quinta-feira, 24 de abril de 2025

Aristeu, do Olimpo à Loja Nova

Aristeu era filho de Apolo com Cirene. Foi criado por ninfas na Líbia, aprendeu a coalhar leite e tornou-se pastor, sendo adorado como protector de caçadores e rebanhos e considerado o inventor da apicultura e do olival. É representado como um jovem pastor com um cordeiro, mais ou menos à maneira do nosso São João, mas de manjerico e pirilau ao léu.
Cansado de ser um deus menor, Aristeu aprendeu a contar pelos dedos e dedicou-se às matemáticas, adoptando o astuto cognome de o Velho - Aristeu, o Velho -, isto já para aí trezentos anos antes de Cristo ter vindo ao mundo. Mais de vinte séculos depois meteu-se no comboio e estabeleceu-se em Fafe, com a Loja Nova, extraordinária catedral de mercearia fina e grossa, drogaria e bebidas várias, alfaias agrícolas, verguinha e outro material de construção, louças e todo o tipo de ferragens, que ocupava quase um quarteirão inteiro, ao lado do Peludo e em frente à Casa da Cera, com a Feira das Galinhas atrás. O Senhor Aristeu da Loja Nova, fafense excelentíssimo, era um vivaço. Gentil, elegante, conservador e culto, molageiro com as mulheres, às vezes, talvez em raros dias de inventário e balanço, vestia bata de cotim no trabalho, imitando o irmão João, o Joãozinho da Loja Nova, e tinha sempre uma boa piada na ponta da língua. A Loja Nova morreu de velha.

O Sr. Pimenta, isto é, o Bataman

O homem-tocha
O homem-tocha mudou de residência. Chamam-lhe agora homem-mealhada.

Chegava a altura dos pontos e eu baixava à enfermaria. Academicamente falando, os pontos eram aquilo a que hoje, suponho, ainda se chama testes, e a enfermaria já então era o que é - enfermaria. Atenção: eu dava parte de doente não porque fosse mau aluno, mas porque era muito bom preguiçoso. Para além dos percevejos na cama e do tradicional concurso de punhetas logo pela manhãzinha e a meio da tarde, o melhor que a enfermaria tinha era a sineta a tocar lá fora para os outros, a comida "de dieta" e o enfermeiro propriamente dito, que na verdade era barbeiro. O Sr. Pimenta, se bem me lembro. O Sr. Pimenta era enfermeiro suponho que por usucapião, porque tinha a bata branca de barbeiro, trazia os termómetros no bolso, via as febres, passava raspanetes e dava-nos uns comprimidos de faz de conta que, se não me engano, eram sobras do Laboratório Militar. Os comprimidos serviam para tudo e não faziam nada. As febres eram forjadas na fricção com os cobertores - chamava-se àquilo "manipular a febre" ou apenas "manipular". Para além disso, o Sr. Pimenta dava também muito mal injecções, provavelmente de água destilada. E eu contava anedotas.
Figura mítica, consagrada instituição da velha Tamanca e autoridade local, espécie de regedor interno, o Sr. Pimenta era um homem gordo, de andar pesado e lento, periclitante. A cada passo parecia-me que ia cair redondo para um dos lados, consoante a perna curta que avançava. O Sr. Pimenta tinha idade para ser meu avô, achava eu, e uma barbearia montada como se fosse a sério, no pequeno corredor mesmo em frente à capela e ao lado da sala de aulas que era também a "loja" onde os padres nos vendiam os "objectos", mas cortava tão mal o cabelo como os tosquiadores fardados que mo raparam sem dó nem piedade, uns anos depois, quando dei entrada nos Comandos. O Sr. Pimenta era barbeiro porque tinha a bata branca de enfermeiro.
Quer-se dizer: o Sr. Pimenta era a bata.
E poderia ter sido, quem sabe, o Homem-Bata, isto é, o Bataman, se, derivado aos seus múltiplos poderes e polivalentes predicados, a Marvel lhe tivesse deitado a mão em devido tempo. Infelizmente a Marvel não recruta em Portugal, e é o que perde.
Apesar de ter tudo para ser um super-herói, o Sr. Pimenta era só Sr. Pimenta para mim, porque a minha mãe tinha-me ensinado a tratar os senhores por senhores. Para o resto da rapaziada do seminário, meninos bem ou matarruanos, o Sr. Pimenta era o Pimenta, ordens de cima, nada de confianças. Paradoxalmente. E os outros funcionários ou acoitados, os que nos serviam no refeitório, certamente lerdos mas filhos de Deus como a gente, eram "criados". Criados. Ordens de cima. Já nem falo de educação - a caridade cristã tem definitivamente muito que se lhe diga.

Portanto, chegava a altura dos pontos e eu baixava à enfermaria. Um ano, o padre Vilar, o bom padre Vilar, não quis que eu ficasse sem nota a Religião e Moral. Visitou-me, fez-me duas ou três perguntas que valeriam o ponto, perguntas do mais elementar possível, só para que eu fizesse boa figura. Perguntou-me:
- Quem é Deus para ti?
- Deus é o meu pai - respondi.
- Todos somos filhos de Deus - atalhou o padre.
- Mas eu sou mais, porque sou órfão - defendi-me, com uma não ensaiada porém oportuna lágrima no canto do olho que me valeu para aí um dezoito.
Isto é: sou malabarista desde pequenino.

Na enfermaria havia sempre um bufo que ia contar ao impiedoso padre Coutinho as minhas anedotas, mas omitia a parte da sagrada masturbação, que era regra geral e ideia não sei de quem, minha é que não, parece impossível. E eu também não sabia a malícia das anedotas que levava de Fafe para contar. Fiquei a saber quando fui chamado à pedra por uma orelha - e assim me roubaram a inocência. O padre Coutinho gostava muito de música clássica, e eu tenho a certeza absoluta de que a música clássica, que é tão boa, não gostava nada dele.

quarta-feira, 23 de abril de 2025

A revolta dos ratos

Reescrevendo a estória
Passou o João Ratão e disse: - Ó Laurindinha, vem à janela!...

Revoltaram-se os ratos. E pudera. Sistematicamente acusados de serem os primeiros a abandonar o navio, atropelando mulheres e crianças, apontados como sinónimo de cobarde, ladrão, manhoso ou vigarista, introduzidos à força em trocadilhos idiotas e em provérbios e ditos amiúde populares, estavam fartos de levar e calar. Os ratos e inclusive as ratas, muito mais doridas e por maioria de razão.
Revoltaram-se portanto os ratos. Organizaram-se. Chegada a horinha, meteram-se na fila, esperaram pela vez respectiva, marcaram o ponto e abandonaram ordeiramente o navio. Foram os últimos a sair. E apagaram a luz. Já em terra firme, os ratos dirigiram-se sem mais delongas à montanha que os pariu e roeram a rolha da garrafa do rei da Rússia. Todos, menos o Alcides, que era um rato de biblioteca e foi para o Café Avenida beber um dedal de rum e ler com todos os vagares "A Saga/Fuga de J.B.", de Gonzalo Torrente Ballester.

O saco de gatos

Fábula em 99 caracteres (com espaços)
No tempo em que os animais falavam, o cão disse: ão, ão, ão. E o gato perguntou: és gago ou quê?...

Em Fafe, no meu tempo, as pessoas gostavam muito de animais, como por exemplo gatos. Quase todos os lares tinham o seu gato ou a sua gata de companhia, principalmente derivado aos ratos, que também eram muitos e caseiros, mas recebiam visitas. Evidentemente estou a falar da parte de Fafe que me diz respeito e conheço, Fafe dos pobres. Ora, havendo gatos e gatas, havia também ninhadas, porque as coisas são como são e até os bichinhos gostam. Mas alimentar um ou dois gatos, mesmo com sobras, é uma coisa, outra coisa é sustentar uma família inteira de tarecos, ainda por cima largam pêlo como o caralho e nos primeiros tempos, antes de levarem naquele focinho para aprenderem, coitadinhos, cagam e mijam em todo o lado sem respeito nenhum. Que se segue? As pessoas gostavam muito de animais e pegavam na ninhada, deixavam um gatito de reserva, o mais bonito e esperto, e enfiavam os outros todos numa saca de sarapilheira bem fechada e bem atada a uma pedra bem pesada e pegavam na pedra, na saca e nos gatos e atiravam tudo ao rio, que eram vários mas lingrinhas. Não sei se Fafe conserva esta bonita tradição. E quem diz Fafe, diz Portugal regra geral.

terça-feira, 22 de abril de 2025

Relações públicas, vícios privados

Jornalista, disse ele

- Profissão?
- Jornalista.
- Imprensa, televisão, rádio, agência noticiosa ou multimédia?
- Câmara municipal.


Uma vez, há muitos séculos, começava eu no meu ofício, mandaram-me a uma conferência de imprensa no palacete da secção do Porto da Ordem dos Médicos. A Ordem dos Médicos do Porto tinha então um assessor de imprensa, relações públicas ou director de comunicação, como parece que agora se diz, que era jornalista no activo, certamente com carteira profissional validada, com cargo de chefia em agência noticiosa pública e que, se a memória não me atraiçoa, também era treinador de futebol. Era portanto o verdadeiro enciclopedista do século vinte. Ou o sebastião come tudo, tudo, tudo. O homem sorria à porta da salinha preparada, com uns bilhetinhos na mão que ia entregando um ou dois a cada jornalista que entrava, como se estivesse a passar rifas.
Os bilhetinhos. Eram perguntinhas dactilografadas como quadras para concurso de São João no Jornal de Notícias. As perguntinhas que os da Ordem dos Médicos do Porto, ou pelo menos o meu obtuso camarada, queriam que os jornalistas fizessem na tal conferência de imprensa, posto que eles por acaso já tinham a resposta na ponta da língua, "Ora ainda bem que me coloca essa questão...". Perguntas de conveniência, grosseiramente encomendadas, batotice, jornalismo viciado, por assim dizer, que também o há! Mandei o assessor da treta lamber sabão, como se diz na minha terra, vim-me imediatamente embora e nem sequer quis saber se alguém aceitou a encomenda e alinhou na fantochada.
Mas, na verdade, sei.

Eram pobres e tinham dono

Virtudes teologais
Fé, esperança e caridade. A fé move montanhas. A esperança é a última a morrer. E a caridade tem dias.

Antigamente a caridade tinha dia certo e era um descanso. Pelo menos em Fafe. Às sextas-feiras, vamos supor, os pobres manquelitavam de porta em porta pedindo "uma esmolinha por alma de quem lá tem". Os pobres da parte de fora da porta eram uns desgraçados muito rotos e muito sujos e muito aleijados, e eram assim de propósito para se distinguirem dos pobres da parte de dentro da porta, que já tinham em cima da "cristaleira" umas moedinhas negras separadas e preparadas para a função. Éramos todos pobres, dum e doutro lado da porta, uns mais, outros menos, e, à falta de quem governasse por nós, em Lisboa ou mesmo na Câmara, e porque ainda não havia "Europa", nada mais nos restava senão sermos uns para os outros. Às sextas-feiras, vamos supor. O resto da semana, não.
(A "cristaleira" tinha sido comprada em terceira mão e paga em honradas prestações mensais.)
Naquele tempo os ricos tinham os seus próprios pobres, privativos, pessoais porém transmissíveis. Os pobres eram deixados em herança. Ter pobres por conta era, pelo menos em Fafe, inequívoco sinal exterior de riqueza. Os pobres eram exibidos, bastas vezes à porta da igreja, como gado preso à argola do tasco em dia de moscas e feira semanal. Para o senso comum, quantos mais pobres alguém tivesse, mais rico era. Os pobres eram, portanto, uma medida de riqueza e uma necessidade da Nação para que os ricos prosperassem. Quantos mais pobres Portugal tivesse e quanto mais pobres fossem os pobres portugueses, mais ricos seriam os nossos ricos, e isso certamente era bom para o Produto Interno Bruto.
Isto é: a pobreza convinha-nos, aos pobres. A pobreza era o progresso da Nação. O regime ensinava-nos desde os bancos da escola que felicidade era sermos pobres mas honrados e termos as unhas das mãos sempre limpas. E isso deixava-me cheio de pena dos ricos, infelizes, principalmente dos ricos muito ricos, que ainda, por cima, tinham as mãos sujas.
(Os ricos, pelo menos os de Fafe, não davam a roupa nem o calçado que já não lhes serviam. Vendiam a roupa e o calçado, a pronto, aos pobres da parte de dentro da porta. Vendiam. Os pobres da parte de dentro da porta, passados alguns meses de uso, davam aos pobres da parte de fora da porta a roupa e o calçado que tinham comprado a pronto aos ricos. Davam. Às sextas-feiras, vamos supor. O resto da semana, não.)
Graças a Deus, isto era só antigamente.

segunda-feira, 21 de abril de 2025

No tempo em que os animais falavam

Foto Gaspar de Jesus

Houve um tempo em que os presidentes dos maiores clubes de futebol falavam com os jornalistas e até convidavam os directores dos jornais para jantar. Os jornalistas, todos eram tratados por igual e quem tivesse unhas que tocasse viola. Mas isso foi muito, muito antigamente, no tempo em que os animais falavam e não havia telemóveis. Depois, conta-se que os presidentes dos maiores clubes resolveram dividir os jornalistas em dois grandes grupos: os que levavam recados e os que levavam no focinho - e deixaram de falar aos restantes. Mais tarde, os presidentes dos maiores clubes criaram as suas próprias televisões e passaram a ser "entrevistados" pelos seus próprios assalariados. E agora, quando se dignam descer até ao ecrã das televisões ditas generalistas, falam directamente de casa e exigem tratamento de primeiro-ministro, pelo menos. São outros tempos!
E, entretanto, já não sobramos todos daquela mesa...

