutores, palavra que eu então não sabia pronunciar mas que me fazia rir, porque imaginava que, com um título assim, aqueles dois eram padres de acender e apagar. Tanto quanto sei agora, apagaram-se quase todos os que por lá passaram. Apagaram-se como padres, quer-se dizer. Tiveram muitos filhos, foram muito felizes e casaram, geralmente por esta ordem. Em todo o caso, a esses já eu não beijava a mão, mas pedia sabença. Tínhamos isso combinado. E eu ganhava o "Deus te abençoe" que me dava tanto jeito.

No tempo em que havia padres em Portugal, não havia Paula Bobone. Por isso o beija-mão era uma coisa empírica, efectiva e, haverá quem diga, pouco higiénica. Porque o beijo era mesmo beijo e não a mariquice do beijo de faz de conta, a "simulação de beijo" recomendada pela etiqueta da treta. Eu pedia sabença com beija-mão integral também ao meu avô e à minha avó da Bomba e ao meu avô e à minha avó de Basto, gente de trabalho que tinha as mãos como calhava quando eu lá esparramava o reverencial ósculo. Sim, seria talvez pouco higiénico, mas era verdadeiro e sentido. E ainda cá estou.
Durante toda a minha vida pedi sabença. Ao meu pai, à minha mãe, ao meu padrinho, à minha madrinha, aos meus tios e às minhas tias. Até às tias chegadas à família por casamento, que no princípio achavam aquilo um bocado estranho, mas que depois se habituaram e creio que gostam. Aos poucos fui desfazendo a corruptela, passei pela "sabênção" até chegar ao que peço há anos: "a sua bênção". É verdade, continuo a pedir a bênção à minha mãe e aos meus tios e tias, alguns apenas um pouco mais velhos do que eu. E não é só por respeito ou porque me ensinaram em pequenino. Eu acredito nas bênçãos. E por falar nisso: sabença, senhor abade!

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Flûte de Portugal

O Três Marias, o Casal Garcia, o Campelo, o Vercoope, o Magos e até o "champanhe", doméstico ou de alterne, eram à taça, prova rainha. Agora deu-lhes para o flûte. Ou flauta. Pfff...

Ora batatas

Para coser
Nas batatas para coser recomenda-se o uso de linha da marca Corrente, a famosa linha universal para costura da Coats & Clark. Sempre que possível, à cor.

Antigamente as batatas eram batatas, e isso chegava. Pelo menos em Fafe era assim. Batatas. Eram batatas para todo o serviço. Batatas unidas, iguais perante a lei, indiscriminadas, batatas universais. Vinham em imponentes sacos de 50 quilos, de camioneta, geralmente entregues à porta e depois arrastados para dentro. Actualmente as batatas são apartadas, rotuladas, segregadas, apontadas a dedo - nos minis, nos supers, nos hipers, nos macros e nos falsos pomares de esquina: embora não consigam acertar, chamam-lhes batatas para fritar, chamam-lhes batatas para cozer, chamam-lhes batatas para assar. E até faz jeito agora pelo Natal: olho para o saquinho maricandeiro, vejo "para cozer", e sei logo que são para fritar. Ou assar...

A invenção do pecado original

O fim do Inferno é mau para o negócio
Evidentemente o Inferno não existe. O Papa Francisco tinha razão quando o declarou, em Março de 2018, e se calhar ouviu-me ou leu-me antes, não sei quando nem onde. Mas a Igreja - que se apressou a desmentir o chefe, dizendo que ele não disse o que disse - não pode admitir semelhante franqueza: porque o Inferno é a bomba atómica do catolicismo. Sem Inferno, o que é que a Igreja em sotaina tem para ameaçar ou dissuadir os seus fiéis? "Olhai, amai-vos uns aos outros", algo assim? Seria de rir, se não fosse obsceno. Para além disso, o fim do Inferno é mau para o negócio.

Era o baptizado de uma querida sobrinha, bebé, na Igreja Nova, em Fafe, já lá irão três décadas. Era dia de festa. Dia de sol, generoso, aquele sol de Fafe, aberto, puro, claríssimo, a cheirar a vitela assada e, evidentemente, a sabão amarelo. Mas. Não sei porquê, talvez só para estragar o ambiente, o padre estava particularmente endiabrado, embora ainda fosse manhã, e à beira da pia, logo quem entrava, no lado esquerdo, rodeado por nós todos, padrinhos e família, resolveu embirrar com a criança de meses, coitadinha, acusando-a de ser uma perigosa pecadora derivado ao princípio da Bíblia, mas que ali, com uma pouca de água, ficaria de folha limpa, graças a ele e sorte a dela, e inferno acima e inferno abaixo e pecado original acima e pecado original abaixo. Isso, no pecado original é que o raio do padre batia e tornava a bater, como se batesse no ceguinho.
Zanguei-me. Olhei fixamente para o padre, varei-o com os olhos, fiz-lhe cara feia, abanei que não e que não com a cabeça, ele percebeu que eu lhe estava a dizer "com pecado esta criancinha, este anjinho recém-nascido?, mas alguém nasce já com pecado?, estamos na Idade Média ou quê?", percebeu e mudou de assunto.

Anselmo Borges, padre e professor de Filosofia, escreveu um interessante artigo de opinião no DN, em Dezembro de 2023. Para mim, as opiniões de Anselmo Borges são sempre interessantes e amiúde inspiradoras, e o artigo em questão, cuja leitura na íntegra recomendo, chamava-se "A Imaculada Conceição, o pecado original e o sexo".
Deixemos a virgindade de Maria, o casamento e o sexo para segundas núpcias e centremo-nos no meu ponto. Ora bem. Eu não lhe encomendei o sermão, mas o mestre da Universidade de Coimbra ensina, a dado passo do seu texto: "Hoje, o pecado original é inconcebível, concretamente, por causa da evolução: o ser humano aparece no quadro da evolução, o que implica então a seguinte pergunta: quem foram os "primeiros pais", colocados no mundo sem pecado e que depois pecaram, transmitindo esse pecado a todos, de tal modo que todos nascem em pecado de que só o baptismo os pode libertar? Ainda conheci mães que viveram verdadeiros dramas interiores porque os seus bebés tinham morrido sem o baptismo. Mas não. Todo o ser humano é concebido sem pecado".
O baptismo, afirma Anselmo Borges, "não é para apagar o pecado original, que não há; os pais baptizam os seus filhos, porque, desejando o melhor para eles, querem que eles entrem na Igreja, comprometendo-se a educá-los na fé como discípulos de Jesus."
É fácil de perceber, parece-me. Porque, se "toda a criatura recém-nascida vem de Deus", ainda seguindo o raciocínio do padre-filósofo, e eu acredito que vem, como pode alguém nascer com pecado, com defeito? E pronto, já somos pelo menos dois a pensar assim.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Diálogos fafenses 47

Eu não lhe admito, senhor deputado!
- Eu não admito que o senhor deputado diga que eu disse isso, senhor deputado!
- Então o que é que o senhor deputado disse, senhor deputado?
- Eu disse aquilo, senhor deputado.
- Aquilo, senhor deputado? E só agora é que o senhor deputado diz isso, senhor deputado?
- Eu não admito que o senhor deputado diga que eu disse isso, senhor deputado!

Por una cabeza

Cavalinho da chuva
Mandaram-no tirar o cavalinho da chuva, e ele tirou. E no entanto estava um rico dia de sol.

"Por una cabeza" é talvez o velho tango mais conhecido dos tempos modernos. A sua versão instrumental é tocada a torto e a direito nas séries de televisão e no cinema, não só pela sua indiscutível beleza e porque entretanto caducaram os respectivos direitos autorais, mas sobretudo depois de ter sido utilizada com o sucesso que se viu no filme "Perfume de Mulher", de 1992, que valeu a Al Pacino o Óscar de melhor actor. Eu trago-o no ouvido desde o tempo do Belinho e do seu acordeão, no palco do salão dos Bombeiros de Fafe, lá pelas décadas de 60 e 70 do século passado. A autoria deste tango é muitas vezes erradamente atribuída a Astor Piazzolla, o mestre do bandoneon. Na verdade, o tango "Por una cabeza" foi composto em 1935 com música de Carlos Gardel, o mais famoso dos cantores de tango da história, e letra de Aldredo Le Pera.

Epístola aos Travassolenses

A desobra de Deus
Deus criou o homem. E o homem inventou a religião. E talvez não houvesse necessidade...

