quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Era um artista português

Alma de poeta
Tenho dentes sensíveis, disse-me o dentista. É a minha alma de poeta.

Esqueçamos por momentos as eleições, o futebol e outras guerras. Puxemos à memória aquele extraordinário anúncio da televisão a preto e branco com um homem (africano do Império, por sinal) a abocanhar uma cadeira e a fazê-la andar à roda acima da cabeça como ventoinha de helicóptero. Um enorme sucesso sempre que dava no café Peludo, que era onde se via TV. E pensando bem, chamar-lhe anúncio até acaba por saber a pouco: aqueles 20 segundos eram todo um programa de variedades e talvez manifesto político, mas isso agora não vem aqui ao caso. Aquilo é que eram dentes fortes, gengivas sãs, boca saudável! E tudo porquê? Porque o artista era um artista português e usava Pasta Medicinal Couto.
Eu, que sou dos tempos áureos do Restaurador Olex, também usei a Couto durante mais de um quarto de século, julgo que inicialmente "receitada" pelo extraordinário Quinzinho da Farmácia, o "médico" dos pobres de Fafe, o melhor médico de família que Deus ao mundo botou, ainda os médicos de família não tinham sido inventados. Aquela coisa de ser "Medicinal" no nome do meio também me convencia, tenho de confessar, e só a larguei após sucessivas tentativas falhadas para fazer sequer mexer uma cadeira de plástico com os dentes e depois de ir ao dentista pela primeira vez na vida, aos 45 anos.
A Couto nasceu no Porto há 93 anos, quando não era natural um preto de cabeleira loira e um branco de carapinha. A primeira fórmula da "Pasta Medicinal" foi registada a 13 de Junho de 1932, por Alberto Ferreira Couto e um amigo dentista. O novo produto prometia não só lavar os dentes, mas também, tomai nota, protegê-los dos malefícios da sífilis, reduzir os casos de infeção gengival e limitar o fenómeno crescente da retração das gengivas. Em 2001, por imposição das normas comunitárias relativas a este tipo de artigos, a marca foi obrigada a deixar cair a tão sedutora quanto conveniente designação de "Medicinal", passando a chamar-se simplesmente Pasta Dentífrica Couto. Até hoje.
Em 2012, o então principal accionista da empresa Couto, em Vila Nova de Gaia, anunciou que tinha dois pretendentes à compra da marca. Um da área da cosmética e outro do sector farmacêutico, ambos com intenções de "aumentar mais as vendas". O negócio deveria ser fechado até 2017. Não sei se foi, desinteressei-me do assunto. Mas também hoje em dia as cadeiras são muito mais leves...

terça-feira, 16 de setembro de 2025

A polinheira e a trepa

Um par de estalos
Os estalos são como os óculos, as luvas, as calças, as meias, as botas, os patins, as jarras, as alianças e até os cornos. Usam-se aos pares.

Uma polinheira era uma tareia, uma sova, uma surra, uma tunda, uma coça, um enxerto, um enxerto de porrada perpetrado amiúde com uma vara ou fustiga, às vezes com um cinto e habitualmente de mãos estremes, ou até com o pé que estivesse mais à mão. Quer-se dizer, uma polinheira era uma trepa, que deve ler-se e dizer-se "trépa" e, neste caso, também podia significar folho de vestido. Polinheira e trepa, palavras nossas, antigas, questão cultural, do tempo em que o povo era muito honrado, um povo que dava, dava muito, dava tudo, era gente pobre mas de mãos largas, até dava polinheiras e trepas, dava porrada de criar bicho, era uma fartura, graças a Deus. E quem recebia, levava. Levava polinheiras, levava trepas, sempre pela medida grande, levava até para tabaco, mesmo que não fumasse, era o pão nosso de cada dia. Polinheira e trepa eram palavras com muito uso e imensa prática, no nosso Minho, em Fafe, metidas a cotio por uma questão de princípio, porque "quem dá o pão, dá a educação". E educar era bater. E aprender era levar, consoante o ponto de vista. Em casa, na escola e até na catequese, porque a pancada, naquela época, era como Deus nosso Senhor - estava em toda a parte.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

O capacete antes de deitar

Isto das idades realmente
O quarentão é a média de todos nós. O cinquentão começa a desconfiar da vida. O sexagenário passa a constar das notícias. O septuagenário anda em contramão na auto-estrada. O octogenário é porque se safou no acidente. O nonagenário quer que os quarentões, os cinquentões os sexagenários, os septuagenários e os octogenários se fodam e refodam. O centenário só se realiza de cem em cem anos, e está certo.

Sempre gostei de me deitar no chão. Desde pequenino. O Verão em Fafe é um forno, e a nossa mãe punha-nos a dormir a sesta no chão da casa, não no chão estreme, mas por cima de um cobertor fininho e fofo, e dormíamos como anjos de barriguinha ao léu. Porque o ar rasteiro é mais fresquinho, está provado cientificamente, e a nossa mãe sabia também disso, embora nunca tivesse ouvido falar de correntes de convecções, fluidos, átomos ou moléculas.
Habituei-me. Sempre que pude na vida, dormi a minha soneca no chão do campo, do monte e até da praia, se pela fresca da manhã e com a praia só para mim. Casei e fui morar para a Foz, no Porto: a casa dos meus sogros tinha um quintal-jardim que era um mimo, e era ali que eu me estendia, no cimento do caminho ou na relva do coradoiro, em tardes e noites de suar em bica. Depois bebia uma ou duas garrafas de espadal bem fresquinho, e já estava em condições de ir para a cama...
Agora, moro há mais de trinta anos em Matosinhos, com o mar a passar-me à porta e a enrolar na areia, mas custa-me muito a deitar, ainda por cima no chão, que me fica cada vez mais longe, e preciso de um guindaste aqui do Porto de Leixões para me levantar. Mas não resisto: de quando em quando, dá-me para a toléria - é a idade -, ponho o capacete e, em quatro ou cinco movimentos muito complicados e perigosos, às vezes doze, consigo deitar-me no chão da sala, com muitos ais! e muitos uis! pelo meio, os ossos rangendo, a cabeça a ourar e a televisão ligada só para que o som me faça companhia e me disfarce os queixumes. Às tantas a Mi entra, assusta-se comigo ali esparramado no lamparquet com vinte anos de garantia e grita: - Ai, valha-me Deus, que ele morreu, coitadinho! Que é da motorizada, homem?...
E eu, de olhos fechados e mãos cruzadas sobre o peito, só me falta o terço: - Chama mas é a polícia, mulher, que a culpa foi do outro...

Moral da história: este frio, será do tempo?

domingo, 14 de setembro de 2025

Vós não sabendes nada!

Gaba-te cesta
Era um homem muito antigo. Falavam-lhe em gigas e ele imaginava cestas...

Uma rapariga da minha idade, isto é, uma idosa, descendo a Arcada em direcção ao Mário da Louça se ainda houvesse, em passeio, de braço dado e discutindo alegremente com o neto, moço com ares de universitário repetente e bem disposto, os dois perdidos de riso. Quadro bonito. Flagrante exemplar da harmonia familiar e do eterno conflito de gerações, a sabedoria dos antigos contra a ignorância de hoje em dia. E diz ela, toda despachada e gramatical, aritmética, falando para o rapaz, sim, mas sobretudo para o redor, para quem a quisesse ou não ouvir, e suspeito que especialmente para mim, que lhe pareço de igualha e vou em sentido contrário, apontado à memória do Américo das Bicicletas: - O quê? Eu até sei as letras romanas, quanto mais! Vós agora é que não sabendes nada...
E realmente.

Agora, uma revelação. O Sr. Américo das Bicicletas, que eu conheci muito bem, era, se não me engano, padrinho do meu padrinho e tio Américo. O que quer dizer que o Sr. Américo das Bicicletas era praticamente meu padrinho-avô, e eu nunca tinha pensado nisso, o que é extraordinário. Pensei hoje, agora, sem mais nem menos, ou por causa dos números romanos, e fiquei muito feliz. Porque eu gostava muito da figura do Sr. Américo das Bicicletas.

sábado, 13 de setembro de 2025

E viva o velho!

Quando for pequeno
"Quando for pequeno, quero ser palhaço e astronauta", disse o ancião, sonhador e triste. Com efeito, aquela sociedade funcionava às arrecuas: nascia-se velho e morria-se a chupar no dedo. Era naturalmente governada por garotos.

Estou mortinho que chegue o Dia Mundial da Terceira Idade, dia dos nossos velhinhos, coitadinhos, nem que tenha de ser antes. Que festa tão bonita! Levantar cedo, roupinha de domingo, pó de talco e perfume, chá e bolachas e ala para a camioneta, nem que não queiram. Lá vão os nossos velhinhos de cu tremido, cantando bonitas cantigas do Quim Barreiros ditadas ao microfone pela senhora doutora da Junta, que até já foi ao Preço Certo e agora é candidata. Missinha, santa missinha, um regalo, nem que não queiram, e Quinta da Malafaia para enfartar a mula, nem que não queiram, tantos velhinhos, tantos velhinhos, ó que extraordinário velhódromo, velhinhos de tantos lados, atordoados, perdidos, sem saberem de que terra são, tantos senhores presidentes de câmara, sorridentes e abraçadeiros, de mesa em mesa, e os fotógrafos solícitos e oficiais sempre atrás, acotovelando-se, ai que dinheiro tão bem empregue pelo orçamento municipal, vêm aí as eleições! Os velhinhos sobreviventes, nem que não queiram, regressam ao sol-pôr com o saco cheio, nem sempre entregues na terra certa. De volta à naftalina, à indiferença e ao esquecimento, até daqui a um ano, se Deus quiser.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

A côdea e o côdeas

O bem-mandado
Mandaram-no ir chamar nomes a outro. E ele foi.

Côdea é a parte exterior endurecida de algo, do pão, do queijo, das árvores. É a casca, a crosta, a tona. Côdea pode ser pequena refeição ou merenda de ovos fritos com farinha, molhados em mel, entre o almoço e o jantar. Côdea é pão, pão duro, porção pequena e insignificante de comida, ou por outra, comida reles e em diminuta quantidade, um nico, um cibo. Côdea é nódoa, camada exterior de sujidade ou coisa de nada. É pedaço, bocado - "uma côdea de sabão para lavar as mãos". É pagamento miserável - "trabalho 12 horas por dia e o patrão dá-me uma côdea". O plural de côdea é côdeas, e muda do feminino para o masculino. Côdeas é uma pessoa muito pobre, pobretão, um homem sujo, um indivíduo grosseiro, um labrosta, um carroceiro. Em Fafe, antigamente, chamar côdeas a alguém era insulto do piorio, ia fundo no carácter. Ser côdeas não era só aspecto, tinha mais a ver com o asseio moral. O côdeas, o verdadeiro côdeas, até podia andar sempre muito limpinho, mas, por dentro, não deixava de ser um indivíduo asqueroso, desprezível, desprezável, baixo, sórdido, vil, mesquinho. O côdeas era um bandalho, um pulha, um bardamerda, um filhodaputa. No insultómetro da nossa terra, um côdeas, um verdadeiro côdeas, estava ao nível do moncoso e do ranhoso, mesmo até do piolhoso. Portanto, estais a ver...

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Às carreiras

O dorsal
O dorsal chama-se dorsal porque é para usar ao peito - ou, vá lá, na barriga do atleta. Se fosse para usar nas costas, isto é, no dorso do atleta, chamar-se-ia peitoral.

A carreira era a camioneta, o autocarro, o transporte colectivo, público, prestado por empresas privadas. Para Guimarães, para Felgueiras, para a Póvoa de Lanhoso, para Várzea Cova, para a Gandarela. Eram a Mondinense, a João Carlos Soares, a Landim e a Ferreira das Neves, que me lembre. E tínhamos a "Empresa". Carreira podia também ser fila, fileira, linha, alinhamento. Mas era sobretudo corrida. Isso, em Fafe e pelo menos nas zonas de Basto aqui à beira, carreira queria dizer corrida. Dar uma carreira, ir às carreiras, era correr, era ir a correr. Até rebentar! Até cair de cangalhas...

