sábado, 1 de novembro de 2025

Era tão fácil a morte em Fafe

O testamento
O notário vacilou. Mas leu. O defunto deixava beijos e abraços. Distribuídos pelos inúmeros herdeiros em fracções de zero a 145, consoante o julgado merecimento de cada qual. Dinheiro não havia. Tinha ido todo em putas e vinho verde. Isto é, em beijos e abraços.

Um folheto que me foi metido na caixa do correio convidava-me a escolher "um Plano Funerário adequado". Adequado a quê e para quem?, se conto estar morto quando for o meu funeral e quero lá saber de mordomias póstumas - foi o que então pensei, e já lá vão alguns anos. O papel dizia que havia um "Plano Magno", praticamente como o gelado, um "Plano Essencial", que não faz bem nem mal, e um "Plano Popular", como o ex-CDS. Em qualquer dos casos, eram garantidos "serviço personalizado a partir de 995 euros" e uma vasta "experiência", o que também deixa muito mais descansado o defunto mais exigente. "Florista, Campas e Lápides, Documentação Oficial, Serviço Internacional, Música na Cerimónia, Medalha Impressão Digital, Cinzas ao Mar, Financiamento sem Juros, Contrato de Funeral em Vida", estava trudo previsto.
A caixa do correio mete-me medo. Não tanto pelas contas da luz, da água ou do condomínio, tampouco pelos avisos das Finanças ou do Tribunal, mas principalmente pelos que me perguntam pelo meu ouro e eu não os conheço de lado nenhum, pelos que me pedem o meu voto e não me conhecem de lado nenhum, pelos que querem comprar a minha casa que eu não quero vender, pelos que me querem vender uma casa que eu não quero comprar, pelos que querem que eu mude de Deus, e agora até pelos que me querem vender a minha morte como se soubessem alguma coisa da minha vida que eu não sei, ainda por cima aliciando-me com extras e regalias redundantes, luxos próprios para defuntos vaidosos, como se por acaso eu estivesse mortinho por fazer figura.
Vamos lá com calma. Eu sei que ninguém fica cá para a semente e que se alguém ficar sou eu (mas não é isto que aqui interessa). Sei que fatalmente já por cá andei mais tempo do que aquele que me resta para andar. Mas, com franqueza, a vida é tão boa e dá-me tantas consumições, que tenho mais que fazer do que pensar na morte, do que organizar a minha morte. Quando eu morrer (se morrer), logo se verá. Eu é que já não verei, e não me faz diferença nenhuma. Que se amanhem! Essa é a herança que deixo de bom grado a quem me sobreviver. Se alguém houver.

Era tão fácil a morte em Fafe. Morria-se e tínhamos logo à porta, como se estivessem à espera, de fita métrica na mão, patrões ou emissários, o Albano da Costa ou o Damião Monteiro, que dividiam o mercado talvez ela por ela, cada qual já sabia quem eram os seus, e, mais tarde, também o Baptista de Antime, que alugava altifalantes e fazia funerais "de categoria", como afiançava o Zé Maria Sapateiro, e nunca ninguém o desmentiu. Na hora da morte, a escolha da funerária, para os fafenses, era simples: baseava-se nas amizades, nas ligações familiares e, definitivamente, em favores devidos a este ou àquele cangalheiro, homens importantes, influentes, e com negócios e interesses vários e poderosos na vida da vila antiga.
Às vezes, para enterros nas aldeias à volta, algumas delas, por aquela altura, ainda sem estradas de lei ou sequer caminhos transitáveis, os agentes funerários requisitavam a carreta dos Bombeiros, puxada e manobrada à mão por um piquete fardado de gala, com luvas brancas e capacetes dourados reluzindo ao sol, coisa bonita de se ver. Nestas infaustas e solenes ocasiões, os bombeiros de serviço recebiam uma pequena gratificação, a bem dizer simbólica, decerto saída do pagamento da funerária à corporação, e, após as exéquias, no regresso do cemitério, eram amiúde agraciados pela família enlutada com uma generosa merenda, que constava, regra geral, de bacalhau frito, broa e umas boas malgas de verde tinto, evidentemente, nem que fosse apenas manhãzinha.
Publicidade a respeito de funerais, naquela maré, em Fafe, a única que havia era a do gato-pingado biscateiro e apressado que andava de loja em loja, de café em café, de tasco em tasco, a deixar o tradicional aviso em papel do falecimento e do enterro, para colocar nas montras, mas explicando sempre de viva voz, em todos os locais, quem era exactamente o morto, o seu enquadramento familiar, irmãos, pais ou filhos, se fossem mais conhecidos, uma ou outra nota biográfica, empregos, alcunhas, se as houvesse, hora e morada, porque naquele tempo os defuntos saíam de casa, tudo dito muito rapidamente, entrada por saída, uma e outra vez, numa espécie de lengalenga previamente ensaiada, porém aberta a perguntas, e eu gostava muito de ouvir aquilo, como se fosse um teatro, uma récita, eu dava realmente valor ao trabalho do homem. O gato-pingado, para mim, era um artista.

Devo confessar, já agora, que o prospecto que me enfiaram na caixa do correio acabou por aguçar a minha curiosidade. Esse é, afinal, o truque do marketing, mesmo do marketing de trazer por casa. Porta a porta. Admito que estou a pensar pedir um orçamento para a minha morte. Seduziu-me aquela coisa da "Medalha Impressão Digital", que não sei o que é mas deve ser muito bom para o morto. E também quero que me expliquem muito bem explicadinho o "Contrato de Funeral em Vida". Isso é legal? E é saudável? Funeral em vida? Dasse!...

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Encontro de espíritos

Eu vi o Natal!
Subi ao farol e vi o Natal! Isto é. Não vi nada, estava a brincar. Eu não subi ao farol. Tenho vertigens.

Reuniram-se os espíritos no seu tradicional encontro de fim de ano. E lá estavam: o espírito de equipa, o espírito empreendedor, o espírito indomável, o espírito desportivo, o espírito de entreajuda, o espírito de sacrifício, o espírito positivo, o espírito de finura, o espírito da coisa, o espírito do amor, o espírito geométrico, o espírito da lei, o espírito do senhor, o espírito al negro, o espírito de porco e o espírito santo de orelha, que presidia aos trabalhos e perguntou: - Está tudo? Podemos começar?...
Que não. Era melhor esperar um bocadinho. Faltava o espírito natalício...

O Dia do Bruxo

O ocultismo
Sabe-se muito pouco sobre o ocultismo. Por isso é que se chama assim.

Eu parece-me um disparate que Fafe celebre a americanice do Dia das Bruxas, quando tão bem servidos estamos com o produto local, o inestimável Sr. Fernando Nogueira, que tanta fama traz ao nome da nossa terra. E se traz fama, decerto também trará proveito, que o povo vem-lhe de todo o lado e estou em crer que há-de fazer despesa ali pelos estabelecimentos das redondezas, portanto é dinheiro que fica em caixa e, se não me engano, foi mais ou menos assim que Fátima e Lourdes começaram.
Para além disso, o Sr. Fernando Nogueira é uma figura nacional, é procurado por gente da alta, do futebol, da finança, do poder, até do estrangeiro, trata o diabo por tu, fala aos jornais, aparece nas televisões, é entrevistado pelo Manuel Luís Goucha na TVI, é assunto da Joana Marques na Rádio Renascença, faz-se fotografar em férias com Lucília Gago, procuradora-geral da República, acerta amiúde no euromilhões, tem sítio oficial na internet e, sendo de Guimarães, porque ninguém é perfeito, podia muito bem escolher o nome que lhe apetecesse, com mais ou menos molho e lantejoulas, mas não, preferiu-nos, faz questão de ser o Bruxo de Fafe, sorte a nossa. Simplesmente Bruxo de Fafe, insistentemente Bruxo de Fafe, e, orgulhoso, dá a esta marca que também nos envolve o indesmentível cunho de garantia: "Eu sou o Bruxo de Fafe, não sou charlatão!", costuma declarar quando interpelado por desconfiados ou incréus, honrando-nos a todos, e eventualmente nem todos o merecemos.
Portanto, não me canso de repetir: mas qual Dia das Bruxas, mas qual Halloween, ó meu Deus, ainda por cima Halloween! Em Fafe, não! Estamos servidos. Em vez de encher a Biblioteca, o Teatro-Cinema e as ruas, se não chover, com bichas cabeçudas, pragas de conserva, abóboras de plástico, esqueletos desengonçados, teias de aranha a fingir, morcegos em cartolina, rolos de papel higiénico e bruxas desencartadas, tudo à americana, tudo copiado de lá de fora, tudo tão longe das nossas verdadeiras tradições, melhor faria o Município se olhasse para o que tem à mão e declarasse oficialmente o dia 31 de Outubro, já este ano e doravante, Dia do Bruxo. Do Bruxo de Fafe. Era de justiça.

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Poesia imperfeita e geralmente pretérita 11

Onomástico

Segismunda acrisolada,
recanto do meu amor,
'tás um pouco constipada,
faz favor d'entrar, senhor!

Adalberto Policarpo,
rubicundo e anacrónico,
a dormir fora do quarto
fez concerto polifónico.

Frederico pequenino,
alegria de petiz,
não aprecia o pepino,
tem dois furos no nariz.

Josué do lavatório,
bebedor retardatário,
por causa do falatório
entrou para o seminário.

Heliodoro bacoco,
de esgálguica figura,
como arabesco barroco
saído de iluminura.

Tem Felisberto um chinelo
que é primo de uma pantufa,
o gato molhou o pêlo,
foi secá-lo à estufa.

João Pereira Correia
Adalberto Costa Aleixo
Fernando José torneia
o molde de um novo queixo.

É D. José de Alenquer
tenente de Infantaria,
não encontrando mulher,
casou com a própria tia.

António Ferreira das Neves
Ribeiro Magalhães Alvão
Gonçalves Antunes Esteves
Lopes Teles Sebastião.

O Sr. Armindo mandava para baixo

O idoso
Chegou aos 66 anos e quatro meses... e reformou-se. Aprendeu a jogar à sueca, tirou o passe de terceira idade, comprou um capacete, um par de botas de biqueira de aço e um colete reflector, pôs as mãos atrás das costas e foi para o pé das obras mandar palpites.

Antigamente mandava-se a papelada para baixo, e quem tratava do assunto em Fafe, desburocratizando a vida dos mais pobres, era o Sr. Armindo Bristol, pai do Armindo Cinco-Coroas, príncipes do velho Picotalho e gente do melhor que possa haver em Portugal e no mundo inteiro. Meter os papéis era pedir a reforma. Sim, pedir, como se fosse uma esmola, e por acaso era - como se não fosse um direito. O Sr. Armindo pai, homem letrado e bom, vestia fato e sobretudo durante todo o ano e despachava na mesa do tasco muito limpa e organizada em envelopes, folhas de papel de 25 linhas, folhas de papel selado, cédulas pessoais, bilhetes de identidade, cartões da Caixa, recibos, atestados médicos, provas de vida, recomendações do presidente da Junta, do regedor e do bufo da Pide, a bênção do senhor abade, selos dos Correios e estampilhas fiscais, uma caneca de verde tinto em exercício e quero crer que escrevia com caneta de tinta permanente.
O Sr. Armindo, figura excelentíssima que um dia espero contar melhor e mais minuciosamente, passou uma porrada de anos no sanatório e foi lá que se formou em desburocracia e ajuda aos outros. Quando tornou a casa, salvou o resto das vidas de milhares de fafenses desinformados, abandonados, assustados e analfabetos. Fez-se loja do cidadão. Serviço prestado a troco de um quartilho, por um punhado de moedas ou por uma nota de vinte, consoante as posses dos desgraçados requerentes e da previsão da tença a haver, ou então por nada, apenas por um obrigado, um Deus lhe pague, uma mãozada, ficamos assim e não se fala mais nisso, porque na nossa terra, naquele tempo, a única fartura era a pobreza, abundava quem não tivesse dinheiro sequer para assobiar em cuecas sem ir preso, e o Sr. Armindo sabia disso, sabia da vida, conhecia o povo, um a um, e fazia caso.

Os desburocratas

Certidão de óbvio
As autoridades compareceram no local e confirmaram o óbvio: o morto já se encontrava cadáver. É daí que vem.