Paulo de Tarso, ou Saulo de Tarso, também conhecido como Apóstolo Paulo, São Paulo Apóstolo, Apóstolo dos Gentios ou simplesmente São Paulo, nem sempre foi o santo que hoje se pinta. Tem atrás de si um passado, como todos nós, mas um passado mais negro do que o da maioria de nós. Saulo era um fariseu radical, impiedoso, feroz, um zelota que se dedicava sem descanso à perseguição dos seguidores de Jesus. Era portanto do piorio, mau como as cobras, o diabo em pessoa, e só amansou e ganhou juízo quando Deus Ele mesmo lhe saiu ao caminho, dando-lhe um valente safanão e cegando-o temporariamente, a ver se ele aprendia. E ele aprendeu.
Assim miraculosamente convertido, Paulo resolveu pôr a correspondência em ordem e desatou a escrever missivas. Para além da algumas cartas com destinatário individual, sempre para homens, que fique devidamente registado, epistolou aos Romanos, aos Coríntios, aos Gálatas, aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, aos Tessalonicenses e eventualmente aos Hebreus. Catequizou também os Gentios, e quando eu descobri a parte nova da Bíblia, em pequenino, contada pelo senhor abade, julgava que os Gentios eram um povo assim como os Helvéticos ou os Teutónicos, naturais e residentes num país de que era proibido ou eventualmente pecado dizer o nome, por indecente e má figura.
Aprendi muito, depois, no seminário. Tive bons mestres. Agora ao caso, tive até um famoso especialista em "St Paul'ssss Cathedraaaal", o cónego Azevedo, ou "Ticha", por ser professor de Inglês, realmente um pândego, excêntrico e musical, bailarino de sobrepeliz e crónico mestre de cerimónias da Sé de Braga, figura que a minha memória tola às vezes confunde injustamente com o cónego Rodrigo, ou "Pipa", derivado à própria forma, outro cromo mas menos dado, também antiquíssimo e, no que me diz respeito, ineficaz professor de Latim. Já agora: o cónego Azevedo era o cónego Manuel Rodrigues de Azevedo (1915-1988) e o cónego Rodrigo era o cónego Rodrigo Guilhermino Ernesto de Carvalho. Cá está, eu e os cónegos...
Os nomes na Bíblia sempre me fascinaram. Tanto que eu pensava (e ainda penso) que se São Paulo fosse hoje e se por acaso resolvesse escrever aos portugueses só se dirigiria, arrisco dizer, aos Albicastrenses, aos Egitanienses, aos Escalabitanos aos Brigantinos, aos Freixenistas ou Freixienses ou Freixonistas ou Freixonitas, gente assim de nome fidalgo, ainda que indeciso, e nunca abaixo disso. Aliás, creio que os fafenses, padecendo de tão simples onomástica, ficariam de fora. Os fafenses assim entendidos de um modo geral, mas já não diria o mesmo, deixa-me cá ver, em relação, por exemplo e em concreto, aos Serafonenses ou aos Travassolenses que também podem ser Travassoenses, que se apresentam com gentílicos realmente de categoria, com gabarito bastante para merecerem a atenção do apóstolo e bem capazes de integraram a sua lista de contactos favoritos. E eu parece que estou a ouvir nas capelas e igrejas por esse mundo fora, palavra de honra, "Leitura da Segunda Epístola de São Paulo aos Travassolenses. Meus irmãos..."
E Melquisedeque? Ai o que eu gostava do nome Melquisedeque! E Ponto e Bitínia e Capadócia e Antioquia, nomes assim de perlimpimpim, de números de circo de Natal. Antioquia que me fazia sonhar aventuras das mil e uma noites, lamentando embora que São Paulo, que por estas bandas terá pregado o seu primeiro sermão, nunca tenha mandado uma epístola na volta do correio, uma sequer para amostra, aos simpáticos e desamparados Antioquenses.
Já no que respeita aos sodomitas, habitantes de Sodoma, continuo a achar que ficaram com a pior parte da fama. Os gomorritas, que eram outros que tais, safaram-se, vá-se lá saber porquê, e nem constam nos dicionários, quanto mais! A História nem sempre é justa, e parece-me que a Bíblia, às vezes realmente tão atrevida, devia ter aqui uma palavra a dizer.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Diálogos fafenses 46

O velho tinha razão
- Estou um velho - disse o velho.
- Não está nada - disse a visita.
- Um caco - disse o velho.
- Como novo - disse a visita.
- Já não duro muito - disse o velho.
- Inda vou primeiro - disse a visita.
- Dói-me tudo - disse o velho.
- É da idade - disse a visita.
- Ai que eu morro - disse o velho.
- Morre nada - disse a visita.
- Morro, morro - disse o velho.
- Não, não morre - disse a visita.
- Morro - disse o velho.
E morreu. Até porque já estava a ficar chateado.

O casal Carter e o Casal Garcia

Homem de famílias
O casamento, para ele, era tudo. Aliás, tinha dois. Ao mesmo tempo.

Os americanos têm muito orgulho no casal Carter, Jimmy e Rosalynn, que estiveram casados durante 77 anos. Jimmy Carter e Rosalynn Smith Carter protagonizaram o matrimónio mais duradouro de toda a história presidencial dos Estados Unidos. E os americanos estão todos contentes, porque acham sempre que são os maiores. Os americanos nunca vieram a Fafe, ao Peludo, no tempo do Sr. Avelino, o nosso "Hoss". Eles não sabem que, em Portugal, temos o Casal Garcia, since 1939, é só fazer as contas, já lá vão 86 anos, a caminho dos 87...

A morte da bezerra

De vaquinha
De vaquinha para o emprego? No campo, isto é, na lavoura, estou como o outro, faz algum sentido, é a ordem natural das coisas. Agora, na cidade não me parece nada prático. Nem higiénico, verdade seja dita.

Antigamente as tragédias aconteciam com mais assiduidade, ao contrário do que se apregoa agora por aí, e nem é preciso recuarmos ao terramoto de 1755 ou ao lamentável dia, no ano de 1128, em que o jovem Afonso Henriques bateu na mãe, Dona Tarexa. Não. Basta centrarmo-nos na segunda metade do século passado, anos sessenta, setenta e pelo menos oitenta. Morria uma vaca e era uma tragédia. Ora, as vacas, naquele tempo, morriam bastante, e nem estou a falar de morte natural, coisa de matadouro e talhos, abates e choupas, facalhões e esquartejamentos. Morriam sem querer, as vacas, isto é, esturricadinhas num palheiro que se incendiou sem mais nem menos, afogadinhas ou irremediavelmente escangalhadas no fundo de um poço sem guarda, atropeladas ao atravessar a estrada sem olhar para os dois lados, ou, até arrepia, abertas ao meio por um raio, que também acontecia. E era uma tragédia.
Era uma tragédia porque a vaca, o boi ou o bezerro eram a riqueza única do pobre lavrador de microfúndio, e Portugal era sobretudo isso. As vacas, permito-me generalizar assim, davam leite, faziam estrume, lavravam e aravam o campo, puxavam a água, transportavam as colheitas, ajudavam nas obras domésticas, acartavam pedra, erguiam muros, tinham a força de trabalho de um rancho de homens e mulheres, procriavam e, como se ainda fosse pouco, emprestavam o seu próprio calor ao jugo que as dominava, para, a seguir, talhar trasorelhos, eventualmente acabando vendidas na feira ou feitas em bifes, em todo o caso transformadas em indispensáveis notas de conto, e aí tudo começava outra vez.
Era desta maneira em Fafe, terra de pequenos e remediados agricultores, nas aldeias à volta, principalmente, mas também no centro da vila mesmo, ainda rural e fértil. A única diferença era que em Fafe a vaca era baca e o boi, em raros momentos de preciosismo linguístico, era voi. Tirante essa irrefutável idiossincrasia, Fafe era como o resto do Norte rural: em cada casa, uma, duas vacas, quer-se dizer, uma junta, quando muito, para fazer parelha no carro, turinas às vezes, leiteiras em alguns casos. As vacas eram a fartura, o dinheiro em caixa ou debaixo do colchão, a garantia de vida dos nossos persistentes lavradores. As vacas eram-lhes tudo.
Agora imagine-se que lhes morria um animal, tantas vezes o único, num desastre daqueles ou por doença fulminante e desconhecida. O gado não estava no seguro, é claro, o dinheiro da CEE ainda não tinha sido inventado e era o que faltava que alguém se lembrasse de pedir uma indemnização ao Governo. Dá para imaginar, então, o rombo? Era um prejuízo que só visto, a ruína de repente, a miséria, a fome à espreita, a vida parada, como se fosse ali o fim do mundo.
Mas não era. Podia muito bem não ser. A salvação do nosso desgraçado lavrador estava agora no peditório. Isso, no peditório, que era uma instituição. O peditório que ele fazia de aldeia em aldeia, nas ruas da vila antiga, de porta em porta, apresentando o seu triste caso, a sua tragédia, suscitando simpatias, solicitando ajuda, o que pudesse ser. Não era estender a mão à caridade, não, aquilo era um mecanismo de solidariedade, automaticamente accionado. Fazia parte, em Fafe.
Notáveis lá da terra, cidadãos de honra reconhecida, dois ou três, incluindo geralmente o presidente da junta ou o regedor da freguesia, acompanhavam o lavrador nesta sua via-sacra, atestando com documentos e tudo a veracidade do infausto acontecimento e as dramáticas condições em que ficaram o azarado homem e respectiva família.
E as pessoas davam. O que podiam. E é curioso, porque as pessoas de dentro de casa eram, regra geral, ainda mais pobres do que o homem desesperado que lhes batia à porta a pedir. Davam, e não se fala mais nisso. Os modestos donativos ficavam assentes numa folha azul de 25 linhas, registados, consultáveis, até chegarem, conta certa, para comprar uma nova cabeça de gado, nem mais um tostão, mas nunca mais ninguém queria saber do assunto.
Terão acontecido umas quantas burlas, trampolinices das antigas, isso certamente, vacas que afinal eram virtuosas senhoras, lavradores que nunca puseram os pés na terra e presidentes da junta da colaça. Mas também terão sido assim criadas verdadeiras segundas oportunidades de vida para pessoas honestas, trabalhadoras, merecedoras, de repente atingidas pela tragédia a sério, e que sem a ajuda dos outros, sobretudo dos seus generosos camaradas de pobreza, nunca mais se levantariam. E Fafe era também isto.