Ao menino e ao bolacho

O predestinado
O seu aniversário calhava todos os anos no mesmo dia do mesmo mês. Ele achava que era um bom augúrio.

A bolacha maria, torrada ou não, apareceu tarde na minha vida. Bolacha era luxo que não entrava lá em casa, e o mais parecido que a nossa mãe nos dava em pequenos era broa ou biju, e o biju já era um mimo. O caso só mudou de figura quando nasceu o nosso Lando. O Orlando é o mais novo de quatro irmãos, decerto por isso teve direito a mordomias de cuja existência os três anteriores nem sequer suspeitávamos, e as bolachas vieram com ele.
Entre outras alcavalas, o Landinho até fazia anos, coisa extraordinária, enquanto a nós só nos era permitido ficarmos mais velhos, somarmos dias, que remédio e a seco. Ao menino, a nossa mãe organizava-lhe uma festinha de aniversário, havia convidadozinhos, e do pequeno lanche constavam, só me lembro disso, umas curiosas sandes de bolacha maria com marmelada dentro, tipo oreos mas melhores e de fabrico caseiro. Eu, já espigadote, metia a mão sorrateira e rápida à passagem pela mesa, e foi assim que ficámos a conhecer-nos pessoalmente, eu e elas. As bolachas. Que estavam contadas, para mal dos meus pecados...
Mas não era de bolachas que eu queria aqui falar. É de bolachos. E o bolacho, faço deste já notar, é pitéu absolutamente indispensável, muito mais do que mero ornamento, nuns rojões à moda do Minho que se pretendam com todos os matadores. O bolacho é, versão curta e grossa, uma espécie de pão cilíndrico feito com farinhas de trigo, milho e centeio, a que se junta sangue de porco, fermento, caldo de carne, pimenta e cominhos. Depois de levedada, a massa é cozida em água temperada com sal, salsa, folha de laranjeira e louro. Cumprida a cozedura, o bolacho é cortado em rodelas e frito em pingue. O bolacho pode também chamar-se farinhato, pilouco, bica e, principalmente, beloura.
Mas também não era deste bolacho que eu queria aqui falar. É do bolacho de trigo. Do pão de cantos. Do pão de quatro cantos. Do trigo de ovelhinha. Do pão de padronelo. Desse. Esse fantástico pão, duro como cornos, que era vendido porta a porta em Fafe por umas senhoras que, dizia-se, vinham de Amarante. As abençoadas senhoras traziam enormes cestas à cabeça e dentro das cestas, carinhosamente envolto em toalhas de linho, o precioso pão. No dia da feira, às quartas, por Cima da Arcada, diversos tipos de pão regional, incluindo o infalível bolacho, eram vendidos também por um senhor que vestia um avental de peito, comprido até aos pés, impecável de branco e de limpeza. O bolacho, um pão de longa duração que a minha querida avó de Basto guardava com todos os cuidados e também toalhas de linho na caixa de madeira que era o cofre e o frigorífico das coisas valiosas e boas numa terra por onde Jesus Cristo ainda não tinha passado e portanto não havia electricidade. Assim acondicionado, o pão aguentava-se bem uma semana ou mais e só era comido com o matinal café, que era cevada, aos domingos, feriados e dias santos. De resto, broa, que era o pãozinho do Senhor.
Leio agora que o bolacho é de ovelhinha porque teve a sua origem no lugar com aquele nome, Ovelhinha, na freguesia de Gondar, Amarante. E de padronelo porque decerto será sobretudo nesta outra freguesia amarantina, Padronelo, que hoje em dia ele é produzido e comercializado. Quanto a bolacho, é-o não sei porquê.

domingo, 20 de abril de 2025

Diálogos fafenses 7

Bastante desagradável
- Está bastante desagradável.
- Você também.
- Eu referia-me ao tempo.
- Eu não.

Posso pedir um disco?

O último pedido
Vinham o padre, o presidente da câmara, o chefe da polícia e o doutor juiz. O carcereiro, que vinha também, desatarraxou a porta da cela e o director da prisão, na boa, informou o condenado: - Tens direito a um último pedido. O condenado pensou um bocadinho e disse: - Pode ser "A mula da cooperativa", do Max?...

A primeira jukebox de todos os tempos entrou em funcionamento no "saloon" Palais Royale, de São Francisco, EUA, no dia 23 de Novembro de 1889. A Fafe, as primeiras jukeboxes deverão ter chegado no final da década de sessenta do século passado, com as barracas de matraquilhos que se instalavam por baixo da Arcada, mais central era impossível, pelos 16 de Maio e pelas Festas da Vila. Havia um brilhantíssimo grupo de jovens fafenses,  bem mais velhos do que eu, que dava excelente uso à novidade. Dessa malta porreira fariam parte, se não me engano, o Berto Dantas, tio, o Eduardo do Retiro, Eduardinho, o Mesquita, creio que o Mané, Dr. Mané, o Jorge Lem, se era assim que se chamava, o Jorge Barros, filho do Nelinho, bissextamente o Ginho Cardoso e não tenho a certeza se o Bi Valente, gente assim desta categoria, e estou decerto a esquecer alguém ou alguéns e talvez a confundir nomes. Eram a vanguarda de Fafe. Eu admirava muito estes tipos cheios de classe, seguia-os sempre que podia, distâncias à parte, uma vez até me levaram com eles para um jogo de futebol que foram fazer a Felgueiras, não sei a que propósito, e no fim ainda tiveram a bondade de convidar-me para a almoçarada no primeiro-andar da Juditinha, evidentemente depois do Bertinho ter pedido por mim à minha mãe.
Mas tornando à maquineta dos discos, que mais tarde haveria de exibir também videoclipes, aliás de muito duvidosa qualidade, artística e técnica. Aquela rapaziada, já com algum mundo, tinha fino gosto musical e conhecia o que, regra geral, em Fafe ainda não se sabia. Acredito que me educaram o ouvido, entre alguns outros a quem o devo. A escolha na jukebox era muito limitada, pindérica, a ementa ao dispor consistia quase só naquilo a que hoje costumamos chamar música pimba. "O autocarro do amor" - de Os Taras e Montenegro, por onde andava um moço chamado Quim Barreiros - tocava de manhã até à noite, num despique fratricida e interminável com "Eu te amo, meu Brasil", de Os Incríveis. Uma xaropada insuportável, um atentado às orelhas de qualquer um, nem que não as tivesse ou por mais moucas que elas fossem. A minha sorte é que os rapazes do bando do Bertinho, chamemos-lhes assim, faziam questão de destoar da ignorância geral e caprichavam na evangelização, pondo a tocar, de forma paciente e cirúrgica, Beatles, obrigatoriamente, um cheirinho de Rolling Stones, Sheiks, Nat King Cole, que eu desconhecia, Sinatra, Joan Baez, Bob Dylan, Neil Young, Beach Boys, Mungo Jerry e "In the summertime", Scott McKenzie e "San Francisco", Los Bravos e "Black is black", lembro-me também da poderosa versão de "I'm free", da ópera rock Tommy, dos The Who, com a London Symphony Orchestra, e sobretudo, e estou-lhes tão grato por isso, ensinaram-me a inestimável "Eloise", de Barry Ryan, que ainda hoje ouço com prazer e nostalgia.

Assim que tal, as festas acabavam, as barracas eram desfeitas, as jukeboxes iam-se embora e a minha vida entristecia. Sobrava-me o rádio e Quando o Telefone Toca, do Matos Maia, e era preciso dizer a frase.
Os 16 de Maio agora são Feiras Francas e as Festas da Vila, graduada em cidade, chamam-se Festas do Concelho ou Festas de Fafe, já não sei bem, as barracas dizem-se "pavilhões", muita água passou entretanto por baixo das pontes e carros por cima então nem se fala. É tudo muito sofisticado e cosmopolita, mas os discos de vinil estão outra vez na moda e a música pimba parece que também.
Por outro lado. Os matraquilhos foram inventados pelo galego Alexandre Campos Ramires ou Alexandre de Fisterra, que também era editor e escritor. O nome mais bonito dos matraquilhos é, digo eu, pseberico. Assim se falava pelo menos em Fafe.

sábado, 19 de abril de 2025

Jesus Cristo morreu em Fafe

A última ceia
Português, desempregado, 45 anos de idade. Quando finalmente conseguiu um "part-time" como homem-sanduíche, chegou a casa e deu-se de comer aos filhos.

As coisas em que a gente acredita quando é miúdo! Eu, por exemplo, acreditava piamente que o Menino Jesus era português, nosso - morra já aqui se estou a mentir. Eu ia à missa, ajudava, ouvia com gosto aqueles bocadinhos de Bíblia e fazia a conexão que se impunha: se Nossa Senhora é de Antime, se São José é no Lombo, se os pastorinhos são de Fátima e a Samaritana é de Coimbra, se o Moisés é de Fafe e o Abraão também, se o João Baptista tem altifalantes e faz funerais, se os apóstolos são todos portugueses, sobretudo pescadores da Póvoa e Matosinhos, é só ver os nomes - João e Tiago, filhos de Zebedeu, Pedro, André, Filipe, Mateus, Tomé, Bartolomeu, e por aí fora -, se o Jordão é em Guimarães e o Calvário é à beira do posto da Polícia de Viação e Trânsito e do Hotel, se a Avenida de Roma é em Lisboa, se Nazaré e Belém são obviamente em Portugal, se Damasco é alperce, se até o Espírito Santo saiu à casa, então o Menino Jesus também é daqui, aqui nasceu e cresceu, por aqui andou, faleceu e ressuscitou, também é português, um de nós. Deus é nosso. Se Deus quiser, até joga pela Selecção. Era o que eu pensava. Já grande, e após alguns anos de desengano e reeducação religiosa no seminário, passei a olhar com um certo carinho e determinada melancolia para esta minha crença infantil e patriótica. Depois veio Cavaco Silva, em 2006, e eu, após profunda reflexão, deixei finalmente de acreditar, regra geral. Dediquei-me à exegese, à hermenêutica, à toponímia, à topogígia, à geografia e à natação sincronizada sob chuveiro, sem ofensa para os presentes e apenas aos terceiros sábados de cada mês, de três em três meses, dez minutos antes de me deitar. E é hoje.

O senhor dos pássaros

Foto Hernâni Von Doellinger

Todas as manhãs, faça chuva ou faça sol, dias úteis ou dias inúteis. Todas as manhãs, de saquinho na mão, ele sai de Matosinhos atravessando o Passeio Atlântico de uma ponta à outra, em passo leve e decidido, e entra breve no Porto. No saquinho leva comida para os pássaros - milho para as pombas e pedaços de pão para os patos mas pouco, para os corvos-marinhos, às vezes, e para as vorazes e cagonas gaivotas. Sim. Para as gaivotas, raça tão desprestigiada hoje em dia, vítima de perseguição e tentativa de genocídio perpetradas por alguns autarcas aqui da beira-mar. Ele, o homem do passo leve e decidido, dá-lhes o almoço.
E todas as manhãs acontece o extraordinário: por alturas da Rotunda da Anémona, fronteira municipal, as pombas saem-lhe da cartola, materializam-se do nada, fazem-lhe bando por cima da cabeça e acompanham-no em revoadas dançarinas até à distribuição geral, no charco mais ocidental do Parque da Cidade, à porta da abandonada Kasa da Praia. As pombas reconhecem o seu benfeitor? Identificam o saquinho? Vão apenas ao cheiro? Serão, por assim dizer, o Espírito Santo em pessoa? Não sei - mas aquilo comove-me. Espanta-me. Fosse em Fátima, e seria certamente milagre.
Servido o festim, o cuidador de pássaros volta para casa pelo mesmo caminho, sempre com uma pequena reserva de pão e de milho no fundo do saco, prevenindo emergências, que as há. Pomba tresmalhada ou retardatária, gaivota de asa caída ou manca ou qualquer outra ave freelance ou desnorteada também têm direito à sua dose individual, no respeito do espaço de cada qual. É. Os solitários entendem-se.