Para quem não sabe ou não se lembra, informo que os Mercadinhos Montenegro foram o primeiro "supermercado" de Fafe. Havia lá de tudo como na farmácia - a Farmácia Moura, que lhe ficava em frente - e, ainda por cima, os donos faziam o favor de pagar os vales postais das pensões e reformas dos seus clientes mais pobres e amiúde analfabetos, discretamente, livrando-os do incómodo e até da exposição e humilhação pública de uma ida ao banco ou aos Correios. Os "Mercadinhos" eram uma espécie benévola de loja do cidadão ou tesouraria popular. Primeiro com o Toninho da Luísa, depois com o Chico. Gente com olho para o negócio, porque uma coisa puxa a outra, não digo que não, mas sobretudo gente boa, solidária, decente - desburocratas antes do tempo.

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Poesia imperfeita e geralmente pretérita 10

Tangerina dream

Gosto de comer
tangerinas à noite.
Tangerinas sem grainha.
Ainda ontem comi quatro,
tinha na ideia comer três,
mas a terceira foi-me falsa
e por conseguinte fui-me
à quarta.

Ai que bem que me souberam
as tangerinas,
tangerinas sem grainha,
tão frescas e tão boas
menos uma!

Evidentemente
não preguei olho
toda a noite.

Sete minutos e quatro centímetros

Um pé assim e outro assado
Ele tinha um pé de laranja lima. O outro era normal, perfeitinho graças a Deus: cinco dedos, tarso e metatarso, planta ou sola, peito ou dorso, calcanhar e tornozelo, num total de 26 ossos em razoável estado de conservação. E era bom nas bolas paradas.

Eu não vi. Àquela hora tenho habitualmente mais que fazer, como por exemplo dormir, coisas de velho. Mas ouvi dizer, logo pela manhã, enquanto fazia a minha caminhada pelo Passeio Atlântico, ali em baixo, à beira do mar. Não se falava de outra coisa. Que passavam sete minutos e faltavam quatro centímetros, diziam, e eu fiquei deslumbrado com a descrição da "jogada", tão precisa, tão matemática, tão literária, tão fácil de imaginar, tão bela, tão diferente do tempo em que era uma bola a pinchar e onze contra onze, coisa de moços, de gente simples! Ó, a beleza do futebol moderno! Mas qual dominou com o peito e rematou sem deixar cair. Mas qual "ripa na rapaqueca", mas qual "vai buscá-la, Tibi", mas qual drible, ginga, revienga, trivela, cueca, frango, calcanhar, chapéu, fífia, rasteira, ressaca ou sarrafada, finta um, finta dois, finta três e dispara por cima do guarda-redes, sem hipótese, ao ângulo, na gaveta, "lá onde a coruja dorme!", mas qual "passa a bola!", como dizia o nosso Aníbal, mas qual golo de bandeira, estádio de pé, orgasmo do povo! Isso já não interessa. Não. Passavam sete minutos e faltavam quatro centímetros, isso sim, era disso que falavam no "pós-match" de café, foi isso que aconteceu para a história, minutos e centímetros, tempo e espaço, VAR. Compensação de neutralizações e linha virtual de fora-de-jogo. Tecnologias. Tácticas e habilidades não são assunto, a fantasia é dispensável, omitida, discute-se o relógio e o tamanho da chuteira, quarenta e três biqueira larga. Sete minutos e quatro centímetros. O futebol hoje em dia é de contar pelos dedos.

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Poesia imperfeita e geralmente pretérita 9

Siga

Siga
siga a rusga, siga o baile
siga a nossa reinação
siga pra bingo, siga para tribunal
siga as instruções

siga a marinha
grande

(cigala cigalinha cigalão)

sigafredo, sigatone, sigazé

sigajoão
pequeno

Com cem mil coiotes!

Branca e radiante
Branca de Neve brincava às casinhas com a casa dos sete anões. Com os anões ela brincava aos médicos. Mas não sei se, hoje em dia, isto se pode dizer.

Conheci muito bem Walt Disney. Ele falava brasileiro e dava aos sábados ou domingos à tarde no televisor a preto e branco do café Peludo, em Fafe. O Sr. Walt Disney, que tinha um bigodinho à Peter Sellers com bigode, isto é, à inspector Clouseau, não só falava muito bem brasileiro como, para mim, era mesmo brasileiro, por isso é que se chamava Walt Disney, nome próprio de jogador de futebol, talvez centroavante, e podia muito bem ter vindo jogar para Portugal, mas parece que não veio. Uma coisa é certa: foi ele quem me apresentou a figuras extraordinárias e tão importantes para a minha vida como o Zé Carioca, o Professor Pardal e o Lampadinha, os Irmãos Metralha, o Tio Patinhas, o Pato Donald e os sobrinhos trigémeos Huguinho, Zezinho e Luisinho, todos também a falarem muito bem a língua portuguesa, quero dizer, o brasileiro, o que me enchia realmente de orgulho.
Tive bons mestres. O Sr. Walt Disney e o nosso Marreca, é esse o nome que trago na memória, esperto alfarrabista das mil e uma coboiadas estabelecido naquele "coté" encravado debaixo das escadas da Arcada, do lado do Club Fafense, minúsculo quiosque de um janelo só que era porta aberta para o mundo. "Mundo de Aventuras", "Condor Popular", "Ciclone", "O Falcão". Luís Euripo, Mandrake e Lotário, Tarzan, Kalar, Cisco Kid, Texas Kid, Kit Carson, Fantasma, Buck Jones, Major Alvega, Matt Dillon e Chester, velhos companheiros de jornada, heróis de trazer para casa. Os livrinhos, depois de lidos e relidos, levávamo-los de volta, para a troca, em perfeito estado de conservação, o que só os valorizava, num sistema que funcionava muito bem, entregávamos, por exemplo, seis e trazíamos, por exemplo, três, o negócio era feito a olho, mas mesmo assim valia a pena, principalmente para o quiosqueiro, isso também era fácil de ver.
Aprendi bastante. Foi por estas e por outras que eu fiquei a saber que forasteiros são pessoas que vêm de fora, no faroeste, e portanto deviam era ser faroesteiros, deve ter havido engano, fiz a proposta de alteração aos dicionários, em devido tempo, mas, como sempre, ninguém me ligou. Foi nestas leituras que eu me enriqueci com expressões tão magníficas e úteis ao nosso dia-a-dia como, para não irmos mais longe, "Por Manitu!", "Saca, cão!" ou "Com cem mil coiotes!", e está é a minha preferida. Nos livros aos quadradinhos, Walt Disney já era a cores e ensinou-me, por outro lado, palavras bem portuguesas e bonitas como cadê, sgrunf!, pilantra e sobretudo carona, de que eu gostava muito, quase tanto como gosto ainda hoje da palavra parreca, que eu já conhecia de ginjeira das nossas feiras e romarias, desde pequenino, parece impossível...

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Poesia imperfeita e geralmente pretérita 8

Para

Para
paradigma
paradigmático
paradigmando

parabolizando paráfrases paradoxalmente paranóicas
parabenteando paranomásias paracronicamente parassigmáticas
parassintetizando parataxes parafernalmente paralexizadas
parangonando parágrafos paralelamente paramétricos

paragrama, paralelipípedo, paralelograma

(paragoge, parafonia)

paraliteratura paralógia, parabasicamente

paragonar paratitlos:
não paralambdacismarás!

parageusia
paraplasma, parapleura, paratiróide
parassiflítico, paratífico
parassimpático, parantipático
parafrenite, paraciesia, paracusia, parafimose
paralítico, paralisia
paraplexia, paraplégico, paralímpico, para todos
paramnésia, paraminia, paralalia, paracmástico
paracentese, paracelsismo
paramédico, paracetamol
paraldeído
paranormal
paracéfalo, parasceve, parasita, paramilitar
parapsicologia

parapeitando parasselenicamente a paralaxe

pára-raios, pára-fogo, pára-águas, pára-chuva, pára-sol
pára-vento, pára-brisas, pára-choques
Paralamas do Sucesso
pára-quedas, pára-quecas, párapente e escova dos dentes

Parafita, Paranhos
Paracleto, Paráclito, Paraíso
paramento, paraminto

parampumpum

Paramaribo

parastática, paral
parafusaria, parafuso, parafusador, parafusação
parafina, paragrossa

paracanaxi, paracarpo, paracaúba, paracutaca, paracorola
parátipo, paraidrogénio, paramagnetismo, paraformismo, paraxial, paragénese
paráclase, paráfise
paralelinérveo, parápode, paramécia, palambulacrário, parátipo
Paradiseídeos, Paramecídeos, paradáctilo

pararaca, parati, um corneto para mim
parau, páralo, paravante, parálio
paraense, paraguaio, paranaense
paralheiro

páramo, parado, parança
parada
paradeiro, paradouro
paradela, paragem

paraninfo, paragão

para-quê

para a frente e para trás
para trás e para a frente
pára
pára Pedro, Pedro pára
stop.

Os livros estavam em boas mãos

E apeteceu-me dar-lhe um abraço
O homem caminhava vagarosamente ao lado da mulher. Curvado pelo peso de, fiz as contas, setenta e tantos anos, caminhava ainda assim com uma dignidade evidente. O homem velho, de casaco antigo, asseado, pé ante pé até ao café de praia e ao milagre do sol-pôr, levava as mãos atrás das costas. E nas mãos, reparei, um livrinho da Colecção Vampiro, a antiga: "O Imenso Adeus", de Raymond Chandler. Caramba!, és cá dos meus - pensei. E apeteceu-me dar-lhe um abraço.

A mania dos livros apanhei-a em Fafe, mal aprendi a somar letras, na biblioteca que na altura se chamava da Gulbenkian. Lembro-me muito bem da carrinha Citroën cinzenta em chapa canelada, a biblioteca itinerante, que frequentei uma ou duas vezes, estacionada à beira do Manel do Campo, mas o meu sítio já era edifício, do outro lado do Largo, em frente, creio que um primeiro-andar entre a loja do Damião Monteiro e a sapataria da esquina que dava para o beco da Polícia e em cima ou por baixo da Legião Portuguesa, o que certamente justificaria que fosse ali mesmo a meta de partida e de chegada da corrida de jericos dos 16 de Maio. Comecei pelas figuras, evidentemente. Depois procurei-me nos livros. E ia lá quase todos os dias. Em miúdo, ainda em tempo de escola primária, parece-me que sob a orientação rigorosa mas gentil do Senhor Alves, pai, espero não estar a dizer uma asneira muito grande, e depois já em moço, no meu regresso a casa pós-25 de Abril e pós-seminário, beneficiando da cumplicidade generosa e vanguardista do Professor Alberto Alves, que me abriu os olhos para um mundo inteiro que eu não sabia. Foi a minha sorte. Os livros são armas poderosas. E, em Fafe, estavam em boas mãos.

A revolta dos ratos

Reescrevendo a estória
Passou o João Ratão e disse: - Ó Laurindinha, vem à janela!...

Revoltaram-se os ratos. E pudera. Sistematicamente acusados de serem os primeiros a abandonar o navio, atropelando mulheres e crianças, apontados como sinónimo de cobarde, ladrão, manhoso ou vigarista, introduzidos à força em trocadilhos idiotas e em provérbios e ditos amiúde populares, estavam fartos de levar e calar. Os ratos e inclusive as ratas, muito mais doridas e por maioria de razão.
Revoltaram-se portanto os ratos. Organizaram-se. Chegada a horinha, meteram-se na fila, esperaram pela vez respectiva, marcaram o ponto e abandonaram ordeiramente o navio. Foram os últimos a sair. E apagaram a luz. Já em terra firme, os ratos dirigiram-se sem mais delongas à montanha que os pariu e roeram a rolha da garrafa do rei da Rússia. Todos, menos o Alcides, que era um rato de biblioteca e foi para o Café Avenida beber um dedal de rum e ler com todos os vagares "A Saga/Fuga de J.B.", de Gonzalo Torrente Ballester.

domingo, 26 de outubro de 2025

O milagre das horas

Em cima da hora
Mandaram-no atrasar a hora e ele lá foi. Tentou tudo, pôs-se-lhe à frente, contou-lhe anedotas, ofereceu-lhe um panike e um sumol, deu-lhe indicações erradas, chegou até a agarrá-la pelo braço, mas o máximo que conseguiu foi atrasá-la dez minutos. Agora não sabe como vai ser...