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Diálogos fafenses 45

Relativamente a essa matéria
- Relativamente a essa matéria, senhor deputado, devo esclarecer que não tenho nada a acrescentar relativamente a essa matéria.
- E relativamente à outra matéria, senhor primeiro-ministro?
- Relativamente à outra matéria, senhor deputado, devo esclarecer que não tenho nada a acrescentar relativamente à outra matéria.
- Muito obrigado pelos esclarecimentos, senhor primeiro-ministro.
- Ainda bem que nos entendemos, senhor deputado.

O do Órfo e o do Tininho

Mal passado
A questão é muito simples: será insulto chamar bife ao camone?

Não sei quantos talhos há actualmente em Fafe, mas devem ser muitos e certamente vendem de tudo, ovos, azeite, queijo, vinho, peixe congelado, feijão, ananás enlatado, bebidas frescas, carros em segunda mão, raspadinhas e talvez carne. Os talhos são todos assim, hoje em dia, lojas de conveniência, parecem padarias. Tempos modernos. Antigamente os talhos eram apenas talhos, mas instituições de referência, barómetro e reflexo do nível de vida local, raros e valiosos como ourivesarias. Tínhamos dois.
O Talho tem lugar cativo, especial, nas minhas memórias fafenses cheias de antonomásias. O talho era o Talho, o largo era o Largo e a avenida era a Avenida, assim, sem mais nada, não havia que enganar, toda a gente sabia que aqueles nomes bastavam, eram intransmissíveis e também geografia, e para mim ainda são. O centro do mundo era exactamente ali, construído a partir de nós.
Em Fafe, Órfão era nome próprio e dizia-se Órfo. O Órfo trabalhava no Talho, isto é, o Órfo era o Órfo do Talho, do Talho do Órfo, que realmente não se chamava desta maneira mas Talho Novo, um talho à moda antiga mas assim denominado decerto para se distinguir do Talho Avenida, do Tininho, ou dos do Souto, como então se dizia, e nem tenho a certeza se este se chamava mesmo assim, Talho Avenida, mas era na Avenida, logo no princípio, quem saía do Largo em direcção à Estação, com o Monumento pelas costas, do lado e antes do Café Avenida e quase em frente ao Martins da Avenida, portanto, estais a ver, o mais certo é que também fosse da Avenida, e se calhar nem era. 
Os do Souto eram os Barros, essa distinta família que também deu futebolistas extraordinários - Nelo, Armando, Nelito, Zeca e Fernando, irmãos, nomes grandes que digo de cor, apenas de ler e ouvir dizer, porque já cheguei tarde para os ver jogar. Mas conheci-os. E o Souto, então ainda marcado por alguns velhos castanheiros, ficava à face da estrada que desce para a Fábrica de Ferro, quem deriva para o Lombo. Era ali a casa-mãe do clã, no Souto, e eles eram os do Souto, uma das ínclitas gerações fafenses. 
O nosso Talho, isto é, o Talho Novo, era, como o deles, no centro da vila e do mundo, no Largo, mas mais puxado ao lado do Mário da Louça e do Café Império, ali no enfiamento do Fernando da Sede, do Foto Jóia, do Romeu e outros que tais, tudo gente porreira, excelentíssima, o Órfo incluído. Para a mim, que era mocico e tinha medo à mão lampeira da minha mãe, o Órfo só podia ser Senhor Órfo, por respeito obrigatório, mas a expressão assim composta parecia-me um bocado parva apenas de a pensar da cabeça para dentro, e portanto eu nunca a disse da boca para fora. Quer-se dizer. A vida em Fafe era muito simples naquele tempo, mas às vezes fazia-me confusão...
Quando a minha mãe me mandava à fressura, "um quarto", eu tinha de escalar a parede de quatro metros e meio de altura do balcão para pendurar-me na borda e ser visto lá em cima. E é curioso: quase sessenta anos passados, ainda guardo bem vivas as caras daquela boa gente, que me atendia tão bem, como se eu fosse grande, como se eu fosse rico, como se eu fosse ao bife, respeitando com reserva e elegância a nossa pobreza. Caras a que, tenho pena, não sei agora dar nomes, com excepção do Senhor Abreu, que morava em frente aos Bombeiros, do bom Senhor Beijo - Beijo de Benjamim, isto é, "Beijamim", suponho -, que era um gigante também de gentileza, e, evidentemente, do Senhor Órfo, o Talho em pessoa.

Perfume de mulher

E foi lavar-se
A velha prostituta, muito limpa e organizada, consultou a agenda, meia dúzia de linhas encriptadas em gatafunhos analfabetos, e leu baixinho, como que soletrando, acariciando as impossíveis sílabas uma a uma: - O do talho às onze, o taxista ao meio-dia, o padre às três e o senhorio às cinco. Desarriscou-os a todos, um atrás do outro, meticulosamente, com gosto, sorriu para o espelho do toucador, provocando-se, e resolveu tirar o dia. Guardou a agenda e pegou no telemóvel, vagarosamente, com requebros e biquinhos, imitando um gesto coquete que vira uma vez na televisão. Marcou encontro com a Amélia Calçuda. O espelho corou. E ela foi lavar-se.

Na minha infância e princípios da juventude lidei muito com padres. E os padres cheiravam. Isto é, tinham ou emanavam um certo e determinado cheiro. Não como o extraordinário Padre Clementino ou o Secónego, casos particulares, que cheiravam naturalmente a mofo, mas outro cheiro, doce, aperfumado, que também não era incenso nem ares de santidade ou sacristia. Cheiravam não sabia bem a quê. Aquilo intrigava-me, ainda por cima porque eu nem fazia ideia de que havia perfumes para homens, quanto mais para padres!
Que se segue? Na vasta sabedoria dos meus dez-onze anos, resolvi então que aquilo de os padres cheirarem a perfume era para disfarçar o cheiro a tabaco, como, por exemplo, o nosso senhor abade. Os padres não queriam que o povo soubesse do cigarrito às escondidas. Bem visto! Porque, naquele tempo, fumar era um pecado muito grande, praticamente ao nível do pecado da sagrada masturbação.
E nisso fui acreditando, bem-aventurados os néscios, até que um dia, espigadote e epifanado, finalmente percebi: aquilo do perfume dos padres era mas é cheiro a mulher, cheiro de convívio íntimo com mulher. E, nesse caso, Deus os abençoe...

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Diálogos fafenses 44

Eflúvios amorosos
"Cheiras a cerveja", disse ela. "Aproveita", disse ele.

Eu tive um sapo

Engolidores, há-os. Como por exemplo engolidores de sapos, metaforicamente falando, engolidores de fogo, que na verdade não engolem mas borrifam, e engolidores de espadas. Engolidores de copas e engolidores de ouros não sei, mas engolidores de paus também há-os.

Tive uma infância feliz, em Fafe, rodeado de animais de estimação, ditos agora de companhia. Tínhamos um cão chamado Rin Tin Tin, tínhamos uma cadela chamada Lassie, tínhamos um canguru chamado Skippy e até tínhamos um cavalo chamado Mister Ed ao qual nem faltava falar. Eu ia vê-los ao café, porque em casa não tínhamos televisão.
Tínhamos também um sapo. Isto é, uma vez à noite tivemos um sapo, mesmo nosso, nem foi preciso ir ao café ver televisão, se o Sr. Avelino estivesse bem disposto e por acaso a ligasse, mas não lhe pusemos nome. Ao sapo. Ao Sr. Avelino pusemos, era o "Hoss", por causa do gordo do Bonanza. Mas eu conto a história do sapo.
A porta da nossa casa no Santo Velho tinha, em baixo, junto ao chão, um bocadinho de folheta levantada, e era ali que se deixava a chave, de uns para outros, éramos pelo menos seis, como, por exemplo, à noite, quando a nossa mãe já nos dava licença de saída até às 22 horas, ao Nelo e a mim, e depois no regresso a gente metia a mão no buraco, tirava a chave, que era enorme, digna de São Pedro, há que dizê-lo, abria a porta em câmara lenta, a monumental chave de bico calado, bem oleada, e entrávamos em casa com os pés debaixo dos braços para não fazermos barulho, a nossa mãe fazia de conta que estava a dormir e portanto só de manhã é que nos acertava o passo por termos chegado às 22h01.
Acontece que. Uma noite, findo o serão, estamos à porta, e o Nelo, que é mais velho e foi sempre mais medroso, manda-me apanhar a chave. Eu meto a mão no vazio da folheta e, em vez da chave, agarro um enorme sapo que lá se tinha enfiado, filho da puta, e apanhei um susto que me ia mijando todo, estremeci-me até hoje, argh!, enchi-me de nojo, cachicha!, arranquei a mão como se a tirasse do fogo e rasguei-me na chapa ferrugenta, gani, vomitei, cocei-me antecipando verrugas para toda a vida, palavra de honra, e o caralho do sapo, como se não fosse nada com ele, saiu nas calmas felizmente para o lado da rua, caso contrário eu nunca mais entraria em casa. Entrámos, a nossa mãe a pé, à nossa espera, e a hora de picar o ponto já não interessava para nada. Levámos logo ali, por causa do sapo, da ferida, do vomitado, do barulho, quer-se dizer, do "espectáculo", que a nossa mãe não tolerava, fosse em que circunstância fosse. Tudo por minha culpa. Ainda por cima eu tinha dito "argh!" e em nossa casa, que era muito pobre, estavam terminantemente proibidas as onomatopeias, sobremaneira as derivadas dos livros aos quadradinhos, um luxo...