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Uma passagem de nível

Como quem entra no céu
Transpôs a porta sagrada, procurou instintivamente à direita a piazinha de água benta que não 
encontrou, genuflectiu e benzeu-se num silêncio e num respeito que só vistos, caminhou lentamente até à estante, no mais profundo recolhimento, pegou no livro como quem pega em asa de borboleta ferida, afagou-o, ao livro, abriu-o como que a medo, em ângulo recto não mais, folheou-o sem destino mas com mil cuidados, contemplativo, num deleite adivinhatório de santidade gozosa. Tinha acabado de entrar numa livraria.

Fafe já teve passagem de nível. Em Santo Ovídio, mesmo no meio da estrada, era a nossa única passagem de nível, magnífica, sem rival, e por isso chamava-se "a" Passagem de Nível, porque Fafe naquele tempo era sobremaneira isso, uma extraordinária terra de antonomásias. No nosso imenso pequeno mundo, tínhamos o Largo, a Avenida, o Monumento, a Recta, o Campo, o Depósito, o Banco, os Serviços, a Bomba, o Jardim, o Bairro, a Quelha, o Santo, o Colégio, o Rio, a Poça, a Rampa, o Posto, a Empresa, o Hotel, o Bar, o Snack-Bar, a Pastelaria, o Palacete, o Cinema, o Grupo, a Fábrica, a Cantina e, cá está, a Passagem de Nível.
A singularidade, de resto, nunca me incomodou, antes pelo contrário, simplificava-me a vida, mas esta coisa de Fafe ter só uma passagem de nível na sua história, uminha, e não haver notícia de mais, antes e agora, numa cidade tão dada à cultura, às letras e à publicação literária, é que me surpreende. Em Fafe, os livros saem ao ritmo das cerejas, e dos tremoços, uns atrás dos outros, o que é de elogiar, e no entanto não se sabe, nunca mais se soube que por aqui tivesse aparecido o tal parágrafo perfeito, o trecho extraordinário, a tirada sublime, o fragmento de classe, a amostra de gabarito, quatro linhas de excepção, duas ou três frases lapidares e eternas, dúzia e meia de palavras genialmente concatenadas e dignas de registo, enfim, outra passagem de nível. Não. Nada. Nadinha. E eu, sinceramente, dá-me um certo desgosto...

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Bagatela...

Allegro ma non troppo
Deu-lhe um bach, assim de repente. Ele a princípio até ficou satisfeito, mas na verdade preferia um rimsky-korsakov.

Bagatela. Coisa sem valor, ninharia, insignificância, frivolidade ou, por outra, tabuleiro do chamado "bilhar chinês". Na música, bagatela é uma peça curta, ligeira e despretensiosa, típica do Romantismo, normalmente para ser tocada ao piano. Beethoven, por exemplo, muito dado a repentinas modificações de humor, compôs algumas dezenas dessas colossais miniaturas, a mais famosa das quais será certamente "Für Elise", que toda a gente conhece. Em Fafe, bagatela era também resposta na ponta da língua como opinião acerca disto ou daquilo, exprimindo um certo desconsolo ou desconforto, é certo, mas dentro dos limites da educação e da caridade cristã. - E este vinhinho, hã?, que tal? - perguntava-se. E se o vinho não era realmente grande espingarda e não se queria passar por parvo nem por falso ou mal-agradecido, então respondia-se diplomaticamente: - Bagatela... 
Bagatela, assim com reticências e um sorrisinho assaz encaralhado de faz-favor-de-desculpar, queria dizer sofrível, mais ou menos, menos mal, podia ser pior, não há-de ser nada. Isto é: bagatela, aqui, queria dizer exactamente o mesmo que... calar. Mas um bocadinho para pior.

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Eles chamam-lhe cumbre

Guerra da Restauração
Quando a Guerra da Restauração entre Portugal e Espanha terminou e pediu a continha, em 1668, foi deveras porreiro. Os espanhóis começaram a vir comer bacalhau a Valença e os portugueses passaram a ir às bandejas de marisco a Vigo. Foi bom para o negócio e, entre mortos e feridos, salvaram-se consideráveis estabelecimentos.

Em 1986, a Pousada de Santa Marinha, na Costa, em Guimarães, recebeu a terceira edição de uma coisa chamada Cimeira Luso-Espanhola. Aníbal Cavaco Silva era o primeiro-ministro de Portugal, Felipe González era o presidente do Governo espanhol e eu era jornalista de O Primeiro de Janeiro. Estivemos lá os três, evidentemente.
Tarde e a más horas, o meu jornal lembrou-se de me mandar para o local do crime. Tarde e a más horas, quero dizer, no caso em apreço, já depois de a coisa ter começado. E eu fui todo contente, de braço de fora na Catrel com letras, pendurado no Adélio Santos, que era o homem do volante, das fotografias e de outras habilidades e excessos. Eu tinha muita vaidade na minha profissão.
Com alguns empenhos e uma sorte do caraças, consegui credenciar-me numa esquina do Toural, que, tenho ideia, era posto de turismo mas tinha sido superiormente requisitado para todos os efeitos. Cheguei lá acima engatilhadíssimo para colocar certas e determinadas questões tanto ao Silva como ao González, que os havia de entalar, porém, sem me deixarem sequer abrir a boca, mandaram-me para uma sacristia que era a "sala de imprensa" ibérica. Ficámos lá todos de quarentena a contar larachas uns aos outros, chistes de espanhóis e portugueses, "Valevale...", diziam eles, "Já me tinhas dito...", dizíamos nós. Os jornalistas somos uns gajos com piada. Somos piadéticos sem fronteiras, Aljubarrota, na nossa irmandade, é como se fosse uma anécdota.
A cimeira eram dois dias. Escrevi um primeiro texto, de lançamento da coisa, na véspera da coisa, ainda na redacção, e assinei, com grande lata e imensa ignorância, "Hernâni Von Doellinger - enviado-especial a Guimarães". Creio que na altura era "enviado-especial" que se usava, com hífen, o que dada uma certa solenidade à função. Não fui corrigido por quem devia ter tarimba e mais juízo do que eu - portanto estava certo. É preciso que se note: estava a começar no ofício e era a minha primeira saída para o "estrangeiro". Para além disso, como decerto estais recordados, eu tinha muita vaidade na profissão. Vai daí, fiz as malas e parti da portuense Rua de Santa Catarina rumo ao fim do mundo, onde cheguei passado um bocado.
Naqueles bons velhos tempos, os jornais pagavam generosamente as pernoitas aos seus jornalistas, e eu resolvi dormir em Fafe. Jantei, fora de horas, no restaurante do Café Académico e dormi em casa da minha mãe. No segundo dia, almocei no Fernando da Sede. O Pimenta foi buscar-me e levar-me a Guimarães. O importante era que eu estava para fora, eu era enviado-especial, estais a perceber? O Adélio infelizmente não concordava comigo, e foi dormir a casa, ao Porto, que lhe dava muito mais jeito e era a coisa mais natural do mundo.
Da cimeira, enquanto lá estive, só soube os recados que os chegamissos do Cavaco nos traziam de vez em quando, que a coisa estava atrasada e que "Eles" estavam a discutir isto e aquilo, tudo a correr muito bem para o nosso lado, Portugal 5-Espanha 3. Não me custa admitir que os llegamessos do González contavam aos jornalistas espanhóis o mesmo resultado mas ao contrário, e acho justo. A "Eles" só os vi na conferência de imprensa final. E na verdade nem os vi, estava muita gente à minha frente, câmaras, holofotes e microfones tapando-me a visão, mesmo sendo "Eles" maiúsculos. E também não os ouvi, mas isso a camaradagem resolveu, dando-me as notas detalhadas do que fora dito. Que era nada ou quase nada. E eu voltei a assinar, com grande gabarito e por mais três ou quatro vezes, "Hernâni Von Doellinger - enviado-especial a Guimarães". E voltou a sair assim no jornal.
Resumindo e concluindo: como combinado, a Cimeira Luso-Espanhola de Guimarães de 1986 foi um sucesso e a cobertura do enviado-especial de O Primeiro de Janeiro ainda mais. O Adélio Santos morreu há uma dúzia de anos e o jornalismo consta que também.

Enfim. A 35.ª cimeira ibérica foi no ano passado, em Faro, e a próxima, se Deus quiser, há-se realizar-se em Espanha, não sei quando. E isto passa por ser uma história interminável. Ao fim de tantos anos e encontros, cá e lá, alternadamente, portugueses e espanhóis não há maneira de chegarem a acordo sobre o essencial da coisa: nós continuamos a chamar-lhe cimeira, como é evidente, e eles insistem em chamar-lhe cumbre, vá-se lá saber porquê...

domingo, 7 de setembro de 2025

Cubillas e, talvez, cação de cebolada

Mas onde é que eu o deixei?...
Era um avançado muito distraído. No momento supremo do remate - dizem os especialistas -, andava sempre à procura do pé esquerdo.

Eu vi Cubillas. Teófilo Juan Cubillas Arizaga, o prodígio peruano, vi-o com os meus próprios olhos, vi-o da minha cor, uma só, azul e branco, vi-o pequeno, delicado, elegante, inesperado, repentista, amiúde sublime, fulminante, Lionel Messi antes de ser inventado, uma brisa ligeira e redolente deslizando quase invisível sobre o relvado. Cubillas era um sorriso em andamento. Sim, um sorriso - genuíno, dir-se-ia que infantil, maroto. Cubillas e a bola estavam-se prometidos desde o princípio dos tempos, sabiam-se de cor e salteado, eram um em dois perfeito, acto de amor consumado, puro gozo, prova viva da bondade dos deuses.
Eu vi Cubillas. Uma vez, porque os fenómenos são assim, não dão para mais. Vi-o aqui à porta de casa, em Guimarães, fomos de Fafe o tio Américo, o tio Zé e eu, de propósito para ver Cubillas, com merenda aprazada talvez no Batista da Cruz d'Argola, ou não sei se noutro estaminé qualquer ali da zona que tinha um cação de cebolada que era realmente uma especialidade, e fiquei com essa memória. Íamos com fé. Podia ser que também víssemos o "nosso" Quim na baliza do FC Porto, mas foi Tibi quem tomou conta, se bem me lembro desse mês de Março de 1974, ainda o cravo estava por estrear. O estádio rebentava pelas costuras, deu empate zero-zero e Cubillas falhou um penálti, mas isso o que é que importa?
Tem piada, foi com o Vitória que, entre 1975 e 1976, eu aprendi o futebol de primeira divisão. Os quase dois anos no Liceu de Guimarães deram-me para isso: a meio da semana, ia comprar o bilhete numa loja ali perto do Toural, creio que na Rua de Santo António, e no domingo, logo a seguir ao almoço, punha-me à boleia, em Fafe, encostado à Farmácia Sousa Alves, como nos dias em que ia vadiar para as aulas. O regresso a casa, depois do jogo, novamente de dedo polegar esticado, era quando Deus quisesse. Mas naquele dia estava muito bem acompanhado, com transporte garantido e horas tomadas.
É. Eu vi jogar Teófilo "Nene" Cubillas! Assim, com ponto de admiração e tudo. E explico a excitação. Sou esquisito. Em toda a minha vida, fui, por vontade própria e em meu perfeito juízo, a somente quatro concertos: Andràs Schiff (com as Variações Goldberg de Johann Sebastian Bach), Paco de Lucía, Rolling Stones e Bob Dylan. Já tenho idade para fazer balanços, e faço-os, antes que tenha idade para não os fazer. Schiff, Lucía, Stones e Dylan foram-me acontecimentos únicos, marcantes, epifanias, catarses, itens que eu coloco na coluna mal preenchida dos meus "momentos verdadeiramente extraordinários". Schiff, Lucía, Stones, Dylan. E Cubillas. Para mim, Cubillas está-lhes ao nível. Cubillas e, sou franco, talvez também o cação de cebolada...

sábado, 6 de setembro de 2025

O meu primeiro casamento

Ele era um tipo com princípios e valores, sabia das suas obrigações. Casou. Casou pelo civil e casou pela Igreja. Por amor é que não!