Pois durante a pandemia, pelo menos, e por larga temporada, o gentil alimentador da passarada desapareceu-me da vista. E a mim, caramba, fez-me diferença, porque eu dava-lhe valor. Fui também, no meu tempo de miúdo, em Fafe, um razoável pensador de galinhas e coelhos, e portanto havia ali qualquer coisa que me dizia respeito, que me enternecia e, verdade seja dita, também me abria o apetite, e vinha-me à cabeça o franguinho guiado pela minha avó de Basto na panela de ferro apurando ao borralho.
Felizmente o senhor dos pássaros voltou, e em grande forma. Uma sorte para ele, para as pombas e também para mim, que estou sempre a ligar umas coisas às outras e sou tão dado a nostalgias, e se for à mesa melhor.

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Diálogos fafenses 6

Num certo sentido
- Num certo sentido, o caro amigo é um bocado parvo!
- Mas em que sentido, concretamente?
- No sentido Fafe-Guimarães.
- Ao quilómetro 47?
- Nem mais.
- Também já andava desconfiado...

A ordem natural das coisas

O Paços de Ferreira de José Mota, o Rio Ave de Carlos Brito, o Vitória de Setúbal de Manuel Fernandes, o Nacional de Manuel Machado, o Aves do Professor Neca, o Boavista de Manuel José, a Académica de Vítor Manuel, o Varzim de Henrique Calisto, o Marítimo de Nelo Vingada, o Salgueiros de Filipovic, o Vitória de Guimarães de Jaime Pacheco, o Chaves de Raul Águas, o Belenenses de Marinho Peres, o Farense de Paco Fortes, o Portimonense de Vítor Oliveira, o Gil Vicente de Álvaro Magalhães, o Beira Mar de António Sousa, o Braga de Manuel Cajuda, o Felgueiras de Jorge Jesus, parece impossível, o Riopele e o Tirsense de Ferreirinha, o Infesta de Augusto Mata, o Fafe de Nelo Barros, e o FC Porto campeão. Assim eram as coisas e estava tudo certo, ninguém ia para o Brasil ou para as Arábias abanar a árvore das patacas, eu entendia-me com o futebol e era feliz. Era adepto. Agora? Agora o futebol está de pernas para o ar, chamam-lhe "o jogo" e tem polícia de choque, cordões de segurança, jaulas, petardos, periodizações tácticas e claques profissionais, bandidas e amiúde assassinas, os treinadores duram dois ou três jogos, ninguém é de ninguém, o meu Fafe anda pela terceira divisão, o Sporting foi campeão, rebentaram com o FC Porto e eu também já não estou grande coisa...

Anjo da guarda, minha companhia

As pancadas de Jean-Baptiste Poquelin
O francês Jean-Baptiste Poquelin inventou as famosas pancadas de Jean-Baptiste Poquelin, as quais, secas e consecutivas, batidas no piso do palco, anunciavam ao público o início de um espectáculo teatral. Alguém alvitrou, no entanto, que chamar pancadas de Jean-Baptiste Poquelin às pancadas de Jean-Baptiste Poquelin não tinha jeito nenhum, até soava mal ao ouvido, e que chamar-lhes, por exemplo, pancadas de Molière seria muito mais engraçado. Tinha razão o alvitrador. As pancadas mudaram então o nome para Molière e Jean-Baptiste Poquelin também. Assim se passaram as coisas.

Todas as noites. A nossa mãe pegava em nós - na Nanda, no Nelo e em mim - e colocava-nos de joelhos e mãos postas, virados para a parede. Não era castigo, era amor. Na parede do quarto da nossa mãe, por cima da cama de casal, estava pendurada uma daquelas gravuras do anjo da guarda à la menino da lágrima. Rezávamos: "Anjo da guarda, minha companhia, guardai a minha alma de noite e de dia."

(Morávamos na casinha amarela do Santo Velho. O quarto da nossa mãe, logo à entrada, era também a sala, a urgência, o consultório das aflições e desgraças da rua inteira. A minha mãe curava. Eu era então o mais novo e os mimos eram todos para mim. Os mimos que a pobreza honrada permitia. Éramos remediadamente felizes, mas ríamo-nos muito, graças a Deus. Umas senhoras da Granja que trabalhavam no Posto Médico e passavam pelo nosso largo diziam que eu "até a chorar era bonito" - contava-me a minha mãe, cheia de vaidade, fazendo-me festinhas nos caracóis, e eu gostava. Quando a minha mãe se zangava comigo - e eu às vezes, realmente, mijava fora do penico -, dizia-me que eu tinha sido deixado lá em casa pelos ciganos...
Depois nasceu o Lando e acabaram-se-me as mordomias.)

Todas as noites. Após a oração ao anjo da guarda e o sinal-da-cruz feito "sem aldrabices" por ordem expressa e vigilante da nossa mãe, íamos para o nosso quartinho de duas camas, uma cama para a Nanda e a cama maior para o Nelo e para mim. A nossa mãe deitava-se enfim, exausta e nós não sabíamos, e ligava o rádio na Emissora Nacional. Dava teatro. Dramalhão. Mas tudo dentro dos conformes, pela moral e pelos bons costumes, tudo muito a bem da Nação. Do lado de cá do tabique, eu, o Nelo e a Nanda pedíamos "mais alto". Também queríamos. (Ou)víamos silentes e na maior das comoções, porque aquelas histórias não eram para brincadeiras. Interrompíamos apenas para um que outro pedido de esclarecimento acerca da senhora má e ciumosa que fazia a vida negra ao senhor viúvo e bom que gostava da menina tísica e bela que tomava conta dos quatro filhinhos dele, senhor viúvo e bom, a qual senhora má e ciumosa, todos concordávamos com a nossa mãe, era realmente "uma grande cabra", embora eu não visse nisso grande defeito. Na escola já tinha feito algumas redacções sobre "A cabra" e por isso sabia que a cabra é um animal doméstico e serve, nomeadamente, para a nossa alimentação, que era assim que a coisa se rematava.

O teatro terminava, vinha a ficha técnica - porventura autoria ou adaptação de Alice Ogando ou Odette de Saint-Maurice, certamente as vozes de Jorge Alves, Manuel Lereno, Carmen Dolores, Rui de Carvalho, Eunice Muñoz ou Canto e Castro... nos papéis de -, mas a nossa mãe só desligava depois do "Samuel Dinis ensaiou", que era mesmo o fim, e o rádio dizia "Denis", que ainda era mais mágico. Trocávamos boas-noites dum lado para o outro do tabique. "Agora vamos dormir", mandava a nossa mãe, e nós apertávamo-nos aos cobertores, contentes pela soirée e mortinhos por obedecer, que de manhã havia escola.

Todas as noites. Cinco ou dez minutos passados, a minha mãe dava um toquezinho na parede e perguntava, numa voz de embalar:
- Estais a dormir?
- Eu estou - respondia sempre eu.
- Lindo menino - dizia a minha mãe. E eu adormecia feliz.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Pespontamento

Era alfaiate. Mas não era de modas. Podia ser uma ave pernalta limícola da família dos recurvirrostrídeos, de bico comprido, fino e muito curvado para cima, patas azuladas e plumagem branca e preta, mas não. Era um insecto aquático, hemíptero, da família dos hidrometrídeos, de pernas longas, que se desloca sobre as águas. Exactamente. Alfaiate. Quem for de Fafe e de rios, sabe do que eu falo...

A minha abençoadora das 7h30

Foto Hernâni Von Doellinger

Gosto que me digam "Até amanhã, se Deus quiser". Gosto que me digam "O Senhor te abençoe". Gosto que me digam "Vai com Deus". Acredito em bênçãos, mas execro as benzeduras. Como acredito na oração, mas dispenso as rezas. Dispenso intermediários, agentes, representantes, vendedores e empresários - eu e Deus é assunto nosso, ligação directa. Dispenso também os novos profetas e as novas profetisas, o Facebook, o Instagram, o Twitter ou X, as e os influencers, as mensagens em cadeia e as pagelas responsórias.
Gosto de pedir a bênção, gosto que me abençoem. Eu pedia a bênção beijando a mão aos meus avós da Bomba e aos meus avós de Basto. Pedia a bênção ao meu pai, à minha mãe, ao meu padrinho, à minha madrinha, aos meus tios e às minhas tias. Até às tias chegadas à família por casamento, que no princípio achavam aquilo um bocado estranho, mas que depois se habituaram e creio que gostam. Eu até pedia a bênção ao senhor abade!
E fiquei traumatizado para toda a vida, como diria o outro que disse Foucault.
Gosto tanto de ser abençoado, que a minha mãe já sabe: as nossas despedidas diárias só estão completas quando ela me diz "O Senhor te abençoe! Fica com Deus!", e eu digo "Obrigado!", sem saber onde meter as mãos e as lágrimas. Pelo sim e pelo não, tusso.

Gosto de bênçãos, acredito nas bênçãos. Porque sim, e não por respeito ou porque me ensinaram ou obrigaram em pequenino. Sou interesseiro. Preciso de bênçãos como de pão para a boca, as bênçãos fazem-me tanta falta como o ar que respiro, como água no autoclismo. Sou abençoado por ter um amigo que há décadas me abençoa com a sua fraternidade sem juros e não acredita em bênçãos, mas para mim vai dar ao mesmo, é tudo lucro. Pelo contrário, a Senhora Dona Maria Amélia abençoava-me todos os dias cerca das sete e meia da manhã. Eu madrugava de propósito para encontrá-la na minha caminhada diária pela marginal Matosinhos-Porto.
A minha abençoadora das 7h30 vinha de Gondomar e àquela hora já estava prestes a apanhar o(s) autocarro(s) de regresso a casa. Não consigo imaginar a que horas é que ela saía da cama. Tinha as pernas vergadas pela idade, talvez 84 anos, ela não sabia bem, e pela vida, dez filhos, nem todos mansos, muito trabalho e desgostos mais do que a conta. Via-me, levantava o braço direito e dizia-me, num largo e comovente sorriso, "Bom dia, vá com Deus!"
E eu ficava pronto, melhor do que se tivesse ido à missa. Claro que a Senhora Dona Maria Amélia dizia "Bom dia, vá com Deus!" a toda a gente. A maioria não ligava, ignorava-a ou sorria-se dela, pior para eles e mais sobrava para mim.

Quando os meus, família ou amigos, saem cá de casa, digo-lhes sempre, à porta, "Vai com cuidado!", e repito quantas vezes forem precisas até obter uma resposta. Um "Sim!" ou um "Tá bem..." sossegam-me. Digo "Vai com cuidado!" porque vi muito A Balada de Hill Street e, por outro lado, sinto que ainda não tenho estatuto para dizer "Vai com Deus!" Mas eles sabem que, nas entrelinhas do meu coração, o que lhes estou realmente a dizer é "O Senhor te abençoe, vai com Deus!" e, sobretudíssimo, "Até amanhã, se Deus quiser", seja o amanhã quando for...

Sempre fui dado a amizades improváveis com velhas senhoras mais ou menos esdrúxulas. Desde pequeno, em Fafe. As Grilas, as Turicas, as duas Milinhas do Santo Velho, a Modista e a Vaqueiro, para não ir mais longe, fazem parte do melhor da minha vida.
A minha abençoadora das 7h30 era outra que tal, mas desapareceu-me sem aviso. Os nossos horários desirmanaram-se, coisas da vida, e já não nos encontramos há mais de três anos, para meu grande desgosto e prejuízo, porque as bênçãos, já disse, fazem-me falta. Sem ter perguntado, soube que a boa senhora nunca mais foi vista às horas do costume nos sítios do costume, entre Matosinhos e a Foz. Não sei dela. Primeiro fiquei preocupado, triste como a noite, mas depois resolvi pensar que a Senhora Dona Maria Amélia terá aproveitado para meter um longo período de férias, porque isto de passar a vida a desejar o bem dos outros também cansa. É isso, a minha abençoadora está de férias num sítio bem bom, reservado só para pessoas de categoria. Voltará qualquer dia como nova, mais forte do que nunca, à moda dos jogadores de futebol após lesão. Voltará para me abençoar outra vez e por todas as vezes que me tem faltado. Voltará. Se Deus quisesse...

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Em cima do acontecimento

Foto Tarrenego!