Os sapos à porta realmente incomodam-me. E metem-me nojo sobretudo os sapos à porta dos restaurantes ou de outros estabelecimentos comerciais. É. Como sou um bocado cigano, recuso-me também a entrar.
Os sapos às vezes são de engolir, como aconteceu com Álvaro Cunhal e o PCP na segunda volta das eleições presidenciais de 1986, para derrotar Freitas do Amaral, candidato da direita, e, só por isso, eleger Mário Soares. "Vamos ter de engolir um sapo. Se for preciso, tapem a cara [de Soares] com uma mão e votem com a outra", recomendou Cunhal aos comunistas. Para se distinguirem dos faquires, que engolem facas, os engolidores de sapos chamam-se sapires.

No velho tasco do Toninho Nacor, em Fafe, havia um sapo que era um jogo, na zona cimentada do quintal logo depois da cozinha, por baixo do sombroso caramanchão, ao lado das famosas gaiolas dos pássaros e do forno de barro que assava vitela e cozia o bolo de milho para as sardinhas. O sapo era um jogo tradicional e de taberna, um jogo de mesa em forma de armário aberto com inúmeras ranhuras correspondentes a outras tantas gavetas. Jogava-se com pequenas patelas, que se lançavam para o "armário" e cada entrada correspondia a uma certa pontuação. A boca do sapo era o máximo, se não me engano. Servia para matar o tempo enquanto se esperava pela hora da merenda e dali poderia sair também "multa" aos perdedores para próximas quartilhadas.
Sobre este interessante assunto, os sapos, apraz-me finalmente registar que o Sapo, primeiro motor de busca português, foi criado por cinco estudantes da Universidade de Aveiro, em 1995. Antes disso, mas em Penafiel, o Sapo já era um famoso restaurante de enfarta-brutos e conceituado estabelecimento de compra e venda de árbitros de futebol. Outros tempos!

Bacalhau com natas (à moda de Fafe)

Pastelaria e ordem unida
Comeu três brigadeiros de enfiada. Disse-lhes após, enquanto limpava a boca: - Informem o general que eu para a semana não venho.

Gosto muito. Bacalhau com natas. Bacalhau recheado, da parte da asa, feito por quem sabe, isto é, por mim, conversado a par e passo com um verde branco honesto e fresco. E depois, antes do café por recomendação médica, uma natinha do Lidl, a 35 cêntimos cada, para escorropichar a garrafa. Foi o que eu disse. Bacalhau com natas.

Ou por outra. Um bom minhoto, um fafense como deve ser, sabe muito bem que bacalhau recheado não é bacalhau recheado. Ou seja, o bacalhau não tem recheio nenhum. É bacalhau frito de cebolada, bacalhau delgado, as badanas ou aparas, rabos ou laterais, e nem é realmente frito, mas admitamos que frito quase refogado, com umas voltinhas que são próprias cá de cima. É o bacalhau recheado à nossa moda, recomendadíssimo sobretudo para o tempo de calor e férias, comido se possível com família e amigos à sombra de uma ramada, e o vinho a refrescar no poço. E também concordo que a coisa ficaria muito melhor rematada com dois ou três dos também nossos doces de gema, de Arões ou Fornelos, mas, quer-se dizer, assim já não seria bacalhau com natas...

domingo, 7 de dezembro de 2025

Diálogos fafenses 43

Mas com respeito...
- A menina valsa?
- Valso.
- E polca?
- Polco.
- E tuísta?
- Tuísto.
- E foxtrota?
- Foxtroto.
- E bolera?
- Bolero.
- E zumba?
- Zumbo.
- E rumba?
- Rumbo.
- E fandanga?
- Fandango.
- E vira?
- Viro.
- E tanga?
- Olha o respeito!...

O sonho comanda a vida?

Sonho. Bolinho muito fofo, de farinha e ovos, frito e depois geralmente passado por calda de açúcar ou polvilhado com açúcar e canela. Só isto. Agora: onde raio é que o poeta foi buscar a ideia de que "o sonho comanda a vida"? Se ainda fosse o pão-de-ló de Fornelos...

O segredo da Albertininha da Lameira

Natureza de conserva
Ele era um acérrimo defensor da conservação da natureza. Em lata, mas sobretudo em frasco e em plástico.

Os melhores bolinhos de bacalhau do mundo eram os da Albertininha da Lameira. Contava a lenda que estes maravilhosos bolinhos eram moldados no sovaco da prendada cozinheira, vetusta senhora, operação que lhes emprestaria aquele gosto tão peculiar e apreciado. Fafe, a vila antiga, dava-se muito a estas crenças às vezes parvas: dizia-se também, por exemplo, que os tremoços da Marrequinha da Recta eram a especialidade que eram porque a pequena vendedeira lhes mijaria regularmente durante o delicado processo de demolha.
A verdade, porém, é só uma: ainda cheguei a ver a Albertininha, numa tarde de sábado, a fazer a massa dos famosos bolinhos, de alguidar entre as pernas, junto ao fogo da lareira, na cozinha asseada e sombria, grande, nas traseiras com frente para um terreiro com galinhas, mas a história do sovaco enformador afinal era uma treta - isso posso jurar, e tive pena.
Ia-se à Lameira a cotio, de repente ou programado, em grupo, mas sempre de propósito pelos abençoados bolinhos de bacalhau da Albertininha, a seguir rematados, em ocasiões especiais e raras, à roda de uma farturenta arrozada de frango caseiro comida e bebida, conversada, com todos os vagares do mundo, no sossego na salinha do primeiro andar, mesmo por cima do tasco. E ia-se à Lameira, obrigatoriamente, "pelos 21", em pleno Agosto, dia maior das Festas em Honra de Nossa Senhora da Saúde, ou Festa da Lameira, "Lameira de Agosto" ou simplesmente Lameira, que pertence à freguesia do Rego, ou São Bartolomeu do Rego, Celorico de Basto, mas para os velhos fafenses era e é como se fosse Fafe.
Antigamente, naquele dia, "os 21", havia por lá uma valente feira de gado, e uma vez uma vaca espantou-se não sei com quê, soltou-se do sítio onde estava a guardar e correu o arraial inteiro de uma ponta a outra a espalhar o pânico e o caos em direcção à Pica, escornando e escoiceando a torto e a direito, desfazendo tendas, barracas e ornamentações, tudo em pantanas, invadindo tascos e casas sérias, saltando para cima de carros e outros veículos mais ou menos motorizados e levando à frente aquele povo todo, aflito e tolo que não sabia aonde se havia de meter, anjinhos e mordomos incluídos. Eu, muito bem entrincheirado e de barriga cheia, ri-me como um perdido. Quer-se dizer: a coisa não constava do programa, mas foi uma bonita tourada.

Cá em baixo, na vila, os bolinhos de bacalhau do Manel do Campo também eram de se lhes tirar o chapéu. E, de um modo geral, as pensões e os tascos de Fafe faziam gala de confeccionar e servir um produto, como agora se diz, fiel às origens e de altíssima qualidade. Esta tradição local creio que se mantém, em sítios como, veio-me agora a ideia à boca, o Fernando da Sede (Adega Popular). Os bolinhos de bacalhau com salada de feijão-fradinho e arroz do Fernando surpreendiam e encantavam os visitantes, e, para os da terra, eram uma esplêndida entrada para a vitelinha que haveria de vir. Mas isso, nos dias que correm, seria já refeição a pedir uma segunda hipoteca da casa.
É. Os bolinhos "de morrer por mais" são no Minho - bem o sabia e ensinava mestre Aquilino Ribeiro. Em Fafe, é claro, mas também no Manuel Padeiro e no Gaio, em Ponte de Lima e em dias sim, ou no desaparecido Conselheiro, em Paredes de Coura, no tempo do saudoso amigo Vilaça Pinto, sempre. Em sítios assim, que os havia bons e tantos, e cá em casa também nos ajeitamos, mas não servimos para fora.