O meu primeiro casamento foi o casamento do meu padrinho e tio Américo com a minha querida tia Laura. Vieram convidados do Porto e eu andei de "pão de forma" em forma de Volkswagen, numa épica viagem entre a Igreja Nova e os Bombeiros antigos, logo ali no meio dos palacetes, talvez nem 100 metros sempre em linha recta, e ainda assim enjoei. A fotografia "de conjunto" foi tirada a preto e branco nas escadas do Hospital, talvez esteja a inventar, e o banquete teve lugar no velho salão da Bomba, eu metido numa mesinha à parte para as crianças, logo depois da grande porta dupla de entrada, e portanto não gostei. O meu segundo casamento, eu já rapaz, foi o casamento do meu tio Zé da Bomba com a minha querida tia Lena. Vieram convidados do Porto, evidentemente, comeu-se no famoso Restaurante Jordão, em Guimarães, fui apresentado aos agriões em salada, houve discursos e não me lembro de como é que fomos para lá, se calhar a minha mãe teve de alugar um carro, serviço que decerto ainda hoje, mais de 50 anos depois, andará a pagar a prestações. O meu terceiro casamento foi o casamento da minha irmã Nanda com o meu cunhado Álvaro. Não tenho ideia se veio alguém do Porto, mas provavelmente veio, porque fazia parte ou então era mania, tara de família, isso de vir alguém do Porto, e aquilo fazia-me espécie. "Os do Porto" não era por acaso que eram "os do Porto". Ser-se "do Porto" era um merecimento, uma espécie de doutoramento ou condecoração, estatuto, posição, em todo o caso. Eu ia para o Porto de comboio, automotora, vá lá, de cu tremido e geralmente a dormir, só para namorar, essa é que é a verdade, nunca fiz nada na vida, mas eles não, tinham ido para o Porto a pulso, mais difícil ainda do que ir para a França a salto, "estavam muito bem", regressavam para as festividades da terra, de fato e prendas, magnatas e um bagaço, ninguém sabia o que é que eles realmente faziam no Porto, se é que faziam alguma coisa, e se eventualmente não seria em São Mamede de Infesta ou em Rito Tinto, para não ir mais longe, mas, para todos os efeitos, eram "os do Porto", parentes desconhecidos e habitualmente desnecessários, porém com direito a vénias e mordomias sempre que se apresentassem, e eu, quer-se dizer, afinava com tanto fingimento. Tornando à Nanda e ao Álvaro, que é o que mais importa, a cerimónia religiosa creio que se passou na Capela de Santo Ovídio, que era moda naquele tempo, e o almoço lembro-me que foi muito bem servido no restaurante do Café Académico, tudo em Fafe. Depois dos meus três primeiros casamentos, tive evidentemente outros casamentos, inclusive o meu, que ainda hoje vigora, não é para me gabar. O meu casamento realizou-se por acaso no Porto e vieram convidados de Fafe. Muitos. A maioria qualificada. Não foi vingança, mas soube bem.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Em balão previamente aquecido

Ai rapariga, rapariga, rapariga
A jovem mãe aproveitou o inesperado bocanho da manhã farrusca e incerta para descer até ao passeio da praia com a filhinha pela mão. Que bonitas, as duas, tão frescas e mimosas! A jovem mãe apontou o areal e disse naquela maneira pateta de falar às criancinhas, como se as criancinhas fossem atrasadas mentais ou, vá lá, cãezinhos de estimação:
- Ei!, tantas pombinhas, tantas pombinhas! Eeeiii! Ó pombinhas, ó pombinhas!...
A menina, pouco convencida porém obediente, correspondeu com um económico e timorato:
- Ei.
Tinha razão a pequena. Já suficientemente grande para saber a verdade das coisas. Eram gaivotas.

Moro mesmo em frente ao mar, se me puser de lado. Na varanda de casa, sem marquise, depois de um jantar mais coisa e tal, eu gostava de fumar a minha cachimbada e beber um fundinho de CRF em balão previamente aquecido. "Em balão previamente aquecido". Não sei quem foi o génio que inventou a frase e o conceito, mas, garanto-nos, sabe quase tão bem dizê-lo como bebê-lo. Eu parece-me que já trouxe a ideia de Fafe, e lembro-me que quem gostava também de repetir amiúde a curiosa expressão era o Silva da Sargaça, ou Chico Silva, velho camarada de merendas e desconversas líquidas, exímio praticante do falar antigo e excelentíssimo músico da Orquestra Sinfónica do Porto e da nossa Banda de Revelhe.
E balão, para mim, é mesmo balão. Não um balãozinho ou um balo. É balão, bojudo e de boca larga, tipo Alberto João Jardim nos seus bons velhos tempos. O conteúdo até poderia ser pouco, e era, um dedo apenas e medido pela minha mulher, mas o continente eu queria-o pela medida grande.
Moro em frente ao mar, dizia eu, e tenho uma vizinha que dá de comer às gaivotas. A sério, dá de comer aos gatos e às gaivotas. E as gaivotas, que vêm ao cheiro, não me largam a varanda. De dia e de noite. Todos os dias e todas as noites. Creio que ainda ninguém explicou a estas gajas que só me deveriam bater à porta em caso de tempestade marítima, como manda o sapiente provérbio popular.
Ora, a gaivota é um bicho que, como a maioria dos portugueses, come toda a espécie de porcarias e, padecendo de intestino fraco, anda quase sempre de soltura. Resultado: quando a gaivota abre a cloaca, sem aviso nem circunscrição, chovem cagadas de alto lá com elas. Quem tinha capacete, tinha, quem não tinha, que tivesse. Isto é científico.
Portanto, moro praticamente em frente ao mar e estava na varanda à conversa com o CRF em balão previamente aquecido, deitando um olho, de quando em vez, lá dentro na sala, a um desenxabido Gil Vicente-Olhanense, e isto é que eu ainda não tinha dito. Foi num desses momentos, no exacto momento em que eu disponibilizei o meu olho esquerdo para mais um fora-de-jogo mal assinalado, ainda por cima, que o estepor da gaivota do costume - já te conheço a fronha, ó cagona! - resolveu aliviar lastro, com uma pontaria tamanha que me acertou em cheio no indefeso balão de boca larga.
Antes de ficar realmente incomodado, pensei: isto é uma metáfora do pobre país que somos, todos nos defecam em cima, até as gaivotas, e pela boca morre o peixe. Bebi um golo, e não era metáfora nenhuma. Se quereis saber a verdade, e com vossa licença, era mesmo merda.

Entretanto o Olhanense desceu de divisão, o Gil Vicente também, mas tornou a subir, foi inventado o VAR, que é outra grande chostra, eu deixei de beber CRF e de fumar, tenho em casa 25 cachimbos inúteis e belos que são um bom princípio de museu ou talvez de um centro interpretativo, ainda estou à espera de um subsídio europeu, a Banda de Revelhe quase rebentavam com ela, as gaivotas continuam a cagar-nos em cima e os políticos, de uma forma geral, também. E nós por cá na vidinha e olhando o mar, a ver navios e estupidamente sem capacete.

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

O casal Carter e o Casal Garcia

Homem de famílias
O casamento, para ele, era tudo. Aliás, tinha dois. Ao mesmo tempo.

Os americanos têm muito orgulho no casal Carter, Jimmy e Rosalynn, que estiveram casados durante 77 anos. Jimmy Carter e Rosalynn Smith Carter protagonizaram o matrimónio mais duradouro de toda a história presidencial dos Estados Unidos. E os americanos estão todos contentes, porque acham sempre que são os maiores. Os americanos nunca vieram a Fafe, ao Peludo, no tempo do Sr. Avelino, o nosso "Hoss". Eles não sabem que, em Portugal, temos o Casal Garcia, since 1939, é só fazer as contas, já lá vão 86 anos...

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

A moda ou a modinha

A moda pode ser fatal
Os andarilhos estão na moda. E as bicicletas, para outro tipo de clientela. Os andarilhos, as bicicletas e as trotinetas. As cenas de pancadaria, facadas, tiros e mortes entre jovens bandidos, por nada ou por quase nada, também. Sobretudo facadas. A malta nova anda agora toda por aí com naifas, como quem usa boné ou sapatilhas de marca. É. As televisões de faca e alguidar tratam da propaganda, montam o espectáculo, ensinam como se faz. A moda tem muito que se lhe diga. E pode ser fatal.

Aquele restinho de caldo que se deixava no fundo da malga, a que se juntava broa migada e, amiúde, uma pinga de vinho tinto, e que sabia tão bem no fim da refeição, como se fosse um acrescento de fartura no tempo da fome, era a "moda" ou a "modinha". E se o caldo fosse de nabos, então é que era em cheio. Dicionários e enciclopédias chamam-lhe "moado", substantivo masculino apresentado como regionalismo de origem incerta. Acredito que sim, mas em Fafe não. Em Fafe, era a "moda". Ou "modinha", como melhor se dizia no nosso carinhoso falar antigo.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Que perfeita ela era, a ignorância

Pro Bono
Acabou o curso, disseram-lhe que, para começar, ia trabalhar pro bono e ele rebentou de alegria. "Sou fã n.º 1 dos U2", exultou, excitadíssimo.

Eu trabalhava num jornal que tinha uma revista de fim-de-semana muito dada àqueles rankings da treta que só servem para meter as fotografias dos "famosos" no júri de faz de conta. Eu batalhava no Porto e o jornal era mandado a partir de Lisboa. Uma vez, o assunto devia ser música e pedi a ajuda, a opinião, do Luís Filipe Barros. "Luís Filipe quê?..." - disse o meu chefe lisboeta, especialista em Big Brother. "Luís quê? Quem é esse gajo? Não arranjas ninguém conhecido?..."

Desencantei o Tozé Brito, noutra ocasião, para outro trabalho de Hércules, mas o meu chefe, outro, jornalista alegadamente encartado, também não fazia a mínima ideia de quem eles fossem, Hércules, antes dos desenhos animados e do cinema, e o Tozé Brito propriamente dito: "Esse tipo jogou onde? E o que é que ele percebe de música?...", atirou-me, com aquele risinho telefónico e condescendente tão próprio dos sábios da capital. Pouco tempo depois (e nem digo que tenha sido por causa de eu lhe ter sacudido o pó), Tozé Brito foi para jurado num programa de televisão e o jornal onde eu trabalhava nunca mais lhe largou a braguilha. Até fechar. O jornal.

Outra vez, havia cá em cima uma iniciativa qualquer relacionada com cartunes e política, algo do género. Eu tentava convencer Lisboa para o interesse da coisa e agarrei-me a este argumento que eu pensava de peso: a obra do grande Sam era o destaque do evento. "Qual Sam?", inquiriu o chefe de serviço, com o fastio de quem tem mais que fazer do que estar outra vez a ensinar-me o que é notícia e o que não é notícia. "Então, pá, o Sam, o famoso cartunista, o Sam do Guarda Ricardo, pá, estás farto de saber, não estás?, o Sam...", respondi-lhe eu, já mais perto do que longe de o mandar à merda.
A palavra "famoso" fazia milagres naquele jornal. "Ok. Vai lá então e aproveita para entrevistar o gajo, o Sam", decidiu finalmente o chefe. E eu não fui.
O Sam, Samuel Azavey Torres de Carvalho (1924-1993), figura pública, nacional e internacional, nome imenso, mais do jornalismo sozinho e a dormir do que nós todos juntos e eventualmente acordados, tinha morrido já lá ia para aí uma década, mas eu preferi guardar segredo para os meus chefes, para não lhes dar desgosto, coitados. Belos tempos, aqueles. Que perfeita ela era, a ignorância!

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

No Minho, mais perto do céu

Livro das lamentações
O dinheiro não cai do céu. E é pena.