É o que dá mexer em papéis velhos, nas tradicionais limpezas de Páscoa. Um talvez desinteressante jogo de hóquei em patins entre FC Porto e Alenquer, suponho que lá pela primeira metade da década de 1980, nas Antas, Pavilhão Américo de Sá de tantas e indesmentíveis alegrias. O jogador portista que desliza para o golo é, se não me engano, o grande Cristiano Pereira, estrela maior de uma constelação onde brilhavam também, entre outros, Vítor Hugo, Vítor Bruno, Alves ou Domingos Guimarães - isto é, uma superequipa, multicampeões e artistas de circo que dava gosto, a base da selecção nacional.
E eu estava lá, como de costume. Estávamos lá, na bancada vazia tirante nós: eu, o Miguel pequeno e o Miguel grande. Os papéis velhos devem ser remexidos amiúde, mas com cuidado por causa do pó - estou aqui com os olhos um bocadinho irritados, e quem me veja assim ainda vai dizer que me apanhou a chorar...

Quando Fafe ia ao circo

O homem-bala
Cabisbaixo e de mala na mão, o homem-bala apresentou-se logo de manhãzinha na rulote da gerência. Deixava o circo. Ia embora para casa. Descobrira durante a noite que era objector de consciência.

Circo que é circo tem nome de circo. Ponto. Nome com pozinhos de perlimpimpim, nomes exóticos, patuscos, inventados à la minuta, nomes de fazer sonhar. Nomes à antiga: Arena, Brasil, Cardinali, Circolândia, Chen, Cristal, Dallas, Dragon, Eddy, Flic Flac, Império, Leunam, Luftman, Mariani, Mundial, Nederland, Nery Brothers, Oceanika, Soledad, Romero, Torralvo ou Twister. Ou Circo Royal, "com Pierre Ivanoff e os seus leões da Abissínia", ou o meu melhor circo do mundo, Circo Merito, que vinha a Fafe todos os anos, sem animais acima de cão, mas com um incrível número de transmissão de pensamento operado pelo senhor Merito em pessoa e sua partenaire, e sobretudo uns palhaços como nunca mais ri na minha vida e que contavam sempre a anedota de que a nossa era a única terra à face da mesma mas com maiúscula onde dormiam dezoito numa cama: o meu avô da Bomba, que era o 17, mais a minha avó. O meu avô afinava e eu achava um piadão.
O senhor Merito, que também era mestre-de-cerimónias do es-tra-or-di-ná-ri-ooo... ex-pe-ctá-cu-looo!!!..., padecia de uns óculos com lentes verdes de fundo de garrafa Carvalhelhos versão 1960 que, aos meus olhos infantis e crentes, justificavam à partida os poderes adivinhatórios de que ele estava evidentemente investido.
Coisas de outro mundo. No circo aprendi palavras sen-sa-ci-o-nais, que gostava de ouvir e de dizer e não sabia o que significavam: funambulista, malabarista, contorcionista, equilibrista, acrobata voador, faquir, trapezista, pirofagista, globista, faquista, mais engolidor de espadas, palhaço e ilusionista - estas três eu ia lá -, e que hoje percebo que todas são afinal meros adereços ou adjectivos para outra palavra do léxico circense que é a palavra... político.
Agora? Agora andam por aí circos com nomes paisanos, insossos, e a magia foi um ar que se lhe deu. Nomes de linha média em quatro-quatro-dois losango: Rúben, Cláudio, Leandro e Walter Dias. Nomes do dia-a-dia, corriqueiros, sem pés nem cabeça, como se fossem nomes de talhos ou retrosarias. Como se fossem: o Circo Ricardo, o Circo Pedro, o Circo Ferreira, o Circo Gomes, o Circo Lopes, o Circo Magalhães, o Circo Antunes. O Circo Maria das Dores. Sem o glamour de um Tony, sem o garbo de um Fredy, sem as lantejoulas de uma Nandy nem as meias de rede de uma Mirita no seu rola-rola, ainda que rotas, as meias, porque no circo é importante trabalhar com rede, posto que sem fio, portanto Wi-Fi.
E ainda haverá palhaços excêntricos musicais? E a profissão está devidamente reconhecida e enquadrada? Tem ordem? Carteira profissional? Tempo de serviço em recuperação?
O circo chegava e a vila espertava. A vila precisava. Saía do mormo, arrebitava. Fafe vivia intensamente os seus dias de circo, havia assunto, havia mundo, havia... vida. Havia emoção, havia sonho, havia alegria, riso, havia medo, havia pena, tristeza, saudade antecipada, porque depois só para o ano. Fafe ia ao circo. Toda a gente ia ao circo. Mesmo os que não iam, por miséria ou embirração, era como se fossem, só de imaginar ou ouvir contar. Não se falava de outra coisa, no café, no tasco, na feira, no campo da bola, à saída da missa, fazia-se crítica, propaganda, comparava-se com o ano anterior. Era um deslumbramento vivermos - digo bem, vivermos -, de coração aos saltos e mãos a tapar os olhos, o perigosíssimo trabalho daqueles artistas cheios de is gregos e cabelo empastado, artistas in-tarrr-na-ci-o-nais de Ermesinde e Vila Franca de Xira - Cuidado, Dany, cuidado! Res-pei-tá-vel público, silêncio, o mais completo silêncio, por favor, peço o silêncio dos senhores ex-pe-cta-do-reeesss... Vamos, Dany, cuidado, upa, ealé, bravo, bravo, Dany, bravo!...
Só a carripana com altifalantes sobressaltando as pacatas ruas da vila antiga já era uma festa, era circo ao domicílio. "Hoje grátis às damas, damas grátis!", prometia-se ambiguamente na véspera da despedida. O circo era o melhor faz-de-conta de todos os tempos! O famoso Pierre Ivanoff chamava-se Pedro Piloña Reina e era um espanhol de Valência nascido em Casablanca, Marrocos. Na jaula, com os leões, vestia de tribuno romano que eu sabia dos filmes - e ficou-me até hoje. Tinha eu se calhar sete anos quando o Pedro, aliás Pierre, desafiou o meu pai, saxofonista desembaraçado na Banda de Revelhe, a fazer-se ao mundo a bordo da orquestra do grande Circo Royal, mas o meu pai não foi. Foi para mim um desgosto muito grande, que já me via palhaço, a morar na rulote, a faltar à escola e a rasgar completamente as meias de rede da Mirita...
O sítio do circo em Fafe era na Feira Velha, encostadinho à antiga escola primária cujas defuntas pedras depois se transformaram, por milagre, em capela de casa particular. E era porreiro o circo ali, porque vós hoje em dia não fazeis ideia dos deslimites do fedor a que pode chegar a jaula de um leão velho, mas eu e os da minha escola sabemos, graças a Deus. O circo creio que frequentou outros lugares da nossa vila, e lembro-me por exemplo de uma vez em que se instalou num terreno convenientemente devoluto ali para os lados da Recta, mas a Feira Velha é que era o sítio. Gosto de dizer, a Feira Velha, gosto de me ouvir dizer. Agora mesmo, escrevo e digo, vêm-me as lágrimas aos olhos por causa de duas palavras de nada, pareço tolo. Feira Velha. A Câmara Municipal, quando se tornou mercearia para não ficar atrás das outras câmaras municipais, meteu lá carros a cobrar à hora e é o que temos.

Carlos Drummond de Andrade dizia: "Vou ao circo para me sentir em casa com o mundo". E Ferreira Gullar, no poema "Improviso para a moça do circo", do livro "Na Vertigem do Dia", lembrava a infância e contava: "é pouca a vida que a cidade oferece, até que aparece o circo". Por outro lado: o circo somos nós - camelos, ursos, jacarés em camisolas, asnos e leões mansos. Homens-bala de pólvora seca, malabaristas, contorcionistas, ilusionistas, equilibristas, palhaços - somos nós, porque nos mandam e porque somos o único circo a que temos direito. Vivemos na corda bamba e sem rede. Tiraram-nos a rede, esticam-nos a corda, sufocam-nos, caímos que nem tordos sem capacete.

terça-feira, 15 de abril de 2025

Com papas e bolos

Pastelaria graças a Deus
Comeu um cardeal, dois jesuítas e três seminaristas. Bebeu quatro taças de Casal Garcia, persignou-se e deu graças a Deus.

Não sei como dizer isto sem ferir susceptibilidades, mas não há como fugir à agenda: o dia 5 de Fevereiro é, desde 2007, Dia Mundial da Nutella. Também não sei a que é que sabe a nutella e até suponho que não me faz diferença não saber. Na infância tive decerto a minha pequena dose de tulicreme nalgum fortuito episódio de fartura doméstica de que não guardo grande memória, já me explicaram que nutella e tulicreme não são a mesma coisa, antes pelo contrário, mas não estou apetrechado para milimetrar a comparação nem para o debate que o assunto obviamente impõe. Por outro lado: quando a manteiga entrou em nossa casa chamava-se Planta, era bem boa e nós já achávamos que éramos ricos. Naquela altura, uma rulote muito jeitosa estacionava no nosso Santo Velho e umas senhoras muito simpáticas e de bata branca ou avental chique explicavam muito bem explicada a margarina Vaqueiro, que era outra novidade para o povo. As boas senhoras, raparigas todas jeitosas que eu achava que eram da televisão, davam a provar a quem passava, iam a casa fazer demonstrações por medida, e eu achava que a nossa Milinha de cima, a Milinha Vaqueiro, é que tinha mandado vir. Não sei se tinha...
Sei é isto, ai, margarina, se eu te desse a minha vida: ainda há pouco, na Póvoa de Varzim, icónica Rua da Junqueira, uma excelentíssima bola tipo berlim com creme normal custava um euro, um euro certo, e a merda de uma bola tipo berlim com nutella custava um euro mais vinte cêntimos. Como costumo fazer amiúde, um destes dias torno a meter-me no metro e vou lá, de propósito, ver em que param as modas, é só fazer as contas à inflação, e se as bolas com nutella forem este ano mais baratas, ou até dadas, compro na mesma das de creme normal. 

Conhé, Kiki e Caló...

Cinco violinos
Claudio Monteverdi, Paganini, Samvel Yervinyan, Camille Berthollet e Hilary Hanh. Ou por outra: Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travassos e Albano.

Conhé, Kiki e Caló, Faustino e Barnabé, Cláudio e Ferreira Pinto. Assim. É assim que os trago na cabeça há mais de cinquenta anos, e digo-os, aos nomes raros, antigos e melodiosos, como se fossem poema, letra de festival da canção escrita por Ary dos Santos e cantada por Simone de Oliveira. Conhé, Kiki e Caló, Faustino e Barnabé, Cláudio e Ferreira Pinto. Já lhes apreçaram o ritmo lanceiro de lengalenga, a precisão sincopada de ladainha, a musicalidade silábica de balada sustenida? E são apenas nomes, nomes de jogadores de futebol, protagonistas de uma famosa equipa do União de Tomar em tempo de primeira divisão, na passagem da década de sessenta para a década de setenta do século XX. Depois destes sete magníficos poderiam vir, mais adiantados no terreno, como hoje se diria, o Bilreiro ou o Araújo ou o Lecas ou o Leitão ou o Alberto ou o Dui ou o Totói, que era irmão gémeo do nosso Djunga, também colega de equipa, ou outro ou outros, mas de todos estes não me lembro na velha oração que sei de cor. Tive de ir à procura...
Conhé, Kiki e Caló, Faustino e Barnabé, Cláudio e Ferreira Pinto. Assim. Os meus amigos, que são também magníficos mas menos do que sete, estão fartos de me ouvir. Já se riem de mim quando eu começo. Fazem pouco. Mas eu insisto e digo, e recito, e canto: Conhé, Kiki e Caló, Faustino e Barnabé, Cláudio e Ferreira Pinto. É claro, não são os Cinco Violinos do Sporting fidalgo nem a superequipa do imparável Benfica da década de sessenta. Tampouco são o saudoso Belenenses de Vicente e Matateu ou aquela linha recuado do FC Porto afinada em érre e formada por Rui, Rodolfo, Ronaldo, Rolando e Guedes, só para destoar. Não são, realmente. Mas, palavra de honra, são os meus cromos preferidos.
Ainda por cima, o Cláudio, seguindo o bom exemplo do Djunga, viria depois a jogar no meu Fafe, parece-me que após passagem pelo Riopele. Creio que morou na "Torralta" praticamente a estrear e, se não me engano, era pai do Hélder e do Toni. Com os anos transformara-se em defesa central, um portento de técnica em souplesse, lento mas geralmente eficaz, imperial, suava em bica mesmo em pleno Inverno, evaporava-se em campo, era o primeiro construtor e líder da equipa, gostava de fintar os avançados adversários e fazia gala do passe de letra, inclusive na marcação de penáltis.
E para quem não sabe: os do União de Tomar eram e certamente são os nabantinos, por causa do rio Nabão, que atravessa a cidade. Ali chegou a jogar Eusébio, já preso por arames, abandonado pelo Benfica e, com todo o respeito, a estragar o final de carreira. O grande Eusébio, que eu ainda vi em campo também pelo Beira Mar e, segundo constou, quase pelo Lixa. Eusébio, muito Rei, muito King, muito Pantera Negra, mas, lamento, também não consta da cantilena mágica.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Era uma música muito estranha

Apontamento musical
Era um pequeno apontamento musical. Estava escrito num "post-it". 