Os piores bolinhos de bacalhau do mundo eram em Penafiel, num pequeno café do centro da cidade. Três mesas, dois jornais, um balcão sumário e a simpatia imensa do dono. Os bolinhos eram tão maus, tão esplendidamente maus, que eu nunca falhava quando por lá passava a horas de aperitivar. Saía da auto-estrada de propósito. Metia o pé no degrau da entrada, ao baixo, e saltava logo meia dúzia de pedras de gelo directamente da arca frigorífica para a fritadeira de óleo cansado, que é "Para o senhor, para serem fresquinhos". Eu, que já era da casa, agradecia a deferência e reservava-me. Cinco minutos, não mais. As pedras de gelo vinham para a mesa a ferver e a pingar, agora em forma aparentada com a dos verdadeiros bolinhos de bacalhau, queimavam-me a boca e antes assim, que enganavam o paladar. Não sabiam ao bacalhau, que não tinham, mas também não sabiam à batata, que eram só. Escangalhavam-se ao toque. Eram extraordinariamente intragáveis e eu comia-os. Já disse: o patrão era gente boa e tinha três mesas e dois jornais diários no estabelecimento. Sei dar valor às coisas verdadeiramente importantes. Para apagar o incêndio, bebia uma taça de um obscuro vinho branco de cápsula que sabia a remédio, mas acho que não me fazia bem.
A minha mulher e eu descobrimos o cafezinho por acaso e, em diferentes ocasiões, levei lá três ou quatro amigos. Para provarem "os piores bolinhos de bacalhau do mundo", era o que lhes prometia, e os amigos depois concordavam comigo. Aqueles bolinhos nunca me deixaram ficar mal. Mereciam um prémio.
Até porque nos abriam horizontes. A seguir, íamos à Pita Arisca, em Lousada, comer talvez o melhor cabrito assado do mundo.

Os de Lisboa, lisboetas de gema ou simpatizantes, têm a mania de chamar "pastéis de bacalhau" aos bolinhos de bacalhau. Néscios! É como os pândegos dos franceses chamarem "fromage" a uma coisa que toda a gente sabe que é queijo e foi inventada em Ponte do Lima. Aqui atrasado, o Miguel Esteves Cardoso escreveu sobre bolinhos de bacalhau no jornal Público. O bom do Miguel nasceu na capital, estudou em Inglaterra e confessa que só muito recentemente é que descobriu a sério o Minho. Também ele chama "pastéis de bacalhau" aos bolinhos do mesmo, mas é o Miguel, está desculpado.
O jornal é que não. Lembro-me de uma vez em que o cultíssimo periódico da Sonae reuniu "dois painéis de jornalistas" da casa e "especialistas em gastronomia", um painel em Lisboa e outro painel no Porto, para provarem bolinhos de bacalhau comprados fresquinhos "em diferentes pastelarias nas duas cidades". A notícia dizia que o resultado foi uma desilusão completa, um desconsolo: as amostras recolhidas reprovaram todas.
Mas de que é que estariam à espera os ilustres paineleiros do Público? Bolinhos de bacalhau em Lisboa e no Porto? E em pastelarias e cafés, percebi bem? E porque não arroz de grelos, pastelões de petinga, pataniscas, bolo com sardinhas ou caldo de nabos? Valha-nos Deus! Panikes e croissants com chocolate, isso é que os dois comités de sábios deveriam ter provado...

sábado, 6 de dezembro de 2025

Diálogos fafenses 42

A menina dança?
- A menina dança?
- Não, muito obrigado.
- Não tem nada que agradecer.
- Mas eu faço questão.
- Coimbrã?
- Oliveira do Hospital, mais concretamente.

Uma cunha ao Pai Natal

E muitas propriedades
Ai que saudades que eu tenho dos bons velhos votos de um feliz Natal e um ano novo cheio de propriedades. Era outra riqueza, fartura a perder de vista...

Aviso com tempo. No Natal de 2024 ofereceram-me catorze livros. Está certo: gosto muito de ler e parece que toda a gente que gosta de mim sabe que eu gosto muito de ler. Contra isso, nada. Mas, valha-me Deus, eu também preciso de peúgas, cuecas e pijamas, como as outras pessoas, e, ainda por cima, estou na idade...
Posto isto. Hoje é Dia de São Nicolau, que dizem que é o Pai Natal, mas não é. Porque São Nicolau, isto é, São Nicolau de Mira, também conhecido como São Nicolau de Bari, existiu mesmo no século III, foi bispo e é padroeiro da Rússia, da Grécia, da Noruega e de Beit Jala, na Palestina. É patrono dos guardas-nocturnos na Arménia e dos ajudantes de missa na cidade italiana de Bari. E é também padroeiro dos estudantes, como muito bem se aprende aqui ao lado em Guimarães, mas nunca trabalhou para a Coca-Cola. Já quanto ao Pai Natal realmente, não quero com isto escangalhar certas e determinadas crenças infanto-comerciais, mas, devo confessar, eu prefiro o Menino Jesus!

Ao menino e ao bolacho

O predestinado
O seu aniversário calhava todos os anos no mesmo dia do mesmo mês. Ele achava que era um bom augúrio.

A bolacha maria, torrada ou não, apareceu tarde na minha vida. Bolacha era luxo que não entrava lá em casa, e o mais parecido que a nossa mãe nos dava em pequenos era broa ou biju, e o biju já era um mimo. O caso só mudou de figura quando nasceu o nosso Lando. O Orlando é o mais novo de quatro irmãos, decerto por isso teve direito a mordomias de cuja existência os três anteriores nem sequer suspeitávamos, e as bolachas vieram com ele.
Entre outras alcavalas, o Landinho até fazia anos, coisa extraordinária, enquanto a nós só nos era permitido ficarmos mais velhos, somarmos dias, que remédio e a seco. Ao menino, a nossa mãe organizava-lhe uma festinha de aniversário, havia convidadozinhos, e do pequeno lanche constavam, só me lembro disso, umas curiosas sandes de bolacha maria com marmelada dentro, tipo oreos mas melhores e de fabrico caseiro. Eu, já espigadote, metia a mão sorrateira e rápida à passagem pela mesa, e foi assim que ficámos a conhecer-nos pessoalmente, eu e elas. As bolachas. Que estavam contadas, para mal dos meus pecados...
Mas não era de bolachas que eu queria aqui falar. É de bolachos. E o bolacho, faço deste já notar, é pitéu absolutamente indispensável, muito mais do que mero ornamento, nuns rojões à moda do Minho que se pretendam com todos os matadores. O bolacho é, versão curta e grossa, uma espécie de pão cilíndrico feito com farinhas de trigo, milho e centeio, a que se junta sangue de porco, fermento, caldo de carne, pimenta e cominhos. Depois de levedada, a massa é cozida em água temperada com sal, salsa, folha de laranjeira e louro. Cumprida a cozedura, o bolacho é cortado em rodelas e frito em pingue. O bolacho pode também chamar-se farinhato, pilouco, bica e, principalmente, beloura.
Mas também não era deste bolacho que eu queria aqui falar. É do bolacho de trigo. Do pão de cantos. Do pão de quatro cantos. Do trigo de Ovelhinha. Do pão de Padronelo. Desse. Esse fantástico pão, duro como cornos, que era vendido porta a porta em Fafe por umas senhoras que, dizia-se, vinham de Amarante. As abençoadas senhoras traziam enormes cestas à cabeça e dentro das cestas, carinhosamente envolto em toalhas de linho, o precioso pão. No dia da feira, às quartas, por Cima da Arcada, diversos tipos de pão regional, incluindo o infalível bolacho, eram vendidos também por um senhor que vestia um avental de peito, comprido até aos pés, impecável de branco e de limpeza. O bolacho, um pão de longa duração que a minha querida avó de Basto guardava com todos os cuidados e também toalhas de linho na caixa de madeira que era o cofre e o frigorífico das coisas valiosas e boas numa terra por onde Jesus Cristo ainda não tinha passado e portanto não havia electricidade. Assim acondicionado, o pão aguentava-se bem uma semana ou mais e só era comido com o matinal café, que era cevada, aos domingos, feriados e dias santos. De resto, broa, que era o pãozinho do Senhor.
Leio agora que o bolacho é de Ovelhinha porque teve a sua origem no lugar com aquele nome, Ovelhinha, na freguesia de Gondar, Amarante. E de Padronelo porque decerto será sobretudo nesta outra freguesia amarantina, Padronelo, que hoje em dia ele é produzido e comercializado. Quanto a bolacho, assim dito, é-o não sei porquê.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Adeste infideles

O dia de amanhã
"Nunca se sabe o dia de amanhã", dizia o pai constantemente ao filho. E repetia e repetia e repetia. "Nunca se sabe o dia de amanhã". Cansado de ouvir o pai, o filho ofereceu-lhe um calendário.

Sabeis: quando se acorda com aquela canção, aquela música na cabeça que nos embala o dia inteiro? Isso, hoje. Acordei com Adeste fideles na cabeça. Acordei e olhei para o rádio-relógio-despertador da mesinha-de-cabeceira - quatro da manhã. O habitualmente circunspecto rádio-relógio-despertador riu-se de mim, que eu bem vi. Fui à cozinha beber um copo de água morna e conferir o calendário - 5 de Dezembro de 2025. O calendário riu-se de mim, tenho provas. Caramba! Já nem o Natal é quando um homem quiser...