O Minho cheira a Natal, sabeis? O Alentejo e Trás-os-Montes decerto também cheiram, as Beiras e o Ribatejo lá terão os seus aromas, mas a mim o que me interessa aqui é o Minho, e quanto mais alto melhor. Mais dois ou três meses, e o Minho começa a cheirar a Natal. Ao Natal antigo, já posso dizê-lo. Os últimos lavradores do Minho fazem fogueiras nos campos como fizeram os seus pais e os pais dos seus pais, queimando folhas secas e gravetos velhos, emprestando ao ar um perfume doce de lareira. De lar. Dá uma vontade tola de abrir a janela do carro, largar a cabeça ao frio e fechar os olhos. E eu abro e eu largo e eu fecho. A janela, a cabeça e os olhos, respectivamente. Sou pendura, graças a Deus, não sei conduzir, vamos em segurança.
Ando sempre de nariz no ar, tenho talvez um lado canino que desconhecia e já começo a admitir. Farejo. Os cheiros interessam-me particularmente, orientam-me, transportam-me aos sítios. O cheiro a especiarias leva-me a Angra do Heroísmo, Óbidos cheira a chocolate, Fundão à flor da cerejeira e Vila Nova de Foz Côa às amendoeiras em flor. Fafe cheirava a sabão amarelo e Matosinhos cheira mal.
Que depressa vão os dias! Tinha razão o nosso bom padre Fraga: ainda há pouco foi Janeiro, passámos agora Agosto e já estamos no fim do ano, meus meninos. Estamos no Natal. Estamos sempre no Natal.
É. A memória também vai ao cheiro: a querida Bó de Basto, pequerricha, resmungona e bondosa, aquecendo o vinho na infusa esbotenada que tem dentro uma maçã acabadinha de assar no borralho. O fumo das giestas molhadas e que, ainda assim, ajudam a espertar o braseiro. Os malabarismos a toque de caixa do testo da velha chocolateira desbordante de café que não passava de cevada. A garrafa da aguardente do avô que bastava aliviar-lhe a rolha para logo sarar constipações e até unhas encravadas. A luz bailarina da candeia fazendo filmes mudos e de terror nas paredes da cozinha, negras de fumo e do luto da vida. E a canela. Sim, as queimadas agrícolas de Novembro e Dezembro, no Minho, são temperadas com canela. Quem disser o contrário, anda muito mal informado ou está a pensar nos  fogos de Verão. 
Então. Vamos lá, que são que horas! De novo na estrada de um carro só, o fumo, os fumos, aqui, ali, mais adiante, novelos que sobem da terra suada, letra a letra inventando palavras de faz de conta. São os índios a mandar recados uns aos outros, gosto de pensar, e rio-me outra vez moço. Fafe, Medelo, Marinhão, Moreira de Rei, Várzea Cova, Passos logo ali em baixo, tecnicamente já em Cabeceiras de Basto, devagar se vai ao longe. Assim vamos, a Mi e eu, para não perdermos pitada. Tive tanta sorte: a minha mulher converteu-se ao minhotismo, já há muito, andamos sempre os dois ao mesmo. O fumo acinzenta o verde que cresce ao abandono e as leiras lavradas e cada vez mais raras. Acinzenta a paisagem mas limpa a alma. Este fumo aconchega-nos, abraça-nos, obriga-nos a abraçarmo-nos. Por causa do fumo, o céu é mais baixo, estamos mais perto do Céu, estamos mais perto uns dos outros, e apetece-me inspirar a plenos pulmões a ver se consigo guardar este fumo e este cheiro, esta paz, para o resto do ano, para o resto da vida. Quem me dera aqui à noite, toda as noites, com este cheiro, com este céu. Este céu cheio de estrelas, que eu bem as sei. Devia ser proibido alguém morrer sem ter uma mão dada e um céu assim para olhar. Olhar... e só então partir. 

domingo, 31 de agosto de 2025

Acompanhamentos & companhia

Fiel amigo
O bacalhau é o melhor amigo do homem. Só lhe falta ladrar.

Comer bacalhau assado na brasa com batatas fritas é um escândalo, é um crime. Eu sou pela livre escolha - e também sou pelo FC Porto, embora essa parte não venha aqui ao caso -, mas há comidas que evidentemente não combinam, por mais voltas que lhes queiram dar. E bacalhau assado na brasa com batatas fritas, então, é uma catástrofe, uma calamidade. Mas eu já vi. História bem diferente seria, por exemplo, comer bacalhau assado na brasa com feijoada à transmontana. Isso, com a bela e robusta feijoada à transmontana. Comi uma vez esta esdrúxula combinação, em Fafe, propositadamente convidado, em casa do saudoso comandante Armindo, na Torralta, num almoço talvez de domingo, porque era prato de gala. Comi e gostei muito. Era tão bom! E estivemos tão bem! Porque uma coisa são os acompanhamentos, outra as companhias...

sábado, 30 de agosto de 2025

Os rabilhos, sem menosprezo pelos outros

Quem é que ainda se lembra de ver a funcionar o velho Mercado de Peixe de Fafe, na Feira Velha, o nosso pequeno "Ferreira Borges"? A funcionar e a cheirar, isto é, a feder e a exabundar de moscas, que aquilo era um pivete que não se podia. Talvez por isso o povo o tenha adoptado como latrina pública, mesmo ali nas barbas da Câmara, durante a sua longa temporada de abandono.

Rabilhos. Os japoneses são malucos por rabilhos. E as notícias dão conta disso, de vez em quando. É um assunto que me interessa sobremaneira, isto dos rabilhos japoneses. Aqui atrasado, um atum com 278 quilos foi comprado por dois vírgula sete milhões de euros, em Tóquio evidentemente, no mercado de Toyosu, que substitui o famoso mercado de Tsukiji, que era o maior mercado de peixe do mundo e uma das principais atracções turísticas da capital japonesa. O atum em questão foi a grande estrela do sempre muito aguardado primeiro leilão de Ano Novo, e bateu, sem culpa nenhuma, todos os recordes. Sei disto tudo porque o jornal Público mo contou na altura. E o Público, por favor não confundir com o Correio da Manhã, conta muito bem estas e outras extraordinarices. Para além disso, o Correio da Manhã é em vermelho.
Meses antes, um atum com 162 quilos tinha sido vendido por 4,3 milhões de ienes (quase 33 mil euros), ainda no velho Tsukiji, no seu último leilão, a uma escassa semana de fechar portas. Um atum praticamente dado, em boa verdade. Com efeito, em Janeiro de 2013, sempre contado pelo jornal Público, atentíssimo a estas coisas até mais não, um atum gigante fora comprado, no mesmo mercado, pelo então preço recorde de 1,38 milhões de euros. O peixão pesava 222 quilos, ficando por isso a cerca de quatro mil e setecentos euros cada quilo, é só fazer as contas. O outro, o tal do Ano Novo, custou mais de dez mil euros o quilo. Ora passa-se o seguinte: aqui atrasado comprei um atum anão, cá em Matosinhos, na peixaria da Dona Augusta, por pouco mais de euro e meio, eu seja ceguinho, e mais fresco era impossível. Pesava quase três quilos, saiu-me a rondar os 50 cêntimos o quilo.
As notícias afirmam que o atum gigante japonês era "rabilho". O meu atum anão, sinceramente não sei. Mas também foi comido. Em bifinhos. De cebolada. E que bem que nos soube.

Não percebo se é a fartura que os desorienta, mas a verdade é que os japoneses são mesmo um bocado tolos nisto de compras. Em Julho de 2014 soube-se que um cacho com 34 uvas, cada bago a pesar cerca de 30 gramas, foi vendido pelo simbólico preço de quatro mil euros. As uvas eram da raríssima casta ruby roman. E eu? Ainda ontem comprei na frutaria aqui da rua um bom gaipelo com 15 bagos e dois pequeninos, e não paguei mais do que cinquenta e três cêntimos. Evidentemente não eram ruby roman, muitíssimo longíssimo disso. As minhas uvas eram colhão-de-galo e, se quereis que vos diga, fiquei muito bem servido...

Um tubarão na sopa

Ambos os dois
A minha sogra tinha 87 anos e padecia de um apetite voraz. Prato, sopa e sobremesa em quantidades que eu aqui não digo para evitar a abertura de um conflito diplomático com a Somália. Digamos apenas que a minha sogra era uma multidão a comer. Certo dia perguntei-lhe:
- E agora, quer fruta ou bolo?
- Pode ser - respondeu-me a minha sogra.
- Pode ser o quê? - insisti, até porque a minha sogra é um bocadinho surda quando quer.
- Fruta e bolo - esclareceu a minha sogra, sem sequer olhar para mim.
A minha sogra tem actualmente 93 anos. E continua a bombar.

Parecendo que não, isto interessa muito a Fafe, agora que Fafe tem o oceano da Barragem de Queimadela. Era uma notícia e a notícia tinha um título. O título tinha tudo para ser um bom título, tirando o facto de ser um título de merda. Dizia o jornal de referência: "Vale mais um tubarão no mar do que na sopa". Um tubarão na sopa? Um tubarão? Com cabeça e tudo? Ou a cabeça é para cozer à parte, com grão? Desculpem-me meter o bedelho, mas chamar a mosca ao assunto não seria mais credível? Quero eu dizer: mais vale uma mosca no ar do que na sopa. Isto é que está certo, ou não? É que os nossos pratos, ainda que peguemos nos sopeiros, ainda do tempo do Mário da Louça, são muito pequeninos. E cada vez mais. Por causa dos tubarões - os outros.
Resumindo e concluindo: hoje é Dia Internacional do Tubarão-Baleia, e, olhai, bom proveito!...

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Para a Lagoa, rapidamente e em força

Esconjuro
Disseram-lhe - Vá de metro, Satanás! E o Diabo, que até tinha passe, foi.

Fanico. Isto é, migalha, pedaço muito pequeno, lucros insignificantes, ganhos mínimos e obtidos a custo. Ou por outra, chilique, desmaio, perda momentânea dos sentidos, ataque nervoso. E ainda, prostituição.
Fanicar: andar ao fanico, andar em busca de pequenos lucros, andar na má vida, fazer da prostituição modo de vida, biscatar, perder os sentidos, desmaiar, entrar em crise, por assim dizer, histérica.
Fanicar ou fazer em fanicos era também lascar, esbotenar, partir em bocados, pôr em fanicos, cá está. No jogo do pião, havia o pião das nicas, sem real utilidade desportiva, diga-se, porque já velho e eventualmente mutilado, mas era o que servia para apanhar as penalizações da ordem, dadas geralmente com uns piões gigantes, gorilas, com bico grosso ou bico de lança. Eram fanicos aquelas pancadas, porque o pião sofredor ficava nicado, ferido, picado, quer dizer, fanicado. Era o desgraçado de serviço. Em sentido figurado, humanizado, o pião das nicas é o indivíduo em quem todos mandam e a quem todos responsabilizam, o chamado bode expiatório - e assim explicado é fácil perceber porquê.