Uma vez, há muitos séculos, levaram-me a uma espécie de concerto no auditório do Conservatório de Música de Braga. Eu estava no seminário, teria no máximo os meus dezasseis anos e portanto que remédio. Fomos talvez para compor a sala, não faço ideia. E aquilo foi muito chato, não é para me gabar. Pela primeira vez na vida ouvi Béla Bartók, por interposta pessoa, e Cândido Lima, por ele próprio, creio que também com direito a comentários, ainda por cima. Saí de lá muito zangado com a padralhada e convencidíssimo de que o que acabara de ouvir não era música, até porque já tinha aprendido nas aulas que "música é um conjunto de sons agradáveis aos ouvidos", e na verdade eu vim cá para fora com as orelhas todas fodidas.
Que se segue? Descobri recentemente que existe o Dia Internacional da Música Estranha, festejado a 24 de Agosto, e lembrei-me deste lamentável episódio, que me marcou como ferro em brasa até aos dias de hoje. E então, quer-se dizer, talvez aquilo fosse isso: música estranha. Mas eu não sabia. Devo acrescentar, em minha defesa, que entretanto mudei de opinião a respeito daquela, digamos assim, especialidade musical. Mudei de opinião, mas apenas um bocadinho...

Deus lhe conserve a vistinha!

Órgãos no mercado
Comprar órgãos no mercado, embora possa salvar vidas, é crime, dá dez anos de prisão. Concertinas ou acordeões, vá que não vá...

Havia um cego que tinha olho. Era de fora, o cego, não me lembro de onde é que vinha nem quem o trazia, mas ele fazia a feira de Fafe, todas as semanas, e safava-se satisfatoriamente, segundo me parecia. Às quartas-feiras, sem falta, parava à beira da minha rua, o Santo Velho, entre o tasco do Zé Manco e a loja das Turicas, na Rua Monsenhor Vieira de Castro, encostado à parede das casas sem passeio, decerto para aproveitar também as revoadas de povo da Fábrica de Ferro que por ali passava obrigatoriamente nas horas de troca de turnos. Eu bem disse, o homem era cego, mas tinha olho.
Vinham o cego e a mobília, isto é, a bengala de madeira pintada às listas brancas e vermelhas como a camisola do Leixões, mas na horizontal, um banco velho e o acordeão. Era um cego cantor. Cantor, pobre e pedinte, como a maioria dos cegos portugueses daquele tempo. O nosso prodigioso Augusto Fera, poeta e telefonista, era uma honrosa excepção. E o nosso Belinho, empresário e campeão do rockabilly, outro que tal. De resto, as saídas profissionais dos cegos, naquela altura, resumiam-se, regra geral e lotarias à parte, às esquinas e às cantigas, de preferência acompanhadas à sanfona. O acordeão fazia parte do curso de cego. O cego das nossas quartas-feiras cantava em tons trágicos e rima fácil aquelas estórias de amor e ciúme, faca e alguidar, que anos mais tarde são agora o ganha-pão das nossas televisões e dos nossos jornais. E, se bem me lembro, vendia folhetos impressos com os tenebrosos versos das tragédias reveladas e ainda com mais pormenores, mais desenvolvimento, a papelada presa por alfinetes ao casaco remendado e grande. Era o cordel, como ainda hoje se usa no Brasil.
Muito gostava eu de o ouvir! Éramos praticamente amigos, eu e o cego. Falávamos. Sabia-lhe as cantorias todas de cor, menos as novas, sempre dependentes da mais recente e escabrosa actividade criminal. O cego era, à sua maneira e para meu enlevo, mais uma atracção de feira, um espectáculo, Deus me perdoe. E apreciava-lhe também os intervalos repentinos, cirúrgicos, mal se precatava de passos à distância, e então, teatralmente, estendia a mão à caridade e declamava em voz arrastada, dramática, pungente, martelando sílaba a sílaba, e com potência de megafone: - Uma esmolinha ao ceguinho! Uma esmolinha!! Senhor! Senhora! Olhe que é muito triste não poder ver...
Caía a esmola ou não, o cego às vezes não sabia, por razão de força maior, mas rematava sempre, num golpe de mestre: - Muito obrigado, senhor! Muito obrigado, senhora! Deus lhe conserve a vistinha!
Eu apetecia-me aplaudir. E, mais, já tinha visto Laurence Olivier trabalhar no cinema e na televisão.
Ceguinho. Isso. O cego dizia "olhe", molageiro. Provocador, castigador. "Olhe", porque pode, eu é que não - sou cego. A minha mãe tinha razão. A minha mãe tinha sempre razão, e agora ainda tem mais, derivado à idade, e portanto nem admite contraditório seja do que for, e eu para lá vou. Mas então. A minha mãe não me deixava chamar cego ao cego, era O Ceguinho, olha o respeito!, e quem for de Fafe sabe muito bem a estima que colocamos no sufixo inho/inha, que tão amiúde utilizamos ou pelos menos utilizávamos. Até O Ceguinho, coitadinho, dizia que era cego, ceguinho, mas hoje em dia estaria enganado e seria severamente corrigido, parece tolo o raio do cego! Não. Pessoas de bem, modernas, civilizadas, cultas, vigilantes, palavristas, dir-lhe-iam que agora é invisual, não há cá cegos nem ceguinhos, isso só para os árbitros de futebol e devagarinho.
Dizem-me que o cego é invisual, e eu não me acredito. Ou então, se o cego é invisual, o surdo é insonoro, sim, insonoro. E o manco é impodal e o maneta é imanual. É! Uma geral, nem mais nem menos. Aqui não há filhos e enteados. Esta terra de invisuais e quem possui um olho é monarca, já foi chão que deu uvas. Ou há moralidade ou comem todos. E só não vê isto quem não quer. Mas lá está, como diz o povo e com razão, o pior invisual é aquele que se recusa a vislumbrar.

domingo, 13 de abril de 2025

E não há nada que se beba?

Génios
Parecendo que não, há uma diferença assinalável entre o génio da lâmpada e o génio da garrafa. Eu, por exemplo, embora também aprecie a competência e o rasgo de um bom electricista, dou muito mais valor à sabedoria decilitrada de um bêbado manso.

Isto passou-se na Brecha, palavra de honra, em dia de bolo com sardinhas, portanto num sábado, se não me engano. E as sardinhas eram evidentemente fritas, como manda a tradição. A Brecha era um tasco, na Granja, e não sei se ainda é. E era um tasco amiúde manhoso, beneficiava pelo menos dessa lamentável fama, não faço ideia se também do proveito. Fafe tinha conversas assim, elevadas, necessárias, instrutivas, e era uma terra, apesar de tudo, geralmente muito bem frequentada. E daquela vez em especial. Como se fosse uma anedota de almanaque, juntaram-se um alemão multinacional, um americano, um inglês, um francês, um italiano, um espanhol e um português, todos gente de rebimba o malho. E diz o Albert Einstein: "A imaginação é mais importante do que o conhecimento". E diz o Mark Twain: "O homem que não lê bons livros não tem nenhuma vantagem sobre o homem que não sabe ler". E diz o Charles Dickens: "Nunca nos devemos envergonhar das nossas próprias lágrimas". E diz o Antoine Lavoisier: "Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". E diz o Leonardo da Vinci: "Do mesmo modo que o metal enferruja com a ociosidade e a água parada perde a sua pureza, assim a inércia esgota a energia da mente". E diz o Miguel de Unamuno: "Viaja-se não para encontrar o destino, mas para fugir de onde se parte". E diz o nosso Anacleto Silveira: - Não há nada que se beba?...

Trago uma Páscoa no ouvido

Noé, como todos os homens especialmente abençoados por Deus, era um incorrigível optimista. De hora a hora, dia após dia, durante quarenta dias, espreitava à janela da Arca, desviando a cortininha de chita estampada em degradê, e dizia à mulher: "É só um aguaceiro"...

Seminário de Braga. Lembro-me de uma Páscoa e a memória até é fácil - foi em 1974, ano santo, e no sábado do Domingo de Ramos havia Festival da Eurovisão em Brighton, Reino Unido. Era a grande noite, a verdadeira, tempos outros. Os nossos "superiores", como impunham que lhes chamássemos, deixaram-nos ir para a sala da televisão: muito compostos, bico calado, ouvimos as cantigas a preto e branco. Paulo de Carvalho cantou "E Depois do Adeus". Esteve bem, muito bem, Paulo de Carvalho nunca soube cantar mal. Para mim, Portugal ia ganhar. Sem espinhas. Preparei-me para o melhor.
Só que. Já disse: era seminário, Braga e Semana Santa, véspera à noite do Domingo de Ramos. Portanto: só que, na hora da votação, a parte talvez mais emocionante, os do orfeão, à inapelável voz de comando, tocados como gado, desatámos a descer por umas escadas de que nem sabíamos a existência e, num lampo, chegámos à rua por uma porta dos fundos ou, por outra, dos lados. Ia passar a procissão. O Paulo de Carvalho que nos desculpasse, mas era a nossa vez de cantar. O estrado com degraus estava montado logo ao pé da porta, no cantinho do Largo de Santiago, defronte do Governo Civil. Cantámos o "Miserere", como mandava a tradição. E era digno de ser ouvido, minhas senhoras e meus senhores: nós cantávamos a cores.
Cantámos numa fervurinha mas como querubins, como querubins apressados, a procissão parou e passou, em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo amém, e toca a galgar a escadaria (que já não era secreta) com o coração aos saltos, quem é que ganhou, quem é que ganhou, mas afinal quem é que ganhou? Foi o Paulo de Carvalho? Foi Portugal? Evidentemente que foi Portugal. Ganhámos, de certeza que ganhámos...

(Ao contrário do que alguém possa ainda pensar, por causa da história das senhas radiofónicas do 25 de Abril, "E Depois do Adeus" é apenas uma notável balada de dor de corno, sem qualquer submensagem política. Muito bem cantada, isso sim, letra de José Niza e com uma orquestração - do maestro José Calvário, também autor da excelentíssima música - do melhor que alguma vez se fez ou virá a fazer no nosso país.)

Mas não. Não ganhámos. Portugal não ganhou e Paulo de Carvalho também não. Ganharam os Abba, com "Waterloo". A nossa canção, "E Depois do Adeus", desenrascou apenas três pontos e ficou em último lugar, empatada com a Alemanha, a Suíça e a Noruega. E vá lá, que a companhia podia ser pior.

Que se segue? Há cinquenta anos que ando com esta Páscoa no ouvido. E não por causa dos Abba nem pela bela canção do Paulo de Carvalho. É o "Miserere". O "Miserere" ensinado e dirigido pelo bom padre José Sousa Marques, se não erro no nome, chamado entre nós o Galinhola por causa dos seus meneios e ademanes. O "Miserere" que ainda sei de cor aos retalhos e com o qual, volta e meia, puxando pelo lamentável baixo-barítono que sobrevive dentro de mim, atazano o orelhame do pessoal cá de casa.
As saudades fizeram-me isto: lancei-me à procura do meu "Miserere" no YouTube e não o encontrei. Quem sou eu para desgostar do sublime "Miserere" de Allegri, que está em todo o lado como Deus Nosso Senhor e a CMTV, mas - deu-me para aqui -, de momento o "Miserere" bracarense, completo, integral, pungente, é que me convinha. E não sei dele.