A peita

Os ausentes
Sim, ele gosta muito de presentes. Mas os ausentes falam-lhe mais ao coração...

Peita. Dádiva ou promessa com o fim de subornar, suborno, antigo tributo pago pelos que não eram fidalgos - é o que dizem os dicionários. E peitar, seguindo esta linha de raciocínio, será, então, subornar com peitas, corromper, aliciar com dádivas e promessas. Talvez. Mas a peita, naquele tempo, ao menos em Fafe, era mais que um simples suborno e muito menos que um simples suborno. Até podia ser pagamento de favores, reais ou imaginários, simulacro de cunha, mas ia para além e ficava aquém disso. Não era corrupção tal como hoje a entendemos e usamos, era, isso sim, uma manifestação quase folclórica de uma certa subalternidade social mansamente aceite e assumida pelo pé-descalço, resquícios decerto medievais do tal imposto popular, numa gratidão imensa e sem sentido pelos de cima. Enfim, sabujice e lambe-botismo em todo o seu esplendor, os pobres davam aos ricos, não sei explicar de outra maneira, e assim funcionava o regime.
O meu avô, por exemplo. O meu avô da Bomba gostava muito de ser doente e adorava ir ao Porto "ao especialista". Era uma coisa constada. Íamos "ao especialista" como se fosse uma romaria, uma excursão familiar na catrel de três velocidades do meu padrinho Américo. Íamos, mas todos com a perfeita noção da solenidade do momento e da compostura que se exige numa ida "ao especialista" e ainda por cima ao Porto. Era um cardiologista na Rua de Sá da Bandeira, que por acaso também era médico do poeta Pedro Homem de Mello, que nós conhecíamos da televisão a preto e branco, e eu ficava muito emocionado por estar ali à beira daquela grande figura, na sala de espera, a cores, mas evidentemente sem abrir o bico, para não destoar e às tantas até "incomodar" o meu avô. O meu avô da Bomba, e este era um ponto de que toda a família estava avisada e o resto de Fafe também, "incomodava-se do coração".
Quando ia "ao especialista", o Bô da Bomba levava-lhe sempre um bom quilinho da melhor vitela de Fafe, traço seleccionado e cortada pelas sábias mãos do Sr. Abreu do Talho, embrulhado em imaculado papel costaneira e impecavelmente atado e laçada com fio norte de qualidade superior. Era a peita, o regalo, é claro que o meu avô não podia ir ao Porto com consulta marcada e aparecer "ao especialista" de mãos a abanar...
As peitas aos médicos eram, aliás, aparentemente consensuais e obrigatórias, e creio saber que hoje em dia ainda há quem por aí as pratique. E não se pense que se tratava de um pagamento de consulta em géneros. Não. Era um pagamento em cima do pagamento em dinheiro vivo, pagas e não bufas, um extra, uma gratificação, uma gorjeta de mãos largas, sei lá bem por que carga de água. Em Fafe havia um médico muito famoso por receber peitas, tantas e tantas, material de luxo, belas peças de caça, dúzias de ovos caseiros, salpicões, presuntos, cabos de cebolas, rasas de milho ou feijão, frangos, capões, coelhos, cabritos, mortos e vivos, e não sei se também porcos, peitas, tantas e tantas, dizia eu, que o senhor doutor aceitava alegremente e depois vendia, inclusive aos açougueiros locais, tudo passado a patacos. Isso, o médico rico fazia negócio com as esforçadas oferendas dos seus doentes pobres, tinha até uma "criada" destinada quase exclusivamente a esse ofício. Toda a gente sabia do cambalacho, na vila e nos arredores. Alguém de bolsos mais abonados andava com desejos de uma perdiz de escabeche, precisava de um coelho-bravo para dar ao patrão, queria um pato à moda antiga para uma tainada das tais, não tinha nada que enganar, era só ir ao médico...

A peita, para ser considerada e aceite como tal, deveria ser praticada de chapéu na mão e espinha vergada, balbuciando-se no acto da entrega, reverente e agradecido, muitos "obrigados!", diversos "desculpe por ser pouquinho!", um singelo e envergonhado "semos probes!", e já à porta, sempre andando às arrecuas, um derradeiro e definitiva "desculpe"...

O Natal era uma época especialmente porreira para as peitas. Consoada não é só o banquete de Natal, a reunião da família à mesa, na noite de 24 para 25 de Dezembro. Consoada é também a prenda que se dá a alguém pelo Natal, dias antes, e esse uso da palavra era então muito comum em Fafe.
Nas férias de Natal, era costume os meninos da escola primária levarem a consoada, isto é, a peita, a casa das professoras ou professores. Uma oferta simples, chocolates, rebuçados, alguma mercearia essencial, como se fosse para o Banco Alimentar, um gesto bonito, dir-se-ia, se não estivesse desde logo ferido de uma profunda injustiça social. Havia aqui, no exercício da peita escolar, qualquer coisa de insensato, algo de paradoxal, uma gritante subversão de valores - afinal, os miúdos éramos sobretudo filhos de operários, caixeiros de baixo salário, pequenos lavradores aflitos, tarefeiros incertos, proletários de uma forma geral, e os professores, apesar do infinito desprezo de Salazar, eram professores, quer-se dizer.
Havia professoras ou professores que levavam a mal e tomavam de ponta os alunos que não lhes dessem nada. Havia professoras ou professores que aceitavam simpaticamente o mimo e entregavam às crianças uns docinhos para a troca. Havia professoras ou professores que agradeciam muito o gesto, mas pediam aos meninos que voltassem a levar as coisinhas para casa, onde faziam muito mais falta. E havia o meu professor e a esposa do meu professor.
O meu professor, melhor dito, o meu excelentíssimo professor era o Toninho da Cafelândia, o Professor Correia, que morava, se não me engano, na Rua dos Combatentes da Grande Guerra, ali logo nas redondezas do Jardim do Calvário e do Tribunal. Fui lá uma vez levar a peita. Talvez um quilo de açúcar, do melhor, talvez um quilo de arroz, do melhor, ajeitados não em cartuchos normais, cinzentos, grosseiros, mas nuns cartuchos coloridos, alegres, finos, eventualmente até com fitinhas. A minha mãe caprichou.
Toquei a campainha e fui acolhido pela esposa do meu professor. Perguntou-me quem é que eu era, não precisei de explicar muito, sabia de nós, da nossa situação, a senhora agradeceu sinceramente os meus dois cartuchos, pegou neles com um sorriso, pediu-me para esperar um bocadinho à porta e foi lá dentro. A casa tinha umas escadas. A esposa do meu professor voltou num lampo e, quando voltou, vinha mais carregada do que quando foi. Trazia nas mãos, para me dar, um saquinho com rebuçados e um saco com quatro cartuchos dentro, talvez arroz, talvez açúcar, mas eram outros os cartuchos e a dobrar, para eu entregar à minha mãe e que lhe dissesse muito obrigado e que lhe mandava cumprimentos.
A boa senhora solucionara facilmente o paradoxo. E eu, todo contente, aprendi a lição da gentileza e da generosidade, do respeito pela dignidade do pobre que dá.

Por outro lado, convém não esquecer, o assunto aqui era a peita. A peita, de uma forma geral. A peita, isto é, a mama, a grandessíssima mama.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Diálogos fafenses 41

O sem-abrigo e o com-abrigo
O com-abrigo abeirou-se misericordioso do pobre sem-abrigo, coitadinho, levantou-lhe o cobertor que lhe defendia a cara e a dignidade e disse "Bom dia". O sem-abrigo respondeu estremunhado "Boa noite", passava um pouco do meio-dia e, pensei eu, teria sido melhor princípio de conversa se se tivessem entendido acerca de "Boa tarde".
Via-se que o com-abrigo tinha tarimba, tirei-lhe logo a pinta, era um bom-samaritano nas horas vagas e por conta própria.
- Então, companheiro, como é que vai isso? - encarrilou o com-abrigo.
- Ia bem, obrigado, mas esteja quieto no cobertor... - resmungou o sem-abrigo, agarrando-se com unhas e dentes ao calorzinho que lhe roubavam.
- É assim mesmo, companheiro, positivismo acima de tudo, nada de pensamentos suicidas - acrescentou o com-abrigo.
- Pensamentos quê? - interrogou o sem-abrigo.
- Suicidas, companheiro, pensamentos suicidas, vontade de se matar... - explicou o com-abrigo.
- Eu conheço-o de algum lado? - inquiriu o sem-abrigo.
- Não nos conhecemos de lado nenhum, companheiro, mas estou aqui para o ajudar, limpe a cabeça de pensamentos suicidas... - disse o com-abrigo.
- Deixe então aí um ou dois euros, para um copinho de vinho - pediu o sem-abrigo.
- O importante é afastar os pensamentos suicidas, companheiro, não se deixe levar por eles... - disse o com-abrigo.
- E o eurito?... - quis saber o sem-abrigo.
- Os pensamentos suicidas podem ser-lhe fatais, companheiro, é preciso resistir... - disse o com-abrigo.
- Ouve lá - rebentou o sem-abrigo -, porque é que só falas dessa merda? Eu não quero morrer, quero dormir, caralho! Morre tu, se gostas tanto! E, já agora, vai chamar companheiro à puta que te pariu...