Ora bem. Por alturas da Lagoa, quero dizer, da romaria da Senhora das Neves, na última sexta-feira antes do último sábado de Agosto, o povo de Fafe subia à serra para pôr a santa na cabeça e tirar o diabo, está lá um funcionário com essa incumbência. Do centro de Fafe ao santuário da Lagoa são pouco mais de 12 quilómetros, pelo Passadouro. O povo é tolo, mas não ia a pé. Os automóveis ainda eram um luxo em Fafe e portanto ia-se na carreira da "Empresa", que saía de uma grande garagem à beira da Igreja Matriz, mesmo em frente à Rua do Assento, do outro lado do então posto da GNR e de umas bombas de gasolina, que também lhe pertenciam, à garagem. Nessa enorme garagem, lá para os seus fundos e talvez anexos, construíram-se gloriosos carros para a Marcha Luminosa das Festas da Vila, "um espectáculo de luz, cor e som", mas isso é assunto que não vem ao caso. Era desengonçada e cinzenta a carreira, camionetas velhas e malcheirosas que, no dia da festa, faziam fanico para a Lagoa e vice-versa.
Isso, andavam ao fanico, faziam fanico, era assim que se dizia, e estamos de volta ao nosso tema, à nossa palavra antiga. Fazer fanico, para os autocarros, significava trabalhar sem horário avisado ou pré-estabelecido. As camionetas arrancavam, numa ou na outra direcção, quando estivessem cheias, a esbordar sempre que possível. Saíam da "Empresa" carregadas de gente mais ou menos sóbria, largavam a carga na Lagoa, esperavam pelo enchimento seguinte num terreiro aparelhado à pressão no meio do monte, à torreira impiedosa do sol, e regressavam a Fafe quando calhasse e a rebentar de gente regularmente bêbada da cabeça aos pés.
Era um ramerrame combinado. Iam e vinham, iam e vinham, os autocarros. Iam e vinho, iam e vinho, os passageiros.
Ao fim do dia, no desmanchar da feira, com o sol a pôr-se lá para os lados de Guimarães, o descampado enchia-se de pancadaria da grossa, famílias inteiras umas contra as outras, na batalha sanguinolenta pela entrada na camioneta prestes a sair para Fafe, às vezes a última, a derradeira sem apelo nem agravo, e depois era mesmo só a pé.
Atacava-se com tudo o que se tivesse à mão. Navalhas, pedras, chibatas, bengalas, muletas, colheres de pau, joelhos, tachos e panelas, socos e galochas, melões e melancias, garrafões vazios, açafates, quadros do anjo da guarda comprados apenas há minutos, concertinas, reco-recos, bombos e ferrinhos, num desconcerto sem dó nem piedade, e lá no meio, aproveitando a abençoada confusão, feliz da vida, o meu avô de Basto, que por acaso até ia a pé para Passos, via Várzea Cova, com a minha avó atrás, e não precisava da camioneta para nada, o meu querido Bô de Basto, estava a dizer, varria o ambiente com o varapau de lódão girando por cima da cabeça como ventoinha de helicóptero, partindo queixos em catadupa, tenteando o vinho para não cair de cangalhas e lançando aos céus o seu famoso grito de guerra - Olraitecamoniésse!

Ó meus amigos! Aquilo era um alcácer-quibir em cuecas, uma poça de sangue digna de ser vista e constada, que pena mas ainda não havia CMTV. A nossa Lagoa, juro-vos, era uma festa muito bonita! E, ainda por cima, ia-se ao fanico.

O melão do Bô da Bomba

Como os melões
Os anos são como os melões. Mas ao contrário. Só depois de fechados é que se sabe se foram bons.

O melão era um acontecimento. Celebrava-se uma vez por ano, por alturas da Lagoa, se não estou em erro, e o mestre-de-cerimónias era o meu avô da Bomba, um adivinhador de melões como decerto não haveria outro de semelhante calibre nas redondezas, e quando por acaso não acertava, o que acontecia com lamentável frequência, a culpa era evidentemente do melão. Os melões, é que o têm, só se sabe se são bons depois de abertos: o meu avô nunca se enganava, os melões às vezes é que não correspondiam.
Ia-se à Lagoa por tudo e mais alguma coisa. Ia-se para pôr a santa na cabeça, para fazer a barba e cortar o cabelo nos barbeiros abancados debaixo das árvores do largo em frente ao santuário, ia-se para ver o ambiente, para apanhar icónicas borracheiras, para fazer compras escusadas, para ouvir as bandas de música, para ver a procissão, para dar um pezinho de dança, para cantar ao desafio, ia-se para empernar e apalpar rabos e mamas, ia-se por ir ou simplesmente para andar à pancada, ia-se apenas para apartar um melão, numa fugida, e era esse, enfim, o caso do Bô da Bomba.
Em casa, nos Bombeiros, eram chamados os maiores especialistas em melão de Fafe, isto é, os três ou quatro melhores amigos do meu avô, os do costume, os mesmos que também eram os maiores especialistas em canários e pintassilgos de Fafe. A avó punha a mesa como um altar, só para homens. O melão ao meio, resplandecente e prometedor, qual sacrário por revelar.
Fazia-se silêncio. Sentia-se uma certa comoção na sala. Como seria este ano? O avô tomava a faca num gesto largo, teatral, levantava-se, suspirava e abria o melão. Oh!... Havia uma primeira reacção, ao som, à cor, ao sumo, ao cheiro, eram peritos realmente, abanavam a cabeça, reviravam os olhos, trocavam monossílabos lá de entendidos, e seguiam para a prova propriamente dita, da boca para dentro, e que sim senhor, e que nem mais cedo nem mais tarde, maduro no ponto, apimentado, uma especialidade, um assombre, uma primeirinha, abençoadas mãos que o souberam escolher.
O meu avô ficava num sino, agradecia os encómios, explicava a técnica, desvendava o segredo, exultava de falsa modéstia e, sem mais nem menos, aproveitava para contar as suas duas anedotas. Era sagradinho. Desde que não soubesse descaradamente a botefa, o melão do Bô da Bomba era sempre um sucesso, os elogios dos velhos expertos estavam garantidos e todos os anos o melão deste ano era ainda melhor do que o melão do ano passado.
O único problema era a despesa. O meu avô passava a merenda inteira a chorar os quinze merréis que dera pelo estupor do melão, a ver se alguém se chegava à frente com qualquer coisinha para a ajuda, ou então buscando pé para cobrar aos amigos pelo menos a pinga de vinho que acabara de lhes oferecer...

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Berardo, o bom filho da mãe

A modéstia do caloteiro
Chamavam-lhe caloteiro e outros elogios bem merecidos. Ele dizia, fino como um alho: - Cumpro apenas o meu dever...

Olhemos para Joe Berardo, esse bom filho da mãe. Berardo fez-se milionário sob o alto patrocínio da Caixa Geral de Depósitos. Sei isto de fonte segura: foi o próprio Berardo quem mo contou, uma vez há muito tempo. A sua primeira poupança foi uma conta que a mãe lhe abriu na Caixa, em 1962, na Madeira, com dois mil escudos, teria ele então 18 anos. Dois contos, dez euros ao preço actual, uma semente. Uma conta que se manteve aberta e que nunca parou de crescer. Um casamento frutuoso, posto que de conveniência. O saldo de Berardo na Caixa já ia aqui atrasado em mais de 280 milhões de euros, realmente uma fortuna, mas de dívida. Joe Berardo devia ao banco público mais de 280 milhões de euros, que se soubesse até àquele então, na sequência de empréstimos manhosos que lhe deram de mão beijada e que ele agora não consegue ou não lhe apetece pagar. À banca portuguesa em geral, o comendador Berardo deve quase mil milhões de euros. Uma batelada de massa de que eu nem faço ideia. E tudo começou com apenas dois contos, abençoados pela santa mãe, meu rico filho! Parece ilusionismo, número de circo. É por isso que ele se ri tanto e faz pouco do País. Ele é o homem que conseguiu dar o golpe do baú... à Caixa.
Por outro lado, dou valor ao Berardo. Ele deve aqueles camiões, navios e aviões todos cheios de dinheiro - só assim é que eu me oriento -, ri-se olimpicamente e é um homem rico. Eu não devo um cêntimo a ninguém, rio-me a prestações e sou um homem pobre. Isto é. Quem me dera ser filho do mãe... do Berardo, porque Caixa nós também já tínhamos em Fafe. No Largo, à beira da Sonap.

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

A arte de cuspir no prato

Foto Hernâni Von Doellinger

Saudações inimigas?
Escrevi aí a uma ungida criatura, assunto sério, melindroso, e, no final, mandei-lhe um "grande abraço". A criatura despachou-me às três pancadas e, no final, mandou-me, para a troca, "saudações amigas". Saudações amigas? Mas, Senhor Bispo, o que raio são saudações amigas? Evidentemente serão o contrário de saudações inimigas, mas o que são saudações inimigas? Abraço, eu sei: o abraço é sólido, palpável, vê-se, sente-se, dá-se, recebe-se, aperta-nos, aproxima-nos, humaniza-nos, igualiza-nos. Agora, saudações amigas? Isso traz água no bico...

Trabalhar no meu jornal era obra desenganada. As pessoas que contactávamos para fazermos as "notícias" sabiam que, se falassem, fosse do que fosse, tudo o que nos dissessem podia ser usado contra elas. E geralmente era. Nem que lhes telefonássemos apenas para perguntar as horas, havia de sair dali cagada da grossa. Nós depois ligávamos a ventoinha. Estupidamente, cuspíamos no prato em que comíamos. O 24horas era assim, fugia-lhe o pé para a escandaleira. Se não houvesse sangue, os meus chefes tratavam disso. Para os mais distraídos perceberem: estais a ver como são agora todos os jornais e quase todas as televisões? Pronto, o meu jornal é que começou. O 24horas é a bíblia do "jornalismo" que hoje se faz em Portugal. O 24horas chama-se actualmente Correio da Manhã, Jornal de Notícias, Sábado, Observador, Diário de Notícias, Sol, Record, A Bola, O Jogo, às vezes até Público e assim sucessivamente.
Portanto tínhamos muito poucas "fontes". As pessoas minimamente informadas fugiam de conversar connosco como o diabo foge da cruz. Umas tinham vergonha na cara ou medo e outras desprezavam-nos simplesmente. Umas e outras sabiam que as nossas perguntas tinham quase sempre volta de foda. Se desse jeito, pedíamos a A para falar de B, para a seguir metermos A e B no mesmo saco e malharmos nos dois como se fossem um só. O jornal escolhia os seus alvos e gastava a pólvora toda (seca, por norma) enquanto a coisa vendesse. Mas é preciso que se diga: isto de eleger "inimigos" e disparar até cair para o lado foi uma herança recebida de Paulo Portas, do tempo em que o ex-vice-primeiro-ministro era director do semanário Independente e fazia a vida negra ao Cavaco primeiro-ministro e respectivos ajudantes no Governo. Portas é que inventou esta receita de sucesso e gabava-se disso. O seu a seu dono.
No meu jornal, Lisboa encarregava-se de fechar as portas às quais nos mandava depois bater, aqui do Porto. Levávamos quase sempre com a porta no nariz. As pessoas respondiam-nos torto, muito torto, era o pão-nosso de cada dia. Uma vez calhou-me o Sócrates, nas vésperas de ganhar as primeiras eleições, e foi do bom e do bonito. Lembrais-vos do génio do gajo? Tendes presente o feitio da criatura? O seu amor aos jornalistas? Pois é. Foi uma discussão das antigas, uma bonita história que já contei aqui. Evidentemente levei com muitos outros malcriados, mas é gente que nem merece que lhes diga os nomes.
Claro que a grosseria não era geral. Havia também pessoas que muito simplesmente se recusavam a falar-nos mas sem baixarem o nível. O bom do Raul Solnado (1929-2009), Luís Represas, o actor José Pedro Gomes, são dos que me lembro agora que escrevo. Nenhum dos três me conhecia, mas, depois de me ouvirem educadamente, foram igualmente atenciosos na nega. Disseram-me: "Desculpe, Hernâni, não é nada de pessoal consigo, portanto ligue-me quando estiver noutro jornal. Então conversaremos do que quiser". Agradeci sinceramente a franqueza e a urbanidade. E pedi desculpa eu. Eu sabia que eles tinham razões.
Era vida difícil. Num jornal que precisava da "opinião" dos "famosos" sobre tudo e sobre nada. A propósito da nudez de Marisa Cruz num filme ou por causa do Fidel Castro que passou a pasta ao irmão. A minha sorte é que acabava sempre por encontrar uma alma caridosa que me ajudava a ganhar o dia. Gente que sabia o que era o 24horas mas que, fosse por que razão fosse, nunca me deixou ficar pendurado: gente como Marcelo Rebelo de Sousa, o comentador, e o bom Júlio Magalhães, jornalista e cara da TV, sempre disponível, sempre decente e generoso, os empresários e portistas Pôncio Monteiro (1940-2010), Manuel Serrão e Rui Moreira, os estilistas Miguel Vieira, Katty Xiomara, Luísa Pinto e Gio Rodrigues, os juízes Rui Rangel e Eurico Reis, o fiscalista Saldanha Sanches (1944-2010), Valentim Loureiro (o meu cromo da sorte), Júlio Isidro e Joaquim Letria, que também eram da casa, Tozé Brito, Luís Filipe Barros, José Cid, o humorista Nilton, Octávio Machado, Francisco José Viegas, Manuel Luís Goucha, José Carlos Malato, Jorge Gabriel, Hélio Loureiro, Paulo Teixeira Pinto e mais uns poucos de que injustamente me estou a esquecer. Dou-lhes, a todos, um grande abraço. Eram sempre os mesmos e a minha tábua de salvação. O meu piquete de emergência.
Cada qual lá teria os seus motivos. Alguns, tenho a certeza, era mesmo uma questão de bondade. Fiquei agradecido a todos. De vez em quando pago-lhes aqui nos meus blogues com umas ripeiradas. É este maldito 24horismo que não há maneira de me passar...