Eu tinha dois relógios indiscutivelmente atrasados uma hora, isto já há coisa de meio ano. Eram o relógio do carro da minha mulher e o relógio aqui do "escritório". A minha mulher e o meu filho chagavam-me a cabeça: - Ó marido, ó pai, que vergonha, relógios atrasados uma hora, e logo dois, que vergonha, que vergonha, se ainda ao menos fossem adiantados, porque é que não acertas as horas, ó marido, ó pai, ó atraso de vida!?...
- As horas a Deus pertencem, ficaremos de horas certas quando for vontade do Senhor - respondia eu, pouco crente em relógios, habituado a guiar-me pelo apito da Fábrica do Ferro e pelo sino da Igreja Nova, nos meus tempos de Fafe, e não há maneira de conseguir deslargar-me desta irremediável costela sacrista e operária, ó mulher, ó filho...

E hoje deu-se o milagre, já contei à Mi e ao Kiko, e vou ligar ao Vaticano, onde também tenho os meus conhecimentos, não cuideis que não. Acordei e o relógio do carro da minha mulher e o relógio aqui do "escritório" estavam certíssimos, mais TMG era impossível. E ninguém lhes tocou! Deus é grande e o tempo está bem bom, não está?

In vino veritas, in aqua planing

Convívio
Todos os domingos com chuva, sempre o mesmo dilema: "shopping" ou urgência do hospital? Optava invariavelmente pela urgência do hospital. - Há mais convívio - dizia.

Compareceram todos. Ab Initio, Modus Operandi, Lapsus Linguae, Curriculum Vitae, Honoris Causa, In Dubio Pro Reo, E Pluribus Unum, Habeas Corpus, Ex Aequo, Ipso Facto, Mea Culpa, Per Capita, o casal Dura Lex, Sed Lex, Post Scriptum, Sine Die e Sine Qua Non, Ad Hoc, Statu Quo e Procol Harum, Sui Generis, Vade Retro, Totus Tuus e Deo Gracias, Data Venia, Ipsis Verbis e Ipsis Litteris, A Priori e A Posteriori, Apud, Carpe Diem, Grosso Modo, In Loco, In Memoriam e In Vitro, RIP, Dux Veteranorum, Alter Ego, Fac Simile, Verbi Gratia, Ibidem e os irmãos A Contrario Sensu, Lato Sensu e Stricto Sensu.
Honoris Causa abriu os trabalhos e foi directo ao assunto. Disse: - E se nos deixássemos de merdas e começássemos a falar como as pessoas?...

sábado, 25 de outubro de 2025

Poesia imperfeita e geralmente pretérita 7

Guia de marcha

Esquerdo direito ope dois
Esquerdo direito ope dois
Esquerdo
Esquerdo
Esquerdo
Esquerdo direito ope dois
Esquerdo direito ope dois
Erdo
Erdo
Erdo

Recordações da casinha amarela

A idade não tem idade
Às vezes penso. Que idade terá uma mulher que diz que tem cinquenta anos?

Fui tratar da renovação do cartão do cidadão e, é preciso ter azar, foi rápido, correu tudo muito bem. Despacharam-me em menos de um quarto de hora. Eu contava passar a tarde inteira refastelado numa das cadeiras partidas das instalações de Alferes Malheiro, embora tivesse marcado para as catorze um encontro com o Lopes e com as bifanas da Conga, mas ainda não era meio-dia e já me despejava no meio da rua sem saber o que fazer com os seguintes cento e vinte e tal minutos da minha vida. É isto, desabituei-me de ir à Baixa do Porto. E, ainda por cima, não sei falar inglês.
Ameaçava chover. Vi uma daquelas livrarias de campanha montada mesmo à frente do meu nariz, no largo da estação de metro da Trindade, e entrei. A mania dos livros apanhei-a em Fafe, mal aprendi a ler, na biblioteca que na altura se chamava da Gulbenkian e lembro-me muito bem da carrinha cinzenta em chapa canelada, a biblioteca itinerante, que frequentei uma ou duas vezes, mas o meu sítio já era edifício, creio que um primeiro-andar entre a loja do Damião Monteiro e a esquina que dava para a Polícia e em cima ou por baixo da Legião Portuguesa, o que certamente justificaria que fosse ali mesmo em frente a meta de partida e de chegada da corrida de jericos dos 16 de Maio. Entrei, dizia, tornando ao Porto e à livraria bimby. Lá dentro, o refugo do costume ao habitual preço da uva mijona, nada de razoavelmente interessante, mas às vezes nunca se sabe...
Uma simpática funcionária, diria entre os trinta e muitos e os quarenta e poucos, abeirou-se-me e perguntou, de sorriso engatilhado:

- Posso ajudá-lo?
- Ando só a ver, muito obrigado. Mas, já agora, diga-me, por favor: tem alguma coisa do Montalbán?
- De quem?
- Do Vázquez Montalbán, histórias do Pepe Carvalho...
- Quem?
- Pepe Carvalho.
- Saiu este ano?
- Não. No geral, são livros já com uns anitos...
- E o género?
- Policial, talvez. Mas dizer policial é dizer muito pouco. Policial literário e gastronómico, se for possível, e de repente não sei dizer melhor...
- Pepe Carvalho? Esse autor acho que não temos.
- Desculpe. O autor é Manuel Vázquez Montalbán. O herói dos livros é que se chama Pepe Carvalho, detective privado de origem galega e estabelecido em Barcelona, uma espécie de Sherlock Holmes espanhol, mas mais verosímil e versão séculos XX/XXI.
- Então é conhecido em Espanha...
- Quem? Eu?
- Não. Esse tal Pepe....
- Acredito que sim, e em Portugal também. E no resto do mundo, se calhar. Não é que seja abonatório por aí além, mas até já fizeram filmes de um ou dois livros do Montalbán, quer ver?

Resolvi ser eu a ajudar a solícita porém desinformada funcionária. Por falar em Manuel Vázquez Montalbán (1939-2003), eu andava exactamente a reler a Série Pepe Carvalho que as Edições ASA em boa hora começaram e em má hora interromperam, após a eucaliptal intervenção da Leya. Fui à mochila e saquei o "Assassinato no Comité Central", que por acaso acabei ainda na espera desse princípio de tarde. Expliquei à senhora:

- Vê?...
- Ah! Montalbán é que é o autor. Eu estava a perceber que Pepe Carvalho é que...
- Esta era uma belíssima colecção da ASA que infelizmente...
- Ah! Livros da ASA não tenho.
- Mas Montalbán já foi publicado em português por outras editoras, pelo menos pela falecida Regra do Jogo e pela Caminho, se não me engano, há até uns livrinhos de bolso, tenho um, "As Termas"...
- "Assassinato no Comité Central", esse aí...
- Olhe, foi um dos que deram filme. Neste, quem faz de Pepe Carvalho no cinema é, veja lá, o Patxi Andión...
- Quem?
- O Patxi Andión, o famoso cantor espanhol, o cantautor, o poeta, o escritor...
- Não estou a ver...
- Então, o Patxi Andión, ainda outro dia esteve aqui na Casa da Música...
- Não, não conheço. E até gosto de música espanhola, mas não da música pimba...
- Minha senhora, o Patxi Andión...

Ia gastar mais um pouco do meu atamancado latim para explicar à gentil funcionária o que é realmente música pimba e quem era Patxi Andión (1947-2019), também professor universitário, que visitava Portugal desde o tempo do Zip Zip - de Raul Solnado, Fialho Gouveia e Carlos Cruz -, ia contar-lhe as amizades antigas do basco nascido em Madrid com Ary dos Santos e com Zeca Afonso, ia confessar-lhe as saudades que eu sentia de o ouvir cantar no rádio da nossa casinha amarela, no Santo Velho, em Fafe, eu ainda menino e moço de seminário, de férias, nas vésperas de nos mudarmos para o Assento, "ay Manuela, ay Manuela!", a minha mãe também gostava, punha mais alto, e eu cantava com ganas, engrossando a voz, comovido, revoltado, militante de não sei quê, "rúmbala, rúmbala, rúmbala", mas desisti. Preferi ser agradável e mentir com quantos dentes tenho, e eram todos menos os sisos inferiores. Disse:
- ... Pois, evidentemente a menina é nova demais para conhecer o Patxi, o Pepe e o Montalbán. A menina é de uma geração tipo mais... tipo.
- Ai não se deixe enganar pela aparência. Estou é muito bem conservada... - devolveu-me a amável funcionária, enfim sorrindo, e corando de satisfação e vaidade.

Ficou cientificamente provado: a ignorância é óptima para a pele, muito melhor do que baba de caracol. A ignorância é o verdadeiro elixir da juventude e quem não sabe é como quem não lê. Por outro lado, as bifanas estavam di-vi-nais, como, em apenas três palavras, diria o meu irmão Nelo, isto é, o Zé Manel. E o Lopes, que me dá livros e parece que é bruxo, trouxe-me naquele dia "O Seminarista", de Rubem Fonseca. "O Seminarista"! Só tenho quem me goze...

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Poesia imperfeita e geralmente pretérita 6

Riminha

O caracol
leva a casa
a tiracol.

O compasso

E assim sucessivamente
A primeira vez, o segundo galarza, o terceiro homem, o quarto poder, a quinta dimensão, o sexto sentido, o sétimo céu, a oitava maravilha, a nona sinfonia, o décimo mandamento, o décimo primeiro alien, o décimo segundo jogador, o décimo terceiro mês, a décima quarta temporada, a décima quinta edição, o décimo sexto colosso, o décimo sétimo andar, a décima oitava emenda, o décimo nono arcano, o vigésimo da lotaria, o vigésimo primeiro batalhão, o vigésimo segundo aminoácido, o vigésimo terceiro álbum, a vigésima quarta hora, e assim sucessivamente. 

O compasso divide a música em intervalos de tempo iguais. Muitos estilos musicais tradicionais já presumem um determinado compasso: a valsa, por exemplo, usa o compasso três por quatro (ou ternário simples), enquanto o rock se serve por norma do quatro por quatro (quaternário simples), do doze por oito (quaternário composto) ou também do velho três por quatro da valsa. O compasso faz arcos de circunferência mas não de violino, é uma modesta constelação de estrelas praticamente apagadas no hemisfério sul e, aqui que ninguém nos ouve, tem qualquer coisa de maçónico. O compasso costumava sair à rua no Domingo de Páscoa.

Em Fafe de boa memória, era na Casa do Santo Velho que se reuniam todas as cruzes no fim tardeiro do compasso, já quase noite, seguindo depois para a Igreja Nova, em galhofeira procissão de sinetas exaustas e descompassadas, nas últimas. Rebentavam foguetes com uma violência desnecessária, desproporcional, amoucando-me os ouvidos e estremecendo-me as entranhas, e a mim parecia-me que a ressurreição do Senhor podia muito bem ser melhor festejada com bichas-de-rabiar, não desfazendo, mas ninguém me ligava...

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Poesia imperfeita e geralmente pretérita 5

Caracol

Ca... ra... col... ... ...

O aeroporto é nosso!

Do monólogo ao solilóquio
Tomou a palavra logo a seguir a si próprio, desvanecido com tamanha facúndia. Falou, falou, falou, até que a voz lhe doeu. Então sentou-se e aplaudiu-se entusiasticamente.