E foi assim. Palavra de honra se não foi exactamente assim, ou pelo menos podia ter sido.

O caldo de couves puxa ao sentimento

Entre o equívoco e o paradoxo
O Natal é um paradoxo, alegra e deprime, e é também um equívoco: marcado para o dia 25, toda a gente sabe que é na noite de 24. 

O Natal comove-me. Ou por outra, comove-me, mas não é geral. As árvores com luzinhas bêbadas, indecisas, as músicas tão tlim-tlim-tlam, tão jingle bellso almoço ou jantar com os velhos amigos de uma vez por ano, o generoso pacote de meio quilo de esparguete no saco do Banco Alimentar à porta do supermercado, os sorrisos de orelha a orelha, as camisolas patetas, as bandoletes com hastes de renas, os votos de "boa continuação", os programas de televisão marca Uaitecristmas, o frio aconchegante, a serra da Estrela finalmente com neve mas fechada, o circo, tanta palhaçada, a mensagem de Sua Excelência o Senhor Presidente da República, as cerimónias religiosas, tão ricas, quase sempre tão hipócritas, a comida, a comida, a comida, tanta comida, tudo ajuda à missa da minha sazonal e imensa comoção. E o vinho também.
Vou-vos contar. No Natal de há meia dúzia de anos, mas é como se tivesse sido ontem, lembro-me de que até já estava a ficar agoniado de tanto me comover. Resolvi, para desenfastiar, fazer um caldo de couves. Isso, um caldo de couves à moda antiga, isto é, à nossa moda. Foi na noite de 25 exactamente. Uns olhinhos de couve-galega, feijão vermelho, batata mal desfeita com o garfo, uma tirinha de toucinho salgado, um cibo de vaca, azeite com fartura natalícia. A panela foi à mesa de gala, fumegante como a velha locomotiva que arrastava o comboio até Fafe nos tempos em que eu não me comovia por tudo e por nada e em que a minha memória ainda tinha futuro.
Foi o nosso jantar. O caldo estava iglantónico, poderoso, de repetir e lamber os beiços. Repeti e lambi. O calor, o sabor, o odor, o estupor, quero dizer, o estupor do caldo caiu que nem ginjas, sossegando-me o estômago mais a alma. E, como flashback de filme foleiro, tornou-me à casinha do Santo Velho, à roda da mesa com os meus irmãos, a minha mãe, talvez a Mila também, o meu pai e o Menino Jesus que ainda não tinha nascido. Tornou-me à Bomba e ao Lombo, na sacramental visita pós-jantar, para o petisco e a pinguinha da ordem. Tornou-me à minha avó de Basto, na cozinha de chão de terra da Casa do Carreiro que cheirava sempre ao meu caldo. Quem me dera lá, sem a sonsice da idade, sem o tempo a cair-me das mãos, quem me dera lá! Quem mos dera cá. E de repente topei-me de olhos humedecidos, turvos, uma vagarosa lágrima descompondo-me escandalosamente a cara. De cabeça enfiada na malga, desculpei-me da boca para fora que era do vapor, e pensei: caralho, estás a chorar por causa de um caldo de couves, não tens vergonha? Ainda por cima, este tem carne...
No ano seguinte fiz canja e não chorei. É curioso: a canja não puxa ao sentimento.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Apetecia-me bater-lhes

É um dos maiores problemas dos nossos supermercados: põem a cortar bacalhau uma malta muito gira e muito porreira que nunca na vida comeu bacalhau e nem sabe de que árvore é que aquilo vem. É a geração H. Agá de hambúrguer. Resultado: as pessoas levam para casa postas de bacalhau cortadas com as dimensões de um selo dos correios.

Era um jovem casal, ela e ele, provavelmente espanhóis, mas duvido que fossem galegos. Eram, em todo o caso, pessoas bonitas e de aparente bom gosto. Podiam ser meus filhos, coitadinhos, podiam ser meus netos - essa é que é a verdade. Iam ao mesmo que nós, a Mi e eu, ao melhor bacalhau assado do mundo, bacalhau gordo e demolhado no ponto, com o tempo certo na brasa, servido com deliciosas batatas cozidas, coberto com cebola crua, sumarenta, e azeitonas, pretas e agrestes, e generosamente regado com um azeite e alho tão extraordinário que só apetece dar banho ao pão. Para cumprir todos os meus cânones, falta-lhe o ovo cozido, é certo, mas essa é uma falha que eu relevo com todo o gosto há mais de trinta anos.
Fomos servidos rapidamente, nós e eles, na mesa em frente, até porque o famoso restaurante funciona apenas por marcação, regra geral. Estava tudo a correr tão bem, e sem mais nem menos, ainda hoje me custa a acreditar, aconteceu o impensável: o rapaz e a rapariga, isto palavra de honra, mandaram vir uma travessa de batatas fritas para acompanhar o bacalhau, desfazendo-se por completo das batatas cozidas, que nem provaram e decerto nem sabiam o que "aquilo" era...
Portanto, bacalhau assado na brasa com batatas fritas, às tantas traziam ketchup de casa, eu já não quis ver mais e também não seriam os primeiros. Tão jovens, tão belos e tão tolos. Tão ainda em idade de aprender. Podiam ser meus filhos, podiam ser meus netos. Bacalhau assado na brasa com batatas fritas, eles! À minha frente! E de repente, Deus me perdoe, apeteceu-me bater-lhes...

Eram pobres e tinham dono

Virtudes teologais
Fé, esperança e caridade. A fé move montanhas. A esperança é a última a morrer. E a caridade tem dias.

Antigamente a caridade tinha dia certo e era um descanso. Pelo menos em Fafe. Às sextas-feiras, vamos supor, os pobres manquelitavam de porta em porta pedindo "uma esmolinha por alma de quem lá tem". Os pobres da parte de fora da porta eram uns desgraçados muito rotos e muito sujos e muito aleijados, e eram assim de propósito para se distinguirem dos pobres da parte de dentro da porta, que já tinham em cima da "cristaleira" umas moedinhas negras separadas e preparadas para a função. Éramos todos pobres, dum e doutro lado da porta, uns mais, outros menos, e, à falta de quem governasse por nós, em Lisboa ou mesmo na Câmara, e porque ainda não havia "Europa", nada mais nos restava senão sermos uns para os outros. Às sextas-feiras, vamos supor. O resto da semana, não.
(A "cristaleira" tinha sido comprada em terceira mão e paga em honradas prestações mensais.)
Naquele tempo os ricos tinham os seus próprios pobres, privativos, pessoais porém transmissíveis. Os pobres eram deixados em herança. Ter pobres por conta era, pelo menos em Fafe, inequívoco sinal exterior de riqueza. Os pobres eram exibidos, bastas vezes à porta da igreja, como gado preso à argola do tasco em dia de moscas e feira semanal. Para o senso comum, quantos mais pobres alguém tivesse, mais rico era. Os pobres eram, portanto, uma medida de riqueza e uma necessidade da Nação para que os ricos prosperassem. Quantos mais pobres Portugal tivesse e quanto mais pobres fossem os pobres portugueses, mais ricos seriam os nossos ricos, e isso certamente era bom para o Produto Interno Bruto.
Isto é: a pobreza convinha-nos, aos pobres. A pobreza era o progresso da Nação. O regime ensinava-nos desde os bancos da escola que felicidade era sermos pobres mas honrados e termos as unhas das mãos sempre limpas. E isso deixava-me cheio de pena dos ricos, infelizes, principalmente dos ricos muito ricos, que, ainda por cima, tinham as mãos sujas.
(Os ricos, pelo menos os de Fafe, não davam a roupa nem o calçado que já não lhes serviam. Vendiam a roupa e o calçado, a pronto, aos pobres da parte de dentro da porta. Vendiam. Os pobres da parte de dentro da porta, passados alguns meses de uso, davam aos pobres da parte de fora da porta a roupa e o calçado que tinham comprado a pronto aos ricos. Davam. Às sextas-feiras, vamos supor. O resto da semana, não.)
Graças a Deus, isto era só antigamente.

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Para acabar com os mamões

Amigo do peito
Ele tinha 36 anos e gostava muito de mamar. A namorada despediu-se do emprego para poder amamentá-lo de duas em duas horas. Palavra de honra. Veio nos jornais.

É um homem que nunca reage a quente. Nem a frio. Isto é, mantém as decisões em banho-maria. Pesa os prós e os contras, mede os assim assins e pondera os vice-versas, segue ventos e marés. A ele, ninguém o apanha em falso. Toda a vida andou por lá, e é ali que quer ficar. Foi comunista, militou no PS e aderiu ao PSD, passou pelo Livre e pelo Bloco de Esquerda, experimentou a Iniciativa Liberal, o ADN e o PAN, liderou uma lista de "independentes" e actualmente concorre pelo Chega. Para acabar com os mamões!