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Então és tu, minha porca?!...

Meia dose de xenofobia
A chinesinha descia a rua em direcção à praia, e levava o cão pela trela. Achei aquilo tão esquisito! Como se eu levasse a passear um frango de churrasco...

Todos os santos dias, não sei se por promessa, havia um canídeo que, com vossa licença, cagava ao portão da minha sogra. Todos os santos dias. Ficava ali aquele montinho de merda, com vossa licença, às vezes dois ou três montinhos de merda, com vossa licença, ou quatro ou cinco, passeio adiante e organizados em filinha pirilau, porque o alegado canídeo devia ser animal para comer à tripa-forra e evacuava, com vossa licença, geometricamente organizado e por ordem alfabética.
A minha sogra, que me dirigia uma certa osga, cismava que era eu, para lhe fazer desfeita não sei de quê. E não foi fácil convencê-la de que aqueles saralhotos, com vossa licença, eram evidentemente souveniers de canídeo. E eu sou balança.
Uma vez quase apanhei o infractor com as calças na mão: a merda, com vossa licença, ainda a fumegar, mas o canídeo já a descer o fim da rua com a dona pela trela, e, dissesse eu o que dissesse, estaria a falar para a central. Calei-me, portanto.
Portanto, calei-me, mas pus-me à tabela, agarrei-me ao Excel, recolhi e cruzei informações, fiz um horário e aqui atrasado apanhei-os em flagrante. À horinha, nem mais cedo nem mais tarde, como diria o meu querido tio Zé da Bomba, abri de rompante o portão e lá estava a acontecer à minha frente: merda ao vivo, como eu previa e com vossa licença.
Fiz a cara de nojo que trazia ensaiada há mais de um ano, e disse:
- Então és tu, minha porca?!...
- Não é uma cadela, é um cão... - empertigou-se-me a dona, histericamente professoral.
- Mas eu não estava a falar para o canídeo, minha senhora... - disse eu, e fechei outra vez o portão, antes que ela percebesse.

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Por entre os pingos da chuva

Desenho Nestinho

O distraído
- Olhe que está a chover...
- Estou?

Agosto de 2020, em plena pandemia. Os primeiros pingos de chuva daquele Inverno a meio do Verão assustaram-me inusitadamente. Isto é: para além dos pés, molharam-me a máscara, e a verdade é que eu não sabia se as máscaras molhadas também funcionam ou se gripam, e depois ainda é preciso pô-las a secar e esperar que venha o sol e esperar que sequem. Ou não? Húmidas será melhor, como com os incêndios e com o fumo e com o sexo? E não haveria maneira de fazer máscaras à prova de água (ou waterproof, como se diz em português contemporâneo)? E no Carnaval como é que iriam ser as máscaras? Máscaras com máscaras? Estais a ver a minha angústia, o meu medo de morrer de nariz ao léu, e a máscara a pingar?
Então o que é que eu fiz? Peguei e desatei a correr de volta para casa e nunca mais saí para ir à padaria. Durante mais de quinze dias comemos as sardinhas assadas e o bacalhau frito com bolachas Maria. Torradas. Que tínhamos açambarcado.

Por outro lado, liguei ao meu amigo Ernesto Brochado a pedir-lhe ajuda. O Nestinho costuma acudir-me satisfatoriamente em semelhantes aflições. Expliquei-lhe o meu problema, a minha ânsia, trocámos algumas ideias, e, como se vê ali em cima, saiu esplendorosa a solução que então demos a conhecer ao mundo, num rigoroso exclusivo. Entretanto, registámos a patente, tivemos milhões de encomendas, vendemos triliões de kits, é assim que se diz, enchemos a carteira e estou finalmente rico, para que é que hei-de mentir?

domingo, 24 de agosto de 2025

Uma mulher de barba rija

Idade Média
A Idade Média, ao contrário do que o próprio nome parece indicar, foram duas: a Baixa Idade Média e a Alta Idade Média. Diferenciam-se, evidentemente, pela altura.

Era a chamada mulher de barba rija. Feia, grande, cabelos espetados, seis dedos em cada mão e forte como um cavalo, sem ofensa para os presentes. E o nome, Brites de Almeida, também lhe ficava de modo, tal como um certo comportamento masculino e o bigode de que ninguém fala mas que certamente. Assim seria a Padeira de Aljubarrota, segundo a tradição popular, porém já se sabe: quem conta um conto acrescenta um ponto, e dessarte nasce o mito.
Esta padeira realmente nunca existiu. Ainda assim, a lenda liga-a à Batalha de Aljubarrota e ao massacre que se lhe teria seguido, mas que também nunca aconteceu. Brites seria a líder de um grupo de populares, tipo claque de futebol, que perseguiu os castelhanos em fuga. Brites emboscou-se, fez-lhes espera, aos desgraçados dos espanhóis, e matou com as próprias mãos uns tantos, se por acaso fosse verdade e o Benfica tivesse claques.
Nessa noite de 14 de Agosto de 1385, a padeira chegou a casa tarde e a más horas, talvez com os copos, como de costume, ou pelo menos maldisposta, e descobriu sete espanhóis escondidos no forno onde cozia o pão às sextas-feiras. Ela percebeu logo que eles eram espanhóis porque diziam muito "qué rico!", "vale, vale!", "qué tal, qué tal?" e outros nomeadamentes. Sem pestanejar, ou ainda que pestanejando derivado à farinha que andava pelo ar, Brites pegou na pá e bateu-lhes até os matar bem mortos, um atrás do outro, à medida que os infelizes iam saindo do forno gritando "olés" e tocando castanholas. Foi muito bem feito, dizem os nacionalistas, e desde esse dia glorioso e imaginário nunca mais ninguém viu a padeira em Portugal.

sábado, 23 de agosto de 2025

Aguardente? Ouvi perfeitamente!

No reino dos eufemismos
Se o cego é invisual, então o surdo é insonoro. E o manco é impodal e o maneta é imanual.

Sabeis, uma daqueles carrinhas tipo rulote transformada em consultório para testes auditivos? Era uma dessas, logo pela manhã, e cá fora um jovem técnico vestindo bata branca, telemóvel na mão esquerda e papeleta na mão direita, afanava-se à procura de insonoros candidatos, mas sem sorte nenhuma. Eu terminava o meu footing diário e o meu caminho habitual até passava pelas traseiras da carrinha, mas de repente resolvi fazer um desvio para alegrar o dia ao diligente porém desanimado funcionário.
Fui-me a ele. Mal me viu assim nesta idade, até os olhos se lhe riram, abeirando-se-me imediata e decididamente:
- Bom dia. Então como é que estamos de audição? - perguntou ele.
- Faz favor de dizer... - disse eu.
- A audição como está? - perguntou ele.
- Desculpe, eu não... - disse eu.
- A audição. Ouve bem? - perguntou ele.
- Como disse?... - perguntei eu.
- A audição! - disse ele.
- O quê?... - perguntei eu.
- Tem uma boa audição? - perguntou ele.
Não é que eu estivesse com pressa, mas desisti, sorrindo:
- Não ligue, eu estava a brincar. O amigo não percebeu?...
- Percebi. E a audição como é que está?

Fafe lés-a-lés

Desenho Nestinho

Não sei se vos lembrais. O 15.º Portugal de Lés-a-Lés arrancou em Fafe no dia 8 de Junho de 2013. No road book da famosa maratona motard, a voltinha do prólogo foi assim pormenorizadamente desenhada pelo inimitável traço do Nestinho, isto é, do Ernesto Brochado, um verdadeiro apaixonado por Fafe, ou um fafense amador, como gosto de dizer, provavelmente a figura mais conhecida e respeitada do mototurismo nacional, dirigente do Moto Clube do Porto e da Federação de Motociclismo de Portugal, alma mater e organizador crónico do extraordinário Lés-a-Lés e de dezenas de outras iniciativas do género e de menor dimensão. A voltinha, modéstia à parte, ensinei-lha eu, num dia muito bem passado também com o Luís Lopes, como em tantas outras épicas idas à terra, e, inevitavelmente, marcámos almoço com o Pimenta, que, como toda a gente sabe, tem sempre a mania de pagar.
O Portugal de Lés-a-Lés é o maior evento mototurístico da Europa. A edição de 2013 contou com 1.130 inscritos e 1.000 motos. Somando os elementos da organização, estiveram envolvidas, no total, 1.200 pessoas e 1.060 motos, que percorreram, em três dias, 1.050 quilómetros por estradas, estradinhas, aldeias, vales e montanhas, grutas, monumentos e centros históricos, ao encontro de um país por descobrir. E tudo começou em Fafe, no nosso Largo.

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Apetecia-me bater-lhes

É um dos maiores problemas dos nossos supermercados: põem a cortar bacalhau uma malta muito gira e muito porreira que nunca na vida comeu bacalhau e nem sabe de que árvore é que aquilo vem. É a geração H. Agá de hambúrguer. Resultado: trazemos para casa postas de bacalhau cortadas com as dimensões de um selo dos correios.

Era um jovem casal, ela e ele, provavelmente espanhóis, mas duvido que fossem galegos. Eram, em todo o caso, pessoas bonitas e de aparente bom gosto. Podiam ser meus filhos, coitadinhos, podiam ser meus netos - essa é que é a verdade. Iam ao mesmo que nós, a Mi e eu, ao melhor bacalhau assado do mundo, bacalhau gordo e demolhado no ponto, com o tempo certo na brasa, servido com deliciosas batatas cozidas, coberto com cebola crua, sumarenta, e azeitonas, pretas e agrestes, e generosamente regado com um azeite e alho tão extraordinário que só apetece dar banho ao pão. Para cumprir todos os meus cânones, falta-lhe o ovo cozido, é certo, mas essa é uma falha que eu relevo com todo o gosto há mais de trinta anos.
Fomos servidos rapidamente, nós e eles, na mesa em frente, até porque o famoso restaurante funciona apenas por marcação, regra geral. Estava tudo a correr tão bem, e sem mais nem menos, ainda hoje me custa a acreditar, aconteceu o impensável: o rapaz e a rapariga, isto palavra de honra, mandaram vir uma travessa de batatas fritas para acompanhar o bacalhau, desfazendo-se por completo das batatas cozidas, que nem provaram e decerto nem sabiam o que "aquilo" era...
Portanto, bacalhau assado na brasa com batatas fritas, às tantas traziam ketchup de casa, eu já não quis ver mais e também não seriam os primeiros. Tão jovens, tão belos e tão tolos. Tão ainda em idade de aprender. Podiam ser meus filhos, podiam ser meus netos. Bacalhau assado na brasa com batatas fritas, eles! À minha frente! E de repente, Deus me perdoe, apeteceu-me bater-lhes...

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Para acabar com os mamões

É um homem que nunca reage a quente. Nem a frio. Isto é, mantém as decisões em banho-maria. Pesa os prós e os contras, mede os assim assins e pondera os vice-versas. A ele, ninguém o apanha em falso. Toda a vida andou por lá, e é ali que quer ficar. Foi comunista, militou no PS e aderiu ao PSD, passou pelo Livre e pelo Bloco de Esquerda, experimentou a Iniciativa Liberal, o ADN e o PAN, liderou uma lista de "independentes" e agora concorre pelo Chega. Para acabar com os mamões!