Foi no final de 2023. A notícia saiu no insuspeito tablóide britânico The Sun e portanto só podia ser verdade: Fafe era "a cidade mais barata de Portugal". Pelo menos, para inglês ver. Quem me alertou para a magnífica novidade foi o nosso Pedro Dantas, que está lá na Velha Albion e sempre atento a estas extraordinarices. De acordo com o bem informado artigo, que, nem de propósito, confunde o Palacete dos Dantas com a Igreja Românica de Arões, Fafe, "uma cidade pouco conhecida em Portugal", ficou em primeiro lugar num ranking de barateza turística elaborado por uma entidade alegadamente chamada Porto Travel Guide. Mais de cem cidades portuguesas terão sido "analisadas por especialistas", e Fafe ganhou, à frente de Oliveira de Azeméis, Famalicão, Ovar e Amarante, só para se ter uma ideia.
E o que é que Fafe tem? Pois, para além da igreja e do palacete levados ao engano, Fafe tem a Casa do Penedo e a Casa do Santo Velho, na minha rua, e "um enorme parque aquático ao ar livre", embora os indígenas prefiram refrescar-se "no reservatório local chamado Barragem de Queimadela". Para além disso, garante o indesmentível The Sun, Fafe tem "comida e bebida baratas", "restaurantes baratos e hotéis económicos". É pouquinho? Mas é de boa vontade.
Isto aqui vai ser outra vez o fim do mundo, vamos ficar a nadar de camones. E convém que parem imediatamente os estudos uns atrás dos outros que só dão despesa e não vão a lado nenhum. Nem Portela, nem Portela + 1, nem Portela + 2, nem Montijo, nem Alcochete, nem Santarém, nem Pegões, nem Rio Frio, nem Poceirão, nem Beja, nem Monte Real, nem Alverca. Nada disso. O novo aeroporto de Lisboa só pode ser em Fafe! Em Fafe, mais exactamente na freguesia de Golães, cumprindo-se enfim a viperina profecia da maledicência de outros tempos - assunto que metia emigração, maridos fora, mulheres sozinhas, desejo, amantes, adultério, "cornos", portanto "aviões", portanto "campo de aviação", falatório desmoderado, boatos, calúnias pela calada, onzenices, muito veneno e ruindade por parte de quem falava só por falar, e talvez também inveja.
Aliás, Fafe tem uma história muito rica no que diz respeito a aviões, inclusive de papel, helicópteros, cestinhas, papagaios, bolinhas de sabão e produtos afins, uma longa e bonita tradição. Uma vez até caiu um avioneta na Cumieira, que saiu nos jornais e foi o nosso orgulho até hoje. E agora, finalmente, temos o aeroporto, o jackpot, a sorte grande. O novo aeroporto de Lisboa é como o Leites. "O Leites é nosso!" e o aeroporto também.
Ó gente da minha terra, abaixaide-vos! Vai vir charters...

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Com o Zegolina, ninguém estava livre

Missais terra-ar
Portugal enviou missais para a Ucrânia. Pequenos missais de rito bracarense praticamente novos. As ordens eram para mandar mísseis, mas alguém da intendência fez confusão ao aviar a encomenda.

Armando Zegolina, isto é, o Zegolina, sobrenome conquistado na rua pelo cidadão Armando Sousa, era um fafense excelentíssimo e campeão mundial da maledicência. Campeão invicto e ininterrupto pelo menos enquanto foi vivo, e não sei se também depois, é preciso que se note. O Zegla dizia mal de tudo e de todos. Pelas costas, pela frente e pelos lados. Com razão, sem razão e antes pelo contrário, apenas por uma questão de princípio. Nasceu para aquilo. Dizia mal do futebol. De quem ia ao futebol e de quem não ia ao futebol. Dizia mal da religião. De quem ia à missa e de quem não ia à missa. Dizia mal da política. De quem era dos partidos e de quem não era dos partidos. Dizia mal da televisão. De quem via e de quem não via. "E tu também te podes ir foder!", dizia-me regularmente. Era. Com o Zegolina, ninguém estava livre.
E como é que lhe veio o nome fantástico? Assim. Em pequeno, ali para os lados de Portugal e do Lombo, de onde ele era, o Armando gostava muito de brincar esvaziando os pneus de todos os automóveis que lhe calhassem à mão de semear e longe da vista dos donos. Ele explicava que lhes estava a tirar a... zegolina. E daí o nome e a lenda.
O nosso Zegolina jogou futebol até aos juniores na AD Fafe e, entre 1968 e 1971, foi soldado pára-quedista e tratador-treinador de cães de guerra. Voluntário. Cumpriu oito meses de Guiné, durante os quais realizou 21 saltos, quase sempre em situações de combate. Foi operário têxtil evidentemente na Fábrica do Ferro, emigrante em França no ramo dos elevadores, e quando tornou a casa, em 1979, fez-se electricista por correspondência e montou negócio. Frequentávamos ambos o inevitável Peludo e acompanhámos depois a módica deslocalização do Peixoto, que foi só virar a esquina. Éramos amigos, eu e o Zegolina - mais o estimado Manel Zebras, velha glória da Desportiva, os três à mesa pária em que mais ninguém queria entrar. Éramos amigos. O Zegolina ansiava pelas minhas férias e pelos meus bissextos retornos a Fafe, para pormos a conversa em dia, e tínhamos uma certa pressa nisso. Éramos amigos conversantes, confidentes, cúmplices e leais, como o aço. E o Zegla até nem era nada disso de amizades derivado à língua, embora por detrás da língua desgovernada estivesse um homem generoso, bom rapaz, talvez tímido, mas ele não queria que se soubesse. Ele era ruim só da boca para fora, e essa era a sua magnífica fraqueza.
O Zegolina morreu há anos e praticamente novo, muito antes do prazo, muito antes do que seria decente ou razoável, morreu devagar, quero dizer, foi morrendo a olhos vistos, com o corpo de atleta e militar de elite cobardemente escangalhado pela sorrateira doença dos pezinhos ou paramiloidose, que só não lhe atacou a língua. E isso, estou em crer, foi o seu derradeiro consolo.

Brothers in arms

Ordem unida
A incontinência urinária, tomai bem sentido, não é uma cortesia militar!

Já restavam poucos, cada vez menos, mas juntavam-se ano após ano, vindos do país inteiro: o Aguiar da Beira, o Ferreira do Alentejo, o Vieira do Minho, o Miranda do Douro, o Castanheira do Ribatejo, o Costa da Caparica, o Nogueira da Maia, o Oliveira de Azeméis, o Vale de Cambra, o Canas de Senhorim, o Leça da Palmeira, o Figueira de Castelo Rodrigo, o Freixo de Numão, o Sobral de Monte Agraço, o Lajes do Pico, o Santiago do Cacém, o Vila Nova de Cerveira e o Antunes de Pevidém, que nem sequer foi à tropa e ninguém sabe como é que começou a aparecer...

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Todas no mesmo cesto

Um problema
Ele adorava nêsperas. Mas detestava magnórios. E tinha ali um problema.

Reuniram-se todas. A Golden Delicious, a Gala, as Red Delicious, Starking, Starkrimson, Jonagold e Jonagored, a Bravo de Esmolfe, a John Golden Red, a Spur, a Verde Doncella, a Fuji, a Riscadinha de Palmela, a Casa Nova, a Granny Smith, a Pink Lady e até a Reineta, que não é nada destas coisas, como o próprio nome indica, mas veio. Vieram de todos os lados, de Alcobaça, da Beira Alta, da Cova da Beira e até de Portalegre. Era 21 de Outubro, Dia Internacional da Maçã, e o que é que elas haviam de fazer?...

Low cost e sem bicho

Prato do dia
O reclame impresso sem erros em papel A4 e colado na portinha de vidro do minúsculo restaurante dizia em letras garrafais: "Prato do Dia - 3,50 euros". E, em letras pequeninas, esclarecia: "Só prato". Manobras publicitárias à parte, prato com comida era realmente uma bocadinho mais caro.

Na beira da estrada, o letreiro em cartão canelado castanho recortado às três pancadas e infantilmente colorido, porém sem erros, avisava, fluentemente bilingue: "Fruta low cost". Era a primeira vez que eu via semelhante. Estávamos em plena EN 13, entre Vila Nova de Cerveira e Valença, mais próximos de São Pedro da Torre. Interessou-me.
Parei. Perguntei:
- Low cost, diz. Esta fruta é mesmo low cost?
- Lowcostíssima, meu caro senhor. Se encontrar fruta mais low cost, devolvemos-lhe o dinheiro. É o lema da casa...
- Qual casa?
- A carrinha, o toldo...
- E a como é o quilo?
- Da carrinha ou do toldo?
- Da fruta low cost...
- Cinco euros a caixa.
- A caixa?
- A caixa.
- Com fruta?
- Com fruta.
- Com bicho?
- Sem bicho.
- Francamente, não acho lá muito low cost...
- Olhe que mais low cost do que isto não há...
- Por acaso, ali atrás, coisa de quinhentos metros, era mais low cost...
- Mas com bicho...
- Sem bicho.
- Dou isso de low cost, quer-se dizer, mas é preciso ver a qualidade do produto. Como afirma o nosso povo, na sua indesmentível sabedoria: às vezes o low cost sai high cost...
- Mas que conversa tão estimulante! Agora que já nos entendemos, diga-me lá sinceramente: cinco euros a caixa, com fruta, sem bicho, é mesmo o mais low cost que me pode fazer?
- É preço de tabela, indexado à cotação do Brent, meu caro senhor. Amigos amigos, negócios à parte: se eu lhe levasse mais low cost, entraria em deficit, certamente em default, e estaria outra vez com a troika à perna, isto é, à leg...
- Nesse caso, arrivederci!
- Adeus, ó vai-te embora!...

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Diálogos fafenses 35

Há horas felizes
- Tem horas?
- Tenho.
- E são felizes?

Poesia imperfeita e geralmente pretérita 4

Santinho!

Viva!
Viva Portugal!
Viva a República e viva a Monarquia!
Viva a Igreja e a Maçonaria!
Viva a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Vila Real de Santo António, não desfazendo de todas as outras associações humanitários de bombeiros voluntários do resto do País que têm nome mais curto, como, por exemplo, Fão, Fafe ou Freixo de Espada à Cinta!
Viva!

Viva císsimo!
Viva mente!
Viva quente!
Vá para dentro!

Viva cidade!
Viva Villa!
Viva Zapata!
Viva México!
Arriba, arriba! Ándale, ándale!
Viva Las Vegas!
Ó Elvis, ó Elvis, bisavós à vista!
Viva!

Santinho!

domingo, 19 de outubro de 2025

Jogava-se ao tene

Alta competição
Os erres pagam-se caro. Os emes ficam muito mais em conta.

Jogava-se ao tene, no nosso largo, no velho Santo Velho. Tene, esclareça-se desde já, não é singular de ténis. Nem é sapatilha desirmanada nem nome que se dê ao jogo de ténis quando jogado por uma pessoa só. Nesse caso chama-se, vá lá, squash. Não. O tene era um jogo universal, de recreio, de rua, de pobres, envolvendo quantos mais miúdos melhor, sem necessidade de outros apetrechos ou equipamentos senão o próprio corpo e muita corda nos sapatos. Embora também se jogasse descalço. Ou de chancas. Ou, há que admiti-lo, de galochas...
As regras são simples. O objectivo do jogo é fugir ou tenir, conforme o ponto de vista. Escolhe-se à sorte um desgraçado, que deve tentar apanhar, isto é, tocar com a mão, os outros participantes. Um deles. E, uma vez conseguido, troca-se de posição. Quem foi apanhado, isto é, tocado, assume então a função de apanhador, o ex-apanhador passa a normal fugidor e assim sucessivamente.
Dir-me-ão então: ora, mas isso é o jogo da apanhada, ou o pega-pega ou pique-pega, se for no Brasil. Nada disso. Era o tene, o nosso tene. Porque, lá está, basta tenir, tocar levemente com a mão, com o dedo. Quem toca levemente, tene. Básico e inofensivo. O tene. Já o arranca-cebolas, por exemplo, implicava outra, por assim dizer, dinâmica e não raras visitas ao hospital.
Dir-me-ão então, e já estão a chatear: ora, mas não é tenir, é tinir, o verbo tenir não existe na língua portuguesa. Existe, existe, basta ir a Fafe e ouvir alguém que seja do falar antigo e que se lembre, claro que se lembra, do velho jogo e deste precioso regionalismo talvez baixo-minhoto e que pegou de estaca pelo menos ali na nossa zona. Ou onde é que cuidam que o bom do Costeado foi buscar o "Nem lhe teni, senhor árbitro!"?...

Ben-u-ron, uma questão de fé

Viciado em pastilhas
Tomava pastilhas atrás de pastilhas, mas não havia maneira de melhorar. Eram pastilhas de travão e ainda por cima davam-lhe gases. 