Lostras, sostras e ostras

Lamparinas bem dadas
Quando, no meio da discussão e dos encontrões, lhe ofereceram um par de lamparinas, ele aceitou de bom grado e até aproveitou para deitar abaixo a ligação à EDP.

Talvez por ter nascido em Fafe, e pobre, e nos finais da década de cinquenta do século passado, conheci primeiro as lostras e as sostras e só mais tarde é que soube das ostras. Não estou a queixar-me da minha sorte, é apenas uma confissão que eu precisava de fazer há tantos anos, e agora, dito isto, fiquei em paz. Na verdade, "as ostras", "as lostras" e "as sostras" até são expressões aparentemente parónimas - ora tentai lá pronunciá-las, uma e depois a outra e depois a outra, a ver se não soam à mesma coisa -, mas resultam muito diferentes no que significam.
Comecei naturalmente pelas lostras, ou não fosse eu filho da minha mãe, que nos chegava a roupa ao pêlo com assinalável pertinácia. Bufardos, sopapos, bofetadas, bofetões, galhetas, lamparinas, estampilhas, lostras para todos os efeitos, aprendi isso tudo à minha custa, mesmo antes de entrar para a escola, que em nossa casa era uma fartura pelo menos nesse departamento e eu era muito bom para sinónimos.
Sostras, eu também sabia. Desde pequenino, isto é, desde que tive noção. Sostras. Mulheres sujas e preguiçosas, badalhocas, regra geral o que elas se chamavam umas às outras quando disputavam homem ou coisa parecida. Putas, putéfias, vacas, vaconas, cabras, coirões, coironas. Fazia parte do léxico fafense metido a cotio, era o fafês no seu melhor. Aliás, a palavra sostra, para mim, já naquela idade, trazia com ela qualquer coisa de sexual, de lascivo, de atesoante, dito simplesmente. E, a esse respeito, é preciso que se note que eu, apesar de padreca, fui aquilo que se diz um rapaz precoce, outra palavra que por acaso também me arrebitava sobremaneira, mas eu, não desfazendo, ficava incomodado por tudo e por nada.
Já ostras, o mais parecido que eu lhes conhecia por aquela altura, sem sequer ter ideia dessa estranha ligação, eram sardinhas fritas com arroz de tomate, e que bem que me sabiam. Assim pessoalmente, as ostras foram-me apresentadas teria eu 24 anos, em Bordéus, França. Casado de fresco, cheio de vaidade, fui lá mostrar a minha bela mulher às minhas queridas tias São e Dores, que não puderam vir ao nosso casamento. Levei também a minha mãe e o meu irmão Orlando e merendeiro para um regimento, fomos de comboio, de wagons-lits, num expresso do oriente para remediados e cagarolas, isto é, no Sud Expresso, e tivemos todos um Natal bem porreiro.
Foi por aqueles gloriosos dias que eu finalmente provei as ostras, essa requintada francesice, assim achava, vinham nuns cestinhos muito jeitosos, deram-me a ferramenta para a mão, aprendi a abri-las sem desastre e a comê-las de imediato só com um esguicho de limão, coisa tão boa, coisa tão mar, em Bordéus, França, com champanhe evidentemente, o que eu andei para ali chegar, 24 anos de vida, e as ostras eram de Setúbal, Portugal, estava lá escrito, se calhar até foram comigo no comboio, é preciso ser-se muito parolo, eu. E a verdade é só uma: as ostras eram realmente tão extraordinárias como sardinhas fritas com arroz de tomate, nem mais nem menos, sardinhas compradas na Mocha, com sítio à beira da estrada, em frente ao tasco do Paredes e ao lado do Zé Manco, dividindo praça com os tremoços da Marrequinha e as castanhas assadas da Maria Barraca, consoante a época. Foi logo ali, no estrangeiro, que eu percebi pela primeira vez a inegável superioridade moral das nossas sardinhas e a sorte que tenho por ter nascido em Fafe naquele tempo e, ainda por cima, no Santo Velho.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Uma feira que era três, talvez quatro

O homem-crocodilo
Despedido pela Lacoste, o homem-crocodilo fez-se à vida e foi com a mulher vender nas feiras. Mas bastante contrafeito.

A feira de Fafe era três. Um três-em-uma, três feiras numa só, pague uma e leve três. A feira de Fafe era um pacote, uma pechincha. Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três! Tínhamos a Feira propriamente dita, no terreiro do Largo, actual Praça 25 de Abril. Tínhamos a Feira das Galinhas, na hoje chamada Praceta Egas Moniz. E tínhamos a Feira do Gado, na Feira Velha, agora dita Praça Mártires do Fascismo. As três eram apenas uma, coincidiam no mesmo dia, quarta-feira, como ainda hoje, a dispersão geográfica não passava de um pormenor, mas de vanguarda. Se fosse hoje, dir-se-ia que era uma feira em três pólos. Ricos tempos! Tínhamos muito, tínhamos tudo, uma fartura. De feira estávamos nós bem servidos, faltava-nos era dinheiro para as compras.
Era. A feira de Fafe era três, talvez quatro. Em bom rigor, a feira começava antes da feira, logo por Cima da Arcada, numa espécie de antecâmara dedicada às artes performativas e da propaganda, espaço semanalmente ocupado pelo vendedor de banha da cobra, pelos milagres e mezinhas da santa Alexandrina de Balasar, pelas pacientes Testemunhas de Jeová e, ocasionalmente, pelo Rei das Limas, que, no entanto, era praticamente da casa, como fazia questão de apresentar-se. E havia também um sítio especial para o pão, diversos tipos de pão regional, doméstico, de Fafe e das redondezas até Amarante, especialidades vendidas por duas ou três senhoras e por um senhor que vestia um avental de peito, comprido até aos pés, impecável de branco e de limpeza.
Descidas as escadas, no Largo, os ourives instalavam-se debaixo dos arcos da Arcada ou logo em frente, hoje sítio de esplanadas e medíocres programas de televisão de aluguer. Parecia que o ouro do mundo inteiro se juntava ali, em cima de bancas de madeira forradas a flanela negra, as nossas ourivesarias Martins e Pérola também montavam estendal, e eu ficava a imaginar aqueles ourives todos com os bolsos dos casacos cheios de pistolas e espingardas caçadeiras, e sobretudo com uns tomates muito grandes dentro das calças, porque de outro modo não podia ser. Eles andavam assim carregados de terra em terra, quer-se dizer, sem seguranças, sem carrinhas blindadas, sem telemóveis, sem ligação directa à polícia, sem satélites, sem drones, nada, só o patrão e talvez um empregado de preferência solteiro, sem filhos e eventualmente borrado de medo, os dois enfiados na velha carripana e a rezar o terço. Isto é, estavam mesmo a pedi-las...
No terreiro da feira era o costume. Hortaliças, legumes, verduras, frutas, talvez secção de louça e panelas. E muito povo. A feira instituíra-se local de encontro semanal, mais do que a missa de domingo, e aqui, zona de cozinha e mesa, eram sobretudo mulheres. Outra vez descendo, para a Feira Velha, aí eram principalmente homens, lavradores em maioria, com as carteiras a abarrotar de notas de conto. À roda da escola fascista cujas pedras deram, por milagre, em capela, vendia-se e comprava-se gado. Bois, vacas, bezerros. E alfaias agrícolas, e jugos e sogas, e pipas e dornas, e latoaria, e fatos e samarras e capotes e croças e chapéus e bonés e sapatos e botas e galochas e chancas e socos. E nos tascos das redondezas, isto é, na vila inteira, apanhavam-se pielas de caixão à cova. Lá dentro, na escola, era um cheiro a bosta que se não podia, mas o regime realmente também não se recomendava...
Gado de mais pequeno porte, digamos, frangos, galos, galinhas, garnisés, pintainhos e coelhos das mais variadas origens e díspares feitios, isso era mais cá para cima, na Feira das Galinhas, larguinho de terra virado para a Igreja Nova e onde se mercavam também ovos, farinhas, feijão e milho, saquinhos de sementes, tudo colocado no chão estreme, em carreirinhas ordenadas, honestas, sem truques para enganar o freguês. Fazia-se comércio directo. Havia quem levasse à feira galinhas de patas atadas, debaixo do braço forte ou enfiadas em cestas de vime com a crista de fora, e trouxesse para casa meia dúzia de sacos de feijão e grão, sacos de pano, sossegados no açafate muito bem tenteado na cabeça com rodilha.
A Feira das Galinhas funcionou também, transitoriamente, no Largo Ferreira de Melo, entre os sanitários do Jardim do Calvário e as traseiras com laguinho do posto da Polícia de Viação e Trânsito. E, lembro-me agora, chegou a haver um mercado de sábado, mas só pelas manhãs, parece-me, no nosso Santo Velho, outro terreiro. Era uma feirinha.
Há muito despejada do Largo, a feira de Fafe andou entretanto com a tenda às costas, deu as suas voltas, até assentar arraiais na hoje chamada Praça das Comunidades, feita de propósito para a função. E ali está de armas e bagagens, creio que bem instalada e para ficar. Mas é só uma...