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

A revolução tem dias

Os indignados
A indignação é a mãe de todas as revoluções! Era. Até aparecer a pílula do dia seguinte.

Conspiravam. Viviam numa satisfatória clandestinidade, numerados de Um a Doze. Mas tinham as suas fontes. Geralmente bem informadas. Eram os meados da década de setenta do século passado. Na reunião de Março, pela noute, em absoluto respeito pelas cautelas catacumbais religiosamente estabelecidas, desligaram o aparelho de televisão por alturas do TV 7, ligaram a telefonia no relato de um Espanha-Portugal em hóquei em patins para disfarçar, colocaram os óculos e apagaram a luz, esbarraram-se uns nos outros, partiram meia dúzia de chávenas e três copos, e os óculos, juntaram as múltiplas informações recolhidas à socapa no mundo exterior, assopraram-lhes cerimoniosamente o pó, decantaram-nas, apreenderam as entrelinhas, montaram o Puzzle, que era um cavalo malhado que dava para todos, mas à vez, pediram mais uma rodada de finos e quatro pires de tremoços, e concluíram que estavam prontos e imperiosos. "É preciso fazer o 25 de Abril!", anunciou o Número Um. "E para quando é que marcamos isso?", perguntou o Número Dois.

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Há mulheres assim, insatisfeitas

Apaixonados pelo telemóvel
Eu não percebo porque é que ele leva a namorada a almoçar. Ele também leva o telemóvel. Eu não percebo porque é que ela leva o namorado a almoçar. Ela também leva o telemóvel. Ele e ela, à mesa, ignorantes um do outro, calados um contra o outro, passam o almoço de mãos dadas. Mãos dadas ao telemóvel, ele ao dele, ela ao dela. E nem sequer ligam um ao outro.

O Dias fazia anos. E foi celebrar ao famoso restaurante. O Dias mais a namorada, e digo que era namorada porque a senhora fartava-se de chamar "ó mor" ao Dias e se lhe fosse nomeadamente esposa chamar-lhe-ia outra coisa, isso tirava-se pela pinta. O Dias mais a namorada, portanto, apadrinhados por outros dois casais amigos e cúmplices, percebia-se, de velhas aventuras pelo menos gastronómicas. Um belo grupo: seis convivas praticamente vetustos mas, é preciso que se note, em razoável estado de conservação. O Dias fazia certamente 75 anos porque não se cansava de repetir que fazia 57 e bastava olhar para ele para se catrapiscar logo a pilhéria. Imagino o forrobodó que não terá sido quando ele fez 69! O Dias vestia um impecável casaco vermelho amaranto sobremaneira alusivo à efeméride e absolutamente adequado, caso, nunca se sabe, fosse necessário, por exemplo, dar uma mãozinha ao serviço.
O Dias é que mandava, e mandava muito alto, porque ele, avisou, é que ia pagar. Mandou vir Alvarinho, "para começar", e encomendou três doses de bacalhau assado. Fez muito bem. Aquele restaurante prepara, de facto, o melhor bacalhau assado do mundo. Vieram duas travessas, esplendidamente servidas: uma, enorme, com duas doses, e outra, normal, com a outra dose, tudo ao mesmo tempo. Informa-se, a propósito, que uma dose de bacalhau dá para duas pessoas que comam muito e ainda cresce. Que se segue? Comeu-se e bebeu-se ali com considerável galhardia, que apetite não faltava àqueles seis, Deus os abençoe. A travessa grande ficou vazia, na travessa normal sobrou uma lasca mínima de bacalhau, da parte mais fina.
Passou o proprietário do estabelecimento, o Sr. A., na sua sacramental ronda por todas as mesas, e, à vista de tamanha limpeza, perguntou, como sempre faz questão de perguntar, satisfeito e simpático: - O bacalhauzinho estava bom?...
Que sim. "Excelente!", "Uma maravilha!", "Não podia estar melhor!", "Fantástico!", "Divinal!" - disseram todos à uma mas cada um à sua. Todos, menos a namorada do Dias, que se batera ferozmente com a dose singela e pediu licença para falar à parte, perante o evidente embaraço e os maldisfarçados safanões dos outros cinco, inclusive o Dias, que a mandava calar, mas sem efeito.
- Sou muito franca! - começou ela. - Eu não digo o que não é, só para agradar, e o meu bacalhau estava deslavado, desenxabido... - sentenciou.
O Sr. A. encaixou, pediu desculpa, explicou, que isto, com as toneladas de bacalhau que ali se demolham semanalmente, às vezes pode acontecer, porque o bacalhau é um material muito ingrato de trabalhar, só na mesa é que se lhe pode tirar a prova dos noves, mas tudo se resolve e ia mandar servir uma nova posta, oferta da casa, e não se fala mais nisso.
Que não. Que não era preciso, que estava tudo muito bem, ela é que tem a mania, atiraram os outros, manifestamente envergonhados. Mas o Sr. A. insistia. E eles, que não. E o Sr. A., que sim. E eles, que não. Que sim. Que não. Que sim. Até que o Dias, reassumindo corajosamente o controlo da mesa e da situação, sugeriu, como quem faz um favor à casa, que só se fosse uma dose de costelinha, em vez da posta de bacalhau...
E sugeriu muito bem. Porque aquele restaurante também prepara, de facto, as melhores costelas assadas do mundo. E de borla, então nem se fala. Pois vieram as costelinhas, desapareceram num lampo, as batatas fritas também, e toda a gente acabou lambendo os beiços. Toda a gente menos a namorada do Dias, que continuava inconsolada, lamentosa, protestando agora derivado aos ossos. Isso, as costelas tinham osso, eram ossos praticamente, ossos rodeados por um pouco de carne, como, por definição, devem ser as costelas, gastronomicamente falando, mas a senhora decerto confundiu costelas com costeletas, sei lá eu, e ainda bem que Deus não se enganou no tempo de Adão e Eva. Em todo o caso: as coisas são como são, e a verdade acima de tudo, as costelas tinham osso, doa a quem doer. E sendo a namorada do Dias a pessoa franca que é, não podia realmente deixar passar em claro um escândalo de semelhante dimensão.

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

No urinol, o telemóvel (não) pode esperar

É desagradável. Pousar os óculos e depois não saber onde. E precisar deles para os procurar. E pegar no telemóvel para lhes ligar, obrigando-os a darem sinal de si. E então lembrar-me de que nunca pus os óculos a carregar.

Eu nunca tinha visto. Um indivíduo, jovem, bem apessoado, tipo actor de telenovela, no urinol da impecável casa de banho do restaurante, mesmo ao meu lado, a mijar sem mãos. Ou, por outra, a mijar de mãos-livres, ocupadas com outros afazeres. Palavra de honra. Fiquei assarapantado. Porque o rapaz realmente não era maneta, pelo contrário. As mãos estavam entretidas com o telemóvel, a mandar mensagens, não sei se também fotografias, o moço deveras compenetrado na operação, e enquanto isso, lá em baixo, mijava-se satisfatoriamente, era pelo menos o que se ouvia, é o que suponho que acontecia, porque, a verdade é só uma, eu não fui lá espreitar...

domingo, 17 de agosto de 2025

Tomates aux gésiers de lapin

Honestidade a toda a prova
Era um "chef" de uma franqueza que só vista. Tinha um aclamado programa de televisão, e não raras vezes, após confeccionar e provar os seus requintados pratos de assinatura, sentenciava, de colher a meia haste, olhos revirados e boca em biquinho de deleite e aprovação: - Hummm! Que merda!...

A pedido de várias famílias. A minha famosa receita de tomates aux gésiers de lapin é assim. Livre de gorduras e lave em duas águas as moelas de coelho. Uma da águas pode ser das Pedras, com rodela de limão e dois pacotes de açúcar, em caso de ressaca. Seguindo. Meta as moelas de coelho numa marinada feita com sumo de pepino nacional, vinagre balsâmico, azeite de trufa, mel de rosmaninho, gengibre, flor de anis, flor de sal, flor-de-lis, flor-de-lótus e flor-de-ferrari. Deixe a repousar esta marinada dentro de uma embalagem para ovos de codorniz enquanto conta de zero a 120 e depois de 120 a zero, sempre ao pé-coxinho. Os ovos de codorniz deviam ter sido previamente tirados da embalagem, agora, ao menos, desfaça-se das cascas. Lave muito bem os tomates, corte um chapeuzinho numa das extremidades dos ditos e limpe-os de todas as sementes e nervuras internas. Introduza as moelas de coelho nos tomates, misturando-as com uns pozinhos de queijo com o nome mais arrevesado que encontrar no supermercado. Pegue nos tomates e coloque o chapeuzinho, que vai adornar, de lado, com um pequeno cartão a dizer PRESS, como nos filmes antigos, a preto e branco. Leve os tomates ao forno durante 180 minutos a 15 graus ou menos, pode até estar desligado. Excelente. Está pronto. Retire do forno e deite tudo ao lixo. Descongele e aqueça bem a feijoada que sobrou do almoço de quarta-feira, regale-se com ela, porte-se bem e faça por ser feliz.

sábado, 16 de agosto de 2025

Um cibo de pão, uma pinga de vinho

Cibo é comida, alimento, especialmente das aves, aqueles bocadinhos que os pássaros dão às suas crias de biquinhos famintos e abertos. Isso. Cibo é pequena porção. Pequena porção de comida ou de qualquer outra coisa, mas sobretudo de comida, como era uso dizer no falar antigo de Fafe e Basto e certamente de todo o Norte ao redor, de uma maneira geral. Mas atenção: cibo não era um vocábulo arrevesado e anacrónico, jurássico, pelo contrário, era palavra corriqueira do dia-a-dia, metida a cotio por necessidade. Era a medida da vida. Cibo é menos que pedaço, é menos que naco, é, dito de outra forma, um nico. Cibo era pobreza.
Pedia-se, oferecia-se, dava-se, partilhava-se, comia-se um cibo de pão, um cibo de carne, bebia-se uma pinga de vinho. Galegos do sul que somos, adoçávamos a penúria, enchíamo-la de mimos, dizíamos cibito, cibinho, cibico, com mil carinhos, como quem faz festas aos seus e diz pequenito, pequenino, pequeninho, pequerricho, de coração cheio e mãos abertas, talvez enganando mansamente a fome, como se afinal lhe quiséssemos bem.

(Publicado originalmente no dia 12 de Fevereiro de 2015)

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Os bês pelos bês

Aos de cá de riba, os que aqui bibemos resbés com o pai Minho e com a parentela galega, acusam-nos regularmente de trocarmos os bês pelos bês. Que, por exemplo, dizemos bergonha em bez de bergonha, biolência em bez de biolência, baca em bez de baca, pobo em bez de pobo, bírgula em bez de bírgula, bizinho em bez de bizinho, berde em bez de berde, ou binho em bez de binho. E que, pelo contrário, dizemos boi em bez de boi, beringela em bez de beringela e bicha em bez de bicha. Eu nunca dei fé de semelhante, a berdade é só uma! Acho que quando é bê dizemos bê e quando é bê dizemos bê, ebidentemente - de resto como toda a gente, que não somos menos do que os outros no que diz respeito ao falar e à gramática. Quanto à crítica propriamente dita, das duas, uma: má bontade ou mau oubir. Debe-se aberiguar!

(Publicado originalmente no dia 16 de Fevereiro de 2015)

Diz que binho, mas num biero

Que bonito que era o falar em Fafe! A criança, sentadinha à mesa, ou à roda da merenda, já julgava que era home e pedia: - Binho! O adulto, responsável, geralmente a mãe, respondia-lhe por desfastio, sem fazer caso: - Diz que binho, mas num biero. Isto é, "constou/disseram/dizem/diz-se que vinham, mas não vieram", e assunto resolvido. Mas dito assim, gramatical, higiénico, a seco, tão aos dias de hoje, lá se foi a graça toda. É preciso molhar a palavra...