A minha sogra gosta muito do Ben-u-ron. Reclama "o meu Banuronzinho" por tudo e por nada, geralmente só para marcar posição de doente diplomada, inscrita na ordem e com as quotas em dia, questão de princípio, mas também para a insónia ou para a sonolência, para a garganta seca ou molhada, para o frio e para o calor, para as correntes de ar e para o mau-olhado, para a diarreia ou para a prisão de ventre, para os arrotos, soluços e espirros, para a flatulência ou para a surdez ou para a anosmia, para as unhas encravadas ou para os pêlos do nariz. A minha sogra só não quer Ben-u-ron para as dores de que se queixa como quem reza o terço em latim ou para a febre que felizmente quase nunca tem, por mais que meta o termómetro. Mas para o resto - isto é, para aquilo que não diz respeito ao Ben-u-ron -, a miraculosa pastilha é trigo limpo, farinha amparo. "Tenho muito fé no Banuron!", justifica a minha sogra. A Joaquininha decerto tem razão, vai a caminho dos 94 anos e, portanto, só pode ter razão. E eu, verdade seja dita, questões de fé não discuto...

sábado, 18 de outubro de 2025

A cocada e a monada

Como um passarinho
Morreu como um passarinho. Abatido a tiro.

A cocada e a monada, há quem as confunda. Porém existe-lhes uma diferença substancial. A cocada é uma pancada dada com a cabeça, uma cabeçada, e faz cócegas no nariz. A monada é uma porção de monos, macaquices, trejeitos, e, passando por cima do dicionário, evidentemente uma pancada dada com a mona, portanto uma cabeçada, mas não faz cócegas no nariz. Havia disso tudo em Fafe, e decerto ainda há. A tolada é outro assunto...

Diálogos fafenses 34

Serei o próprio?
O entregador de encomendas toca à porta, abro, bom-dia!, passa-me a caixa para as mãos e pergunta: - É o próprio?
- Da última vez que me vi, sou! - respondo, com uma segurança já bem ensaiada e fingida.
Mas fico à rasca, na dúvida, e, depois de, obrigado!, com licença..., fecho a porta delicadamente e corro como um tolo para a casa de banho, exigindo mais provas ao espelho.

A sesta do meu avô da Bomba

O faquir
Homem que é homem não dorme. Passa pelas brasas. E sem ais nem uis!

Eu ainda não sabia que aquela meia horinha se chamava assim, mas o primeiro adulto que eu vi a fazer a sesta foi o meu avô Manuel, o 17 da Bomba, que não era terrorista e ganhara a explosiva alcunha derivado a ser o bombeiro número 17 e quarteleiro dos Bombeiros de Fafe. O meu avô morava no quartel dos bombeiros, que, para todos os efeitos, na nossa terra, era a Bomba, portanto era o avô da Bomba, e, pronto, sem fazermos mal a uma mosca, levamos com a CIA em cima e não há quem nos acuda. E era "avô da Bomba" também para se distinguir do meu "avô de Basto".
Naquela casa, isto é, na Bomba, só se comia e bebia do bom e do melhor, embora regrado. Muito regrado. Depois do almoço, o meu avô descia até à camarata e estendia-se numa das camas, a primeira à entrada do lado esquerdo, tapando a cara com o Jornal de Notícias. O JN era naquela altura um jornal grande, quase um lençol, muito jeitoso para a sesta, e o meu avô, contrariando a regra geral, gostava de dormir sob e não sobre aqueles assuntos.
As minhas tarefas de neto em relação à sesta do meu avô eram ir buscar o JN e passar de vez em quando pela camarata para, se necessário, corrigir a posição do jornal. O meu avô deitava-se de barriga para cima, mãos cruzadas sobre o peito, e ressonava com assinalável perseverança. As notícias nem sempre se aguentavam em cima dele, contra tantos ventos e marés. Restava-me uma terceira obrigação, não editorial, que era andar em bicos de pés e de bico calado.
O Jornal de Notícias do meu avô era comprado a meias com o Senhor Ferreira do Hospital, que o lia primeiro, e depois eu ia buscá-lo, ou então ficava cada um com metade das páginas e a uma certa hora da manhã eu fazia a troca, já não me lembro bem.
O Senhor Ferreira do Hospital e o meu avô foram amigos e cúmplices toda a vida. Eram unha com carne, apesar de diferentes como a água e o vinho: o Senhor Ferreira era comunista, tinha estado preso, e o meu avô... antes pelo contrário. Para além de comunista, o Senhor Ferreira era um homem bom, íntegro, sábio, um grande Homem que eu admirava e gostava de ouvir. Anos passados, aos domingos, eu à beira de ir para a tropa e portanto sem emprego, o Senhor Ferreira cumprimentava-me com uma nota de 20 escudos escondida e imperativa na mão tremente. Depois de cegar, o Senhor Ferreira conhecia-me pela voz, mesmo sem eu abrir a boca, quase que só pela presença ou talvez pela respiração, não sei o truque. Já casado e jornalista, no Porto, eu ia frequentemente a Fafe, entrava no Nacor, então transplantado para as megalómanas porém inóspitas instalações em frente ao tasco original, eu ainda à porta, limpando os pés, o Senhor Ferreira, sentado ao enorme balcão, lá ao fundo, com a sua malguinha à frente, adivinhava-me e atirava logo: - Está aí o Hernâni? Aquilo comovia-me tanto, enchia-me tanto a alma, eu ficava tão orgulhoso, que não fazeis ideia! Eu estava realmente ali, e ganhava o dia, palavra de honra! Pelo menos uma tardada de abraços e revigorante conversa. E ainda hoje fico à rasca quando me lembro disto.
Mas o meu avô. O meu avô da Bomba era um incansável fazer de sestas, e fazia-as muito bem, não é para o gabar. Era perfeito, irrepreensível, um mestre, um guru, de sestas e habilidades similares. O meu avô da Bomba passava pelas brasas com uma categoria digna de faquir. Naquele tempo ainda não era moda dizer-se que a sesta faz bem à saúde, o que até viria mesmo a calhar ao meu avô, que era "uma pessoa muito doente". Era também preguiçoso, como vim a concluir mais tarde, o que me livrou do divã do psiquiatra e despesas adjacentes, uma vez que consegui perceber sozinho que tenho bem a quem sair. E, evidentemente, ressono...
Quando éramos miúdos, o meu avô punha-nos a bulir como gente grande, a mim e ao meu irmão Nelo. Eu era pau para toda a colher: limpava e polia os capacetes e outros amarelos com solarine Coração e uma espécie de pó de talco, lavava as viaturas, verificava o óleo e colocava água nos radiadores, anotava as quilometragens, lavava, punha a secar e enrolava as mangueiras depois dos incêndios, metia baterias à carga, enchia as baterias com água da chuva colhida num garrafão com funil que estava no telhado, ia chamar motoristas para as saídas urgentes de ambulância, servia de bombeiro, varria o "parque do material", levava avisos a casa dos bombeiros, atendia o telefone, tocava a sirene (era a parte de que eu mais gostava), hasteava as bandeiras aos domingos e dias de festa, ia à cave buscar vinho, "sempre a assobiar!", segundo ordens superiores. Enfim, eu é que era o verdadeiro Bomba. E não saía de lá. Também porque naquela casa só se comia e bebia do bom e do melhor - já disse.

Tenho-me esquecido de ir buscar o jornal para o meu avô da Bomba e também já há muito que não estou com o Senhor Ferreira do Hospital - gostava de lhe pedir um retrato. Aqueles dois nem devem ter reparado. Estão entretidos a meterem-se um com o outro, foram sempre assim, ou então dormem uma bela sesta, cada qual com a sua metade de JN sobre o rosto. Eu também já durmo a sesta, percebo-os agora. Quando nos voltarmos a encontrar, os três, ainda nos havemos de rir disto tudo.

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Eram pobres e tinham dono

Virtudes teologais
Fé, esperança e caridade. A fé move montanhas. A esperança é a última a morrer. E a caridade tem dias.

Antigamente a caridade tinha dia certo e era um descanso. Pelo menos em Fafe. Às sextas-feiras, vamos supor, os pobres manquelitavam de porta em porta pedindo "uma esmolinha por alma de quem lá tem". Os pobres da parte de fora da porta eram uns desgraçados muito rotos e muito sujos e muito aleijados, e eram assim de propósito para se distinguirem dos pobres da parte de dentro da porta, que já tinham em cima da "cristaleira" umas moedinhas negras separadas e preparadas para a função. Éramos todos pobres, dum e doutro lado da porta, uns mais, outros menos, e, à falta de quem governasse por nós, em Lisboa ou mesmo na Câmara, e porque ainda não havia "Europa", nada mais nos restava senão sermos uns para os outros. Às sextas-feiras, vamos supor. O resto da semana, não.
(A "cristaleira" tinha sido comprada em terceira mão e paga em honradas prestações mensais.)
Naquele tempo os ricos tinham os seus próprios pobres, privativos, pessoais porém transmissíveis. Os pobres eram deixados em herança. Ter pobres por conta era, pelo menos em Fafe, inequívoco sinal exterior de riqueza. Os pobres eram exibidos, bastas vezes à porta da igreja, como gado preso à argola do tasco em dia de moscas e feira semanal. Para o senso comum, quantos mais pobres alguém tivesse, mais rico era. Os pobres eram, portanto, uma medida de riqueza e uma necessidade da Nação para que os ricos prosperassem. Quantos mais pobres Portugal tivesse e quanto mais pobres fossem os pobres portugueses, mais ricos seriam os nossos ricos, e isso certamente era bom para o Produto Interno Bruto.
Isto é: a pobreza convinha-nos, aos pobres. A pobreza era o progresso da Nação. O regime ensinava-nos desde os bancos da escola que felicidade era sermos pobres mas honrados e termos as unhas das mãos sempre limpas. E isso deixava-me cheio de pena dos ricos, infelizes, principalmente dos ricos muito ricos, que ainda, por cima, tinham as mãos sujas.
(Os ricos, pelo menos os de Fafe, não davam a roupa nem o calçado que já não lhes serviam. Vendiam a roupa e o calçado, a pronto, aos pobres da parte de dentro da porta. Vendiam. Os pobres da parte de dentro da porta, passados alguns meses de uso, davam aos pobres da parte de fora da porta a roupa e o calçado que tinham comprado a pronto aos ricos. Davam. Às sextas-feiras, vamos supor. O resto da semana, não.)
Graças a Deus, isto era só antigamente.

Nem tanto ao mar nem tanto à terra

À batatada
Há muito que andavam esquinudos. Um dia sentaram-se à mesa, barafustaram-se, cresceram-se, amansaram-se, tomaram-se de palavras espertas e resolveram tudo à batatada. Com bacalhau.
 
O meu sogro tinha uma máxima a respeito de bacalhau que talvez não seja de deitar fora. O Sr. Carvalho, que foi um garfo de primeira enquanto pôde, declarava, na sua infinita simplicidade: - Se me derem bacalhau todos os dias, para mim está muito bem e até agradeço.
E o meu sogro só sabia de meia dúzia das mil e uma maneiras de cozinhar bacalhau. Mas não era esquisito, estava servido.
Já a minha sogra, que vai a caminho dos 94 anos e continua sem razões de queixa do apetite, tem uma visão mais ampla do universo, outra sabedoria. E defende que a vida é composta por três qualidades. Costuma filosofar, aliás, a esse propósito: - Nem sempre carne e nem sempre peixe. De vez em quando também é preciso comer um bocadinho de bacalhau.
Exactamente. Carne, peixe e bacalhau, as três espécies sobreviventes após a liquidação dos dinossauros. A minha sogra, que nunca na vida deixou o meu sogro ter razão, é que está certa. Este mundo não é só bacalhau. Ainda por cima ao preço a que ele está.

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Ao menino e ao bolacho

O predestinado
O seu aniversário calhava todos os anos no mesmo dia do mesmo mês. Ele achava que era um bom augúrio.