E que mais? O maestro José Calvário, que morreu em 2009, com apenas 58 anos. Extraordinária figura, conhecido sobretudo da televisão, cheguei a vê-lo algumas vezes em Fafe, o que me enchia de orgulho e emoção. Eu era fã, sabia-o de cor. Sabia das suas gravações com a London Philharmonic Orchestra, com a London Symphony Orchestra, com a Orquestra Sinfónica do Estado Húngaro. Eu sabia do jazz, dos Psico, dos trabalhos com ou para Adriano Correia de Oliveira, António Gedeão, Carlos Mendes, Fernando Tordo, Tonicha, da sua pluralidade e excelência musical. Via-o a passar de carro, sem parar e evidentemente sem me reparar, mas para mim bastava. A família - "os Calvários", que creio que eram do Porto - tinha uma fábrica em Fafe, na Recta, actual Avenida de São Jorge, um pouco depois da Parefa, como quem vai para Armil sem cruzamentos rotundos e semáforos preguiçosos. Eu ligava aquela gente, não sei dizer porquê, ao nosso Jardim do Calvário, e por isso achava que eles, apesar de ricos, famosos, distantes e inacessíveis, também eram nossa gente, embora todas as noites fossem dormir a casa, pelo menos nunca se me constou o contrário nem lhes sei de filhos suplementares e fafenses. A fábrica chamava-se Coral, Malhas Coral, e mandou uma equipa ao primeiro torneio de futebol de salão de Fafe, em 1977, organizado de raiz pelo Grupo Nun'Álvares, com o Chester à frente. E a equipa deu nas vistas vestindo camisola e calção numa cor nova e inusitada para o tempo, algo entre o vermelho, o laranja e o rosa, certamente coral como o próprio nome indica, espero não estar a dizer asneira, ou então sonhei isto tudo.

sábado, 12 de abril de 2025

O retrato de Salazar

Tive o privilégio de conhecer a Senhora Dona Laura Summavielle mãe (1879-1971), uma mulher extraordinária que viveu uma vida muito à frente do seu tempo. Tal como eu a via do alto dos meus oito, nove anos, a matriarca da ínclita geração dos Summavielles era então uma velhinha toda guicha, franzina e pândega. No tempo da ditadura fascista, que a houve, a notável senhora tinha uma curiosa brincadeira que apelava à interacção de Fafe inteiro que lhe passasse por baixo da comprida sacada da casa da família, na Rua Monsenhor Vieira de Castro, mesmo em frente ao Cinema. Fosse quem fosse. Eu também não escapei à partida, mais do que uma vez, e com muito gosto. É uma das minhas melhores memórias da infância e de Fafe.
Comigo, era assim: mal me via aproximar, a marota da Senhora Dona Laura, de lá de cima, desafiante, dizia num falsete altivo porém educado:
- Ó menino, apanhe-me aí, por favor, esse retrato do Dr. António de Oliveira Salazar, que me caiu sem querer...
Havia realmente algo no chão. E eu lá apanhava. E era o quê? A fotografia mesmo do ditador? Não. Era uma carta de jogar, saída de uns baralhos que existiam naquela altura e que não sei se ainda sobrevivem, para além daquele que eu guardo com mil cuidados cá em casa. Exactamente: afinal, o retrato de Salazar era uma carta. Mas não cuideis que era uma carta qualquer, um duque, uma sena ou, mesmo, um valete, porque dama, naquele tempo, estaria, desde logo, fora de questão. Nem era o rei. Nem o ás. O retrato de Salazar era... o burro.
 

O poeta Augusto Fera

Escritor e tudo
É um autor impaciente e impulsivo. Publicou o seu primeiro livro sem sequer o ter escrito, e a obra revelou-se o sucesso que se vê: vai na décima sétima edição e já ganhou quatro prémios literários - um, internacional. E continua a surpreender o mercado, à média de três novos livros por ano. Para além disso, é também pintor, "performer", crítico de cinema, prefaciador, antiquário, amigo n.º 1 de Manuel António Pina, forcado amador, talhador de trasorelhos, apresentador de variedades e prepara-se para lançar o seu segundo disco de originais.

O poeta Augusto Fera morreu no dia 27 de Novembro de 2012. Durante meio século espalhou a sua poesia pela imprensa local, fartou-se de ganhar prémios e em 2011 publicou o seu primeiro e único livro - "Cruz de Chumbo e Outros Poemas" -, num acto de justiça em boa hora praticado por José Mário Silva, então presidente da Junta de Freguesia de Fafe, que editou a obra.
Confesso: não me revejo na estética da poesia de Fera, demasiado (diria) maneirista para o meu gosto, mas admirava-lhe o contínuo labor na procura das palavras, a intenção de chegar aos clássicos, o esforço, a ingenuidade às vezes, a seriedade na escrita e a honestidade na mensagem. Convenhamos, no entanto, que a minha opinião literária é aqui absolutamente irrelevante, até porque incompetente.
Conheci muito bem Augusto Fera. O homem sábio, simples e humilde. No meu tempo de miúdo e de Santo Velho, maravilhava-me a vê-lo dobrar a esquina do Palacete, em direcção a casa, na Ponte do Ranha, quando ele vinha do trabalho, na Fábrica do Ferro. Sabia sempre onde e a quantas andava. Como é que ele, cego, conseguia? Como é que ele percebia que a esquina estava exactamente ali? Aquilo sempre me intrigou. Diziam-me que ele contava os passos, que via as horas com os dedos. Para mim, não: aquele homem era mágico, tinha poderes. Pois se até fazia versos...

O poeta fafense Augusto Fera morreu, e a Biblioteca Municipal de Fafe não lhe dedicou então uma única linha. No dia da morte do nosso poeta, lembro-me bem, o blogue da Biblioteca Municipal de Fafe destacou o Prémio Portugal Telecom de Valter Hugo Mãe. Também está certo...
Augusto Fera não fazia parte dessa plêiade de convencidos da vida que amiúde afunila e esgota a "cultura" fafense em genialidades de trazer por casa. Augusto Fera era a sério e era povo, corria por fora. Percebo, por isso, o intelectual silêncio à volta da morte do poeta. Um silêncio quebrado, numa honrosa e justificada excepção, pelo blogue Sala de Visitas do Minho, de Artur Coimbra.
Não. O poeta Augusto Fera não era cego. O poeta, não! Outros serão.

Já não há mulheres com bigode

Tinha um belo bigode. Elegante, ralo, fino, um bigodinho talvez à Errol Flynn. Nada de assombroso, realmente, mas para mulher não estava mal.

Sempre gostei de ir a Ponte de Lima por causa do arroz de sarrabulho e dos bigodes das mulheres. Mulheres feias é ali. Feias e bigodudas. Basta um raio de sol espreitar por entre as nuvens tão bem desenhadas e elas saltam todas não se sabe donde para as bordas do rio a arejar as carantonhas e respectivas piaçabas. Palavra de honra, é um espectáculo digno de ser visto. Comprar um cartucho de jornal cheio de castanhas assadas e comê-las, ainda quentes, enquanto observamos o mulherio, picadeiro acima, picadeiro abaixo, como num desfile de moda mas para bigodes fêmeos, nove pontos para aquela, treze para a das suíças, há lá melhor maneira de passar um pedaço de tarde! Não sei o que a bela vila alto-minhota tem, mas é assim que as coisas são.
Cuidado. Antes que me soltem os cães, fazei o favor de perceber que eu não disse que as mulheres limianas são bigodadas e feias. Não. O que eu digo é que, sobretudo aos fins-de-semana e feriados, férias de Verão, da Páscoa, de Natal ou de Carnaval, nas Feiras Novas, no Corpo de Deus ou num dia qualquer, elas, as bigodadas e feias, concentram-se todas ali, à beira-Lima, como se fosse um congresso de camafeus ou um concurso de feieza. Numa dessas ocasiões, eu próprio fui confundido com a cantadeira de um rancho folclórico derivado às minhas barbas. De resto, não sei de onde elas vêm, as mulheres abigodadas, nunca perguntei.

Vou a Ponte de Lima desde pequenino, desde o tempo das excursões ao Alto Minho organizadas pelo meu avô da Bomba, videirinho da silva e sobrevivente dos sete ofícios. Aqui atrasado tornei lá todo contente e tive um desgosto muito grande. A vila mais antiga de Portugal, Ponte de Lima monumental e histórica, bela, tradicional, está mais pobre. As mulheres continuam particularmente feias, honra lhes seja, mas deitaram abaixo os bigodes. Sentei-me no banco do costume, junto à vendedeira de castanhas, queimei os dedos a comê-las, mas bigodes de mulheres, que era ao que eu ia, nem um para amostra. É lamentável. Os cremes depilatórios estão a dar cabo do nosso património.
Não sei se volto a Ponte de Lima. Ainda por cima, o arroz de sarrabulho também não estava grande coisa. Mas as castanhas eram bem boas.

sexta-feira, 11 de abril de 2025

A esfera armilense

Carlota Joaquina, Teolinda Joaquina de Sousa Lança (aliás, Linda de Suza), Joaquina de Vedruna, Mariana Joaquina Apolónia da Costa Pereira de Vilhena Coutinho, Joaquina Lapinha, Joaquininha, a minha sogra, e a Quininha "Varandas", de Fafe. Sete Quinas, como dizia o outro.

A esfera armilar só pode ter sido inventada em Armil, talvez no tempo dos romanos, que é um tempo do mais antigo que pode haver. Mais antigo do que o tempo dos romanos, só o tempo dos dinossauros, que, no entanto, não eram um povo assim tão evoluído. Mas quanto à invenção da esfera, que não haja dúvidas: em Armil, como o próprio nome indica, armilar, para não dizer armilense, e nem é de admirar, tendo em conta que a História de Portugal e até de outros países mais ou menos estrangeiros passou-se bastante aqui em Fafe, basta ver as batalhas de São Mamede e de Castillon, para não irmos mais longe.

Fafe e a Guerra dos Cem Anos

Desarmado em parvo
Era tão pacifista, tão pacifista, tão objector de consciência, tão objector de consciência, tão não-violento, tão não-violento, que havia quem dissesse que ele andava constantemente desarmado em parvo.

A Batalha de Castillon foi levada a efeito no dia 17 de Julho de 1453 e ficou para a História como a derradeira e decisiva batalha da Guerra dos Cem Anos, que decorreu razoavelmente entre franceses e ingleses. A França ganhou, e félicitations à la cousine. A Guerra dos Cem Anos chama-se Guerra dos Cem Anos porque durou cento e dezasseis anos, mas chamar Guerra dos Cento e Dezasseis Anos à Guerra dos Cem Anos não dava jeito nenhum aos historiadores e contabilistas bancários, e assim começaram os arredondamentos, que saem sempre à casa. Por outro lado, a Guerra dos Cem Anos ostenta este curioso e inusitado nome, Guerra dos Cem Anos, para se distinguir da Guerra dos Oitenta Anos, que se verificou não sem alguns sobressaltos entre os futuros holandeses, actuais neerlandeses ou, quiçá, países-baixistas, e Espanha, com a Guerra dos Dez Anos, entre cubanos e espanhóis, com a Guerra dos Treze Anos, entre prussianos e teutónicos, com a Guerra dos Trinta Anos, entre a Alemanha e quem lhe aparecesse à frente, com a Guerra dos Sete Anos, entre França mais aliados e Inglaterra mais aliados (incluindo Portugal), com a Guerra dos Seis Dias, entre árabes e israelitas, com a Guerra das Audiências, entre a SIC e a TVI, e até com a Guerra das Rosas, entre a Rosa Maria e a Rosa Beatriz, que não se dão nem à lei da bala e andam sempre à trolha uma contra a outra derivado ao Anacleto Lingrinhas, que por acaso é pintor de automóveis e aquece a cama a ambas. A História, assim maiusculada, não se compadece realmente com equívocos.

E quereis saber como é que começou a Guerra dos Cem Anos? Então, cá vai.
Era um encontro previsto para ser aprazivelmente diplomático e discutido à melhor de três sets, quando Mister Cheddar, pela Inglaterra, e Monsieur Camembert, pela França, reuniram em Sherwood, sob os auspícios do Robin dos Bosques e a bênção de Frei Tuck, tendo sobre a mesa, já naquele tempo, a delicada questão das quotas leiteiras. Estava tudo a correr bem, estava-se até bastante agradável, entre uísques e champanhes perfeitamente bebidos, mas era um cheiro a chulé que não se podia. Foi então que o inglês, já com um grãozinho na asa e uma mola de roupa no nariz, não aguentou mais e questionou o francês, com a ajuda do José Milhazes, que fazia as traduções: - Porque é que o caro amigo (old chap, no original) não vai mas é lavar os pés no Sena?...
O franciú levou a mal e foi assim que começou a Guerra dos Cem Anos. Até hoje.

Ora bem. Eu cuido que a Batalha de Castillon ocorreu em Fafe, exactamente em Fafe, aqui mesmo nas nossas barbas, numa antiga elevação situada entre a Ponte do Ranha, o Socorro, a Alvorada, a Fábrica do Papelão, a casa da Dona Aurora e o Estádio, com o rio Ferro a passar e os campos e bouças de Cavadas aos pés. Ali se alcandorava, com efeito, o famoso monte de Castelhão, como se diz em português corrente, ou Castilhom, como se diz em fafês correcto - e portanto está fácil de ver onde franceses e ingleses foram buscar local e nome para a refrega. O monte de Castelhão era, na verdade, um sítio aprazível para a realização de todo o tipo de batalhas, como por exemplo brincar aos cobóis, e tinha um belíssimo pionono, de que infelizmente não há muita certeza. Mas isso é outra história.