(Publicado originalmente no dia 14 de Janeiro de 2025)

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Do normal ou do bô?

Tínhamos a bó e tínhamos o bô. Eu e os meus irmãos tivemos bó e bô vezes dois, pela mãe e pelo pai, sorte a nossa! Bozinha era a bisavó, e tínhamos, em Basto, uma, muito velhinha, muito vestidinha de preto, que certa vez deu-me uma batata assada no borralho que era muito saborosa, e é essa a extraordinária memória que guardo dela. Bô, na nossa terra, queria também dizer bom: binho bô; bô moço; estás bô? Depois, se calhar por soar a parolo não sei a que finaços de carregar pela boca, o bô de avô mudou para bu. Bu também mete medo, é susto. Buuu! Mas quem caralho teve a ideia?...

Para mim, e defendo-o de graça há muitos anos, o Minho começa em Fafe e acaba em Santiago de Compostela. E a Galiza também. Isto é: Galiza e Minho são-me o mesmo, chamem-lhe o que quiserem, mas Minho decerto fica-lhe melhor derivado ao rio que nos une. Somos a cara chapada uns dos outros, os minhotos e os galegos destes limites, labregos envernizados, crescemos das mesmas raízes, aprendemos da mesma língua, padecemos ainda hoje do mesmo ancestral atraso de vida, desfrutamos do mesmo amor à comida e à bebida, à água benta e à festa, partilhamos a maneira de falar, cheia de "ches", de "inhas" e de "inhos", de "xes" em vez de "ses", de "bes" em vez de "ves", não raro falamos até o mesmo idioma, consoante os sítios e a idade, repetimos nomes, palavras pândegas, debitamos caralhos atrás de caralhos como não há memória de tanto caralhar noutras latitudes deste mundo e de outros. Nós, os galegos do lado de cá, e eles, os minhotos do lado de lá, assim somos.
Em Fafe e nas terras de Basto chegadas a Fafe falava-se esse conversar comum quando eu era pequeno, aprendi-o naturalmente com os meus avós maternos, em Passos, Cabeceiras, com a minha mãe e com os meus tios. A querida tia Margarida ainda agora o usa a cotio, com uma graça que me encanta e comove, e eu dou-lhe serventia da língua para fora sempre que posso, e hoje em dia, sem obrigações profissionais, posso quase sempre. Este modo de falar faz parte do nosso fafês.
E o fafês é a minha língua. Nasci no fafês, sou do fafês desde pequeninho, agora tanto ou mais do que naquele tempo.

Imaginai então a minha alegria com o que se passou aqui atrasado, numa das nossas habituais saltadas ao lado do Minho a que outros chamam Galiza. Foi assim. Como de costume, aproveitámos para atestar o depósito do carro, ali à entrada de Tui, logo depois da velha ponte de Valença, a chamada ponte rodoferroviária com desenho Eiffel. "Ga-só-le-o!", digo eu ao senhor gasolineiro. E o senhor gasolineiro, nunca tal nos tinha acontecido, pergunta-me sem mais nem menos, como se anunciasse pipa nova: - Normal ou do bô?...
Caralho! "Do bô", o senhor gasolineiro perguntou-me se o gasóleo era "do bô", palavra de honra, "do bô", perguntou, como fosse a minha avó, o meu avô, a minha mãe ou a tia Margarida a perguntar-me. E eu fiquei tão contente, tão criança, de repente tão outra vez abraçado ao avental da minha mãe a cheirar tão bem a sabão e felicidade, a casa, a nós, a Fafe antigo, fiquei tão comovido que quase me descompus. Apetecia-me abraçar o homem...
Por outro lado, o gasóleo era do normal e fedia indecentemente. Mas o senhor gasolineiro perguntou se era "do bô", foi o que ele disse, e disse tão bem, e eu gostei tanto. "Do bô", caralho!...

(Publicado originalmente no dia 14 de Janeiro de 2025)

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

O que eu sei de Alberto Feijóo

Sobre o líder do PP espanhol, o galego Alberto Núñez Feijóo, eu sei o seguinte: ele gosta muito da costelinha assada e do bacalhau na brasa da Casa Álvaro, em Valença, e come os dois pratos à mesma refeição. Bebe verde tinto, que traça eventualmente com uma seven up, e creio que assim fica tudo explicado. Não são de confiança os indivíduos que misturam vinho bom, ou bô, com seven up...

Ele até sabia de queijos!

Super Pop Limão Reserva 2017
Era um escanção com um paladar e um olfacto apuradíssimos, premiados. Até adivinhava o detergente que lavara os copos...

Ele tinha brilhado durante toda a refeição, sem dar vez, falando de boca cheia sobre vinhos, sobre o seu extraordinário conhecimento a propósito de vinhos. De boca cheia de comida e de muitos caralhos e de diversos foda-se e de um que outro puta que pariu, mastigando e bojardando simultânea e sonoramente, expulsando amiúde alguns bocaditos de carne e batata frita, coisa de nada, pequenas migalhas como projécteis. "Vinho? Vinho bom, vinho excelente, arranjo eu no supermercado a menos de um euro a garrafa, arranjo-lhe quantas garrafas quiser, é quantas garrafas quiser!", dizia ele e tornava a dizer, tentando, sem sucesso, convencer a sogra e o sogro, em frente e sem guarda-chuva, perante o evidente orgulho da esposa, ao lado e olhando à volta, ou então seria apenas desconforto, vergonha.
O jovem comensal brilhava, portanto, a grande altura. Dominava realmente a pantera. E vestia uma camisola de um azul duvidoso que dizia à frente, em letras gordas, BOSS. Ele sabia que já tinha conquistado a sala, pelo menos a mim, na mesa contígua, não sou cego nem surdo e era-me impossível escapar ao espectáculo. Ele tinha-me na mão. Resolveu, então, encerrar com chave de ouro a performance e o almoço, mandando vir queijo para sobremesa e aproveitando a oportunidade para voltar a exibir os seus dotes de conhecedor, de especialista. Exigente, pediu informações a respeito do queijo, porque para ele não podia ser um queijo qualquer. Perguntou se o queijo era flamengo ou era Limiano, foi isso mesmo que perguntou, assim, porque, a verdade também era só uma, como passou a explicar, ele não gosta de queijo flamengo, nem o pode ver, quanto mais comer. Flamengo, nunca! Gosta muito é do queijo Limiano, isso sim, "daquele de bola, com buraquinhos", fez questão de especificar, como um verdadeiro fromager.
O funcionário do restaurante informou que o queijo da casa era por acaso desse, do bom, queijo Limiano, do de bola, o queijo veio, foi comido com marmelada e toda a gente ficou satisfeita. Evidentemente, o queijo Limiano de bola é queijo flamengo, qualquer um sabe, mas isso são pormenores que só interessam a pessoas que, como eu, não percebem nada de queijo.
E então lembrei-me, a este respeito, do querido Sérgio Lopes, honesto apreciador de sandes de queijo e um dos maiores e mais cristalinos amigos que deixei em Fafe.

terça-feira, 12 de agosto de 2025

A mania da praia

A praia, é preciso que se note, não é obrigatória. Podem ser férias e não ir à praia. Pode ser Verão e não ir à praia. Pode ser sol e não ir à praia. Pode ser calor e não ir à praia. Pelo contrário: se for sol, se for calor, muito calor, o mais sensato até será ficar em casa, à sombra, ou procurar uma fresquinha no quintal mais próximo. Acreditai no que vos digo, há quarenta anos que moro à beira-praia e sei muito bem do que falo. E palavra de honra: não ir à praia não parece mal, não é crime e tampouco desmazelo ou falta de educação.

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

A madama e os saralhotos

Dizia o povo, e com razão: cagarim, cagarou-se, há dois modos de cagar, se o cagalhoto for grosso, fica o cu o fumegar.

Matosinhos à tarde. Sol que é um consolo. Puxado pela trela do pequeno cocker, o casal desce a rua, a minha, em direcção ao mar ali à beira. Eis senão quando, porventura desarranjado pelo strogonoff de vitela ou pelo leite-creme que lhe serviram ao almoço, o aflito canídeo arreia as calças e caga ali mesmo em pleno passeio, com evidente alívio pessoal e grande satisfação dos babados papás. Acabada a obra, a madama, higiene e civismo acima de tudo, vai à carteira de marca e retira um lenço de papel de um branco imaculado, abre-o, ao lenço casto, provavelmente perfumado, e volta a dobrá-lo, liturgicamente, agora apenas em dois, baixa-se, quase que me parece que se benze, e limpa o cu ao cão. Isso, limpa o cu do cão. Depois amarrota o papel e lança-o para junto do saralhoto. E ali fica o serviço. No meio do passeio. Do meu. E lá seguem os três para o mar e para o sol, dois deles puxados pela trela.
A autarquia agradece. Faz colecção. No brasão de Lisboa desenharam corvos, no de Matosinhos deveriam figurar saralhotos. A cidade de Matosinhos, para além de muitas coisas boas que tem, é isto: não há passeios que cheguem para tanta merda de cão. E a culpa não é do cão.

domingo, 10 de agosto de 2025

Pó menino e pá menina...

"Pá comida!", escreveu o jovem escultor de areia na caixinha de cartão estrategicamente colocada junto à sua mais recente criação, na praia encostada ao passeio, e já com quatro ou cinco moedas graúdas pré-depositadas. "Pó caralho!", dizia um papelinho que lá foi enfiado pouco depois não sei por quem.

sábado, 9 de agosto de 2025

Faltava-lhe a cedilha

Leve cinco e pague seis!!!
Ele era comprador compulsivo e fanático por promoções, adorador de sextas-feiras negras. Um relâmpago que entrava, pegava, pagava e saía das grandes, pequenas e remediadas superfícies num abrir e fechar de olhos, sem sequer dar tempo a que as câmaras de vigilância lhe tomassem sentido. Morava em Fafe e estava no céu, rodeado de hipermercados por todos os lados. Ele acreditava que 13,99 são treze e não catorze euros. Se lhe aparecesse à frente "Leve cinco e pague seis!!!", letreiro jeitoso em vermelho e amarelo rematado por veementes pontos de exclamação, ele aproveitava logo...

Fui ao supermercado e comprei uma alheira. Como acontece tantas vezes a muito boa gente, trouxe para casa um dois-em-um: a alheira propriamente dita e um grandessíssimo barrete. E reclamei. Reclamei para o fabricante, reclamei para a cadeia de supermercados, reclamei até para o provedor do cliente do grupo económico dono da cadeia de supermercados. Todos me responderam, com mais ou menos demora e as tretas do costume.
O primeiro a bater com a mão no peito até foi o fabricante. Para além de um simpático pedido de desculpas, oferecia-se para me enviar uma nova alheira: imaginei que me mandaria pelo menos meia dúzia, todas elas de qualidade cinco estrelas, mas não aceitei. Eu só queria reclamar, porque reclamar é bom, alivia a azia, desopila. E eu já estava satisfeito.
Devo dizer que, regra geral, dou-me bem com os supermercados. Pela manhãzinha, logo após a abertura, aproveitando o fresco dos balcões frigoríficos. Em todo o caso - e a quem puder interessar, para futuras demandas, ou, quem sabe, até para fazer jurisprudência -, aqui deixo, humildemente, o teor da minha bem sucedida reclamação:

Exm.ºs Senhores,
Comprei ontem na loja do [...], em [...], uma alegada "Alheira de Caça" produzida por V. Ex.ªs e pomposamente apresentada como "produto seleccionado da Terra Fria Transmontana".
A etiqueta prometia uma alheira com, nomeadamente, 40% de carne de caça (pato, perdiz e coelho), 30% de carne de porco e 20% de pão trigo.
Cozinhada e aberta, verifiquei logo, sem precisar de ir ao microscópio, que fora enganado. Carne... de grilo! Assim a olho - e comprovado na boca! -, a alheira era afinal composta por 90% de pão e 10% de gorduras diversas.
Dito de outra forma: a alheira de caça de V. Ex.ªs não trazia cedilha.
Melhores cumprimentos,
h.