A bolacha maria, torrada ou não, apareceu tarde na minha vida. Bolacha era luxo que não entrava lá em casa, e o mais parecido que a nossa mãe nos dava em pequenos era broa ou biju, e o biju já era um mimo. O caso só mudou de figura quando nasceu o nosso Lando. O Orlando é o mais novo de quatro irmãos, decerto por isso teve direito a mordomias de cuja existência os três anteriores nem sequer suspeitávamos, e as bolachas vieram com ele.
Entre outras alcavalas, o Landinho até fazia anos, coisa extraordinária, enquanto a nós só nos era permitido ficarmos mais velhos, somarmos dias, que remédio e a seco. Ao menino, a nossa mãe organizava-lhe uma festinha de aniversário, havia convidadozinhos, e do pequeno lanche constavam, só me lembro disso, umas curiosas sandes de bolacha maria com marmelada dentro, tipo oreos mas melhores e de fabrico caseiro. Eu, já espigadote, metia a mão sorrateira e rápida à passagem pela mesa, e foi assim que ficámos a conhecer-nos pessoalmente, eu e elas. As bolachas. Que estavam contadas, para mal dos meus pecados...
Mas não era de bolachas que eu queria aqui falar. É de bolachos. E o bolacho, faço deste já notar, é pitéu absolutamente indispensável, muito mais do que mero ornamento, nuns rojões à moda do Minho que se pretendam com todos os matadores. O bolacho é, versão curta e grossa, uma espécie de pão cilíndrico feito com farinhas de trigo, milho e centeio, a que se junta sangue de porco, fermento, caldo de carne, pimenta e cominhos. Depois de levedada, a massa é cozida em água temperada com sal, salsa, folha de laranjeira e louro. Cumprida a cozedura, o bolacho é cortado em rodelas e frito em pingue. O bolacho pode também chamar-se farinhato, pilouco, bica e, principalmente, beloura.
Mas também não era deste bolacho que eu queria aqui falar. É do bolacho de trigo. Do pão de cantos. Do pão de quatro cantos. Do trigo de ovelhinha. Do pão de padronelo. Desse. Esse fantástico pão, duro como cornos, que era vendido porta a porta em Fafe por umas senhoras que, dizia-se, vinham de Amarante. As abençoadas senhoras traziam enormes cestas à cabeça e dentro das cestas, carinhosamente envolto em toalhas de linho, o precioso pão. No dia da feira, às quartas, por Cima da Arcada, diversos tipos de pão regional, incluindo o infalível bolacho, eram vendidos também por um senhor que vestia um avental de peito, comprido até aos pés, impecável de branco e de limpeza. O bolacho, um pão de longa duração que a minha querida avó de Basto guardava com todos os cuidados e também toalhas de linho na caixa de madeira que era o cofre e o frigorífico das coisas valiosas e boas numa terra por onde Jesus Cristo ainda não tinha passado e portanto não havia electricidade. Assim acondicionado, o pão aguentava-se bem uma semana ou mais e só era comido com o matinal café, que era cevada, aos domingos, feriados e dias santos. De resto, broa, que era o pãozinho do Senhor.
Leio agora que o bolacho é de ovelhinha porque teve a sua origem no lugar com aquele nome, Ovelhinha, na freguesia de Gondar, Amarante. E de padronelo porque decerto será sobretudo nesta outra freguesia amarantina, Padronelo, que hoje em dia ele é produzido e comercializado. Quanto a bolacho, é-o não sei porquê.

Um cibo de pão, uma pinga de vinho

Desempregado
Ele andava a comer muito bem. Tinha, aliás, um excelente apetite, mas isso de momento não lhe convinha. Portanto, foi ao médico...

Cibo é comida, alimento, especialmente das aves, aqueles bocadinhos que os pássaros dão às suas crias de biquinhos famintos e abertos. Isso. Cibo é pequena porção. Pequena porção de comida ou de qualquer outra coisa, mas sobretudo de comida, como era uso dizer no falar antigo de Fafe e Basto e certamente de todo o Norte ao redor, de uma maneira geral. Mas atenção: cibo não era um vocábulo arrevesado e anacrónico, jurássico, pelo contrário, era palavra corriqueira do dia-a-dia, metida a cotio por necessidade. Era a medida da vida. Cibo é menos que pedaço, é menos que naco, é, dito de outra forma, um nico. Cibo era pobreza.
Pedia-se, oferecia-se, dava-se, partilhava-se, comia-se um cibo de pão, um cibo de carne, bebia-se uma pinga de vinho. Galegos do sul que somos, adoçávamos a penúria, enchíamo-la de mimos, dizíamos cibito, cibinho, cibico, com mil carinhos, como quem faz festas aos seus e diz pequenito, pequenino, pequeninho, pequerricho, de coração cheio e mãos abertas, talvez enganando mansamente a fome, como se afinal lhe quiséssemos bem.

A Bó de Basto e o pãozinho do Senhor

Os mórreres
Sim, os víveres, evidentemente os víveres. E os mórreres?...

Foi num programa de televisão, daqueles que temperam o turismo com gastronomia. Vi que na Turquia, esse lamentável lapso da União Europeia, há um respeito muito grande pelo pão. Um respeito tão grande que bocado que cai ao chão não vai para o lixo. É apanhado, guardado e comido na refeição seguinte. Não sei se é bem assim, mas assim me foi contado na TV, e eu gostei do que ouvi, falou-me à memória.
Desconheço que influências culturais trocaram entre si Portugal e o Império Otomano, e se essas permutas foram tão longe que chegaram à bucólica freguesia de Passos, logo a seguir a Várzea Cova, quem desce, mas já Cabeceiras de Basto, propriamente à casa da minha querida avó materna. Sei é que foi neste fim de mundo que eu também aprendi a reverência pelo pão.
Na Casa do Carreiro comia-se na cozinha, à volta da lareira. Os adultos sentavam-se em compridos preguiceiros, apetrechados com uma conveniente tábua-mesa de levantar e baixar, e as crianças ajeitávamo-nos em pequenos bancos de três pernas, os mochos, obra de carpintaria simples e doméstica. Os cães também tomavam posição, anorécticos involuntários, à espera dos ossos que não havia. Levavam troços de couves, cascas de batatas, espinhas de bacalhau de quarto e era um pau.
O chão da cozinha era mesmo chão, rupestre, uma terra negra do fumo e da fuligem, dos anos e vidas de uso e das águas entornadas que lhe davam uma consistência de betão. Sim, as águas dos potes ferventes ou da banca de lavar louça, quando já desnecessárias, eram ali mesmo esparramadas, voltando a reunir-se, acho que me estou a lembrar bem, numa espécie de rego que as levava finalmente até lá fora, até ao carreiro que dava o nome à casa. Como bilhar viciado, o chão da cozinha descaía para o lado do carreiro, e tudo ajudava à limpeza. Depois era só esperar que secasse um pouco e varrer com uma vassoura de giestas apanhadas no monte. A banca era feita em madeira, velha, de pernas trôpegas, pacientemente calafetada pela gordura acumulada ao longo de décadas de serventia.
Era naquele chão que eu às vezes deixava cair o meu megalítico naco de pão, quase sempre um bom pedaço de côdea, que era do que eu mais gostava. A minha avó, mansamente, para que o meu avô não se zangasse comigo, dizia apenas:
- Apanha o pão. É pãozinho do Senhor. Dá-lhe um beijinho e já o podes comer...
E eu acreditava. Apanhava o pão, beijava-o e comia-o, com todo o respeito, como se estivesse na igreja a comungar. Até parecia que me sabia melhor.
Curiosamente, o meu avô nunca se zangou comigo. Ele, que tinha um zangar tão fácil com toda a gente...
Na nossa casa, em Fafe, a minha mãe insistia nestes ensinamentos. Dizia-nos, a mim e aos meus irmãos, que o chão não suja, que o beijo purifica, que não se pode estragar pão, é pecado, porque há muita gente com fome, pessoas mais pobres do que nós. E se o pão ficava intragável e tinha mesmo de ir para a estrumeira, só depois de um beijinho de adeus, porque, exactamente, era pãozinho do Senhor.
Em minha casa também não se estraga pão, não se estraga nada. E, se se estraga, estragado fico eu.
Não sei de onde veio esta ideia antiga, se estará mesmo ligada à fé, à religiosidade popular, ao pão que é o corpo de Cristo. Acredito mais que era sobretudo a pobreza a defender-se, consciente da importância do pão na mesa, o pão que, ontem como hoje, era a única fartura, a última fronteira para a fome. O respeito pelo pão era o respeito pela fome. E ninguém respeita tanto a fome como os pobres.

Por causa do pão, fui muitas vezes à merda. E gostava. Ir à merda, naquele tempo e naquelas circunstâncias, era satisfatoriamente adequado. E necessário. A Bó mandava-me com uma telha à procura de poios de bosta fresca, que depois servia para vedar a tampa do forno onde se cozia a broa. Eu passava sempre uma temporada das férias grandes na aldeia e ir à merda era o meu modesto contributo para que tivéssemos pão à mesa. Isso e, às vezes, ir à fonte buscar água, coisa de "menina", só para se rirem de mim.
Para a aldeia ia-se na carreira da "Empresa", que saía de uma grande garagem à beira da Igreja Matriz, mesmo em frente à Rua do Assento. Nessa enorme garagem também se construíram carros para a Marcha Luminosa das Festas da Vila, "um espectáculo de luz, cor e som", mas isso é assunto que não vem ao caso. Era desengonçada e cinzenta a carreira. Cheirava mal, espevitava enjoos. Ia-se com o nariz enfiado em meio biju para não gomitar e mesmo assim gomitava-se - falo por mim. Ia-se na carreira até Várzea Cova, e ali terminava a estrada, acreditem no que eu digo: o mundo acabava mesmo em Fafe, basta pensar também na antiga linha do comboio. Dali, depois do cu tremido, violentamente tremido, já só faltavam mais cerca de cinco quilómetros a pé, em monte de sobe e desce, fizesse sol ou diluviasse, certa vez até passando a vau o ribeiro que a força de um inverno estoura-vergas desencaminhara e transformara em rio violador de margens. Chegávamos então à aldeia propriamente dita, como nunca na vida lhe chamámos. Era Basto. Freguesia de Passos, concelho de Cabeceiras de Basto, mas simplesmente Basto, para nós.

A minha avó Emília, que era pequerricha e bondosa com um anjo, e era um anjo, fazia uma broa escura, muito saborosa, que se mantinha fresca durante dias e dias. Naquela maré, o pão era o principal alimento dos portugueses. O pão e o vinho, como fazia questão de frisar, de forma propositadamente ambígua, a propaganda salazarista. Por ordem expressa de Salazar, beber vinho, naquela altura, era "dar de comer a um milhão de portugueses", e o patriótico e honrado povo de Passos podia não saber o que era bife nem tinha electricidade nem água nem estradas nem sequer caminhos decentes, sem pedras, mas sempre deu o litro para que o resto do País não passasse fome. E o resto do país já então era Lisboa.
Beber era um honesto modo de vida. Podia faltar tudo na casa da Bó de Basto, e às vezes faltava muito, mas havia sempre broa com fartura e umas imensas malgas de "amaricano" às quais eu gostava de mandar umas pescoçadas até dizer ahhhhhh!...
Em Basto, as visitas eram recebidas com malgas de vinho e aparas de bacalhau salgado e falava-se como se fôssemos galegos, e a querida Tia Margarida felizmente ainda fala. E sempre broa, sem outros mimos. O almoço era o "jentar", e o jantar era a ceia. E bebiam-se, a acompanhar, umas valentes pingoletas. Também se bebia durante a merenda, que era aquela meia dúzia de horas de sol que vai desde o "jentar" até à ceia. Bebia-se, portanto, apenas às refeições - quer-se dizer, o dia inteiro. E já agora: o almoço, assim dito, era o café da manhã. E a manhã era madrugada, com música de galos tenores e carros de bois vagarentos e deslubrificados, rabugentos. O café era cevada, feita ao borralho, numa velha chocolateira de barro e tampa tamborileira e dançarina. Que saudades tenho dessa vida e dessa idade, dessas ideias que graças a Deus me ficaram, ainda no outro dia o "dixe" outra vez ao meu tio Al Pacino, o meu querido tio "Jé".

Enciclopedista fortuita e inocente, involuntária, alma fora da geografia e do tempo, a querida Bó de Basto alimentava-nos também o espírito. Lendas, contava-as que era uma categoria. Eram lendas mansas, de embalar, metiam mouras encantadas, príncipes, penedos. Penedos de morar, lembro-me bem, e eu queria um. Eram contadas à lareira, depois da ceia, com o vermelho do fogo a bailar-nos nas caras espectrais, eu de olhos arregalados e boca aberta, uma e outra vez, como se fosse sempre a primeira. Os efeitos especiais das histórias da avó - esperta, santa sem diploma, realmente anjo sem asas à vista - foram muitos anos mais tarde copiados pelo cinema americano. Até aquele famoso jogo de sombras manipulado pela irrequieta chama da candeia, coisa extraordinária e assustadora - era das histórias da minha avó, foi aqui que Hitchcock o veio buscar. E o vinhinho aquecido ao borralho com uma maçã assada lá dentro, também, mas isso parece que os filmes não aproveitaram.
Na manhã seguinte, pela fresca, íamos à lenha ao monte. Eu e e minha avó, maravilhosa guardadora de lendas e tudo. E a Bó mostrava-me o penedo, o exacto penedo da moura encantada, a frincha de entrada, não havia dúvidas. Ainda por cima, até as lendas da minha avó eram verdade. Como poderia mentir-se acerca do pão?