Em todo o caso, não será certamente despiciendo relembrar que Fafe, o seu centro histórico e arredores consuetudinários, sempre dispôs das melhores e mais vantajosas condições naturais e estruturais para a realização de grandes eventos e mesmo certames de índole nacional e, como se vê, até internacional ou mais, nomeadamente batalhas e guerras de uma forma geral e dos mais diversos feitios. É uma terra que fica à mão e onde medram e farturam equipamentos a esse respeito e subsídios camarários. Não por acaso, suspeito e defendo que a própria Batalha de São Mamede, fundadora da nacionalidade, foi em Fafe que realmente se desenrolou, pelo menos um bocadinho, e ainda ninguém me conseguiu provar o contrário.

quinta-feira, 10 de abril de 2025

A reinvenção das galochas

As mulheres do campo, as lavradeiras, sempre andaram de galochas. Era assim em Fafe, era assim o mundo. Antigamente, para os demais, uma mulher de galochas era de rir, era parola. Agora andar de galochas é moda, as mulheres vão de galochas para o escritório e para o café. Fico à espera do avental. Ainda hei-de ver as madamas a tomarem chá de mindinho esticado e com um molho de couves à cabeça.

Era uma vez em Fafe

Marcos históricos
Marco Polo, Marco Aurélio, Marco António, Marco de Canaveses, Marco do Big Brother, Marco dos Apeninos aos Andes, Marco Caneira, Marco Chagas, Marco Pantani, marco miliário, marco quilométrico, marco geodésico, marco temporal, Marco ni, Marco Bellini e João Simão da Silva, aliás, Marco Paulo.

Se me dão licença, eu creio que não está devidamente estudado o papel de Fafe e dos fafenses ou protofafenses na fundação da nacionalidade. E esta é uma lacuna particularmente repreensível numa terra que exabunda de historiadores e simpatizantes, amiúde galardoados.
Entendamo-nos. A mim nem me passa pela cabeça que Portugal tenha nascido em Guimarães, aqui a menos de três léguas ou, vá lá, digamos a quatrocentos tiros de besta, em qualquer caso perto e bom caminho, e quase sempre a descer depois de Paçô Vieira, nem me passa pela cabeça, dizia, que Portugal tenha nascido em Guimarães, que é do que eles se gabam, e que em Fafe, ao mesmo tempo, não tenha acontecido nada, eles lá em baixo à batatada, à grandessíssima trolha, um vasqueiro desgraçado, e nós aqui como se nada fosse, a vermos a Gabriela na televisão a preto e branco. É impossível. Portugal de certeza que nasceu também em Fafe, nem que tenha sido só um bocadinho, mas os historiadores - são, infelizmente, os historiadores que temos - ainda não deram fé. Esta é a minha ideia.
Eu lembro-me muito bem, e posso testemunhar, em tribunal se for preciso, que, enquanto jovens e antes do futebol e outras vidairadas, os manos Pimenta Machado, ilustres fidalgos vimaranenses, passavam a vida em Fafe. Ora, se os Pimenta Machado, que eram quem eram, uma ínclita geração praticamente, e, para além de outros cabedais, possuíam um considerável estabelecimento em frente às camionetas do João Carlos Soares, cujo escritório ficava praticamente ao lado do Café do Franklin que é o Café Vitória, na parte de fora do mercado de Guimarães, se os Pimenta Machado, enfatizo, não nos desamparavam a loja, o mais certo é que, antes deles, o próprio Afonso Henriques desse também as suas voltas pelos nossos lados, nem que fosse só para desenfastiar ou beber um copo no Nacor, nada mais natural.

Afonso Henriques, esse gabiru de estilo motoqueiro que gostava de vestir saias e há quem diga que batia na mãe, tinha uma espada que pesava toneladas e não cabia no guarda-vestidos e, em rigor, nem sequer existiu. O espadalhão, quero eu dizer. Já o jovem Afonso ficou na história da moda por ter sido o criador da maxissaia. Morava geralmente no austero Castelo de Guimarães e tinha um anexo charmoso chamado Paço dos Duques onde dava as suas festas que eram sobremaneira constadas. No dia 24 de Junho de 1128, tomai nota, depois de uma dessas iglantónicas farras, noitada de São João ainda por cima, Afonsinho do Condado acordou digamos maldisposto, bebeu um copo de água da mina com bicarbonato, mandou chamar o pessoal e os cavalos e derrotou a progenitora, Dona Teresa de Leão, mailo seu amante galego, Fernão Peres de Trava, na Batalha de São Mamede, levada a efeito ali mesmo nos arredores, para evitar deslocações e despesas, que o País ainda estava a começar.

Acontece que a Batalha de São Mamede, aviso já, nunca me convenceu. Custa-me a aceitar que sítios como Creixomil ou Cano (Cáno, como dizem os locais) possam ser mais importantes no que nos é contado como sendo a História de Portugal do que, por exemplo, e não vamos mais longe, Arões ou Cepães, ali mesmo ao pé, mas do lado de Fafe, do nosso lado. Duvido, de resto, que Guimarães tivesse naquele tempo equipamentos, nomeadamente hoteleiros, para acomodar aquela espanholada toda e ainda por cima recinto preparado e certificado para a pancadaria. É que, parecendo que não, um evento desta natureza, uma batalha com cavalos e tudo, implica muita logística. Olhem só a confusão que são hoje em dia as chamadas feiras medievais! Por outro lado, o Multiusos vimaranense funciona apenas desde 2001 e o Estádio, embora chamado D. Afonso Henriques, só ficou uma coisa em condições para o Euro 2004.

Eu cuido que Fafe teria recebido muito mais condignamente a Batalha de São Mamede. Não é por acaso que chamamos a nós próprios, embora sem razão que se perceba, Sala de Visitas do Minho. Olho para a zona de Rilhadas, vamos um supor, e vejo a batalha ali. Vejo claramente vista. Uma zona devidamente infra-estruturada e onde sobejam as condições e comodidades para a organização de uma batalha com todos os matadores e que certamente não envergonharia ninguém.
As pistas estão aí. Há que repor a verdade dos factos. Fafe não pode continuar à porta, nas bordas da História. De uma vez por todas, Fafe deve ocupar o lugar a que tem direito. Se São Mamede foi em Rilhadas, isto é, se a Batalha de São Mamede foi de facto levada a efeito em Rilhadas? Não sei. Esse é o desafio que eu deixo de borla aos historiadores encartados, particularmente aos intrépidos historiadores fafenses, se a tanto os ajudar o engenho e arte. E não me venham dizer que, a esse respeito, a História é omissa. Omissa? Homessa!

P.S. - Em nome do rigor histórico, refira-se que, regra geral, os vimaranenses de bom beber e satisfatório comer vinham muito a Fafe e, lá com aquelas manias deles, chamavam Toninho dos Canários ao tasco do Nacor.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Chancas à porta

Gato-sapato
Faziam dele gato-sapato. Quarenta e dois, biqueira larga.

As chancas eram de pobres. De gente do campo, rota e remendada. Suja. E de choro e ranho em casa, ó mãe eu tenho vergonha de ir assim para a escola, quero uns sapatos como os outros meninos. Efectivamente, os meninos ricos tinham sapatos, botas e sandálias, consoante a estação do ano no tempo em que havia estações do ano, e os paizinhos dos meninos ricos, depois de razoavelmente gastos os sapatos, as botas e as sandálias dos filhos, vendiam o calçado aos pais dos meninos pobres. Vendiam. Na minha terra, os paizinhos dos meninos ricos eram muito ricos e muito da religião e da santamissinha e das procissões e vicentinos, mas vendiam aos pobres - não davam. Vendiam. Se calhar por isso é que eram ricos. Quem dá aos pobres empresta a Deus, quem vende aos pobres é que se safa. Alguns safaram-se, amém.

Chancas é calçado de pau, valha-me Deus! E, no entanto, chancas era bom. Porque abaixo de chancas eram socos, ainda mais miseráveis e lavradorescos, e abaixo de socos era descalço. Sim, descalço. Andava-se descalço no Portugal pré-25 de Abril. Andava-se descalço por necessidade, e quem andasse descalço era multado pela polícia, ia para o posto e até podia acabar na Pide e na cadeia.
Ora, as chancas. As chancas, exactamente como as galochas, estão agora na moda e caras. Suponho que os netos, as netas, os bisnetos e as bisnetas dos ricos da minha terra correm todos a comprar chancas, envergonhando os antepassados que faziam pouco dos pobres chancudos e antigos. Anacrónicos por maldição, os pobres da minha terra calçarão modernamente sapatinho dirópito - e choram por andarem toda a vida ao contrário. Choram. E eu só me dá para rir.

À conclusão: ao andar, as chancas e os socos, batendo em cheio no chão, faziam um basqueiro desgraçado. Dentro de casa, naqueles velhos soalhos gastos, carunchosos e periclitantes, então era um autêntico terramoto, aliás muito bem aproveitado como fundo musical pelos ranchos folclóricos. Mas no dia-a-dia antigo, doméstico, as chancas e os socos ficavam à porta, do lado de fora. Por causa do banzé, da lama e da terra que traziam agarradas dos campos e do quintal, e evidentemente derivado ao insuportável chulé. Insuportável mas honrado.

Portugal num guardanapo

A táctica do duplo pivô
- Ora muito bem: vamos jogar com dois pivôs, quatro caninos, três incisivos e um molar, e sobretudo com muito siso - disse o treinador aos seus rapazes. Era treinador nas horas vagas
, dentista encartado a tempo inteiro.

Por volta de 1980, Mário Wilson (1929-2016) era o seleccionador nacional e também treinador do Vitória de Guimarães, por onde passava pela segunda vez, se não me engano. No Inverno, para poupar o relvado, único, do velho e feiinho Municipal vimaranense, o Vitória vinha treinar a Fafe geralmente às quartas ou quintas-feiras, fazendo connosco o chamado jogo-treino. Connosco, quero dizer, com a Associação Desportiva de Fafe, que costumava ter uma equipa competente de segunda divisão. Eu trabalhava na AD Fafe: tratava dos papéis, de alguns inocentes papéis, é preciso que se note.
Mário Wilson era uma jóia de pessoa e foi um treinador sobretudo afectivo. Gostava de falar com os seus jogadores um a um, como em acto de confissão mas passeando, colocando-lhes o braço paternal por cima dos ombros - vi-o assim muitas vezes.
Um dia, numa daquelas quartas ou quintas-feiras, o Senhor Wilson entrou-me no minúsculo gabinete, que era por baixo das bancadas e por cima dos balneários, cumprimentou-me elegantemente como se eu fosse alguém e pediu-me se podia usar o telefone para ligar para Lisboa, para a Federação Portuguesa de Futebol. Eu teria para aí uns 21 ou 22 anos e "dei-lhe" autorização, armado em parvo como só naquela idade. Depois de conseguir resposta do lado de lá da linha, o Velho Capitão pigarreou, cofiou a icónica barbicha, foi ao bolso do casacão de cabedal, rapou de um guardanapo de papel marcado com beiçadas de verde tinto, vamos um supor, desamarrotou-o, estendeu-o em cima da minha secretária, alisou-o o melhor que pôde e começou a ditar para a capital o que lá escrevera eventualmente ao almoço. Eram nomes, uma lista, a convocatória para a Selecção Nacional na campanha de apuramento falhado para o Europeu de 1980, em Itália. Exactamente: a Selecção de Portugal estava no guardanapo de Mário Wilson...

terça-feira, 8 de abril de 2025

À facada, era tiro e queda

Uns para os outros
José deu uma facada a António. António deu um tiro a José. É a vida. Temos de ser uns para os outros.