Eu trigo-me, tu trigas-te, ele triga-se

De pé, ó vítimas da fome!
- De pé, ó vítimas da fome! - gritou o "speaker"-cantor, enquanto aquecia a plateia para o comício atrasado. O pavilhão estava cheio mas ninguém se levantou. Era uma fraqueza muito grande...

Biju, papo-seco, carcaça, molete, pada ou trigo, consoante a região de origem e a idade de cada qual. Assim se chamava e parece que ainda se chama ao pão pequeno, arredondado, regra geral de risca ao meio e feito à base de farinha de trigo. Em Fafe aprendi-o biju e trigo, sobretudo trigo, e é o que me tem bastado até hoje: vou à padaria e peço cinco trigos, se faz favor. Riem-se e eu acho muito bem, porque rir é porreiro, desopila, embora também possa ser sinal de ignorância e estupidez natural. Em Fafe aprendi, ainda por cima, o verbo trigar - ou, talvez melhor dizendo, trigar-se -, que, naquele pedaço baixo-minhoto rural e de entranhável confluência galega, Monte Longo e Basto, significava acanhar, constranger, envergonhar, intimidar, embaraçar, coibir. Dizia-se, por exemplo, "Ande lá, não se trigue, tire mais um bocadinho de presunto!", ou então, "Nem consegui dizer ao que ia, triguei-me...", e eu achava um piadão àquilo. Ao presunto, quero dizer.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Não coma, fotografe! (e verá que emagrece)

As melhores intenções
De boas intenções está o frigorífico cheio. Depois, evidentemente, é preciso saber cozinhar.

O jornal Público ensinou-nos o que se deve fazer quando "um prato absolutamente fenomenal (ou não tão fenomenal assim) chega à mesa". Foi aqui atrasado, mas vale a pena relembrar. E então como é que é dado fazer? O que fica bem, hoje em dia? "Come-se? Não, primeiro fotografa-se". E coloca-se no Instagram. Isso. Foi o que o jornal mandou. Depois, suponho, mas isto já sou eu a dizer, pede-se a continha, paga-se sem comer, porque a comida entretanto ficou fria, sai-se de casa ou do restaurante chique, enfia-se o boné até às orelhas e vai-se à Esquiça enfardar duas ou três doses de tripas, bem quentinhas, tão em conta, tão comidinha simples, de confiança, previsível, maravilhosamente monótona e humilde, dispensando, por isso, retratos, emojis e outras peneirices. Eu não sei o que é o Instagram (aliás cuidava que se chamava Instragam e só mudei de ideias ainda agora, depois do computador me corrigir cinco vezes), e nem me aquece nem me arrefece que pensem que estou a mangar. Sei é de cozinha, de comida, e de jornalismo também dou uns toques, modéstia à parte.
Quem escreve sobre gastronómicas matérias no excelente jornal da Sonae vê-se que tem inúmeros mestrados e consideráveis doutoramentos em Técnicas de Titulagem, mas também se percebe que é gente que só entra na cozinha para perguntar à mãezinha "o que é o comer". Não nego à partida que estas senhoras e estes senhores jornalistas sejam experts em lasanha pré-cozinhada do Lidl ou em rissóis e bolinhos de bacalhau congelados do Pingo Doce, posto que o patrão, também dono do Continente, não saiba. Falta-lhes é o resto, a basezinha, como diria o nosso Eça, que, esse sim, sabia de mesa.
Vamos supor: um prato realmente "absolutamente fenomenal" como, para não irmos mais longe, um arrozinho de grelos com fanequinhas fritas, à moda do que se fazia em Fafe e eu faço cá em casa. Chega à mesa e tira-se-lhe fotografias - deste e daquele lado, do direito e do avesso, de ângulo aberto ou fechado, visto de cima ou de baixo, de luz acesa ou com flache, esperando que o vapor se evapore, que só embacia - em vez de se lhe garfar com toda a galhardia? Então vou explicar o que se passa neste ínterim: o malandro do arroz coalha, fica arroz de hospital, como lhe chamávamos, argamassa de atirar às paredes, e as fanecas, esse peixinho tão honesto e merecedor, esfriam, perdem a graça, afeiam-se, desapetitam-nos. Uma calamidade!
E atenção que as fanequinhas frias ainda vá lá, mas no tasco e no Verão. E verão que tenho razão (esta veia poética que não me larga), quando um dia perderem a cabeça e experimentarem, o Verão e o tasco. Já o arroz segue directamente para o balde do lixo, tamanha dor de alma ainda por cima nestes tempos agrestes de cotão nos bolsos e tanta fome na rua.
Também é verdade: há pratos que são como a vingança, devem ser servidos frios, e por isso até se chamam pratos frios. E estes podem ser fotografados à vontade, à moda das sessões de casamento, quero dizer, entre as oito da manhã e as seis da madrugada do dia seguinte, sempre a dar-lhe. Quanto ao resto, se for possível, ficai quietos! Creio que posso dizer melhor: respeitosamente, comei fotografias à vontade se, tipo, vos souber bem, se vos fizer bem, ele há dietas para todos os gostos e de todos os feitios, mas, e este é o limite, a famosa linha vermelha, não me instagreis a comidinha a sério (à séria, se por azar lido em Lisboa).
Já agora, para os mesmos: um tasco é um tasco. Uma tasca ou uma tasquinha são outra coisa...

A este respeito e outros. Gosto muito do seguinte poema de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), que faço questão de partilhar:

Dobrada à moda do Porto

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Diálogos fafenses 33

Galheta
- Bufardo ou banano?
- Carquilho, mas devagar...

Poesia imperfeita e geralmente pretérita 3

Banda

Banda
do casaco,
banda gástrica, banda magnética,
banda desenhada, banda do cidadão, banda cromática,
banda perfurada, banda de frequência
banda larga, onda curta, Banda Miranda, The Band,
banda sonora, Banda de Revelhe, Banda de Golães

cara à banda, a Outra Banda, pôr de banda,
vai àquela banda

embandeirar em arco, abandonar o barco

bandeira, bandarra,
bandarilha, bandeja,
bandolete, bandó, bandado,
bandeirada, bandeirante, bandeirinha,
bandeirola

bando, bandolim,
bandido, bandoleiro,
bandalheira, debandada

bandulho

a banda abunda,
abana a bunda.

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Diálogos fafenses 32

Querias...
- Tem horas que me diga?
- Tenho.
- E diz-me?
- Não.

De bucho cheio

Pela família, tudo!
Convidou a parentela considerada mais próxima, vinte pessoas e treze crianças. Marcou restaurante para as duas em ponto. Encomendou azeitonas, bacalhau assado no forno e tripas à moda do Porto, bebidas e sobremesa à escolha de cada qual. Pediu pratos de plástico, copos de plástico, talheres de plástico, correntes de ar, moscas e se possível formigas. Era a sua vez de organizar o tradicional piquenique de família e ele queria tudo como deve ser.

O bucho é muito importante. Alguns dirão, discordantes e escatológicos, eventualmente especulativos, que o bucho é uma merda, falso e impante, como se tivesse o rei na barriga, e vai-se a ver são gases. Respeito as opiniões. Eu, porém, cinjo-me aos factos, e não há muita volta a dar. E o que sabemos e está provado é o seguinte: o bucho é tão importante que até tem dia internacional. Exactamente. O dia 24 de Outubro, por acaso também adstrito a outras celebrações talvez mais atinadas, é Dia Internacional do Bucho. Pelo menos no Brasil, que tem dias para quase tudo, até tem o Dia do Pirulito, mas não é por aí que vamos agora. Assim simplesmente chamado, bucho, o bucho é bucho de porco. E que mais? O bucho serve para a nossa alimentação, como se dizia antigamente nas redacções da escola primária, e reconheço-o arranjado de três maneiras diferentes. Estufado como se fosse tripas, isto é, dobrada, mas sem outro acompanhamento senão o molho, tipo moelas nomeadamente de coelho. Recheado, como no Florêncio, em Guimarães, mas aviso já os principiantes que pode ser uma tremenda desilusão e uma despesa escusada e chorada. Ou com molho verde, como eu prefiro guiá-lo cá em casa, embora já não o faça há muito tempo.
A solo, como petisco, para picar, o bucho nunca foi presença habitual nos balcões e escaparates das casas de pasto fafenses. Os nossos tascos, cafés, restaurantes ou pensões, que eu me lembre, que eu tivesse alguma vez provado, nunca estiveram para aí virados. Moelas, iscas de fígado, polvo em molho verde, codornizes, ovos cozidos, filetes ou postas de pescada frita, sardinhas e fanecas fritas, bacalhau frito, pataniscas, bolinhos de bacalhau, punheta de bacalhau, chicharro de cebolada, chispe ou rabo do porco, até ossinhos da suã, isso sim, eram o pão nosso de cada dia, urbi et orbi, mas bucho não, pelo menos não tenho na ideia. Talvez, por extravagância, possa ter acontecido, uma ou outra vez, aqui ou ali, sem o meu conhecimento, sem a minha autorização, mas é como digo, senhor doutor juiz, com os meus olhos eu nunca vi.

Quem lhe dava bom uso, ao bucho, era a querida Tia Laura, que era uma cozinheira de mão-cheia e fazia uma feijoada com tripas de porco tão extraordinária e constada que até os sinos da Igreja Nova tocavam à hora certa só para avisar que a comida estava pronta, meninos à mesa! As "tripas" tradicionais, com sola e folhada de bovino, também lhe saíam às mil maravilhas, e não apenas sete, aliás tudo em que as mãos da tia tocassem, na cozinha, nem que fosse batatas cozidas com bacalhau, transformava-se imediatamente em ouro, era de comer e chorar por mais, de lamber o beiço e ver estrelas. Isso, estrelas, disse bem.
E a Tia Laura guardava sempre um bocadinho para mim, contava sempre comigo após as refeições. Logo desde o princípio, quando casou com o Tio Mérico, e começou, ipso facto, a ser minha tia. Era ainda o tempo da Bomba, eu rapazito mas nunca faltava, e havia um mosqueiro na cozinha, logo à entrada, no canto do lado esquerdo, quem ia por dentro, quase em cima da banca. Mosqueiro, para quem não saiba, era um pequeno armário feito em madeira e com portinhola de rede fina, colocado na parede geralmente ao nível dos olhos de um adulto, e servia para guardar alimentos já cozinhados, mantendo-os arejados e, principalmente, protegidos das moscas. Era desse cofre-forte de miminhos requintados que a minha tia retirava, mal eu chegasse, e só nós dois, um bolinho de bacalhau, um taquinho de bacalhau frito, um filetinho de pescada, duas ou três sardinhinhas, um toquinho de frango ou uma mãozinha de coelho, um rojãozinho, umas lasquinhas de vitela, o que fosse naquele dia, e, apanhando o meu avô de costas, punha-me também uma pinguinha. Eu, valha-me Deus, ficava no céu!
Quando os tios foram para o Lombo, eu segui-os, evidentemente. Era já adulto, passara pelo seminário e pelos Comandos, trabalhava na Marigam, namorava no Porto aos fins-de-semana, mas o meu bocadinho e a minha malguinha estavam sempre lá à minha espera. Quando a Tia Laura fazia a famosa feijoada com bucho e tripas de porco, coisa rara, é verdade, mas creio que geralmente à quarta-feira, ao almoço, no anexo multiusos, garagem, cozinha rústica e salão de refeições, convidava-me de véspera, e isso, na nossa família, era uma distinção inigualável, uma quase medalha, uma coisa, enfim, para ser levada muito a sério, e não se fala mais nisso, senão ficamos todos a chorar...
E eu ia. Dos Fiéis de Deus ao Lombo e vice-versa, sempre a dar-lhe, a penantes, que é a única carta de condução que tenho, ainda hoje, aproveitando todos os atalhos e a inexistência de semáforos, saindo um bocadinho mais cedo do trabalho, chegando um bocadinho mais tarde, a suar por todos os poros, por todos os lados, feito num oito, com os bofes de fora, no limiar da congestão, nem sei como nunca morri e mais do que uma vez. E, no entanto, morreria satisfeito.

domingo, 12 de outubro de 2025

Diálogos fafenses 31

Fresquinhas
- Tem horas?
- Tenho.
- E são de hoje?...

Poesia imperfeita e geralmente pretérita 2

Há bar e bar

Bar Aço
Bar Afunda
Bar Afusta
Bar Alho
Bar Ão
Bar Atinado
Bar Ato

Bar Ba
Bar Bacã
Bar Bante
Bar Bárie
Bar Batana
Bar Bearia (ou cervejaria, em estrangeiro)
Bar Beita
Bar Bicacho
Bar Bichas (e outras idiossincrasias)
Bar Bitúrico

Bar Carola
Bar Cu
Bar Damerda
Bar Ítono
Bar Lavento

Bar Baquim
Bar Celos
Bar Bosa
Bar Dino
Bar Isto
Bar Keley
Bar Queiros
Bar Tinho (o constipado)
Bar Tolo
Bar Rabás
Bar Reiro
Bar Roso

Bar Aneante
Bar Boto
Bar Celete
Bar Demar
Bar Inho. Dantas.

sábado, 11 de outubro de 2025

Votos inúteis

Votos de confiança, votos de louvor, votos de vencido, votos de qualidade, votos de silêncio, votos de boas festas, votos felizes, votos infelizes, votos de parabéns, votos de melhoras, votos de casamento, o que eu lhe estimo é o que lhe desejo, votos de pesar, votos de medir, uma bora continuação, ex-votos e sobretudo votos de castidade. Inutilidades, nos dias que correm.

Poesia imperfeita e geralmente pretérita

Realmente

viva o rei
dos leitões, do cachorro quente, dos queijos e dos beijos
da sardinha assada, do churrasco, do carvão, dos frangos, dos galos
de barcelos
das bolas de berlim, do vinho e da cerveja, dos presuntos, das bifanas
do caracol, das castanhas, das batatas, do pernil
do cabrito e dos cabrões
do bacalhau, da picanha, da laranja, das tripas, dos bitoques
das migas, das caldeiradas
do marisco, das carnes, do cozido, frito, assim e assado
do caldo verde, dos croissants, dos bolos e dos tolos

viva
viva o rei
dos fogões e dos balões, da louça, dos móveis, dos candeeiros
dos tapetes, das alcatifas, dos relógios, dos tecidos, das fardas
dos sapatos, das meias, das malhas, das samarras
dos guarda-chuvas, das luvas, dos chapéus e dos bonés
das gravatas, dos fatos e dos factos
dos sofás

do ioió, do sexo, dos gnomos, do crime, dos filmes
da noite, do jet-set
da pornografia
dos pássaros e das pássaras
das cópias, das fotocópias
dos livros e dos livres

viva
viva o rei
dos óculos, das limas, das ferramentas, dos salvados, da sucata, do pneu
das tintas e dos tintos
da rádio
do fado, do gado, do rock'n'roll, do baião, do malato, do kuduro, do forró
das flores
do butão e do fecho-éclair

viva
viva o rei
de espadas
de ouros
sobre azuis
de copas
de copos
e de paus
mandados
reispectivamente

viva
viva o rei
dos cartões amarelos e de crédito
das bolas paradas e das assistências
das pole positions e dos afundanços

vivam
vivam
rei pelé, ray charles, ray liotta, rei zinho, rei naldo, rei nunido

vivam
vivam os reis
com o rei na barriga
rei morto, rei posto

viva o rei dos catalisadores
vivam os reis dos cartuchos
dos carimbos, dos caramelos
e dos carburadores

vivam os reis
sem rei nem roque
vivam o roque e a amiga
viva o rock em stock
viva, viva a rei nação
o rato roeu a rolha da garrafa do rei da rússia

vivam
vivam
o rei da selva, o rei-do-mar, o rei pescador
e o rei taxidermista, o rei da montanha
mais o rei dos ares
condicionados

vivam
vivam
o rei momo, o reigrilo
o armindo rei, o dos reis almeida
o rei tor manietador e o reisparta

vivam
vivam
o rei do universo
o cristo-rei
o rei dos reis
o bolo-rei

e os reis
belchior, baltasar e gaspar
magos

(fresquinho, no Peixoto, pela passagem de ano)

vivam o rei
maila sua ex-celsa com sorte
vivam

tchim
tchim.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Diálogos fafenses 30

À hora ou há ora?
À hora ou há ora? - perguntou o gramático, manhoso, como se os agás e os acentos, agudos ou graves, fossem visíveis nas conversas. - Há ora - respondeu o discípulo, mais convencido era impossível. - Há ora?!... - exaltou-se o gramático - Há ora?!?!... - ameaçou o gramático, entremeando os pontos de interrogação e de espantação, e insistindo perdigotamente nas velhas reticências. - Há ora, mestre - perseverou o discípulo, humilde porém seguro. - Há ora, mas e além disso...

O Céu pode esperar

Para falar com Deus
Tomou horas, foi para a fila, tirou senha, esperou vez, chamaram-lhe o número, acostou finalmente ao balcão das informações e perguntou: - Para falar com Deus, falo com quem?...

Manhã cinzenta de Outono a ameaçar chuva. No chão de cimento do pequeno cemitério, bem varrido, jaz, abandonada e fria, uma senha de vez. Aos meus pés, o famigerado ticket, ou tiquê, como nos dá muito mais jeito dizer, e dá-nos sempre muito mais jeito dizer mal. Vergo-me e apanho. "Sua vez", avisa a senha número E29, como se soubesse alguma coisa da minha vida que eu não sei. Da minha vida ou da minha morte. E manda, "Puxe". Puxei, quero dizer, pensei: poderia dar-se o caso de ser esta a solução desenterrada por espertos sepultadores para organizar as dezenas ou centenas de defuntos que diariamente se acotovelam aos portões dos cemitérios sobrelotados, à espera de vez, à espera de vaga. (Os mortos portugueses têm geralmente medo de serem queimados vivos e, como resultado, num país com uns económicos 92 mil quilómetros quadrados, os nossos campos-santos rebentam pelas costuras, as campas não chegam para as encomendas.) Mas não: a coisa não é assim tão terrena, pensei melhor, isto vem, upa, upa, lá de cima. É assunto de almas e não de corpos. É. O Céu está equipado com pelo menos um dispensador de senhas de vez, tive a certeza e tinha a prova na palma da mão. Percebi tudo. Queres a salvação eterna? Tira o número e vai para a fila, essa é que é essa! "Mas que bizarra epifania, mas que desgosto tão grande, lá se me foram os fundamentos" - lamuriei-me, rangendo os dentes. - "Até Tu, meu Deus?! Que tristeza! Onde o negócio e a burocracia já chegaram"...
O meu número é o E29, calhou-me, não sei em que número vai, mas, palavra de honra, estou sem pressa. Dou a vez.

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Eleições, futebol, tropa e alguma batota

Dão-se alvíssaras
Perdeu a cabeça e pôs anúncio no jornal. Faz-lhe muita falta.

As eleições locais corriam sempre bem, chovesse ou fizesse sol. Com novas ou velhas freguesias, uniões de facto ou aldeias desavindas, o mapa oficial não interessava para nada, a logística era um pormenor, as chapeladas eram as do costume. Bebiam-se uns copos à boca das urnas e nas urnas propriamente ditas, fazia-se uma almoçarada com o pessoal de serviço de todos os partidos, que eram o PPD e o "da mãozinha", o snobe do CDS mais o comunista, que vinha de fora e era desconfiado e picuinhas. O pai votava pelo filho que, coitadinho, "é deficiente", o filho votava pelo pai que já morreu mas "fazia muito gosto de votar", pai e filho votavam pela avó que "está muito atacadinha" e não pôde vir, e depois a avó vinha, toda gaiteira, e votava também. Havia quem votasse em dois lados, havia quem votasse duas ou três vezes no mesmo lado, havia quem votasse em dois partidos, e valia, havia quem votasse em quantas freguesias fosse preciso, era só pedir, havia quem quisesse e pudesse votar mas não deixavam, havia quem se fizesse de ambulância, havia quem se fizesse de parvo, havia quem chamasse a polícia, havia quem chamasse o gregório, agarrado ao garrafão levado pelo presidente da mesa a mando do presidente da junta. Chegada a hora das contas, ia-se aos cadernos e à acta, acrescentava-se aqui, desarriscava-se ali, seguindo a lei dos vasos comunicantes, rasgavam-se uns papéis que só estorvavam, queimavam-se só para não fazer lixo, noves fora nada, o chato do PCP também assinava, e no fim batia tudo certo. Podeis crer: batia tudo certo. Eram trafulhicezinhas consensuais, amigáveis, vigaricezinhas proporcionais, comedidas, batotazinha no mais escrupuloso respeito pelo método D'Hondt. Ganhava quem tinha mesmo de ganhar. Era, ó meus amigos, a democracia a funcionar, a manifestar-se de dentro de si própria. Autêntica, transparente, normal. Participada.

As primeiras eleições livres, democráticas, com sufrágio universal, realizaram-se em Portugal no dia 25 de Abril de 1975, celebrando o primeiro aniversário da Revolução dos Cravos. Eram as eleições para a Assembleia Constituinte, para a organização da democracia nova em folha, tendo votado cerca de 92% dos eleitores, isto é, quase seis milhões de portugueses. Nunca mais houve uma participação assim.
O acto eleitoral foi vigiado urna a urna pelas Forças Armadas, que enviaram um pequeno destacamento para todos os concelhos do País sem guarnição. Em Fafe, os militares montaram posto de comando no quartel dos Bombeiros, suponho que para aproveitarem a incipiente central de comunicações já existente na corporação. E eu ali, mais uma vez no meio da História, embora correndo por fora, como sempre, rindo-me como um perdido dos velhos polícias fafenses, naquele tempo Fafe tinha PSP, batendo a pala desajeitadamente a um aspirante imberbe e com cara de copinho-de-leite, se bem que quem realmente mandava naquela tropa toda era o Dr. Parcídio Summavielle, em funções de presidente da Comissão Administrativa da Câmara de Fafe, sempre de um lado para o outro, ele é que dava as ordens que eram para levar a sério, ele é que dizia onde se ia ou não ia, o que estava bem e o que estava mal, o que se fazia ou deixava de fazer.
Os soldados traziam rações de combate para o almoço, e foi o que comeram, coitados. A minha tia Laura é que não concordou com aquilo, "não tinha jeito nenhum", teve pena dos rapazes e fez-lhes um tachinho de comidinha boa, quanto mais não fosse para os desougar. Regalam-se os magalas que por ali estavam àquela hora. Já lhes valera a pena a vinda a Fafe. A Tia Laura era uma cozinheira de mão-cheia e, feitio e vocabulário à parte, tinha um enorme coração.

A tropa esteve em Fafe mais duas vezes naqueles tempos de festa e brasa, mas chamada de urgência para meter o povo na ordem. Logo em Maio de 74, com a revolução ainda no ar, o árbitro Porém Luís (1929-2010) só conseguiu sair do Estádio, escoltado por militares que vieram, creio, de Braga, três horas após o fim do jogo da AD Fafe com o Gil Vicente, que terminou 0-0. O Fafe lutava pela subida à primeira divisão e o trabalho do juiz de Leiria (nascido no Barreiro) deixou muito a desejar, principalmente junto dos adeptos fafenses, que, a verdade também é só uma, sentindo-se "roubados", e de cabeça perdida, queriam, a todo o custo, chegar-lhe a roupa ao pêlo. Pelo menos. Em todo o caso, ainda hoje estou convencido de que, se tivessem revistado Porém Luís à saída, as autoridades talvez lhe descobrissem dois penáltis nos bolsos. Um não marcado sobre o nosso Manuel Duarte e o outro não marcado sobre o nosso Valença. A AD Fafe ficou em segundo da zona, foi à liguinha nacional e não subiu.
No Verão Quente de 1975, logo em Junho, quando tudo começou, a sede do PCP de Fafe foi atacada, houve resposta, tiros, um morto, feridos, ameaças de nova investida e de destruição total. Durante a noite chegam os fuzileiros, cabeludos, barbudos, com autocolantes de esquerda nas fardas. Apartam águas, serenam os ânimos e protegem o edifício. O resto foi uma ferida que nunca mais sarou.