Sou dos filmes de cobóis desde pequenino e particular consumidor dos spaghetti de Sergio Leone com molho de Ennio Morricone. Comecei a vê-los no Cinema de Fafe há mais de meio século e nunca mais parei. Tenho-os agora na despensa, a colecção completa e indispensável, que me foi oferecida pelo meu irmão Orlando. Gosto. Gosto e assobio. Vejo-os sempre que me apetece, e se dão na televisão (como dão de vez em quando na RTP 2, cada vez menos, ou agora nestes canais que nos saem do bolso, como, por exemplo, outro dia, no Fox Movies), não mando ninguém ver por mim. Vejo. Vejo e assobio. Porém, ao fim destes anos todos e após milhões de sessões, devo confessar o seguinte: continuo sem perceber a morte dos bandidos. Há ali qualquer coisa que não bate certo. Quer-se dizer - os bandidos é como tordos, morrem uns atrás dos outros, do mais fraquinho até chegar ao chefe, e assim é que está bem, ordem acima de tudo, mas já repararam à custa e ao fim de quantos balázios? Já contaram quantas balas são precisas para matar um bandido, um só, nem que seja um simples soldado raso, um bandido tão bandido que nunca abriu a boca durante o filme, um figurante praticamente? Mais de dezasseis e todas na muche, isto é, na mosca, até que o estafermo do bandido, um só, aceite esticar de vez o pernil, deixando o filme avançar. É muita despesa e má propaganda à inquestionável pontaria, por exemplo, de um atirador do calibre de um Clint Eastwood. Em contrapartida, quando a coisa é resolvida à facada, o mau da fita morre logo à primeira. Tiro e queda, já viram?
Acho mal. E portanto assobio.

O Texas, a caminho do Picotalho

Flute de Portugal
O Três Marias, o Casal Garcia, o Campelo, o Magos e até o "champanhe", matrimonial ou de alterne, eram à taça, prova rainha. Agora deu-lhes para o flute. Ou flauta. Pfff...

O Texas era um tasco e era em Fafe. Chamava-se também Quiterinha, derivado ao nome da dona, senhora respeitável, ou Pensão Império, e isso eu nunca soube derivado a quê. Estais a ver a Rua Monsenhor Vieira de Castro, quem vai para o Picotalho, do lado do Cinema, depois da padaria do Sr. Rodrigues e encostado à loja do Noré, mesmo em frente à cabine, antes de chegar às Grilas e ainda mais às Turicas, nas barbas da procissão da Senhora de Antime, que lhe passava à porta? O Texas era exacta e geograficamente aí, previamente a ter-se instalado de armas e bagagens no sul dos Estados Unidos da América, resvés com o México, segundo vi depois nos filmes a cores.
O Texas, o nosso Texas, o verdadeiro Texas, era a preto-e-branco como o regime e tinha, após o balcão, um reservado com vista para a cozinha e para os campos do Santo, onde hoje se ergue o cimento do Pavilhão Municipal. Foi no nosso Texas, na sala da frente, que eu vi na televisão os jogos de Portugal no Mundial de 1966. Eu e a RTP éramos miúdos da mesma idade. Ao Texas fui com o meu pai, no Texas confraternizei com os músicos antigos da Banda de Revelhe, que tinha casa de ensaio ali a dois compassos, coisa tão a calhar, no Texas aprendi vida com o querido Senhor Ferreira do Hospital e até com o Queirós, meu camarada bissexto na fábrica e provavelmente o melhor tintureiro do mundo, desse-se o caso extraordinário de ele aparecer ao trabalho...

(Isso. O Texas era como se fosse uma segunda casa de ensaio da Banda de Revelhe, centro de convívio líquido, arena de ateimadores encartados, a verdadeira sede da agremiação. Músicos e apaixonantes reuniam-se e discutiam ali, à volta de umas valentes infusas de vinho verde. Falava-se de música, cortava-se na casaca, contrariava-se por uma questão de princípio, celebrava-se a existência. Houve um tempo em Fafe. Um tempo preciso e uma forma de ser diversa. Havia uma maneira talvez boémia, romântica, idiossincrática, de ser-se músico na nossa terra, naquele tempo. Estava-se assim na vida. É esse tempo, esse modo de vida e esses músicos, figuras extraordinárias, que eu gosto de contar. Quando o meu pai foi para França, os compinchas que ficaram, incluindo o meu padrinho e tio Américo, irmão do meu pai, escreviam-lhe de vez em quando mandando-lhe novidades de Fafe, da banda e do tasco, e, malandros, castigadores, costumavam carimbar a assinatura colectiva da missiva com um fundo de caneca esborratado de tinto matão, acirrando-lhe saudades e apetites. Lembro-me como se fosse hoje.)

Vamos dizer, então, que o Texas, o nosso, era uma casa de pasto - sem ofensa para todos os verdadeiros americanos do faroeste, incluindo gado cavalar e vacum. As portas do Texas eram verdes, mas não eram de saloon. Cobóis, apareciam alguns, sobretudo às quartas-feiras, porém não me lembro de tiros, e os índios era como se fossem da família. Naquele tempo em Fafe, terra de paz e amor, matava-se mais à sacholada, domesticamente, e a Justiça de Fafe era um postal com quadras bairristas do Zé de Castro, poeta-cauteleiro, o nosso Aleixo. Borracheiras havia-as, e eram acontecimento de alta patente, é preciso que se note. Não tínhamos xerife, mas tínhamos o Chester, tínhamos o regedor de pistolete à cinta e tínhamos o Miguel Cantoneiro, que padecia de uma questão com os erres e, para todos os efeitos, também era autoridade. Às vezes, quando não era precisa, também tínhamos polícia.

Em todo o caso: o Texas foi sempre um sítio pacífico enquanto esteve nas nossas mãos. Quando foi para a América é que se tornou perigoso.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

A munha e o munho

Os colchões eram cheios com palha ou folhelho. E as almofadas enchiam-se com munha. Isso mesmo, munha, restos de palha moída depois de malhado ou debulhado o cereal, a que dicionários e vocabulários mais delicados talvez queiram chamar apenas moinha. Mas era munha que se dizia, pelo menos entre o povo rural naquela corda serrana de Fafe e Cabeceiras de Basto, e dizia-se muito bem. Isso. Dizia-se munha, em vez de moinha. E, tomai nota, dizia-se "munho", em vez de moinho. E essa é que essa!

O meu cinema paraíso

Foto Hernâni Von Doellinger

Eu era miúdo. Éramos todos miúdos, como nos convinha. E íamos em bando até à porta da Dona Laura Summavielle, filha, que morava à beira da Igreja Nova. Os Summavielles (Sumaviéisss, se lido e dito à nossa moda) eram os donos do Teatro-Cinema de Fafe, do Cinema, assim explicado sem outros salamaleques. E nós íamos pedir à Dona Laura, que devia ser o melhor coração da família e para mim era o melhor coração do mundo, que nos levasse a ver o filme. De graça. E a boa senhora levava.
A coisa tinha o seu ritual. Esperar à porta do cinema não valia, tínhamos de ir mesmo a casa da Dona Laura, que também não era longe. Éramos para aí uns seis ou sete, às vezes menos, consoante o lado para que tinham acordado os pais de cada qual, e devíamos lá chegar pelo menos com uma boa meia hora de avanço em relação à hora de saída prevista da senhora. Chegávamos e esperávamos. Não se batia à porta, não se tocava na campainha, esperávamos apenas, calados como ratos, porque o mais pequeno ruído podia deitar tudo a perder. Como se fosse a morte do artista.
A senhora saía, encarava-nos sempre com um grande sorriso e nós continuávamos sem dizer nada, nem era preciso. Púnhamo-nos atrás dela, em fila, como pintainhos seguindo a mãe galinha, e, agora que penso nisto, acho que devia ter sido uma coisa bonita de se ver, aquele extravagante grupo a atravessar o Largo da Igreja e a descer até ao Cinema, na máxima compostura e no mais religioso silêncio.
A Dona Laura entrava e nós ficávamos cá fora, bem guardados pelo Senhor Leitão porteiro, que era mau como as cobras e vestia um capote castanho, com botões dourados e gola vermelha, que até parecia um general soviético, embora na bilheteira é que estivesse o Senhor Castro, comunista, alfaiate e bom amigo. Também por lá passou o estimado Sérgio Lopes.
Perdíamos os desenhos animados, perdíamos os "documentários", mas na horinha do arranque do filme a sério vinha a ordem da Dona Laura e imediatamente desatávamos a correr Cinema acima, dois andares a bater chancas em chão de soalho com escarradores, numa trovoada que quase deitava a casa abaixo, até chegarmos ao nosso sítio. Só ali voltávamos a portar-nos bem, sempre perante o olhar bondoso e compreensivo da nossa protectora, que, do seu camarote ao lado da cabina de projecção do Senhor Reinaldo Pires, nos lançava mais um sorriso, com o dedo de chiu sobre os lábios finos.
O nosso sítio era uma frisa e cheirava a veludo velho e tabaco. Quase que pertencíamos ao filme! O som dos altifalantes entrava-nos pelo corpo dentro, estremecia-nos, eu era do tamanho dum buraco do nariz do Maciste e tinha de me afastar para não desaparecer na caverna. Foi ali que eu conheci pessoalmente o Ursus, o Spartacus, o Ben-Hur e o Hércules e podem crer que aqueles cenários de papelão só pareciam de papelão, de resto eram mesmo a sério, e eu acreditava que era por causa do papelão que os filmes eram peplum. Eu sei, porque estive nos filmes. Fui eu que ajudei o Sansão a dizer "morra Sansão e todos os que aqui estão", para eu e ele nos vingarmos da traidora da Dalila e acabarmos com o filme logo ali, porque aquilo não se faz, e não me venham dizer que ele não disse nada disto. Dissemos!
Perguntassem ao "Sandim". Ele é que ia à estação de comboios "buscar os artistas", num carrinho com rodas de madeira. Mas não trazia os beijos todos. Não cabiam nas bobinas, decerto. As cópias dos filmes eram velhas, cheias de cortes, no melhor e mais quentinho passavam sempre à frente. Como o Jornal da Igreja Nova trazia uma sinopse das películas do fim-de-semana, nós achávamos que o Senhor Arcipreste fazia um visionamento prévio e culpávamo-lo por aquele imperdoável acto de censura. Mal eu sabia que ainda havia de ser feito um filme sobre esta minha história, mas em italiano.
No meu Cinema moravam cobóis, e nem sei como é que nunca morri com uma tiro. No tempo em que o que eu queria era crescer para ver filmes "para maiores de 17", havia também umas senhoras da Rua de Baixo e de Santo Ovídio que faziam de arrumadoras e tomavam conta do buffet, onde serviam gasosas, laranjadas, café de cafeteira e rebuçados mulatos. Ao intervalo, enquanto o ardina entrava plateia dentro com a edição do Norte Desportivo de domingo à noite, já com os resultados e relatos dos jogos todos, os espectadores recebiam umas senhas para irem lá fora tomar café em condições.
No meu Cinema liam-se as legendas em voz alta para os analfabetos que não eram poucos. O meu Cinema era coisa fina. Em miúdo, nos intervales, perdendo-me na contemplação dos tectos, ali mesmo à mão, eu imaginava o belíssimo Teatro-Cinema de Fafe como uma pequena sala de ópera, um São Carlos à nossa moda e medida. E, se quereis saber, ainda imagino. Se fosse hoje, após a merda do chamado acordo ortográfico, perder-me-ia nos tetos, o que, apesar de tudo, também poderia ser bom. Chegada a época, jogava-se ao Carnaval com muita estupidez, serpentinas, pimenta e peidos-engarrafados, e constava que, após o filme, havia baile no salão nobre para meninas e meninos bem. O respeito e a, como hoje se diria, segurança eram zelados pelo Senhor Barroco, pelos Senhor José e Senhor António do Santo, irmãos, e pelo Tónio Quim Calçada, o Senhor António Quim, que, derivado ao nome e por trabalhar no mesmo ramo, eu sempre confundi com o outro, o de "Zorba, o Grego". Foi na companhia desta gente que eu cresci. Mal comecei a ganhar, larguei frisa e passei a ter bilhete reservado para todas as sessões. O meu primeiro dinheiro foi sempre para o cinema. Durante anos, mantive lugar no camarote do outro lado da cabina de projecção do Senhor Reinaldo Pires. Simétrico à Senhora Dona Laura Summavielle, minha querida benfeitora, aquilo é que foi subir na vida. Melhor era impossível.

Quer-se dizer. Sou do cinema desde pequenino. Sou do cinema por causa do meu Cinema. Deixei Fafe no início da década de 1980 e o meu Cinema entrou em ruína. Pensei que outros tivessem ficado a tomar conta, mas enganei-me. Depois de 25 anos de inactividade, muita politiquice e um impressionante trabalho de recuperação, o Teatro-Cinema de Fafe reabriu portas em 2009, sem Maciste, sem Sansão nem Dalila, sem o Senhor José do Santo e sem a Dona Laura Summavielle. Já lá não estão, já cá não estão. Os cobóis também foram despejados. O novo Teatro-Cinema de Fafe, que só conheço por fora, funciona agora, sem hífen, como entreposto cultural camarário. O que é certamente aplaudível e tem muito mais cagança - mas não é a mesma coisa.